Bicentenário da Imigração - 8

Uma quarta personalidade feminina de destaque pelas memórias que deixou registradas no livro de sua autoria: “Die Tochter des Pioniers” – “A filha do Pioneiro”, com tradução para o português e o espanhol, vem a ser “Tutz Culmey Herwig”. Fez o papel de secretária do pai, Carl Culmey, engenheiro agrimensor. Nascido e formado na Alemanha  veio exercer a profissão no sul do Brasil e norte da Argentina. Foi ele que mediu as terras na região de Cerro Largo e Santo Cristo enquanto  o Pe. Max von Lassberg dava atendimento aos colonizadores, procedentes na sua maioria das “velhas colônias” com se costumava dizer então. E, como inciso, um detalhe um tanto peculiar para as décadas iniciais do século XX. Max von Lassberg era jesuíta e Culmey protestante. Apesar disso consolidaram uma parceria que tinha como base muito mais do que uma relação de competências. Cultivavam uma respeitosa amizade que resultou num compromisso de suporte mútuo para cumprir a missão de abrir perspectivas de futuro para os excedentes que se acumulavam nas colônias mais antigas. Essa parceria foi também o suporte do sucesso na colonização de Puerto Rico na Província de Missiones no norte da Argentina.

A última empreitada de Carl Culmey foi a colonização da região de Palmitos quando veio a falecer afogado no rio Uruguai. A filha Tutz fez-se sua secretária e não perdeu a oportunidade para observar atentamente o papel da mulher numa frente de colonização. Aos 83  anos reuniu suas observações no livro acima citado: “Die Tochter des Pioniers” – “ A Filha do Pioneiro”. O foco dessa obra que interessa aqui resume-se no papel e no lugar da mulher naquelas colonizações. Giesla Lermen na sua tese de doutorado: “Mulheres alemãs emigrantes  no sul do Brasil” pinçou do livro de Tutz Culmey um parágrafo que resume as reflexões registradas no livro “A Filha do Pioneiro”.  “Aqui é o momento e lugar para cantar um hino de louvor a essas pioneiras anônimas da floresta virgem que cumpriam com as tarefas mais inimagináveis próprias do dia a dia. Cozinhavam, cuidavam dos filhos, tomavam conta dos animais domésticos, a administração da casa, costuravam, remendavam, ordenhavam as vacas e o que mais se possa imaginar. Pouco tempo restava para o descanso. E quando  ao entardecer o marido voltava da roça cansado, esperava-o com o chimarrão pronto. Enquanto ele descansava, ela continuava o trabalho desgastante até altas horas da noite. Importava dar banho às crianças e acomodá-las nas camas   para dormir, selecionar o feijão e deixar tudo organizado para a manhã seguinte. Ela, a primeira a levantar, prepara o café, apronta as crianças para irem à escola, alimenta as galinhas e os porcos, ordenha as vacas. E, depois de ter dado  conta das pequenas tarefas da casa, segue o marido para ajuda-lo na roça para voltar correndo para casa e aprontar o almoço, lavar a louça, supervisionar as tarefas escolares dos filhos para, novamente, seguir para roça e ajudar o marido”. (cf. Büttner Lermen, 2006, p. 54).

Além da epidemia da varíola e dos seguidos surtos de tifo, uma outra ameaça à saúde era motivo de permanente preocupação. Vinha à tona quando da aproximação da data de nascimento de alguma criança na colônia. Falamos da assistência às parturientes. Complicações direta ou indiretamente  relacionados com o parto contaram entre as principais causas de óbitos de mulheres jovens.

Na sua tese de doutorado publicada na Alemanha com o título: “Deutsche Auswanderinnen in Brasilien”, Giesela B. Lermen começa a sua avaliação sobre a presença da mulher na imigração, com a afirmação: “A mortalidade materna em consequência do parto, é um dos capítulos mais obscuros da história da colônia”. 

Não resta dúvida  de que nos encontramos frente a um tema, de um lado comum a todas as comunidades coloniais e, do outro, um dos menos comentados. De qualquer forma não é difícil formar-se uma ideia da  extensão e profundidade do problema. Basta tornar conscientes as circunstâncias reinantes no meio colonial, durante todo o século XIX e os primeiros anos do século XX, no que se refere à assistência dada às parturientes. Começa por aí que não havia nem médicos nem hospitais a quem recorrer. No que se relacionava com recursos em casos de doenças e os problemas surgidos por ocasião de muitos partos, os colonos estavam entregues à própria sorte. Com isso a mortalidade de mulheres jovens chegou a níveis preocupantes. A autora se refere a um levantamento feito pelo jornal “Deutsches Volksblatt” em 1908 sobre a expectativa da vida na colônia. Serviram como base os registros de óbitos  da paróquia de São José do Hortêncio entre 1868 e 1908. Os números falam por si mesmos. Dos falecidos entre 30 e 50 anos, constavam 21 homens e 51 mulheres. O jornal fez o dado acompanhado pela observação: “Certamente uma prova cabal da importância  da questão das parteiras para a colônia e a urgência para encontrar uma solução para esse problema.

