A Natureza como Síntese - 17

A compreensão da natureza íntima da célula coloca-nos frente a um desafio semelhante ao da energia do qual nos acabamos de ocupar. Os  elementos químicos, o arranjo estrutural, as múltiplas funções e as leis que comandam os processos intracelulares, são em grande parte do domínio da ciência. A questão realmente de fundo permanece na sombra e desafia os cientistas que se ocupam com seriedade em elucidá-la. Neste particular a pergunta-chave é: Se a célula é de fato um ser vivo, o que vem a ser a Vida?. Teilhard de Chardin faz um esforço enorme como cientista para aproximar-se da resposta pelo lado da ciência. Para ele o aparecimento da célula é algo de novo, de muito novo quando começou a  fazer parte do cenário da terra em evolução. 

É com os inícios da Vida organizada, ou seja, com o aparecimento da Célula, que concordamos  habitualmente em fazer “começar” a vida psíquica no Mundo. Coincide, pois, aqui com as perspectivas e  maneira de falar usuais, ao situar nesse estádio particular da Evolução um passo decisivo nos progressos da Consciência sobre a Terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)

Teilhard  faz um grande esforço para aproximar-se da explicação do que, em última análise, vem a ser aquele “Novum”, que chamamos de vida, que começou  a manifestar-se quando a “complexiificação ultrapassou o nível megamolecular. Partiu da constatação que ocorreu uma “revolução externa” responsável pela construção do edifício molecular. Essa revolução externa conta na sua base com os elementos químicos que entram na edificação do edifício da natureza, tanto inorgânica quanto orgânica: oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e carbono, somados a outros vinte e tantos elementos como cálcio, ferro, fósforo, iodo, cobalto, potássio, sódio, magnésio, metais diversos, etc.,  de alguma forma participantes nos diversos processos e funções celulares específicas. Combinações e recombinações desses elementos, levam pela “complexificação” ascendente, à formação de moléculas inorgânicas, mais  adiante orgânicas mais simples, para passar pelas macromoléculas, megamoléculas e, finalmente, a célula. Morfologicamente  falando a célula apresenta duas partes distintas: o citoplasma e o núcleo. Na sua composição entram aminoácidos de enormes pesos moleculares, lipídios, carboidratos, sais minerais, ... Tudo forma o protoplasma com aparência esponjosa. Nele atuam os processos de osmose, viscosidade, de catalise e de outras mais. E no interior destaca-se o núcleo contendo  os cromossomos que por sua vez abrigam o genoma. Resumindo pode-se afirmar com Teilhard: “Um triunfo da multiplicidade organicamente concentrada num mínimo de espaço”. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 89)

“A revolução interna” que levou a matéria a combinar-se  e a recombinar-se dando origem à célula não chegou a lançar dúvidas sobre a  “fixidez” que constitui o elemento chave que garante a unidade da natureza. Os  elementos químicos universais, aos quais  se fez referência mais acima, continuam formando a base do anorgânico, orgânico não vivo e do orgânico vivo, exatamente com se ensinou desde os primórdios da química como ciência sistematizada. De outra parte as células são essencialmente idênticas entre si, estrutural e funcionalmente,  entre os protozoários e os metazoários em qualquer organismo, independente da complexidade anatômica e estrutural.  A identidade celular, que aqui chamamos de “fixidez” é, ao mesmo tempo, estrutural e funcional. Tanto faz se observamos a célula que forma o protozoário ou alguma célula fazendo parte de um órgão, de algum animal superior. Em ambos os casos as funções vitais, o processamento dos nutrientes, a sua assimilação, incorporação, oxidação e a eliminação dos resíduos é igual. Qualquer célula, em qualquer situação é idêntica a todas as demais e a si mesma, na estrutura, nas funções que nela acontecem, na condição de funcionar como um sistema de equilíbrio instável. E o espetacular é que todas de alguma maneira manifestam “vida”, à sua maneira em cada nível. Nos protozoários todas funções vitais acontecem numa e na mesma célula. Nos metazoários as funções específicas acontecem em células especializadas e em tecidos e órgãos também específicos. Mas é importante não esquecer que o mais complexo dos organismos vivos ou teve, ou tem o seu ponto de partida numa única célula embrionária que naquele estágio inicial se encarrega de todas as funções exatamente como acontece no protozoário. E não se esqueça ainda de que os estudos sobre as células-tronco já nos permitem afirmar que qualquer célula adulta, não  perdeu o potencial da embrionária que possibilitou indiretamente a sua origem dentro de organismo superior.

A “revolução externa” pela “complexificação” e pela “fixidez” constituiu-se, sem dúvida, no pressuposto material e estrutural para que o outro processo, o da “revolução interna”, pudesse acontecer. Firmou-se o consenso entre os cientistas de que a vida manifestou-se pela primeira vez na história da terra numa célula, como há consenso também que a vida em todos os níveis tem a sua base nas células. Nelas acontecem os processos de natureza físico-química que permitem a manifestação da vida, ou concentrados numa única célula como nos protozoários ou seletivamente nos órgãos especializados dos metazoários.  A questão de fundo que a essa altura se coloca, é: De que natureza foi, em última análise, essa “revolução interna?” Teilhard esforça-se por manter-se coerente com a sua visão unitária do universo e da natureza. Tudo começou num ponto de partida – o Alfa. A partir dele por processos conhecidos e, principalmente, ignorados até agora, formaram-se os elementos estruturais da natureza constantes na “tábua periódica” e, provavelmente, outros ainda por descobrir. A “complexificação” ascendente completada com o contributo auxiliar  ou não da “agregação e ou repetição, prepara o cenário, no qual vão-se definindo, de forma progressiva e cada vez mais nítida, evidências de algo imanente no interior da matéria na medida em que ela se  complexifica.  A imanência que se refere a uma “interioridade”, a uma “consciência” em vias de explicitação,  que se torna mais evidente na razão direta em que a matéria evolui para patamares cada vez mais complexos, coloca o cientista e, porque não o filósofo, diante de um desafio de bom tamanho. Definir a relação causal entre esse “algo imanente” e a maior ou menor complexidade estrutural na qual se manifesta. Teilhard dimensionou o desafio quando escreveu: 

