O “êxito prodigioso” só pode ser a vida. Simultaneamente com a gênese estrutural da célula, ou quando esta já se completara, pouco importa, aconteceu a Biogênese, a travessia do “Rubicão” que separa a não vida da vida. Na história do Universo registraram-se apenas outros dois momentos de tamanho significado: a origem da Energia, a matéria prima de tudo quanto existe e a Antropogênese. A pergunta pela origem da Energia, a origem da vida (a biogênese) e a origem do homem (a antropogênese), carece de uma resposta radical, definitiva e convincente. Desafiam a Ciência, a Filosofia e a Teologia para oferecê-la. Pelo que tudo indica nenhum dos campos do conhecimento está em condições de, “a priori”, oferecer um resposta conclusiva. Tanto assim que o próprio Teilhard indica duas vias explicativas possíveis para a questão na sua obra “O lugar do homem na natureza”.
A primeira. Pela via “materialista” num automatismo sui generis de seleção natural, impelindo a Matéria a enredar-se e a rolar cada vez mais depressa, como uma bola de neve, pelas ravinas de uma complexidade sempre crescente. A segunda. Pela via “espiritualista” procurá-la numa expansão de consciência, tendendo à consciência, invencivelmente, a acabar-se até o fim, mas só o podendo conseguir na condição de criativamente arrumar, ou seja, centrar cada vez mais a matéria à sua volta? Nunca como na primeira explicação, cada vez mais consciência no Mundo, porque cada vez mais complexidade (fortuitamente realizada; mas cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez mais consciência (gradativamente emergida. (Teilhard de Chardin. 1956. p. 43-44)
Como não podia deixar de ser, Teilhard prepara o caminho para a solução do impasse em direção à “via espiritualista”. Fique claro que ele, como não podia deixar se ser, pois, aborda o problema como cientista, não se utiliza do conceito teológico da criação, ou “causa suficiente”, por sua vez um conceito filosófico, mas se vale de conceitos compatíveis com a linguagem científica. A organização, a evolução da matéria a partir dos estágios mais simples até os altamente estruturados e organizados, encontrou na “complexificação” a sua explicação. As construções cada vez mais complexas que terminaram na célula viva, não resultaram do encontro de um número crescente de elementos que se somam e agregam. Contam como dinâmica formadora da integração, da complementariedade, do interagir de átomos, moléculas e macromoléculas. Anima o processo todo a “consciência” que estimula a matéria em busca de uma complexificação crescente e esta, por sua vez, permite que a consciência possa manifestar-se, também em plenitude sempre maior: “Cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez mais consciência (gradualmente emergida”). Fica claro, portanto, que o caminho que culminou na célula e na vida, ou possibilitou a vida na célula, coube à consciência que imprimiu ritmo e rumo à matéria que compõe o Universo.
Já que o conceito “consciência” é de tamanha importância para Teilhard, requer-se uma compreensão clara do que ele fala. O tradutor e comentador de “O Fenômeno Humano” José Luiz Archanjo, explica numa nota o conceito:
Consciência, enquanto fenômeno, isto é, enquanto manifestação evidente da interioridade, de dentro, designa, para Teilhard, qualquer forma de psiquismo, desde a mais diluída e elementar (os tatismos dos unicelulares, por exemplo) até a mais concentrada e complexa (a reflexão humana); a consciência reflexiva. O termo é, pois, voluntária e intencionalmente generalizado por Teilhard. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 67)
A justificativa, ou melhor a compreensão do significado e a importância do conceito de “consciência” torna-se por assim dizer, o elemento-chave para entender o universo de Teilhard. A matéria que o compõe caracteriza-se pela pluralidade, pela unidade e pela energia.
