A referência à mulher na colonização do sul do Brasil merece ser ilustrada com o exemplo de quatro dessas figuras femininas que deixaram para a história os relatos escritos de suas vivências nessa empreitada. Pela ordem cronológica de suas presenças e participação nesse projeto colonizador destaco a figura de Madame von Langendonck, nascida em Antuérpia, Bélgica em 1798 e falecida em 1875 em Arroio Grande no Rio Grande do Sul. Como sugere o próprio nome, pertencia à uma família da aristocracia belga. Depois do falecimento do marido e os 11 filhos e filhas já criados resolveu emigrar para o sul do Brasil. Foi estabelecer-se na fronteira de colonização na colônia de Montravel, hoje São Vendelino, Piedade e arredores. Como é conhecido o Imperador cedera ao então cônsul francês Montravel a colonização daquela área. O empreendimento não teve o êxito esperado e as terras voltaram para a administração imperial. Dois filhos da Madame von Langendonck trabalhavam como agrimensores naquela colonização. Apesar das recomendações de cautela fixou-se na floresta e descobriu nela um mundo encantado que jamais teria imaginado. Empolgada escutava os canto dos pássaros, admirava as grandes árvores, as cores e o silêncio eloquente daquela penumbra que tinha muito mais a comunicar à sua fantasia de poetisa, do que a civilização refinada que deixara na Europa. Por um bom tempo um filhote de onça foi sua fiel companhia. Acomodava-o no colo e brincava com ele. Mas, segundo ela, na medida em que a oncinha crescia chegou a um ponto em que um macaco por dia já não era o suficiente para saciá-la. Depois de dois anos retornou à Antuérpia. Deixou um livro com o título: “Um Colônia no Brasil”, além de um “Diário”, que se constuem fontes obrigatórias para os estudiosos do começo da colonização do vale do Cai. Tomada de saudades pela natureza virgem do sul do Brasil e dos filhos que tinham emigrado voltou ao Rio Grande do Sul e, pelo que se pode deduzir, foi residir em Arroio Grande em companhia dos filhos empenhados na demarcação dos lotes coloniais da Serra do Sudoeste. Seu diário da primeira e segunda permanência no Estado, fornece uma riqueza e detalhes da época, não encontráveis em outros documentos. Faleceu e foi sepultada naquela localidade.
Josephine Wirsch, nascida em 1860 em Bingen na Alemanha, imigrou em 1907 para os Estados Unidos da América do Norte fixando-se em Cincinati. Em 1920 a família Wirsch emigrou para o Brasil. Deixou um precioso relato de suas vivências de mais de 400 páginas com o título original alemão: “Durch drei Welten – Lebensweg einer deutschen Frau” – “Por três mundos – A jornada de vida de uma mulher alemã”. Os três mundos a que ela se refere são a Europa, mais especificamente a Alemanha, os Estados Unidos e o Brasil. Durante a guerra a senhora Wirsch fez parte da diretoria da sociedade alemã de auxílio às crianças alemãs de Cincinati, até que o trabalho em favor da caridade foi proibido a partir de Wastington. O clima hostil, resultado da primeira guerra mundial contra os imigrantes alemães, em que os USA se aliaram aos franceses e ingleses contra a Alemanha, complicou de tal maneira a vida da família Wirsch, que eles decidiram emigrar para o sul do Brasil. Uma irmã de Josephine era professora há 27 anos em Arroio da Seca, hoje município Imigrantes no vale do Taquari, há 100 anos uma colonização em fase de consolidação. Na terceira parte de seu relato Josephine descreve a viagem de navio dos Estados Unidos ao Brasil com uma parada no Rio de Janeiro onde visitou os pontos mais chamativos da cidade para seguir viagem num navio costeiro até Rio Grande, Porto Alegre, Hamburgo Velho e Dois Irmãos, lugares onde reencontrou parentes próximos há muitos anos imigrados. Descreve depois a viagem de barco pelos rios Jacuí e Taquari até Estrela, para de lá seguir de carro até o Arroio da Seca, onde reencontrou sua irmã depois de 27. Mandaram construir um sobradinho na encosta do morro e lá se instalaram. Uma das filhas assumiu o ensino na escola da comunidade. Nesse meio tempo a Maria, a filha mais velha casou-se com Carlos Rohde, designado pela Sociedade União Popular como diretor da nova fronteira de colonização fundada em 1926 por essa Associação no extremo oeste de Santa Catarina, conhecida como Porto Novo, hoje Itapiranga. Mais detalhes sobre Maria Rohde, mais abaixo. Acontece que depois que a filha Maria com o marido Carlos e os filhos pequenos consolidaram seu lar na nova colônia Josephine, o marido e as outras duas filhas, Margot e Antônia resolveram também morar na localidade conhecida como Capela, na margem direita do rio Uruguai. Margot casou-se com o Dr. Neff, um médico imigrado da Suiça e a Antônia com Karl Schickling, responsável pela demarcação dos lotes na floresta virgem. A exposição às intempéries, os acampamentos precários no meio da mata, o trabalho exaustivo exigido para abrir trilhas na floresta e colocar os marcos divisórios, afetaram seriamente a sua saúde, ao ponto de, acompanhado pela esposa Antônia, procurar a cura na Alemanha. Quando tudo estava bem encaminhado ela voltou e ele ficaria mais um mês para completar o tratamento. Esse mês coincidiu com o começo da