A Natureza como Síntese - 18

A Antropogênese. 

Não há dúvida de que a biogênese, o aparecimento da vida com a célula, significou o ponto de partida para, o pressuposto condicionante, para que a evolução avançasse, sem sobressaltos, numa trajetória harmônica em direção ao  “ômega”. Uma vez acontecida a Biogênese, a próxima “estação” de significado crucial nessa jornada cósmica, vem a ser a Antropogênese.  Convém lembrar que não se trata apenas de vencer mais uma etapa importante na complexificação da natureza. A gênese da matéria, a biogênese e a antropogênese podem ser consideradas como sendo os marcos de referência que balizam o rumo da evolução do universo ao encontro do “ômega”, ponto de convergência e, mais do que isso, a própria causa e razão de ser do universo, da natureza e do homem. 

Depois da incursão nos meandros do fenômeno, da gênese e da natureza da vida,   até o ponto em que os conhecimentos científicos o permitem, Teilhard  persegue as pegadas deixadas pela evolução da vida, em busca da realização máxima de que a matéria viva foi capaz: o Homem. Como o foi até aqui, o modelo dinâmico do globo terrestre continua oferecendo  o cenário gráfico sobre o qual se desdobra gradativamente seu raciocínio e formula as suas conclusões. O polo sul, o “Alfa” é o ponto de partida. Desse ponto de partida  evolução gera uma quantidade e, principalmente uma diversidade espantosa de estruturas e formas de organização da matéria, as quais, à maneira dos meridianos vão se abrindo em leque até o máximo na altura do equador. Do equador em direção ao polo norte, voltam a convergir até fundir-se num ponto só, o “Ômega”. O que acontece com universo e a natureza como um todo, repete-se com a vida animal e vegetal em geral, com cada espécie em particular e com o homem também. Acompanhemos  Teilhard na caminhada do homem desde o seu Alfa até  o seu Ômega.

“O homem entrou sem alarde no mundo” (Teilhard de Chardin.1986.  p. 198). Com esta observação Teilhard quer afirmar apenas que a entrada do homem no cenário da natureza, não foi nada de espetacular vista na perspectiva da evolução natural. As descobertas da paleoantropologia que se multiplicaram no decorrer dos últimos cem ou mais anos, apontam para uma trajetória, sob o aspecto anatômico morfológico e filético,  em nada diferente daquela das demais espécies de animais. “Quanto mais a Ciência sonda o passado da  humanidade, mais esta, enquanto espécie, se conforma às regras e ao ritmo que, antes dela, regeram o aparecimento de cada novo rebento na Árvore da Vida” (Teilhard de Chardin. 1986. p. 199). A entrada, a presença e a dispersão dos grupos humanos foi tão discreta ao ponto de sabemos pouco de concreto sobre essa história que seguramente se estendeu por dezenas,  centenas de milhares, quem sabe milhões de anos. Quando os instrumentos de pedra lascada, prova definitiva da sua presença,  representantes da espécie humana, já podiam se localizados em todo o continente africano e por toda a Euro-Ásia até Pequim. 

Para Teilhard, mesmo que a ciência dispusesse ou com o tempo viesse a dispor, dos elementos materiais suficientes para reconstruir a gênese e a trajetória do filo humano na sua ascensão anatômica e morfológica, em detalhes e sem saltos e lacunas, a questão realmente de fundo que envolve o homem, continua em aberto. O tamanho do desafio fica claro na seguinte observação.

Para apreender a amplitude verdadeiramente cósmica do fenômeno, seria necessário que seguíssemos suas raízes, através da vida, ate os primeiros envolvimentos  da terra sobre si mesma. Mas se quisermos compreender a natureza específica e adivinhar o segredo do Homem, outro método não há senão observar o que a Reflexão já deu, e o que ela anuncia, para diante. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 202).

