Bicentenário da Imigração - 11

Alemães na Argentina colonial

Da mesma forma como aconteceu no Chile também na Argentina a presença alemã se faz notar desde os primeiros anos depois do descobrimento da América. As evidências mais antigas relativas à  contribuição alemã na exploração dos territórios que formariam mais tarde a Argentina, aparecem na expedição de Fernão de Magalhães. Cartógrafos, impressores, náuticos, canhoneiros e outros peritos alemães gozavam de excelente conceito junto à corte portuguesa. Quando o navegador empreendeu a viagem à procura de uma passagem até "as ilhas das especiarias", contornando, a serviço do rei de Espanha,  o extremo sul da América, valeu-se das cartas náuticas desenhadas por Martin Bechaim ou Martin de Boemie, como registrou  o cronista da viagem. Parte da viagem, num valor de 10.000 ducados, foi financiada pela Casa Fugger através do seu representante na Espanha. Trata-se do óbvio quando se afirma que havia um número considerável de alemães embarcados nos cinco navios da expedição. Um deles mereceu referências especiais dos cronistas da viagem. Trata-se do primeiro sargento canhoneiro Hans Varge de apenas 25 anos. Após muitas peripécias os navegadores chegaram finalmente às ilhas nos mares do sul. Hans Varge sobreviveu à fome e ao escorbuto e conseguiu livrar-se das armadilhas  dos moradores das ilhas. Aprisionado pelos portugueses nas ilhas Molucas, passou cinco anos em prisões desumanas e finalmente transportado para Lisboa morreu no calabouço do "Limonero".

Como recompensa pelo suporte financeiro recebido pelos Fugger e Welser, o imperador Carlos V. concedeu às duas casas, em 1525, os mesmos direitos que aos espanhóis, para atuarem nos territórios de interesse dos espanhóis no além-mar. Já em 1526 foi organizada uma expedição para, contornando a América do Sul e passando pelo estreito de Magalhães, alcançar as ilhas dos mares do sul. O comando coube a Sebastião Caboto e nela tomaram parte representantes das duas casas. Caboto, alcançado o rio da Prata, deixou-se convencer por informações de índios brasileiros sobre fabulosas montanhas de prata. Num ato de flagrante desobediência aos superiores mudou o roteiro original da expedição e subiu o rio da Prata em busca das  jazidas de prata no Peru. Na expedição viajavam Hans Brunberger, agente dos Fugger e Kasimir Nürnberger da casa Welser. Por força de um acordo entre a casa Fugger e o Conselho das Índias toda a região sudoeste do continente até o estreito de Magalhães passou para a sua influência. Houve várias tentativas de implantar colônias na América do Sul  por parte dos Fugger. O que, porém, mais interessou e mais foi  realizado por eles e os Welser foram atividades comerciais. 

As expedições de 1535 tiveram como finalidade principal o reconhecimento do país. Deixaram como  marcos duradouros de sua passagem alguns dos expedicionários que as acompanharam, dispersos em diversos pontos do rio da Prata. A primeira expedição, com o propósito real de estabelecer assentamentos duradouros ao longo do rio, começou com o empreendimento de  D. Pedro de Mendonça na a sua viagem à América do Sul em 1535, embarcado em 14 navios e uma tripulação total de 1.500 homens. Um desses navios pertencia ao  banqueiro de Augsburg Sebastian Neithart e do comerciante de Nürenberg Jakob Welser. Nas tripulações encontravam-se ainda 80 alemães. Entre esses tripulantes viajava o jovem primeiro sargento Ulrich Schmidl de 25 anos, integrando o contingente de arcabuzeiros.  Ele deixou um relato de sua permanência na região de La Plata entre 1534 e 1554, publicado pelos “Straubinger Hefte em 2008 com o título completo: Ulrich Schmide/Ulrico Schmidel – Reise in die La Plata Gegend – 1534-1554. Esse documento foi por mim traduzido para o português e deverá ser publicado no contexto de um projeto que está sendo executado pelo PPGH de Hisrória da Unisinos sob a coordenação da profa. Maria Cristina Bohn Martins.

O projeto de colonização de Mendonça enfrentou duas dificuldades insuperáveis que terminaram por frustrá-lo. Em primeiro lugar foram os marinheiros e os agricultores que levara preferiram proteger-se numa "cidade" de choupanas cobertas de palha cercada por uma paliçada. Deixavam-se abastecer de carne e de peixes pelos índios Querandis. Estes finalmente cansaram e negaram-lhes  os suprimentos. Uma expedição foi organizada para castigar os índios, mas estes se aliaram aos vizinhos e sitiaram a "cidade". Depois de um mês os espanhóis partiram reduzidos a apenas 600 homens.  

Schmidl participou da expedição de Domingo Irala e participou da fundação de Asunción. Desta maneira transferiu-se de Buenos Aires para Asunción o centro das atividades dos espanhóis na região. Depois de consolidar sua autoridade sobre Asunción e os povos indígenas nas redondezas, Irala empreendeu uma expedição até o Perú sempre acompanhado por Schmidl e um cronista alemão. Depois da aventura ao Perú Schmidl despediu-se de seu "capitão" na América e em companhia de 20 índios abriu caminho até São Vicente em São Paulo onde embarcou para a Europa. De volta à pátria escreveu a obra "Descrição Verdadeira". O general Mitre observou a respeito da importância da obra como fonte histórica:

Ele (Schmidl) é um observador tranquilo e atento da natureza, despreocupado e sem fantasias. Relata os acontecimentos de maneira seca e objetiva, sem enfeites e sem digressões. Só ocasionalmente emite um juízo ou faz uma observação que leva a pensar, uma constatação de natureza etnográfica, geológica, estatística, astronômica o de  conhecimentos da natureza. Em poucas pinceladas nos brinda com um retrato, uma paisagem, um animal ou um planta, contribuindo assim com a concepção que temos de povos e raças esquecidos. Oferece também um material útil para entender a história da colonização do Rio da Prata pelos povos da Europa. (citado em Die Deutschen in Lateinamerika, p. 45).   (Fröschle, 1979, p. 45)

 Depois da  conquista seguiu a verdadeira colonização. Sobre o destino dos pioneiros europeus e no caso específico  dos alemães que ficaram para  sempre na América Latina, em qualquer um dos países, aplica-se o que acima já foi observado.

Na maioria das vezes viviam com uma ou mais índias. Nos seus filhos conquistadores e conquistados amalgamaram-se num único povo. Também os descendentes dos alemães submergiram nessa raça mestiça europeia-índia. Seus nomes foram na maioria dos casos deturpados pelos escrivães holandeses ou então hispanizados pelos próprios portadores. 