Os alarmantes dados sobre a mortalidade materna em função da deficiente assistência às parturientes, pedia ações e iniciativas  eficientes e duradouras. O Dr. Gabriel Schlatter que conhecia muito bem a situação da assistência médica na colônia, manifestou-se da seguinte forma sobre o problema, na sétima Assembléia Geral Assembleia Geral da Associação dos Agriultoresdo Rio Grande do Sul realizada em Estrela em maio de 1907:

Posso garantir-lhes que aqui na colônia alemã do Rio Grande do Sul, cada ano centenas de   colonas morrem em consequência da assistência defeituosa durante o parto ou elas adoecem pouco depois. Muitas delas morrem e muitas que, em caso favorável, melhoram parcialmente, continuam durante a vida toda com alguma sequela. Pois, mal passa uma semana, na qual um ou outro dos nossos jornais alemães, não traz a participação de luto de que uma mulher e mãe faleceu no apogeu da vida, em consequência de um parto. (citado por Giesela B. Lermen, 2006, p. 236)

Da fala do Dr. Schlattter resultou um acalorado debate do qual participaram  os padres Amstad e Gasper mais o pastor Gans. Concluíram que a situação era tão grave que exigia uma ação séria e urgente, de natureza permanente e a longo prazo. Na proposta estava implícito o propósito de, de alguma maneira treinar parteiras para socorrer as parturientes das comunidades coloniais. Naquela Assembleia Geral, entretanto, não foi tomada nenhuma resolução concreta nesse sentido. A adoção de uma solução aconteceu no ano seguinte na Assembleia Geral em Santa Cruz do Sul. Por decisão da grande maioria foi aprovada a criação de uma instituição de treinamento fora de Porto Alegre. A decisão apoiou-se na lógica de que a quase totalidade das candidatas procedia do interior da colônia e sua atividade seria desenvolvida nesse meio. A escolha recaiu sobre Estrela pelo fato de o Dr. Schlatter já manter um curso de treinamento junto ao seu consultório normal. Bastava ampliá-lo, equipá-lo melhor e franqueá-lo às candidatas procedentes de toda a região colonial. Infelizmente o curso de treinamento de parteiras foi uma das primeiras vítimas quando da transformação da Associação Rio-grandense de Agricultores em sindicato no ano seguinte. Por decisão unilateral do Sindicato de Santa Cruz do Sul o curso foi transferido para Porto Alegre com a alegação dos benefícios que poderia auferir com a proximidade da Faculdade de Medicina. A decisão implicou na mudança da própria natureza e como consequência o afastamento do  Dr. Schlatter e frustrada a intenção de formar parteiras especificamente para o meio colonial, procedentes daquele contexto e conhecedoras  das características, costumes e hábitos do seu campo de trabalho, Giesela Lermen comentou a situação criada: 

Apesar da situação assustadora pintada pelo Dr. Schlatter e amparada nas estatísticas, sobre o estado de coisas relativo ao atendimento às parturientes durante o século XIX na colônia, a presença de parteiras e sua atuação provam igualmente que exerceram a profissão com prontidão e eficiência e cônscias da sua responsabilidade, gozando do reconhecimento da população da colônia. A memória delas foi perpetuada em anúncios fúnebres escritos por maridos, filhos, noras e genros, assim como e manifestações de gratidão por parte de maridos pelos atendimentos dado às esposas. (Lermen, Giesela, 2006, p. 236)

A presença das parteiras, sua importância para a colônia e sua dedicação à causa, foram objeto de referência, de manifestações de reconhecimento e de gratidão, registrados em almanaques, jornais, periódicos e nas reuniões de associações e congressos.

De qualquer forma a situação das parturientes teria sido muito mais dramática se, a partir da segunda metade do século XIX, as comunidades da região colonial mais antiga do vale do Sinos e Caí e, em parte da região  mais recente dos vales do Taquari, Pardo e Jacuí não contassem com parteiras dedicadas e competentes. Na tese de doutorado de Giesela Lermen encontra-se uma lista delas com a data do falecimento e as comunidades em que atuaram: Elisabeth Scherer, falecida em 1901, trabalhou em Lomba Grande; Barbara Spaniol atuou em São José do Hortêncio e faleceu em 1893; Ana Maria Eich, falecida em 1908 atendeu a comunidade de Erval; Susanne Gallas, falecida em 1912 atendeu as comunidades de Dois Irmãos, Gauer Eck (São José do Sul) e São José do Hortêncio; Franziska Allgayer, falecida aem 1901 atendeu Bom Jardim (Ivoti); Anna Junges, falecida em 1897, exerceu sua atividade em São Salvador (Tupandi); Anna Maria Schmidt, falecida em 1898 atuou em Campestre (Salvador do Sul) e São Pedro da Serra; Maria Kunrath, falecida em 1905, atuou no Tigertal (Feliz); Gertrud Haupental, falecida em 1905, atendeu Linha Bonita e Harmonia Helena Spieker, falecida em 1907, atuou na Linha Tamanduá (Lajeado); Katahrina Rippel, falecida em 1904, atendeu a Colônia Mariante.