Antes de sinalizar para uma resposta que ele, como jesuíta e como tal versado em Filosofia e Teologia, necessariamente irá remeter a esse nível, Teilhard esgotou todas as aproximações pelo lado ciência de que dispunha. Acompanhou passo a passo a trajetória da espécie humana, desde o momento em que testemunhos materiais não deixam dúvidas sobre a sua presença no cenário da vida. No final do plioceno, última fase do terciário, a superfície da terra moderna recebeu seus acabamentos  definitivos com  grandes depósitos de areia, argila e aluvião. Nessa paisagem  reinavam mastodontes, cavalos primitivos, tigres dente-de-sabre e nos oceanos uma fauna  semelhante à atual. Até aquele momento não há vestígios da presença do homem. Mas é no começo e durante a maior parte do quaternário com a instalação de um clima mais frio e mais úmido, caracterizado por períodos de expansão do gelo sobre vastas áreas continentais  (glaciações), intercalados por  períodos de degelo (interglaciais), acompanhadas com a formação de morainas, deposição de areias glaciais, transporte de blocos erráticos, formação de depósitos de loess e pântanos de turfa, o cenário natural para receber o homem está completo. Povoam esse cenário manadas de mamutes, rinocerontes, renas, ursos das cavernas, alces gigantes e representantes de todas as espécies de animais e vegetais contemporâneas ao homem. 

“E o homem entrou no mundo sem alarde”. ( ... ) Quanto mais se multiplicam  os achados fósseis humanos, quanto mais se esclarecem seus caracteres anatômicos e sua sucessão geológica, - mais evidente se torna, por uma convergência incessante de todos os indícios e de todas as provas, que a “espécie” humana, por única que seja a razão do plano entitativo a que a  ergueu a Reflexão, nada abalou a Natureza no momento de seu aparecimento. Com efeito, quer a observemos no seu ambiente, - quer a consideremos na morfologia de sua haste, - quer a inspecionemos na estrutura global do seu grupo, ele emerge fileticamente aos nossos olhos exatamente como qualquer outra espécie. (O Fenômeno Humano,Teilhard de Chardin. 1986.  p. 198)

Em algum momento no final do Plioceno, final do Terciário ou inícios do Quaternário, provavelmente em alguma savana da África, cintilou pela primeira vez a centelha da Reflexão. Antes e durante as mudanças geomorfológicas ocorridas durante o Plioceno, não há vestígios materiais confiáveis atestando a presença do homem. Por via indireta conclui-se por ela pois, quando termina a acomodação dos terrenos aparecem entre os depósitos de aluvião, areia e cascalhos, os testemunhos fósseis do Homem de Java e do Sinântropo da China. O número e a variedade de peças permite hoje um estudo comparativo bastante confiável entre esses dois grupos humanos da Ásia Oriental. Por si só essas peças paleoantropológicas não provariam definitivamente a presença do homem, se não viessem associadas a artefatos de pedra lascada, localizados em toda a África e  Europa Ocidental até a Ásia Meridional. Diante dessa realidade dois fatos complementares merecem observação. Primeiro. Admitindo a convicção de Teilhard, assim como da maioria dos paleoantropólogos,  de que a espécie humana é monofilética, isto é, descende de um único tronco inicial do qual evoluíram os tipos raciais morfológicos já extintos e ainda hoje espalhados pelo mundo, o homem surgiu em algum ponto geográfico definido. Pelo que os dados apontam esse acontecimento situa-se na África. Segundo. Partindo do pressuposto de que os instrumentos de pedra lascada são prova conclusiva da presença da Reflexão ou, se quisermos da Inteligência Reflexa, conclui-se necessariamente que a história do homem recua em muitos milênios sobre os quais temos informações tão escassas, que as conclusões permanecem no terreno da especulação ou da hipótese. Uma coisa parece certa. Para que a humanidade se espalhasse por tão vastas áreas foram necessários, nas condições de então, períodos contados em milênios, em dezenas de milênios e, provavelmente em centenas de milênios. Pois bem. Mas não é exatamente isto que nos preocupa neste momento. De fato em última análise pouco ou nada importa a aparência externa  que caracterizou o homem nos diversos estágios da sua ascensão evolutiva. Se há provas que o Sinântropo, o Homem de Java, o Homem de Trinil, o Homem de Heidelberg ou o Homem de Neandertal, foram portadores de Inteligência Reflexa, então foram igualmente humanos como o Homo Sapiens de hoje, apesar de suas aparências mais ou menos teromorfas ou simiescas. 

