Da Enxada à Cátedra [ 91 ]

Viagens à Europa.
Entre 2001 e 2011 a Inez e eu fizemos 6 viagens à Europa. Em três delas, três para Praga e uma a Urbino na Itália onde participei de encontros internacionais.

Praga e Inglaterra – 2002
Essa viagem aconteceu em agosto daquele ano por dois motivos. Em primeiro lugar iria participar de um simpósio sobre a imigração alemã na América Latina promovido pelo Instituto de Estudos Ibero Americanos da Universidade Carlonina em Praga e, em segundo lugar, visitar o nosso filho Paulo que residia e trabalhava como arquiteto em Sant Albans, perto de Londres. No voo de São Paulo a Frankfurt tivemos um contratempo que atrasou por três horas a chegada ao destino. Não nos foram informados os detalhes de uma escala não prevista em Lisboa. Esse atraso nos fez perder a conexão prevista de Frankfurt a Praga. Mas não houve nenhum problema pois, na chegada à aquele aeroporto reagendaram as nossas passagens para um outro voo a Praga pelo fim da tarde. Sem nenhum imprevisto desembarcamos no final da tarde no aeroporto que se localiza a uma boa distância da capital da República Tcheca. Um pequeno detalhe que chamou a nossa atenção naquele voo regional de pouco mais de uma hora, foram as aeromoças que serviram um lanche. Diferente do traje impecável e das maneiras quase refinadas da tripulação da VARIG, fomos recebidos a bordo por recepcionistas nada refinadas, robustas mas educadas e gentis. Como o voo foi de pouca duração serviram apenas um lanche. Chegando no destino faltou uma mala que não fora embarcada em Frankfurt. O funcionário da aeroporto garantiu que ela chegaria no voo seguinte e seria levada ao nosso hotel em Praga. De fato pelas 10 h. da noite a portaria do hotel avisou que a mala chegara. Um ônibus levou-nos do aeroporto até o centro da cidade pois, o metrô fora inundado dias antes por uma cheia fora do comum do rio Moldava que cruza a cidade. No aeroporto nos esperavam dois alunos do Instituo Ibero Americano que falavam português a fim de nos levar até o hotel na rua principal da cidade. Cada vez que me lembro de Praga destaca-se na minha memória o emblemático castelo lá no alto à direita visível de longe iluminado pelo sol poente. Na recepção do hotel esperava-nos o diretor do Instituto prof. Josefh Opartny. No dia seguinte fomos nos apresentar na sede do Instituto instalado num prédio no estilo típico da arquitetura histórica da cidade, também na rua principal, cerca de meio quilômetro do nosso hotel. Como a primeira sessão do Simpósio estava marcada para a manhã seguinte, aproveitamos para conhecer a cidade.

Foi uma experiência única conhecer in loco aquela cidade, uma das mais antigas da Europa Central e ainda hoje uma das mais importantes da região. A origem de praga remonta a 950 quando como um centro agrícola em pleno desenvolvimento foi integrada no Sacro Império Romano Germânico. Em 1061 passou a ser a residência dos duques da Boêmia e o rei Venceslau lhe conferiu o título de cidade. À primeira vista fui tomado pela surpresa ao apreciar a arquitetura das igrejas, dos prédios públicos, históricos e, de modo especial a torre da pólvora, tudo numa combinação do estilo barroco com o maneirismo. Em frente ao hotel as lojas de joias com destaque para as de âmbar evocavam uma história que regride a milhões de anos quando a resina de florestas de uma árvore entre 25 e 323 milhões de anos fossilizou com concentrações de grande volume de resina nas costas do Báltico na Estônia, Letônia e Lituânia. Trata-se, portanto, de uma joia de origem orgânica. Ainda antes da era cristã um movimentada rota de comércio ligou o mar Báltico ao mar do Norte, à Itália, Grécia, e outros países da bacia do Mediterrâneo. Uma segunda surpresa naquela primeira noite em Praga foi um violinista de rua executando uma peça clássica pelas 11 h. da noite. Quem percorre as ruas e praças de Praga dotado de um mínimo de curiosidade histórica, lembra da “Primavera de Praga”, um dos momentos emblemáticos e dramáticos da tirania da URSS sobre os países que lhe couberam como presa da Segunda Guerra Mundial. Com a morte de Stalin em 1953 vários países subjugados da Europa oriental começaram aflouxar a tirania soviética. A primeira tentativa ocorreu na Hungria em 1956. Os tanques soviéticos frustraram com a brutalidade que lhes era característica o levante no seu nascedouro. Em 1968 foi a vez de o presidente Dubcek tentar uma alívio do tacão russo na então Thecoeslováquia. A resposta veio a ser a mesma utilizada em Budapest em 1956. Os tanques desencorajaram a tentativa com o agravante de instalar uma enorme base militar nas imediações de Praga. O eco dos desmandos praticados pelas tropas alemãs ao ocupar o território da atual República Tcheca durante a segunda guerra mundial, podiam ser percebidos pela recusa das pessoas de se comunicar em alemão. Experimentei na prática esse clima ao tentar me informar sobre o ponto de ônibus até o aeroporto. A pessoa simplesmente me ignorou. O mesmo numa feira de rua quando faltou pouco para o vendedor me agredir. Apesar de todas essas turbulências não houve estragos significativos, como foi o caso, por ex., de Dresden e dezenas de cidades na Alemanha, sistematicamente arrasadas pelos bombardeios aéreos em meados de fevereiro de 1945.