Segunda Guerra Mundial em primeiro de setembro de 1939. Como era cidadão alemão, roi retido e incorporado na força aéra alemã e morreu numa missão de combate. Mas voltando à Josephine. Passou os últimos anos morando no morro da Capela e tanto ela como seu marido estão sepultados no cemitério daquela localidade. Maria sua filha lembra que a mãe pediu que colocassem uma saquinho contendo um punhado de terra da cidadezinha onde nascera na Alemanha, sob sua cabeça quando fosse sepultada. Deixou como legado além das memórias “Por três Mundos”, uma série de poesias, uma delas publicada no livro comemorativo do primeiro centenário da imigração alemã: “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”. Maria Rohde, nascida Wirsch, conta como mais uma personalidade feminina merecedora de um hino de louvor como pioneira em fronteira de colonização no sul do Brasil. Nasceu em Bingen no Mosela na Alemanha. A família emigrou para os Estados Unidos, onde obteve a cidadania americana. Depois da Primeira Guerra Mundial os Wirsch emigraram para o Brasil. Em Estrela no Rio Grande do Sul onde foram residir casou-se com Carlos Rhode. Na época, segunda metade da década de 1920, começou a ser implantada a fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, a “Colônia de Porto Novo” que hoje cobre os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. Carlos Rhode foi encarregado pela Sociedade União Popular, como responsável pelo empreendimento como Diretor da execução do projeto. Foi fixar-se na margem do rio Uruguai num lote na floresta virgem, área que evoluiu para o futuro povoado de Sede Capela. Depois do nascimento do primeiro filho em Estrela, Maria foi ao encontro do marido em fins de 1927. Participou da instalação da moradia, toda de madeira, na clareira recém aberta na mata virgem. Vivenciou com o marido e os medidores dos lotes da colônia uma vida semelhante a um acampamento. Em seguida foi buscar o filho pequeno, os pais e as duas irmãs em Estrela e a família toda foi morar na “Nova Colônia”. Condensou sua vivências no livro “Wie eine Frau eine Urwaldsiedlung wachsen sah” – Como uma mulher viveu o evolução de uma Colônia na mata virgem”, escrito por ela para o 25º aniversário da Colônia em 1950. Não se trata de uma autobiografia, mas do relato das vivências, experiências, alegrias, dramas comuns a tais circunstâncias. Enfim, traça o perfil das mulheres fortes, conscientes do papel que lhes cabia, em parceria com seus maridos, nos anos pesados do começo da construção a partir do nada de uma nova “querência”, uma nova “Heimat”, onde não havia nada além da floresta virgem com suas promessas e perigos. Nos seus apontamentos desfilam pela imaginação do leitor as “heroínas fundadoras”, parceiras leais e comprometidas com seus homens, relegadas ao anonimato e, não raro, não devidamente reconhecidas e valorizadas pelos netos e bisnetos que herdaram as condições mais propícias para prosperar na vida, numa paisagem humanizada de excepcional beleza e qualidade de vida, onde há um século sucediam-se, como ondas do oceano, as sequências das copas dos gigantes da floresta e na sua penumbra ecoava a sinfonia das criaturas de Deus. Sugiro, aos que tiverem ocasião, visitar os cemitérios de Sede Capela, Itapiranga, São João do oeste, Tunápolis e outros. Ao pisar o chão sagrado desses locais, descubram-se e, caminhando entre as fileiras de sepulturas louvem a Deus e agradeçam às heroínas e heróis que ai descansam e a quem devem o bem estar e as oportunidades que o pedaço de chão abençoado em que pisam, oferece às atuais e futuras gerações. Autora do livro observou que ao examinar a documentação relativa ao empreendimento, o destaque foi reservado em primeiro lugar aos feitos dos desbravadores, enquanto a referência às pioneiras desbravadoras, parceiras fiéis dos seus homens, ocupa como que um espaço à margem das narrativas. Vale a pena registrar o quotidiano dessas heroínas, assim como ela as observou ao percorrer a cavalo ou de carro todas as comunidades em formação nas décadas de 1920, 1930 e 1940.
“Inúmeras vezes nas minhas cavalgadas e visitas de carro pela colônia observei mulheres dando conta das tarefas mais pesadas no mesmo nível dos homens. Principalmente no começo quando havia escassez de braços, observei, não poucas vezes, mulheres com o machado na mão derrubando a vegetação secundária e até derrubando os gigantes da floresta. Observei-as serrando com traçadores, em parceria com seus homens, grossas toras de árvores preparando tábuas, postes, barrotes, caibros e taboinhas, para construírem suas primeiras moradias. Observei-as também empenhadas na construção propriamente dita das casas. E, depois de um dia de trabalho cansativo e na cabana provisória enquanto a família descansava, não raro a mulher remendava a roupa dos seus amores, à luz de um lamparina alimentada com banha pois, as horas do dia eram preciosas demais para dar conta de mais essa trefa. E, aos primeiros clarões do novo dia, era a primeira a estar em pé para deixar a casa em dia, o café pronto e a família reunida para o desjejum. Depois seguia mais um dia de trabalho duro encarado com boa disposição”. (cf. Rhode, 1950, p. 228)