Depois da renúncia de Carlos V somente alemães esparsos  chegaram até a América espanhola. Desta maneira o elemento alemão significa apenas uma gota na mistura de sangue da qual emergiu o "crioulo". (Fröschle, 1979, p. 45)

Bicentenário da Imigração - 10

Alemães na América Latina Colonial

Alemães no Chile colonial.
O primeiro alemão de que se tem notícia na história do Chile  foi Barthel Blümlein, também conhecido como Bartholomäus Blumen, um comerciante que, partindo de Sevilha, empreendeu viagens para a América do Sul. Em 1540 associou-se ao capitão Pedro Valdivia na sua viagem para o Chile. Consta mais tarde na lista dos 40 integrantes do conselho que indicou Pedro Valdivia administrador da recém-fundada cidade de  Santiago. Já em 1541 aparece com o nome de  Bartolomé Flores, ocupando o cargo de procurador e síndico. Conhecido como amigo dos índios teve uma filha na relação que manteve com a filha do cacique. Reconheceu-a como herdeira única das muitas terras que lhe haviam sido concedidas pelo alto posto que ocupava. A filha Elvira que tivera  com  a índia foi casada com Peter Lisperguer outro alemão. De Lisperguer com a filha de Blümlein originou-se um importante clã da aristocracia colonial chilena. Entre seus descendentes contam-se três presidentes sul-americanos, além de outros homens proeminentes como Manuel e Pedro Montt.

Começa aqui a desenhar-se uma característica comum a todos os países da América Latina que receberam a contribuição alemã no decorrer de sua história. Numericamente chegou a ser insignificante no período colonial e modesto depois da independência. Em termos de contribuição nos mais diversos setores da formação dessas sociedades, porém, pode ser considerada excepcional. O Chile se constitui, neste particular, num dos exemplos mais completos. No período colonial os registros de alemães  ocupados com o comércio, com o desenvolvimento  técnico, com a mineração,  ou participando diretamente da organização da sociedade, ou da própria edificação da nacionalidade chilena, não passam em muito dos dois nomes acima citados. Há entretanto no período colonial uma contribuição muito significativa de jesuítas alemães como foi o caso também em toda a restante América Latina. Mas também neste caso constata-se uma visível diferença em relação, por ex., aos  países do Prata. Nesta região todo o empenho dos jesuítas, também dos alemães, concentrou-se na atividade missionária nas reduções sob o domínio dos espanhóis e nos aldeamentos dos jesuítas portugueses. Os jesuítas alemães enviados ao Chile durante o  período colonial não reduziram ou aldearam indígenas, não chegaram propriamente para serem em primeiro lugar missionários, mas para atuarem como fermento no contexto da formação da sociedade colonial chilena. E entre os jesuítas, obviamente na maioria de procedência espanhola, contavam-se  numerosos membros da ordem vindos dos estados alemães, da Áustria e da Suíça, etc. A importância de sua contribuição cultural ficou magnificamente resumida na obra já várias vezes citada: Die Deutschen in Lateinamerika:

Jesuítas alemães desempenharam um papel brilhante no Chile. Um dos primeiros jesuítas a trabalhar em solo sul-americano desde 1616, foi Andreas Feldmann natural de Hegau na Badênia. Desenvolveu suas atividades no Chile desde 1625 até a sua morte. Um tirolês de nome Bitterich exerceu a atividade de escultor, arquiteto e engenheiro. Foi grande a sua influência sobre o desenvolvimento artístico do Chile no século 18. A ele seguiram grupos inteiros de jesuítas, profissionais em todos os tipos de artes e ofícios. É conhecido, por ex., que na bagagem de 45 jesuítas constavam 386 caixas e fardos contendo ferramentas, livros, instrumentos de música, artigos farmacêuticos e até os equipamentos para montar uma tipografia. O historiador Barros Arana emitiu a seguinte opinião sobre o grupo: Fundiam sinos do tamanho e de uma beleza, que se sobrepunham a tudo o que se conhecia até então no Chile. Fabricavam móveis para igrejas e sacristias com tal acabamento e grandiosidade que despertava a admiração dos contemporâneos. Construíam rocas para o processamento de tecidos de lã. Serra um outro historiador escreve que jesuítas alemães haviam pesquisado o sul 100 anos antes de serem instaladas os assentamentos de  alemães. Entre os  jesuítas alemães e de fala alemã encontravam-se igualmente linguistas que se ocupavam com a língua dos araucanos. Menção toda especial merecem os farmacêuticos a maioria bávaros. A Zeitler, o mais notável entre eles, foi concedida a autorização especial de permanecer mais quatro anos, após a expulsão dos jesuítas de Santiago em 1767. Não era apenas farmacêutico, como também químico e médico prático. Já no século 18 os jesuítas empenharam-se no desenvolvimento do ensino superior no Chile. Davam ênfase às ciências humanísticas, de modo especial a história universal e a língua grega. (Deutschen in Lateinamerika, p. 303-304). (Fröschle, 1979, p. 303-304)

Bicentenário da Imigração - 9

O compromisso com a causa e a missão.

Aprofundando um pouco mais a caracterização da identidade germânica, encontramos um outro elemento que, aliado ao mito do “homem forte”, tornou-se o “motor da cultura germânica” na conquista do mundo, na expressão de Hans Naumann.

O edifício social dos povos germânicos tinha, no matrimônio o seu fundamento. Concebido por eles como monogâmico indissolúvel, significava muito mais do que um vinculo celebrado entre um homem e uma mulher. Anton Stonner resumiu assim o significado do matrimônio entre aqueles povos.

O grupo mais amplo, a parentela tem o seu fundamento no matrimônio e, por isso, o mantém sob vigilância. Muito mais do que hoje o matrimônio entre os germanos não foi apenas assunto entre cônjuges, mas uma questão que interessava às parentelas. O representante da parentela exercia o poder de tutela não só sobre a noiva como também sobre o noivo. Depois do casamento, a mulher encontrava proteção contra as agressões do marido.  No âmbito da parentela exercia-se também o direito e o dever da vingança de sangue. A parentela era responsável por uma determinada unidade das corporações militares. (Stonner, 1934, p. 57)

Na sociedade germânica alicerçada sobre o matrimônio monogâmico indissolúvel e o grupo de parentesco, a parentela, assegurava a continuidade das tradições. Não explica, porém, por que os povos germânicos tivessem conquistado direta ou indiretamente continentes inteiros, impondo a sua cultura aos povos nativos. A parentela representava o que havia de conservador, o permanente, o estável, o perene na organização germânica. Mas, por isso mesmo, continha em si o gérmen que dificultava ou até impedia uma transformação mais substantiva na sua estrutura e organização social. Por essa razão, ainda segundo Stonner, “limitada à organização em parentelas, a Germânia nunca teria ultrapassado o estágio de uma sociedade de agricultores”. (Stonner, 1934, p. 59) .