Como a nossa ida a Praga foi motivada pela participação no encontro internacional de estudos da história da América Latina na universidade Carolina, não posso deixar de lembrar a história e importância dessa universidade par a Europa Central e do Norte. Sua fundação data de 1348 pelo imperador Carlos IV de quem herdou o nome “Carolina”. Conta com cerca de 50.000 alunos. Como alunos famosos figuram entre outros o reformador Jan Huss, o escritor Milan Kundera e o mais importante físico de século XX, Albert Einstein. Pela sua data de fundação a universidade vem a ser a mais antiga da Europa Central e do Norte. Fora dessa área geográfica perde em antiguidade, para Oxford fundada em 1090, Cambridge em 1209, Paris 1170 e Florença em 1321.

Na tarde fui me apresentar na sede do Instituto Históricos Ibero americanos para acertar a contribuição que me caberia dar na manhã seguinte sobre a Imigração alemã no sul do Brasil enfocando “Propaganda e Realidade da Imigração Centro Europeia para o sul do Brasil”. O espanhol e o português foram as línguas utilizada pelos participantes do encontro. O evento acadêmico transcorreu sem tropeços e ocupou a manhã e o a tarde daquele dia. Enquanto participava da programação a Inez subiu até o grande parque vizinho do castelo de Praga. Sem compromissos acadêmicos passei boa parte do dia seguinte com ela percorrendo aquele magnífico parque somado a uma visita ao complexo do “castelo”. Com 70.000 metros quadrados, em estilo gótico-barroco-renascentista foi residência dos reis da Boêmia com o palácio real, palácio da rainha Anna, a basílica de São Jorge. Mas, o monumento mais vistoso e impressionante vem a ser a catedral de São Vito com sua arquitetura e vitrais abrigando os túmulos de São Venceslau, São José Nepumoceno, do imperador Carlos IV e Rodolfo II. Levaria longe demais descrever a atmosfera histórica que envolve aquele gigantesco castelo. Em resumo. Praga é uma dessas cidades que lembra ao visitante minimamente atento a densidade e o significado da movimentação histórica da Europa Central do último milênio e meio. Felizmente essa cidade emblemática sob todos os aspetos escapou ao furor louco em demolir tudo que vinha pela frente usada como tática de dominação das tropas da URSS durante e depois da segunda guerra mundial.

Depois de encerrados os compromissos acadêmicos dispúnhamos de um dia inteiro e uma noite antes de seguirmos viagem para a Inglaterra. Como em praga já tínhamos visto e visitado o mais vistoso e mais importante, optamos por viajar de trem até Viena. Embarcamos na estação de Praga ao clarear do dia. A viagem transcorreu sem incidentes. A única parada mais longa se deu ao cruzar a fronteira com a Áustria. Na época a República Tcheca não integrava ainda a União Europeia e, por isso, a guarda de fronteira examinou os nossos documentos, basicamente o passaporte além do visto de entrada e saída do país. Da estação central do trem em Viena um taxi nos levou até a catedral de Sto. Estevão no centro da cidade. Com apenas seis horas disponíveis não foi possível conhecer todo o centro histórico, muito menos os palácios, jardins e parques, a ópera e demais referências que tornaram Viena e por extensão a Áustria um polo de referência da história da Europa. Depois do almoço sentado num banco da praça desfilaram pela minha memória passagens da história dos grandes momentos históricos daquele pedaço de chão único no mundo.