Nesse ponto, confesso, é difícil ser claro.  Mais adiante, no caso do Pensamento, uma definição psíquica  do “ponto critico humano” revelar-se-á de pronto possível, porque o Passo da Reflexão carrega em si algo de definitivo, e também porque, para avaliá-lo, temos senão que ler no fundo de nós mesmos. No caso da célula, pelo contrário, comparada  aos seres que a precedem, a introspecção só pode nos guiar por analogias repetidas e longínquas. Que sabemos nós da “alma” dos animais, mesmo dos mais próximos de nós? A tais distâncias para trás, temos que nos resignar com o vago em nossas especulações. 

Nessas condições de obscuridade e nessa margem de aproximação, três constatações  são ao menos possíveis,  - suficientes para  fixar de um modo útil e coerente a posição do “despertar da célula” na série de transformações  psíquicas que preparam sobre a terra o aparecimento do fenômeno humano. “Mesmo” e, acrescentarei “sobretudo” nas perspectivas aqui admitidas, a saber  que uma espécie de consciência sobretudo precede a eclosão da Vida, um tal despertar ou salto 1) pode ,  - ou melhor 2) deve ter-se produzido; e assim 3) acha-se parcialmente  explicada uma das mais extraordinárias renovações  historicamente experimentadas pela face da terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)

Nas entrelinhas do texto citado fica claro que Teilhard faz um esforço fora do comum para encontrar uma resposta coerente e aceitável à pergunta que formulamos, a respeito da relação causal entre a complexidade estrutural da célula e a gênese da imanência, da interioridade, da consciência. Sua intenção e seu esforço em aproximar-se da explicação pelo viés científico não deixa dúvidas. Aliás essa opção é coerente com a opção metodológica que orienta as abordagens do “Fenômeno Humano” em toda a sua extensão. De outra parte não consegue mascarar de todo a sua condição de filósofo, teólogo e jesuíta que, com certeza, o lembram consciente ou inconscientemente dos compromissos com a fé, a doutrina e os princípios filosóficos que pautaram a sua vida como religioso. Essa situação faz com que  se esforce e se demore na apresentação de dados, invocar processos,  tirar conclusões e, principalmente, criar um corpo conceitual muito seu para dar coerência, solidez e confiabilidade à sua cosmovisão. Às voltas com a dificuldade de formular uma resposta pelo caminho da ciência sobre a verdadeira natureza do passo  que aconteceu na transição do não vivo para o vivo, ele se pergunta:

E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão  definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantasistas. Essa  expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não está exatamente aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar? A explosão de energia interna consecutiva e proporcionada a uma super-organização fundamental da Matéria? (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 91)

Continuando, formula a resposta  para a manifestação da Vida na “super-organização fundamental da Matéria, a qual, entretanto, deixou em aberto a questão crucial: qual a causa última responsável  pelo surgimento da vida na célula? “( ... ) Por essa dupla e radical metamorfose  podemos razoavelmente  definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem  da Molécula para a Célula, - o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91). A  explicação que lança uma luz sobre a aparente resistência em formular a resposta à pergunta que vai-se se tornando cada vez mais insistente na medida em que se avança no exame tanto do “Fenômeno Humano” quanto no “O Lugar do Homem na Natureza”, data de um documento escrito em Pequim em fevereiro de 1942. 

1. “Como foi explicado no Prefácio, este trabalho não é um livro de religião, nem mesmo de filosofia. Rigorosamente escrito como uma memória  de geologia ou de paleontologia, ele representa, no meu pensamento, uma contribuição científica para o uso da Ciência: um esforço para ordenar melhor o nosso conhecimento físico do Mundo, abrindo ao Homem um lugar coerente até o fim, na Biologia.
2. Por conseguinte, que ninguém se espante se nestas páginas, limitadas (é sua força) ao estudo de um “fenômeno”, não aparecem quaisquer considerações sobre a natureza ontológica do espírito e da matéria, nem qualquer menção das verdades reveladas (Queda, Encarnação, Criação) ...,) Essas verdades não são nem negadas nem esquecidas, não teriam o seu lugar nem lógico, nem psicológico. 

3. Essa omissão, ademais, é só aparente. Se (em conformidade aos ensinamentos do concílio do Vaticano) eu chego, seguindo o caminho racional e científico, apenas a uma “demonstração” aproximada da existência de um Deus pessoal, tenho pelo menos uma certa confiança que as perspectivas desenvolvidas no livro formam um quadro e transmitem uma atmosfera favoráveis que predispõem os espíritos a esperar e reconhecer uma Revelação. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 376) 

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