O que, na verdade, explica as conquistas germânicas, passando pela Europa Central e do Norte, pela migração dos povos, pelas conquistas dos Normandos e Vikings, pela conquista das Américas, pelas colonizações de continentes inteiros, pela atividade dos missionários, foi o que Hans Naumann chamou de “motor da cultura germânica”,  a “dedicação à causa”, a “Gefolgschaft”. No português não se encontra um vocábulo, um sinônimo que expressa o conceito no sentido exato em que, neste contexto é empregado. Tem aqui o sentido de  adesão a uma causa, o comprometimento com uma missão. Implica, consequentemente, na subordinação e lealdade a um chefe, a um líder, a um comandante, a um superior, a um príncipe, a um  rei, enfim a alguém encarregado de conduzir, comandar ou liderar a missão de  conquista. Além da fidelidade e da lealdade ao chefe, estabelecia-se horizontalmente entre os participantes de uma missão, uma relação de lealdade e  camaradagem. Era fundamental que os guerreiros, os conquistadores, os missionários, os colonizadores, partissem para o cumprimento de uma missão, mutuamente comprometidos e totalmente leais aos chefes. “Os germanos conquistaram o mundo movidos pela ideia do comprometimento com uma causa, aliada à ideia de uma liderança forte, de uma educação para a vontade heroica e a vontade de se ver participando de um grupo a serviço de  uma causa. (cf. Stonner, 1934, p. 59)

De acordo com o mesmo Stonner, deve-se a essa peculiaridade a relativa facilidade e a  rapidez com que os povos germânicos passaram em massa para o cristianismo.

O instituto germânico da adesão a uma causa, que não pode ser esquecido ao lado do grupo de parentesco, a parentela, conta entre os elementos que passaram para o cristianismo num estado de pureza relativamente grande, inclusive atingindo um brilho peculiar. Movidos pela fidelidade à uma causa os jovens germanos abraçavam o cristianismo junto com seus chefes e lideres. Os missionários não tiveram  o trabalho de  convencer e conquistar indivíduos. Bastava que os lideres se deixassem batizar. A adesão ao batismo, embora livre, tornava-se uma opção óbvia, em razão da lealdade ao chefe. (Stonner, 1934, p. 49)

Nesse contexto entende-se, por ex., o princípio que, depois da implantação da Reforma, colocou nas mãos dos príncipes a prerrogativa de estabelecer a confissão religiosa a ser adotada pelos súditos dos territórios  sob sua jurisdição, o princípio “cujus regio eius religio”.

O comprometimento com uma causa, embora por livre opção exigia a aceitação de uma série de  imposições, de regras, de obrigações como a propriedade coletiva de bens, o celibato e no caso de alguém optar pelo matrimônio, obrigava-o a desligar-se da causa, da “Gefolglschaft”. Não se admitia a calúnia. Todos eram obrigados a vingar o companheiro como se fosse um irmão. Cabia ao  chefe ou ao líder divulgar notícias. O chefe resolvia os desentendimentos. Os feitos heróicos dos indivíduos eram obrigatoriamente creditados ao chefe. Ninguém podia sobrepor-se ao chefe. 

O compromisso com tais regras implicava, naturalmente, em reflexos  importantes  sobre a vida quotidiana. Na prática significava o abandono do grupo de parentesco, e a entrega total e sem restrições a uma causa e a submissão sem reticências a um chefe. Este espírito favoreceu o surgimento das ordens de cavaleiros, que se tornaram lendárias na história: os cavaleiros teutônicos; os templários; os cavaleiros de Malta; os cavaleiros da Cruz e outras ordens semelhantes. Foi este espírito que animou também os cruzados a partirem sob as ordens de reis e príncipes, para a conquista da Terra Santa ou o extermínio dos inimigos dos cristãos, deixando para trás mulheres, filhos e propriedades. O mesmo espírito impulsionou  os Normandos e Vikings pelo norte da Europa e pela Rússia. Vista nesta lógica, não causa surpresa a forma como os castelhanos, descendentes remotos dos visigodos e vândalos, impuseram o seu domínio sobre o mundo. Entende-se também o destemor dos missionários ao difundirem o cristianismo, sem medirem nem obstáculos, nem riscos, mesmo que, para muitos, significasse o sacrifício da própria vida. Para se formar uma ideia mais completa desta visão missionária, basta dar uma olhada na “Conquista Espiritual” de Ruiz de Montoya. 

Antes  da conversão ao cristianismo os povos germânicos costumavam reunir-se na sombra de carvalhos milenares para prestar culto a Thor, o deus da guerra. Como a guerra era uma constante, algo que fazia parte do quotidiano  desses povos e como tal figurava no imaginário como instrumento pedagógico disciplinador  da personalidade, do caráter, os cultos em homenagem a Thor, como que se transformaram na expressão mais visível da sua religiosidade. Tanto assim  que São Bonifácio, o primeiro apóstolo da Alemanha, para provar que o Deus dos cristãos  era mais poderoso do que o Thor dos pagãos, derrubou o carvalho sagrado em cuja sombra o povo atônito se achava reunido para cultuar o deus da guerra. Frente ao silêncio de Thor, a resistência  para a aceitação do cristianismo estava quebrada. Seguiu-se a conversão em massa dos povos germânicos. Com a aceitação das novas crenças, não foram obrigados a renunciar, porém, a sua organização comunal fundamentada sobre uma sólida estrutura familiar. Não tiveram que abandonar os valores humanos, éticos e religiosos. Não trocaram  os hábitos e costumes frugais que tanto impressionaram o escritor Tácito, nem tiveram que renunciar aos referenciais simbólicos consagrados pela tradição. Pelo contrário. Mais do que muitos outros povos, a conversão ao cristianismo não significou para os povos  germânicos, uma ruptura tão radical e tão profunda com o passado histórico. Muito da forma tradicional de viver, agir, encarar a vida, valores e costumes orientadores da vida individual e coletiva, pôde ser preservado, revestindo-se apenas com a roupagem cristã. A passagem  para o cristianismo não chegou a mexer em elementos substantivos da tradição germânica. O papel de base cabia à família. E, como observou Tácito, em sua obra clássica sobre a Germânia, a infidelidade no matrimônio sofria sansões  pesadas, com exposição à execração pública, principalmente das mulheres infratoras. O alto valor atribuído à monogamia coincidia, portanto, com a concepção cristã do matrimônio. De outra parte, a organização comunal, como base da sociedade e fórum das decisões sobre os interesses comuns, como que se constituía numa réplica das comunidades do começo da história do cristianismo. Em termos organizacionais, por isso, a conversão à nova religião não impôs nenhuma violência, rejeição ou abandono da tradição. Bastou renominá-la e reorienta-la para as novas perspectivas. No relacionamento das pessoas e no trato das questões públicas e de interesse comum, os princípios da ética da conduta individual e coletiva, aproximavam-se e até identificavam-se com o cristianismo. As rígidas normas de conduta familiar, a lealdade para com o grupo, os camaradas e os chefes, o respeito para com os direitos do outro, uma forte estrutura hierárquica, as sanções aos transgressores e muitos outros aspectos, despertaram a admiração do escritor romano, impressionado com a decadência dos costumes de Roma e serviram de chão propício para a aceitação e o florescimento da doutrina e da disciplina cristã. 