Para começar Viena foi a sede da Casa dos Habsburgos, a sede do Sacro Império Romano Germânico como também a sede do Império Austro-Húngaro. Entre 1814 e 1815 sediou o Congresso de Viena, que reorganizou política e geograficamente a Europa depois da derrota de Napoleão na batalha de Waterloo. Referência histórica de grandes compositores com Mozart, Bethoven, Strauss; cientistas como Sigmund Freud, Wittgenstein, Schrödinger. Zóllinger e muitos outros. Para brasileiros como nós dois, Viena oferece um encanto todo especial pois a Imperatriz Leopoldina do Brasil pertencia à família dos Habsburgos.

Depois da primeira guerra mundial a Áustria se tornou uma república anexada à Alemanha pelos nazistas no conhecido “Anschluss”. Depois da Segunda Guerra passou para a tutela da União Soviética e dos Estados Unidos. Em 1955 recuperou sua autonomia que mantém até hoje. Novamente não é aqui o lugar nem o momento de detalhar essa rica história que se esconde atrás do conceito “Viena” e, por extensão, “Áustria”.

Pela meia tarde embarcamos no trem de retorno a Praga onde chegamos já noite escura. Com isso encerramos a estada em Praga para, no dia seguinte voar a Londres e encontrar nosso filho Paulo arquiteto trabalhando na cidade de S. Albans. A viagem foi tranquila e pela meia manhã pousamos no aeroporto Heathrow em Londres. Lá nos esperava o Paulo em companhia de uma colega arquiteta que também trabalhava em S. Albans. Ela nos levou no seu carro até aquela cidade em torno de 30 quilômetros de Londres. Alojamo-nos num hotel para depois percorrermos a simpática e típica cidade de porte médio com suas características arquitetônica da Inglaterra. Historicamente falando a Inglaterra foi província romana entre 43 – 410 DC. A fundação de Londres se deu em 47 DC. Pois, St. Albans insere-se nessa história com uma das cidades em que os vestígios da presença romana como muros são ainda a bem visíveis no parque Verulamium uma das atrações da cidade. O monumento mais imponente de toda a cidade vem a ser a abadia junto à catedral e St. Albans em todo o esplendor depois de restaurada. A construção teve início em 1077 para ser inaugurada em 1877. Significativos são ainda o museu e o teatro romano Verulamium e a torre do relógio e a tradicional feira de rua.

No segundo dia o Paulo nos levou de trem para conhecer Londres. É óbvio que num dia só foi possível tomar contato superficial do centro da cidade. De qualquer maneira deu para ter uma boa noção daquela cidade emblemática para a história do Reino Unido e seu significado para a Europa e o mundo como um todo. Sua fundação consta de 47 DC, portanto, coincidindo praticamente com o começo do período romano. Num dia não foi possível mais do que tomar contato muito superficial do centro de Londres e perceber a rica e densa atmosfera histórica que pairava sobre os prédios, parques, pontes e o emblemático Tamisa. Naquele curto espaço de um dia deu para passar e apreciar de perto alguns pontos que fazem jus à fama histórica e universal que a fazem Londres conhecida em todo o mundo. Menciono alguns. Começo pela torre do relógio que recebe o viajante logo na saída da estação do metrô pela qual Londres costuma ser identificada em qualquer forma de apresentação da cidade ao grande público internacional. Não podia faltar uma passada na frente da catedral de Westminster, templo em que os reis e rainhas foram e ainda continuam sendo solenemente coroados. Cada uma dessas coroações lembra aos cidadãos do Reino Unido a importância e o significado simbólico que o rei ou a rainha, melhor a própria realeza, é a legitimadora e, como tal, garante a solidez e perenidade ao Estado, independentemente da alternância dos partidos na sua administração efetiva. Tanto assim que o primeiro ministro ou ministra, seja do partido conservador, seja do trabalhista são legitimados pelo soberano ou soberana para exercer seu papel de comandar as sessões e deliberações do parlamento.
Outro marco histórico de Londres, também admirado vem a ser a Torre de Londres. Na verdade a enorme e sólida construção que data de 1078 vem a ser uma fortaleza que serviu nos mais de mil anos de sua existência a uma série de funções. Foi palácio real e fortaleza, zoológico e prisão. Consta hoje entre os muitos monumentos declarados patrimônio da humanidade. A história desse monumento merece algumas referências históricas importantes. Como já lembrado acima, no começo serviu de palácio real e como fortaleza. Depois, durante 600 anos abrigou um zoológico e depois foi transformada em prisão. Por esta condição a Torre vem sendo conhecida como um lugar de episódios dramáticos que marcaram indelevelmente a sua história. Nela foram confinados personalidades de todos os níveis sociais, inclusive da alta realeza acusados real o imaginariamente de crimes de traição. Só para lembrar alguns personagens mais emblemáticos. Entre os executados por decapitação sobressaem os nomes de Anna Bolena, segunda esposa de Henrique VIII, entre 1501 e 1507 - 1536. Jane Grey rainha dos 9 dias da Inglaterra e Irlanda entre 10 e 19 de julho de 1553, executada em 12 de fevereiro de 1554. Thomas Morus 1478-1535, foi o terceiro personagem importante a ser executado na Torre de Londres. Venerado com mártir foi canonizado pela Igreja Católica.