O enorme  e complicado desafio, de como harmonizar a visão do humanismo cristão tradicional com os conhecimentos  científicos, que conferem uma compreensão cada vez mais real e pragmática ao  mundo que nos cerca.  foi explicitado por Teilhard nas páginas do “Fenômeno Humano” e em “O Lugar do Homem na Natureza” Como cientista avança até esgotar o potenciais teóricos, metodológicos e experimentais que a ciência oferece, para explicar o “Fenômeno Humano”. Com a entrada da “Noosfera”, algo de inédito a um nível muito mais profundo do que com a entrada da “Biosfera”, dá um impulso novo a toda a natureza. Nada daquilo que preparou o caminho para o fato absolutamente novo, inusitado e inédito, foi superado. A energia primordial, os átomos, as moléculas, as macromoléculas e as mega moléculas, as células, os protozoários e os metazoários em todos os níveis de evolução, em todas as suas formas e desdobramentos evolutivos, continuam como sempre foram. A “consciência” cósmica continua presente em toda a parte, “desenrola-se”, na terminologia de Teilhard, explicita-se e dita o rumo dos acontecimentos e garante a sobrevivência instintiva dos animais. Com a entrada em cena da Reflexão, da Inteligência Reflexa aconteceu um salto de qualidade como jamais houve antes. Inaugurou o predomínio da Noosfera. O homem como o animal sabe, mas distancia-se radicalmente desse nível pela capacidade de Reflexão, a capacidade de ser capaz de saber o “porque” do seu saber”. Essa formulação oculta o abismo que separa o saber instintivo do saber reflexo ou racional. A Reflexão permite ao homem analisar, distinguir, ponderar, avaliar, escolher e optar por  caminhos, soluções e vias alternativas para  enfrentar as situações concretas mais variadas. 

Fica claro que tentar entender o leque sem fim de potencialidades implícitas que acompanham a chegada da Noosfera, exige o recurso a um instrumental  de outra natureza daquela que a Ciência oferece com seus métodos e aparatos. Depois de aperceber-se que já não tinha nada a esperar, via Ciência, para avançar na compreensão dos mistérios mais intrigantes do “Fenômeno Humano”, tanto no final do livro “O lugar do Homem na Natureza” quanto do “Fenômeno Humano”, Teilhard, segundo seu grande admirador e comentador Jean Piveteau, da Academia Francesa de Ciências, observou:

Na última parte da obra, o Padre Teilhard de Chardin parecerá mais filósofo que homem de ciência, e muitos dos que admiraram o paleontólogo na sua interpretação da evolução do mundo vivo, sentirão alguma dificuldade em acompanhar o autor nas suas previsões. Mas a todos sensibilizará o pensamento lúcido e firme e a autoridade intelectual de um dos maiores espíritos do nosso tempo. (Teilhard de Chardin. 1956.  p. 11)

O raciocínio que leva Teilhard ao projetar o futuro do “Fenômeno Humano” ou a evolução da “Noosfera” como uma realidade perfeitamente integrada na evolução universal, pode até ser  mais difícil de ser acompanhado, mas não deixa de ser “lúcido e firme” e, sobretudo coerente com a “Complexidade – Consciência” que serve de eixo e guia a toda esta obra”. (Teilhard de Chardin. 1956. 124). 

This entry was posted on domingo, 21 de novembro de 2021. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.