Sobre a importância das decisões tomadas pela base popular, observou Tácito .

Os príncipes decidem  em questões menos importantes. Nas mais importantes, o conjunto do povo, mesmo naquelas às quais cabe o povo examinar e os príncipes já tomaram alguma decisão. Perante a assembleia do povo podem-se tratar de acusações que implicam em procedimentos judiciais passíveis até da aplicação da pena de morte. (Tácito, p. 33)

E sobre o matrimônio as observações de Tácito, entre outras, são as seguintes.

Apesar de tudo, reina entre eles uma concepção rigorosa a respeito do matrimônio e nenhuma outra faceta da sua vida moral merece  tantos louvores. Pois, entre os povos estranhos, são praticamente os únicos que se contentam com uma única esposa.Vivem, por isso, num clima de moralidade dos costumes, onde não se conhecem espetáculos licenciosos e protegidos contra todo e qualquer tipo de estímulo imoral. Desconhece-se a troca secreta de correspondência tanto entre homens  quanto entre mulheres. Numa população tão numerosa a infidelidade é muito rara e o castigo segue o ato e fica a cargo do esposo. Ele a expulsa de casa diante dos parentes, com os cabelos cortados e despida e enxota-a com açoites pela aldeia toda. Para a castidade vilipendiada, não há perdão. Apesar da juventude, apesar da riqueza, não encontrará outro homem, porque  entre eles, ninguém graceja sobre o vício e deixa-se seduzir pois, não significa algo ocasional. Ainda melhor estão as coisas naquelas tribos onde somente virgens chegam ao casamento e onde a expectativa e o juramento do matrimônio significam  a realização da mulher. Assim como só têm uma alma e um corpo, recebem um único esposo. Entre elas, não deve ter nenhum pensamento, nenhuma aspiração além disto. Cabe-lhe amar não apenas o esposo mas simultaneamente o vínculo matrimonial. (Tácito, p. 35)

E, pelo que tudo indica, os cristianizadores da Germânia, com São Bonifácio à frente, souberam preservar o cerne da cultura original. Bastou reorientar os referenciais doutrinários, disciplinares, simbólicos e civilizatórios. Com o ato simbólico de derrubar  o carvalho de Thor, São Bonifácio não investiu contra a religiosidade germânica em si, mas contra a entidade divina que a encarnava. Com sua atitude, não intencionou privar o carvalho de seu potencial simbólico religioso. Continuaria e, talvez mais do que até então,  a simbolizar a estirpe, a cepa germânica, admirada por não poucos e, por que não admiti-lo, odiada por outros, pela sua solidez milenar, pela fidelidade às raízes, pela lealdade aos chefes, pelo compromisso com os camaradas, pela defesa até o sacrifício da vida pela comunidade humana em que se acha inserido, pela disciplina que lhe confere confiabilidade e, de modo especial, pelo simbolismo religioso que o acompanha. Tanto assim que, nos séculos que se seguiram à cristianização, de modo especial na Idade Média, os troncos ocos de carvalhos milenares, serviam de nichos para abrigar estátuas  e imagens de Nossa Senhora. Os fieis peregrinavam até eles e, na sua sombra os devotos homenageavam, não o deus Thor, mas a Mãe da Cristandade.

Bicentenário da Imigração - 8

Uma quarta personalidade feminina de destaque pelas memórias que deixou registradas no livro de sua autoria: “Die Tochter des Pioniers” – “A filha do Pioneiro”, com tradução para o português e o espanhol, vem a ser “Tutz Culmey Herwig”. Fez o papel de secretária do pai, Carl Culmey, engenheiro agrimensor. Nascido e formado na Alemanha  veio exercer a profissão no sul do Brasil e norte da Argentina. Foi ele que mediu as terras na região de Cerro Largo e Santo Cristo enquanto  o Pe. Max von Lassberg dava atendimento aos colonizadores, procedentes na sua maioria das “velhas colônias” com se costumava dizer então. E, como inciso, um detalhe um tanto peculiar para as décadas iniciais do século XX. Max von Lassberg era jesuíta e Culmey protestante. Apesar disso consolidaram uma parceria que tinha como base muito mais do que uma relação de competências. Cultivavam uma respeitosa amizade que resultou num compromisso de suporte mútuo para cumprir a missão de abrir perspectivas de futuro para os excedentes que se acumulavam nas colônias mais antigas. Essa parceria foi também o suporte do sucesso na colonização de Puerto Rico na Província de Missiones no norte da Argentina.

A última empreitada de Carl Culmey foi a colonização da região de Palmitos quando veio a falecer afogado no rio Uruguai. A filha Tutz fez-se sua secretária e não perdeu a oportunidade para observar atentamente o papel da mulher numa frente de colonização. Aos 83  anos reuniu suas observações no livro acima citado: “Die Tochter des Pioniers” – “ A Filha do Pioneiro”. O foco dessa obra que interessa aqui resume-se no papel e no lugar da mulher naquelas colonizações. Giesla Lermen na sua tese de doutorado: “Mulheres alemãs emigrantes  no sul do Brasil” pinçou do livro de Tutz Culmey um parágrafo que resume as reflexões registradas no livro “A Filha do Pioneiro”.  “Aqui é o momento e lugar para cantar um hino de louvor a essas pioneiras anônimas da floresta virgem que cumpriam com as tarefas mais inimagináveis próprias do dia a dia. Cozinhavam, cuidavam dos filhos, tomavam conta dos animais domésticos, a administração da casa, costuravam, remendavam, ordenhavam as vacas e o que mais se possa imaginar. Pouco tempo restava para o descanso. E quando  ao entardecer o marido voltava da roça cansado, esperava-o com o chimarrão pronto. Enquanto ele descansava, ela continuava o trabalho desgastante até altas horas da noite. Importava dar banho às crianças e acomodá-las nas camas   para dormir, selecionar o feijão e deixar tudo organizado para a manhã seguinte. Ela, a primeira a levantar, prepara o café, apronta as crianças para irem à escola, alimenta as galinhas e os porcos, ordenha as vacas. E, depois de ter dado  conta das pequenas tarefas da casa, segue o marido para ajuda-lo na roça para voltar correndo para casa e aprontar o almoço, lavar a louça, supervisionar as tarefas escolares dos filhos para, novamente, seguir para roça e ajudar o marido”. (cf. Büttner Lermen, 2006, p. 54).