Além de guardar 23.500 joias reais no valor de 20 bilhões de libras, leva a fama de casa assombrada. Afirma-se que nela circulam frequentemente fantasmas entre eles o de Henrique VI e Catherine, quinta esposa de Henrique VII. Durante a segunda guerra mundial a Torre foi seriamente danificada e a torre branca foi perdida.

Depois de circular pelos jardins no centro de Londres foi a vez de dar uma olhada de longe no palácio de Bughinam, sentados nos degraus do monumento na praça frente à imponente construção, residência oficial dos soberanos do UK e, por isso mesmo, o próprio símbolo da alma do Império Britânico. Depois de uma circulada pelo Hyde Parck encerramos a vista de um dia a Londres para no fim da tarde voltar de trem a St. Albans. No dia seguinte foi a vez de conhecer a feira de rua tradicional da cidade, a abadia com seu mosteiro e à noite um jantar com amigos do Paulo num Pub. Na tarde do dia seguinte foi a vez de embarcar no trem e rumar até o aeroporto de Heathrow e voltar para casa. A viagem de Londres a São Paulo foi tranquila num 777 da saudosa VARIG, om aparência de ter saído da fábrica há pouco tempo. Numa conexão também tranquila voamos até Porto Alegre onde alugamos um taxi até São Leopoldo.

Da Enxada à Cátedra [ 90 ]

De 2011 a julho de 2013 passei por assim dizer recluso num “gabinete”, fechado com paredes de vidro fosco de meia altura, no sexto andar da biblioteca. Sem função definida e a título de pesquisador dediquei-me em tempo integral a traduções de documentos e obras importantes sob diversos aspectos a maioria começados entre 2000 e 2010. Preparei a publicação do terceiro volume da trilogia sobre os grandes projetos implantados pelos jesuítas no sul do Brasil. O primeiro contemplando o projeto educacional com o título “Um Sonho e uma Realidade”, que saiu do prelo em 2009. O segundo, o projeto social intitulado “Somando Forças – Projeto Social dos jesuítas”, veio se publicado pela Ed. Unisinos em 2011. Faltava retocar o texto básico do “Projeto Pastoral” publicado também pela Ed. Unisinos em 2013. A pedido da Comissão Eclesiástica pela beatificação do Pe. Reus escrevi uma biografia do servo de Deus somando em torno de 250 páginas que até o momento permanece inédito. Foi também nesse período que dei os últimos retoques ao que considero a “joia da coroa” das minhas publicações com o título “A Natureza como Síntese”. A publicação pela Edit. Oikos aconteceu em 2017. Em 2015 ocorreu a publicação diário do Pe. Rambo relativo à sua viagem aos USA em 1956, a convite do governo daquele país. A tradução e parte das notas de rodapé são minhas e as demais do prof. Marchiori que cuidou também da publicação pela Edit. da UFSM. Também em parceria com o prof. Marchiori, cabendo-me a mim a tradução e a ele a providenciar a edição também pela Edit. da UFSM em 2014 do diário do Pe. Rambo em duas viagens ao sudoeste do Rio Grande do Sul na década de 1940. Como já dei a entender, aqueles dois anos e meio, 2011 a julho de 2013, foram dedicados a preparação de traduções e de originais para a publicação.