Que o universo como um todo e as partes que o compõem é plural, até a observação do homem comum percebe. Os minerais são múltiplos, os biontes são múltiplos, os vegetais são múltiplos, múltiplos são os animais e múltiplo é o próprio homem. Essa multiplicidade, entretanto, na base do universo, agrega-se em unidades cada vez maiores e mais complexas. Ficando com a conceituação de Teilhard, pode-se imaginar essa arquitetura na escala ascendente em busca de uma unidade superior, percorrendo o caminho da “complexificação”, complementada pela “agregação” e a “incorporação”. Uma duna de areia é formada por bilhões de grãos de areia que se acumulam por simples agregação, assim como uma pilha de tijolos ou uma montanha de grãos de cereais. Um cristal cresce pela incorporação na sua rede de sempre mais moléculas da mesma natureza química. No organismo vivo a evolução dá-se por “complexificação. Não se exclui na sua gênese, nem a agregação, nem a incorporação, mas como mecanismos complementares e auxiliares. A agregação e a incorporação que foram suficientes para entender a formação de uma duna de areia, ou o “crescimento” de um cristal, já não o são para entender a natureza do processo que deu origem à célula viva, à planta superior, o animal e, muito menos o homem.
Para melhor entender a natureza do processo da complexificação na natureza, faz-se necessário observar o que acontece a nível atômico e mesmo subatômico. A clivagem da matéria até onde os métodos empíricos de hoje o permitem, leva ao átomo com sua estrutura submicroscópica. O mistério da sua estrutura e dos seus potenciais energéticos parecem revelados pela ciência, ao menos em linhas gerais. O observador apressado corre o risco de achar que não está longe o dia em que já não haverá mais o que descobrir. E, com isso, o homem terá em mãos a chave para controlar e disciplinar em seu favor as forças básicas que regem o universo.
Não é esta a conclusão a que chega Teilhard. O átomo ou as partículas subatômicas, por mais identificadas e identificáveis que possam parecer, mostram uma outra dimensão. Sua identidade física e química representa apenas a metade da verdade, a verdade mensurável, a metade dissecável, a metade passível de clivagem. A outra metade aponta para o que o átomo, a molécula tem algo de co extensivo ao menos potencialmente. Teilhard fala em “estranha propriedade que reencontraremos mais adiante até na molécula humana”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 42). E numa tentativa de tornar inteligível o seu raciocínio propôs a saída, valendo-se do conceito de “unidade coletiva”, entendendo-a como:
Os inumeráveis focos que partilham entre si um dado volume de matéria nem por isso são independentes uns dos outros. Algo os religa mutuamente, algo que os torna solidários. Longe de se comportar como um receptáculo inerte, o espaço preenchido por sua multidão age sobre ela à maneira de um meio ativo de direção e transmissão, no seio do qual sua pluralidade se organiza. Simplesmente adicionados ou justapostos, os átomos não constituem ainda a Matéria. Engloba-os e cimenta-os uma misteriosa identidade contra a qual o nosso espírito se choca sendo, porém, finalmente forçado a ceder. A esfera acima dos centros e envolvimentos. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 42-43).
Em todos os passos ascendentes da evolução da Matéria, até culminar na Antropogênese e, porque não, mais acima e além, essa propriedade misteriosa desafia a curiosidade do observador. O que leva o encontro de átomos a formar uma molécula? A composição de moléculas uma célula, um bionte unicelular? Protozoários formar metazoários, metazoários animais e vegetais, animais símios?, símios em antropóides? e, finalmente, antropóides em humanos? Orientando a questão numa outra direção e, recorrendo a uma analogia, parece legítimo formular perguntas como: O que faz com que um conjunto de solos, situações climáticas, microorganismos, ervas, arbustos e árvores, formem uma floresta? O que há a mais numa sociedade de formigas e sua associação simbiótica com acarídios ?. O que faz com que uma unidade ecológica associe plantas, insetos, pássaros, animais, solos e microorganismos, num sistema, semelhante a um organismo? O princípio comum e inicial no qual é preciso procurar as respostas para as perguntas formuladas acima é, segundo Teilhard, a “Energia”.