Além da epidemia da varíola e dos seguidos surtos de tifo, uma outra ameaça à saúde era motivo de permanente preocupação. Vinha à tona quando da aproximação da data de nascimento de alguma criança na colônia. Falamos da assistência às parturientes. Complicações direta ou indiretamente  relacionados com o parto contaram entre as principais causas de óbitos de mulheres jovens.

Na sua tese de doutorado publicada na Alemanha com o título: “Deutsche Auswanderinnen in Brasilien”, Giesela B. Lermen começa a sua avaliação sobre a presença da mulher na imigração, com a afirmação: “A mortalidade materna em consequência do parto, é um dos capítulos mais obscuros da história da colônia”. 

Não resta dúvida  de que nos encontramos frente a um tema, de um lado comum a todas as comunidades coloniais e, do outro, um dos menos comentados. De qualquer forma não é difícil formar-se uma ideia da  extensão e profundidade do problema. Basta tornar conscientes as circunstâncias reinantes no meio colonial, durante todo o século XIX e os primeiros anos do século XX, no que se refere à assistência dada às parturientes. Começa por aí que não havia nem médicos nem hospitais a quem recorrer. No que se relacionava com recursos em casos de doenças e os problemas surgidos por ocasião de muitos partos, os colonos estavam entregues à própria sorte. Com isso a mortalidade de mulheres jovens chegou a níveis preocupantes. A autora se refere a um levantamento feito pelo jornal “Deutsches Volksblatt” em 1908 sobre a expectativa da vida na colônia. Serviram como base os registros de óbitos  da paróquia de São José do Hortêncio entre 1868 e 1908. Os números falam por si mesmos. Dos falecidos entre 30 e 50 anos, constavam 21 homens e 51 mulheres. O jornal fez o dado acompanhado pela observação: “Certamente uma prova cabal da importância  da questão das parteiras para a colônia e a urgência para encontrar uma solução para esse problema.

Os alarmantes dados sobre a mortalidade materna em função da deficiente assistência às parturientes, pedia ações e iniciativas  eficientes e duradouras. O Dr. Gabriel Schlatter que conhecia muito bem a situação da assistência médica na colônia, manifestou-se da seguinte forma sobre o problema, na sétima Assembléia Geral Assembleia Geral da Associação dos Agriultoresdo Rio Grande do Sul realizada em Estrela em maio de 1907:

Posso garantir-lhes que aqui na colônia alemã do Rio Grande do Sul, cada ano centenas de   colonas morrem em consequência da assistência defeituosa durante o parto ou elas adoecem pouco depois. Muitas delas morrem e muitas que, em caso favorável, melhoram parcialmente, continuam durante a vida toda com alguma sequela. Pois, mal passa uma semana, na qual um ou outro dos nossos jornais alemães, não traz a participação de luto de que uma mulher e mãe faleceu no apogeu da vida, em consequência de um parto. (citado por Giesela B. Lermen, 2006, p. 236)

Da fala do Dr. Schlattter resultou um acalorado debate do qual participaram  os padres Amstad e Gasper mais o pastor Gans. Concluíram que a situação era tão grave que exigia uma ação séria e urgente, de natureza permanente e a longo prazo. Na proposta estava implícito o propósito de, de alguma maneira treinar parteiras para socorrer as parturientes das comunidades coloniais. Naquela Assembleia Geral, entretanto, não foi tomada nenhuma resolução concreta nesse sentido. A adoção de uma solução aconteceu no ano seguinte na Assembleia Geral em Santa Cruz do Sul. Por decisão da grande maioria foi aprovada a criação de uma instituição de treinamento fora de Porto Alegre. A decisão apoiou-se na lógica de que a quase totalidade das candidatas procedia do interior da colônia e sua atividade seria desenvolvida nesse meio. A escolha recaiu sobre Estrela pelo fato de o Dr. Schlatter já manter um curso de treinamento junto ao seu consultório normal. Bastava ampliá-lo, equipá-lo melhor e franqueá-lo às candidatas procedentes de toda a região colonial. Infelizmente o curso de treinamento de parteiras foi uma das primeiras vítimas quando da transformação da Associação Rio-grandense de Agricultores em sindicato no ano seguinte. Por decisão unilateral do Sindicato de Santa Cruz do Sul o curso foi transferido para Porto Alegre com a alegação dos benefícios que poderia auferir com a proximidade da Faculdade de Medicina. A decisão implicou na mudança da própria natureza e como consequência o afastamento do  Dr. Schlatter e frustrada a intenção de formar parteiras especificamente para o meio colonial, procedentes daquele contexto e conhecedoras  das características, costumes e hábitos do seu campo de trabalho, Giesela Lermen comentou a situação criada: 

Apesar da situação assustadora pintada pelo Dr. Schlatter e amparada nas estatísticas, sobre o estado de coisas relativo ao atendimento às parturientes durante o século XIX na colônia, a presença de parteiras e sua atuação provam igualmente que exerceram a profissão com prontidão e eficiência e cônscias da sua responsabilidade, gozando do reconhecimento da população da colônia. A memória delas foi perpetuada em anúncios fúnebres escritos por maridos, filhos, noras e genros, assim como e manifestações de gratidão por parte de maridos pelos atendimentos dado às esposas. (Lermen, Giesela, 2006, p. 236)

A presença das parteiras, sua importância para a colônia e sua dedicação à causa, foram objeto de referência, de manifestações de reconhecimento e de gratidão, registrados em almanaques, jornais, periódicos e nas reuniões de associações e congressos.

De qualquer forma a situação das parturientes teria sido muito mais dramática se, a partir da segunda metade do século XIX, as comunidades da região colonial mais antiga do vale do Sinos e Caí e, em parte da região  mais recente dos vales do Taquari, Pardo e Jacuí não contassem com parteiras dedicadas e competentes. Na tese de doutorado de Giesela Lermen encontra-se uma lista delas com a data do falecimento e as comunidades em que atuaram: Elisabeth Scherer, falecida em 1901, trabalhou em Lomba Grande; Barbara Spaniol atuou em São José do Hortêncio e faleceu em 1893; Ana Maria Eich, falecida em 1908 atendeu a comunidade de Erval; Susanne Gallas, falecida em 1912 atendeu as comunidades de Dois Irmãos, Gauer Eck (São José do Sul) e São José do Hortêncio; Franziska Allgayer, falecida aem 1901 atendeu Bom Jardim (Ivoti); Anna Junges, falecida em 1897, exerceu sua atividade em São Salvador (Tupandi); Anna Maria Schmidt, falecida em 1898 atuou em Campestre (Salvador do Sul) e São Pedro da Serra; Maria Kunrath, falecida em 1905, atuou no Tigertal (Feliz); Gertrud Haupental, falecida em 1905, atendeu Linha Bonita e Harmonia Helena Spieker, falecida em 1907, atuou na Linha Tamanduá (Lajeado); Katahrina Rippel, falecida em 1904, atendeu a Colônia Mariante.