Em fins de junho de 2013 o Pe. Bohnen, então diretor da biblioteca pediu para encontra-lo no seu gabinete. Comunicou-me a ordem do reitor que eu fosse desligado da instituição. Percebi claramente que estava cumprindo uma ordem desagradável para ele pois, por mais de meio século fôramos parceiros na construção da universidade desde a década de 1960. Ficamos conversando por mais de meia hora sobre assuntos diversos. Ao sair do seu gabinete a atendente da recepção chamou-me e pediu que assinasse a portaria de desligamento, com a recomendação, num tom de quase ordem, que me apesentasse na divisão de pessoal para acertar as devidas exigências legais da demissão.
Levou algum tempo para me flagrar do que estava realmente acontecendo. O documento que terminara de assinar consagrou o desfecho definitivo de nada mais nada menos do que 59 anos dedicados à Unisinos, os 23 últimos em tempo integral. Levei o documento até a Divisão de Pessoal. Lá me esperava outra surpresa tudo menos agradável. O funcionário que me atendeu instruiu-me com uma ar de quem diz “já vai tarde”, que me apresentasse no dia 17 de julho na assessoria jurídica para o acerto final de contas que, por minha surpresa, mantinha seu escritório numa rua do bairro Cristo Rei. Na ocasião o que mais estranhei que nenhuma autoridade maior da universidade expressasse de alguma forma o reconhecimento pela missão cumprida desde o seu embrião em 1954. Mas, toda essa história já foi registrada nas páginas mais acima. A justiça, porém, manda lembrar que 6 anos depois, por ocasião da comemoração do cinquentenário da oficialização formal por um decreto do então Presidente da República, Costa e Silva, por minha surpresa, fui contemplado com a “Medalha de Santo Inácio”, entregue pelo Reitor, na solenidade comemorativa da efeméride.

Distinção Imigração Alemã - 2013
Mas voltando para 2013. Na mesma semana, princípios de julho, em que fui desligado da Unisinos, fui surpreendido por um telefonema do Sr. Jorge W. Klobig, presidente da FECAB, que eu fora indicado por aquela instituição, para ser contemplado com a “Distinção da Imigração – 2013”, a ser concedida oficialmente no dia 18 de julho. Infelizmente neste meio tempo o Sr. Klobig veio a falecer acometido de uma parada cardíaca ao desembarcar do avião em Berlim. Não me lembro do dia exato entre 10 e 16 de julho, ocorreu o translado do corpo para Porto Alegre para o sepultamento. Obviamente esse imprevisto recente não deixou de afetar o clima festivo da entrega da Distinção em 18 de julho. Na mesma noite o dr. Hugo Hammes foi contemplado com a mesma distinção. Além da bela “Laudatio” (discurso de apresentação) proferida pela profa. Dra. Isabel Cristina Arendt, em torno de três dezenas de colegas professores, antigos alunos e bolsistas contribuíram com um toque todo especial à solenidade. Participaram evidentemente minha esposa Inez, a filha Ingrid e o genro Ernani além dos casais de vizinhos Rudolfo Tesch e a esposa Úrsula, Vicente Brigido e a esposa Aparecida  além da profa. Andreia Petry Raheimer.

Patrono da Feira do Livro de São Leopoldo – 2013.
Em começos de agosto fui surpreendido em casa com a visita da Secretária da Cultura e um assessor da prefeitura de São Leopoldo, a fim de me convidar para ser o patrono da feira do livro em fins de novembro. Acontece que a feira do livro daquele ano coincidiu com os 60 anos da criação da biblioteca municipal. Não podia deixar de aceitar o convite. Uma semana ou duas depois houve uma reunião na prefeitura presidida pelo prefeito para acertar os detalhes dos dois eventos. Ficou acertado que a comemoração dos 60 anos da Biblioteca antecederia à Feira do Livro no auditório da prefeitura. Na ocasião coube-me a fala da abertura. Como não tinha mais nenhum compromisso com a universidade participei, na medida do possível, das diversas programações previstas.

A feira do livro ocupou a última semana de novembro. O local escolhido foi a antiga estação do trem. Na minha opinião a opção não poderia ter sido mais adequada pelo simbolismo histórico pois, a estação localiza-se a menos de uma quadra da moderna estação do trensurb. O ruído e a trepidação da passagem do moderno trem de transporte de passageiros, com suas possantes locomotivas movidas a energia elétrica, levou a memória dar um salto para trás até 1875, quando os primeiros trens de passageiros e transporte de mercadorias, acionados por máquinas a vapor, as lendárias “Maria Fumaça”, inauguraram a ligação de Porto Alegre, Santa Maria até Uruguaiana, com ramais pelo interior do Estado. De Santa Maria um ramal seguiria para o norte até Marcelino Ramos conectando com o que cruzava Santa Catarina de sul a norte, seguindo para Curitiba e São Paulo.