Obviamente essa lista não está completa, mas dá uma boa ideia do nível de assistência de que dispunham os colonos relativo à vital questão da presença das parturientes partos e recém nascidos.

Convém não esquecer que, apesar da dedicação das parteiras, a falta generalizada de médicos, deixava uma grave lacuna na assistência às parturientes. Em situações mais graves como complicações devido a infecções, necessidade cesariana, etc., a ausência de médicos cobrava um preço alto, em não poucos casos a vida da mulher e ou da criança.

Cabe  a essa altura a pergunta: E quem foram essas mulheres parteiras, qual o seu perfil humano e profissional? Para começar a quase totalidade eram mulheres comuns, casadas com colonos, mães de famílias numerosas, como mandava o costume da época, donas de casa, agricultoras, nos intervalos em que nãos se encontravam em missão de atendimento a alguma parturiente. Apropriavam-se dos conhecimento e da prática com profissionais experimentadas. Mais raro foram os casos em que as aspirantes à profissão se submetiam a algum estágio em hospital de Porto Alegre. Em todo o caso as parteiras daquela geração dedicavam-se à  profissão, como uma autêntica missão alimentada na solidariedade para com as mães, suas famílias, comunidades e com as novas gerações. Por isso mesmo gozavam do respeito e simpatia geral. Em contrapartida respondiam com discrição à toda prova e um respeito profundo para com as pacientes. Eram personalidades conhecidas e. respeitadas como eram o padre e o professor. Costumavam ser chamadas pelo emblemático qualificativo de “Storchentante” – “Tia Cegonha”.

Por fim, permito-me  prestar uma homenagem especial às Diaconisas, as “Schwester” e às Irmãs de Caridade que, durante mais de meio século, fizeram com que os hospitais, sanatórios, asilos e outras instituições similares, fossem e fato locais onde enfermos, idosos e familiares encontrassem um tratamento digno. Elas, religiosas de ambas as confissões, marcaram com sua presença, entre 1900 e 1960 e mais tarde ainda, dezenas dessas instituições espalhadas pelo Rio Grande do Sul. No Moinhos de Vento, nos hospitais de Montenedro, Sinimbu, Panambi, Não Me Toque, Taquara e outros atuaram as Schwester, as Diaconisas. Na Santa Casa de Misericórdia, na Beneficência Portuguesa, no Mãe de Deus, no Centenário de São Leopoldo, no Regina de Novo Hamburgo, no Sagrada Família de São Sebastião do Cai, no Pompeia em Caxias do Sul e em dezenas de outros  hospitais menores, encontramos as irmãs de caridade de diversas congregações católicas. 

Ouso afirmar que o nível desses hospitais deve-se à competência, o comprometimento, a dedicação e, porque não deixa-lo claro, pelo amor ao próximo que animava essas religiosas de ambas as confissões. O Moinhos de Vento, o Regina, o Mãe de Deus e tantos outros não teriam a fama de que hoje gozam, se não tivessem nascido, crescido e se consolidado nas mãos dessas religiosas. Acima da competência profissional e administrativa, zelavam por um comportamento ético rigoroso e o respeito  aos pacientes regia o quotidiano dos hospitais e outras instituições e impunha os limites para médicos e demais profissionais.

E, para concluir, não posso deixar passar em branco tão justa quanto respeitosa homenagem  às dedicadas às parteiras, cuidando que a entrada na vida fosse  mais tranquila possível para as mães e seus bebês e às religiosas comprometidas com a dignidade do tratamento dos enfermos nos hospitais, às religiosas que deram tudo de si nos muitos colégios de ensino em todos os níveis, naquele mesmo período. Essa história começa em 1872 com a chegada das Irmãs Franciscanas em São Leopoldo e a fundação do Colégio São José e mereceria da parte dos historiadores da educação, um destaque proporcional ao nível de formação oferecido aos egressos dessas instituições. A partir do Colégio São José de São Leopoldo, as instituições similares sob o comando  da diferentes congregações religiosas católicas e luteranas, multiplicaram-se por todo o sul do Brasil, contemplando todos os níveis de formação desde jardins de infância até o ensino superior. A dedicação dessas religiosas a escola comunitárias como em Tupandi até os emblemáticos colégios maiores como o Bom Conselho e o Sevingué em Porto Alegre, o Santa Ana em Santa Maria, o Santa Catarina e a Fundação Evangélica em Novo Hamburgo além de dezenas de outras cidades  pequenas e médias, merecem sem dúvida um hino de louvor pelo que foram e continuam sendo.

This entry was posted on segunda-feira, 4 de abril de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.