Obviamente essa lista não está completa, mas dá uma boa ideia do nível de assistência de que dispunham os colonos relativo à vital questão da presença das parturientes partos e recém nascidos.

Convém não esquecer que, apesar da dedicação das parteiras, a falta generalizada de médicos, deixava uma grave lacuna na assistência às parturientes. Em situações mais graves como complicações devido a infecções, necessidade cesariana, etc., a ausência de médicos cobrava um preço alto, em não poucos casos a vida da mulher e ou da criança.

Cabe  a essa altura a pergunta: E quem foram essas mulheres parteiras, qual o seu perfil humano e profissional? Para começar a quase totalidade eram mulheres comuns, casadas com colonos, mães de famílias numerosas, como mandava o costume da época, donas de casa, agricultoras, nos intervalos em que nãos se encontravam em missão de atendimento a alguma parturiente. Apropriavam-se dos conhecimento e da prática com profissionais experimentadas. Mais raro foram os casos em que as aspirantes à profissão se submetiam a algum estágio em hospital de Porto Alegre. Em todo o caso as parteiras daquela geração dedicavam-se à  profissão, como uma autêntica missão alimentada na solidariedade para com as mães, suas famílias, comunidades e com as novas gerações. Por isso mesmo gozavam do respeito e simpatia geral. Em contrapartida respondiam com discrição à toda prova e um respeito profundo para com as pacientes. Eram personalidades conhecidas e. respeitadas como eram o padre e o professor. Costumavam ser chamadas pelo emblemático qualificativo de “Storchentante” – “Tia Cegonha”.

Por fim, permito-me  prestar uma homenagem especial às Diaconisas, as “Schwester” e às Irmãs de Caridade que, durante mais de meio século, fizeram com que os hospitais, sanatórios, asilos e outras instituições similares, fossem e fato locais onde enfermos, idosos e familiares encontrassem um tratamento digno. Elas, religiosas de ambas as confissões, marcaram com sua presença, entre 1900 e 1960 e mais tarde ainda, dezenas dessas instituições espalhadas pelo Rio Grande do Sul. No Moinhos de Vento, nos hospitais de Montenedro, Sinimbu, Panambi, Não Me Toque, Taquara e outros atuaram as Schwester, as Diaconisas. Na Santa Casa de Misericórdia, na Beneficência Portuguesa, no Mãe de Deus, no Centenário de São Leopoldo, no Regina de Novo Hamburgo, no Sagrada Família de São Sebastião do Cai, no Pompeia em Caxias do Sul e em dezenas de outros  hospitais menores, encontramos as irmãs de caridade de diversas congregações católicas. 

Ouso afirmar que o nível desses hospitais deve-se à competência, o comprometimento, a dedicação e, porque não deixa-lo claro, pelo amor ao próximo que animava essas religiosas de ambas as confissões. O Moinhos de Vento, o Regina, o Mãe de Deus e tantos outros não teriam a fama de que hoje gozam, se não tivessem nascido, crescido e se consolidado nas mãos dessas religiosas. Acima da competência profissional e administrativa, zelavam por um comportamento ético rigoroso e o respeito  aos pacientes regia o quotidiano dos hospitais e outras instituições e impunha os limites para médicos e demais profissionais.

E, para concluir, não posso deixar passar em branco tão justa quanto respeitosa homenagem  às dedicadas às parteiras, cuidando que a entrada na vida fosse  mais tranquila possível para as mães e seus bebês e às religiosas comprometidas com a dignidade do tratamento dos enfermos nos hospitais, às religiosas que deram tudo de si nos muitos colégios de ensino em todos os níveis, naquele mesmo período. Essa história começa em 1872 com a chegada das Irmãs Franciscanas em São Leopoldo e a fundação do Colégio São José e mereceria da parte dos historiadores da educação, um destaque proporcional ao nível de formação oferecido aos egressos dessas instituições. A partir do Colégio São José de São Leopoldo, as instituições similares sob o comando  da diferentes congregações religiosas católicas e luteranas, multiplicaram-se por todo o sul do Brasil, contemplando todos os níveis de formação desde jardins de infância até o ensino superior. A dedicação dessas religiosas a escola comunitárias como em Tupandi até os emblemáticos colégios maiores como o Bom Conselho e o Sevingué em Porto Alegre, o Santa Ana em Santa Maria, o Santa Catarina e a Fundação Evangélica em Novo Hamburgo além de dezenas de outras cidades  pequenas e médias, merecem sem dúvida um hino de louvor pelo que foram e continuam sendo.

Bicentenário da Imigração - 7

A referência à mulher na colonização do sul do Brasil  merece ser ilustrada com o exemplo de quatro dessas figuras femininas que deixaram para a história os relatos escritos de suas vivências nessa empreitada. Pela ordem cronológica de suas presenças e participação nesse projeto colonizador destaco a figura de Madame von Langendonck, nascida em Antuérpia, Bélgica em 1798 e falecida em 1875 em Arroio Grande no Rio Grande do Sul. Como sugere o próprio nome, pertencia à uma família da aristocracia belga. Depois do falecimento do marido e  os 11 filhos e filhas já criados resolveu emigrar para o sul do Brasil. Foi estabelecer-se na fronteira de colonização na colônia de Montravel, hoje São Vendelino, Piedade e arredores. Como é conhecido o Imperador cedera ao então cônsul francês Montravel a colonização daquela área. O empreendimento  não teve o êxito esperado e as terras voltaram para a administração imperial. Dois filhos da Madame von Langendonck trabalhavam como agrimensores naquela colonização. Apesar das recomendações de cautela fixou-se  na floresta e descobriu nela um mundo encantado que jamais teria imaginado. Empolgada escutava os canto dos pássaros, admirava as grandes árvores, as cores e o silêncio eloquente daquela penumbra que tinha muito mais a comunicar à sua fantasia de poetisa, do que a civilização refinada que deixara na Europa. Por um bom tempo um filhote de onça foi sua fiel companhia. Acomodava-o no colo e brincava com ele. Mas, segundo ela, na medida em que a oncinha crescia chegou a um ponto em que um macaco por dia já não era o suficiente para saciá-la. Depois de dois anos retornou à Antuérpia. Deixou um livro com o título: “Um Colônia no Brasil”, além de um “Diário”, que se constuem fontes obrigatórias para os estudiosos do começo da colonização do vale do Cai. Tomada de saudades pela natureza virgem do sul do Brasil e dos filhos que tinham emigrado voltou ao Rio Grande do Sul e, pelo que se pode deduzir, foi residir em Arroio Grande em companhia dos filhos empenhados na demarcação dos lotes coloniais da Serra do Sudoeste. Seu diário da primeira e segunda permanência no Estado, fornece uma riqueza e detalhes da época, não encontráveis em outros documentos. Faleceu e foi sepultada naquela localidade.

Josephine Wirsch, nascida em 1860 em Bingen na Alemanha, imigrou em 1907 para os Estados Unidos da América do Norte fixando-se em Cincinati. Em 1920 a família Wirsch emigrou para o Brasil. Deixou um precioso relato de suas vivências de mais de 400 páginas com o título original alemão: “Durch drei Welten – Lebensweg einer deutschen Frau” – “Por três mundos – A jornada de vida de uma mulher alemã”. Os três mundos a que ela se refere são a Europa, mais especificamente a Alemanha, os Estados Unidos e o Brasil. Durante a guerra a senhora Wirsch fez parte da diretoria da sociedade alemã de auxílio às crianças alemãs de Cincinati, até que o trabalho em favor da caridade foi proibido a partir de Wastington. O clima hostil, resultado da primeira guerra mundial contra os imigrantes alemães, em que os USA se aliaram aos franceses e ingleses contra a Alemanha, complicou de tal maneira a vida da família Wirsch, que eles decidiram emigrar para o sul do Brasil. Uma irmã de Josephine era professora há 27 anos em Arroio da Seca, hoje município Imigrantes no vale do Taquari, há 100 anos uma colonização em fase de consolidação. Na terceira parte de seu relato Josephine descreve a viagem de navio dos Estados Unidos ao Brasil com uma parada no Rio de Janeiro onde visitou os pontos mais chamativos da cidade para seguir viagem num navio costeiro até Rio Grande, Porto Alegre, Hamburgo Velho e Dois Irmãos, lugares onde reencontrou parentes próximos há muitos anos imigrados. Descreve depois a viagem de barco pelos rios Jacuí e Taquari até Estrela, para de lá seguir de carro até o Arroio da Seca, onde reencontrou sua irmã depois de 27. Mandaram construir um sobradinho na encosta do morro e lá se instalaram. Uma das filhas assumiu o ensino na escola da comunidade. Nesse meio tempo a Maria, a filha mais velha casou-se com Carlos Rohde, designado pela Sociedade União Popular como diretor da nova fronteira de colonização fundada em 1926 por essa Associação no extremo oeste de Santa Catarina, conhecida como Porto Novo, hoje Itapiranga. Mais detalhes sobre Maria Rohde, mais abaixo. Acontece que depois que a filha Maria com o marido Carlos e os filhos pequenos consolidaram seu lar na nova colônia Josephine, o marido e as outras duas filhas, Margot e Antônia resolveram também morar na localidade conhecida como Capela, na margem direita  do rio Uruguai.  Margot casou-se com o Dr. Neff, um médico imigrado da Suiça e a Antônia com Karl Schickling, responsável pela demarcação dos lotes na floresta virgem. A exposição às intempéries, os acampamentos precários no meio da mata, o trabalho exaustivo exigido para abrir trilhas na floresta e colocar os marcos divisórios, afetaram seriamente a sua saúde, ao ponto de, acompanhado pela esposa Antônia,  procurar a cura na Alemanha. Quando tudo estava bem encaminhado ela voltou e ele ficaria mais um mês para completar o tratamento. Esse mês coincidiu com o começo da Segunda Guerra Mundial em primeiro de setembro de 1939. Como era cidadão alemão, roi retido e incorporado na força aéra alemã e morreu  numa missão de combate. Mas voltando à Josephine. Passou os últimos anos morando no morro da Capela e tanto ela como seu marido estão sepultados no cemitério daquela localidade. Maria sua filha lembra que a mãe pediu que colocassem uma saquinho contendo um punhado de terra da cidadezinha onde nascera  na Alemanha, sob sua cabeça quando fosse sepultada. Deixou como legado além das memórias “Por três Mundos”, uma série de poesias, uma delas publicada no livro comemorativo do primeiro centenário da imigração alemã: “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”. Maria Rohde, nascida Wirsch, conta como mais uma personalidade feminina   merecedora de um hino de louvor como pioneira em fronteira de colonização no sul do Brasil.  Nasceu em Bingen no Mosela na Alemanha. A família emigrou para os Estados Unidos, onde obteve a cidadania americana. Depois da Primeira Guerra Mundial os Wirsch emigraram para o Brasil. Em Estrela no Rio Grande do Sul onde foram residir casou-se com Carlos Rhode. Na época, segunda metade da década de 1920, começou a ser implantada a fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, a “Colônia de Porto Novo” que hoje cobre os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. Carlos Rhode foi encarregado pela Sociedade União Popular, como responsável pelo empreendimento como Diretor da execução do projeto. Foi fixar-se na margem do rio Uruguai num lote na floresta virgem, área que evoluiu para o  futuro povoado de Sede Capela. Depois do nascimento do primeiro filho em Estrela, Maria foi ao encontro do marido em fins de 1927. Participou da instalação da moradia, toda de madeira, na clareira recém aberta na mata virgem. Vivenciou com o marido e os medidores dos lotes da colônia uma vida semelhante a um acampamento. Em seguida foi buscar o filho pequeno, os pais e as duas irmãs em Estrela e a família toda foi morar na “Nova Colônia”. Condensou sua vivências no livro “Wie eine Frau eine Urwaldsiedlung wachsen sah” – Como uma mulher viveu o evolução de uma Colônia na mata virgem”,  escrito por ela para o 25º aniversário da Colônia em 1950. Não se trata de uma autobiografia, mas do relato das vivências, experiências, alegrias, dramas comuns a tais circunstâncias. Enfim, traça o perfil das mulheres fortes, conscientes do papel que lhes cabia, em parceria com seus maridos, nos anos pesados do começo da construção a partir do nada de uma nova “querência”, uma nova “Heimat”, onde não havia nada além da floresta virgem com suas promessas e perigos. Nos seus apontamentos desfilam pela imaginação do leitor as “heroínas fundadoras”, parceiras leais e comprometidas com seus homens, relegadas ao anonimato e, não raro, não devidamente reconhecidas e valorizadas pelos netos e bisnetos que  herdaram as condições mais propícias para prosperar na vida, numa paisagem humanizada de excepcional beleza e qualidade de vida, onde há um século sucediam-se, como ondas do oceano, as sequências das copas  dos gigantes da floresta e na sua penumbra ecoava a sinfonia das criaturas de Deus. Sugiro, aos que tiverem ocasião, visitar os cemitérios de Sede Capela, Itapiranga, São João do oeste, Tunápolis e outros. Ao pisar o chão sagrado desses locais, descubram-se e, caminhando entre as fileiras de sepulturas louvem a Deus e agradeçam às heroínas e heróis que ai descansam e a quem devem o bem estar e as oportunidades que o pedaço de chão abençoado em que pisam, oferece às atuais e futuras gerações.  Autora do livro observou que ao examinar a documentação relativa ao  empreendimento, o destaque foi reservado em primeiro lugar aos feitos dos desbravadores, enquanto a referência às pioneiras desbravadoras, parceiras fiéis dos seus homens, ocupa  como que um espaço à margem das narrativas. Vale a pena registrar o quotidiano dessas heroínas, assim como ela as observou ao percorrer a cavalo ou de carro todas as comunidades em formação nas décadas de 1920, 1930 e 1940.

“Inúmeras vezes nas minhas cavalgadas e visitas de carro pela colônia observei mulheres dando conta das tarefas mais pesadas no mesmo nível dos homens. Principalmente no começo quando havia escassez de braços,  observei, não poucas vezes, mulheres com o machado na mão derrubando a vegetação secundária e até derrubando os gigantes da floresta. Observei-as serrando com traçadores, em parceria com seus homens, grossas toras de árvores preparando tábuas, postes, barrotes, caibros e taboinhas, para construírem suas primeiras moradias. Observei-as também empenhadas na  construção propriamente dita das casas. E, depois de um dia  de trabalho cansativo e na cabana provisória enquanto a família descansava, não raro a mulher remendava a roupa dos seus amores, à luz de um lamparina alimentada com banha pois, as horas do dia eram preciosas demais para dar conta de mais essa trefa. E, aos primeiros clarões do novo dia, era a primeira a estar em pé para deixar a casa em dia, o café pronto e a família reunida para o desjejum. Depois seguia mais um dia de trabalho duro encarado com boa disposição”. (cf. Rhode, 1950, p. 228)

Bicentenário da Imigração - 6

As emigrações em massa da Europa Central e do Norte, assumindo as proporções de autênticas diásporas, durante os séculos XVIII, XIX e a primeira metade do século XX, foram um outro momento objeto desses acontecimentos. Milhares, centenas de milhares, milhões de homens, mulheres e crianças cruzaram os oceanos em busca de uma utopia, em busca de novas querências, nas três Américas e nos demais continentes. Em qualquer um dos destinos, na América do Norte, na América Central e na América do Sul, no Brasil, na Rússia, na Namíbia ..., a mulher forte e corajosa, destemida e, contudo, consciente do seu papel  feminino de mãe, esposa e companheira fiel, acertou o passo no mesmo ritmo do homem, quando se tratava de enfrentar o desconhecido e fazer a sua parte. Não poucos artistas foram de uma rara felicidade ao fixar para a posteridade, em monumentos comemorativos, as figuras de tais mulheres. Uma destas representações encontra-se no porto de Puerto Montt, em homenagem aos imigrantes alemães que colonizaram o Sul do Chile. Na frente caminha o homen com machado na mão em atitude de desafio  à floresta desconhecida e, um pouco atrás, a mulher com o filho pequeno nos braços e   o outro um pouco maior ao lado. De cabeça erguida parece encorajar o homen: “Abre a primeira trilha, limpa a primeira clareira, construa o primeiro abrigo, que eu tenho consciência da parte que me cabe e darei conta dela no que der e vier”. 

As histórias e reflexões sobre as mulheres entre os imigrante e seus descendentes no sul do Brasil, valem também para as imigrantes italianas vindas do norte daquele país. As  populações daquelas regiões descendem basicamente dos Cimbros e Teutões, dos Ostrogodos, Visigodos, Alamanos, Longobardos e demais grupos germânicos que cruzaram ou contornaram os Alpes e se fixaram definitivamente naquela região. Valem também para os imigrantes poloneses, rumenos, lituanos, belgas holandeses, suecos, noruegueses, teuto-russos e outros. Não menos significativo vem a ser o monumento ao imigrante em Caxias do Sul. Localizado no quilômetro 150 da Br 116. Retrata um jovem casal, a mulher com a criança pequena no colo e o homem com a enxada no ombro direito e a mão esquerda sobre a testa, olham para a vastidão de terra na qual construiriam uma nova “querência” na “Mérica”, tema de uma das canções tão emblemáticas, cantada ainda hoje pelos descendentes dos imigrantes italianos em momentos em que recordam suas raízes e seus antepassados pioneiros imigrados da Itália.

Dos vinte contos dialetais escritos pelo Pe. Balduino Rambo, caracterizando a obra colonizadora dos alemães no Sul do Brasil, com seus personagens e atores, três  são dedicados  inteiramente  à mulher. Já os títulos são sugestivos: “Susana Bitterselig”, “Bárbara Pannekuche” e “Festa do Batizado”. O primeiro começa com uma caracterização fiel das circunstâncias em que a mulher imigrante foi obrigada  a viver. Susana a mulher forte do colono Cristóvão conta.

Meu pai comprou uma colônia de terra na Picada do Pote do Leite, na época  em que lá ainda era tudo mato. Nos primeiros anos morou numa casa que não era muito mais do que uma choupana. Naquela choupana miserável nascemos os cinco mais velhos. Não éramos  ricos, mas nunca faltou comida e todos tínhamos saúde. O mato em volta estava cheio de animais selvagens. Os bugios andavam sobre os galhos da grande figueira ao lado da estrebaria e, nos dias de chuva faziam música. Meu pai costumava dizer que era a companhia de músicos da Picada do Pote do Leite. De noite, quando escurecia, escutava-se com frequência o urro da onça no alto do morro. Nós crianças corríamos para dentro de casa e nos escondíamos debaixo das camas. Também o nosso cachorro perdia a coragem e nos acompanhava para dentro de casa. (Rambo, Balduino, 2.002, p. 67-68)

Não há dúvida de que o êxito das colonizações também no Sul do Brasil, se deve tanto às mulheres quanto aos homens. Sem o seu comprometimento para a vida e para a morte, a obra não teria deitado raízes, muito menos prosperado. Os homens e, mais ainda as mulheres, deram tudo de si num grau heroico, mas infelizmente niveladas pelo anonimato. Mesmo que se conheçam poucos nomes  de figuras exemplares de mulheres, foi no anonimato que as Marias, as Margaridas, as Susanas, as Bárbaras, as Gertrudes, as Matildes, as Elisabethes, as Irmgards, as Hildegards, as Ingrids, as Anas, numa parceria de total compromisso com os Pedros, os Jacós, os Alfredos, os Nicolaus, os Matias, os Felipes, os Cristovãos, entregaram-se, sem restrições e sem reticências, à missão que lhes fora confiada e a levaram a bom termo.