A abertura da feira seguiu em grandes linhas o ritual das demais como Porto Alegre e em não poucas cidades maiores do interior do Estado. Depois do cerimonial de abertura presidida pelo prefeito do município dr. Moacir, como patrono da feira, como manda o figurino, tocando uma sineta percorri as estandes dos livros oferecidos para a venda. Com isso a cerimônia de inauguração estava encerrada. Nos dias seguintes passava a maior parte do dia na feira. Como é praxe nessas solenidades houve apresentações de crianças das escolas do município e, o que não podia faltar, lançamento de livros. Não me lembro de muitos detalhes além do lançamento pelo senador Pedro Simon do seu livro e a palestra do conhecido jornalista Rui Carlos Ostermann, natural de São Leopoldo. O encerramento foi novamente presidido pelo prefeito municipal. Tentei caprichar na minha fala. Nãos sei até que ponto o consegui. De qualquer maneira foi uma experiência e tanto para concluir o ano de 2013, somado aos lances da minha saída definitiva da Unisinos além de contemplado pela honrosa “Distinção Imigração Alemã” concedida em julho pela FECAB.

Da Enxada à Cátedra [ 89 ]

A Gênese do Memorial Jesuíta. 

No almanaque “Die Fahne des Hl. Ignatius”, 1950, o Pe. Balduino Rambo publicou uma matéria intitulada: “Em Memória da Velha Guarda”. Nela homenageou os fundadores da Província Sul Brasileira da Companhia de Jesus por ocasião do centenário da chegada dos primeiros jesuítas alemães em 1849. Ao comentar as enormes dificuldades que os pioneiros enfrentaram, destacou a total penúria de bibliotecas e demais subsídios relativos ao suporte cultural. A um certa altura observou: “Com certeza o nosso povo colonial se apercebeu muito pouco do quanto o padre sofria com a escassez de livros e os estímulos intelectuais em geral. Enfrentaram o problema da melhor forma possível. É de pasmar como muitos deles encontraram tempo, em meio à monótona atividade pastoral, para dedicar-se à leitura de obras de formação geral. Na biblioteca reunida pelo Pe. Fintan Börlocher encontram-se obras de conteúdo histórico, em vão procurados em outra parte. A biblioteca do Pe. Franz Murmann contem as obras mais selecionadas sobre Homilética e Sagrada Escritura”

Estes são apenas dois exemplos que mostram o lendário interesse dos jesuítas pelo “alimento espiritual”. Ao mesmo tempo nos faz entender como, num século e meio, reuniram em suas casas e instituições no sul do Brasil, um gigantesco tesouro cultural. Os dois nomes acima são emblemáticos para a grande maioria dos jesuítas que dedicaram a sua vida à edificação da obra pastoral, social e educacional sem paralelo nos estados do sul do Brasil. A justiça manda acrescentar a esses toda uma galeria de nomes que se tornaram referência nacional e internacional. Todos eles contribuíram significativamente para amealhar esse imenso e rico patrimônio cultural. São recorrentes os nomes de Johannes Rick, Ambros Schupp, Karl Teschauer, Johannes Hafkemeyer, Werner von um zur Mühlen, Josef Mors, Max von Lassberg, Theodor Amstad e por aí vai. Manda a justiça igualmente que se lembre o batalhão de jesuítas menos conhecidos, alguns relegados ao anonimato que, num trabalho de formiga contribuíram para reunir esse magnífico tesouro cultural. E a partir do momento em que “velha guarda” confiou a obra começada às mãos dos jesuítas nativos, legou-lhes também o gosto e a paixão pelo cultivo em todos os ramos do saber humano, profano e religioso.

Os colégios que foram sendo fundados: o Conceição em São Leopoldo, o Anchieta em Porto Alegre, o catarinense em Florianópolis, o Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande, o Seminário, o Noviciado, o Juniorado e a Terceira Provação em Pareci Novo, o Seminário Central em São Leopoldo, o Seminário Menor em Cerro Largo, o Seminário Menor em Santa Maria, o Seminário Menor em Gravataí, o Seminário Menor em Salvador do Sul, o Colégio Medianeira em Curitiba, fora abundantemente providos com bibliotecas. Em alguns casos como nas faculdades de Filosofia e Teologia Cristo Rei a biblioteca enriquecida com a assinatura de um número excepcional de revistas e periódicos, constitui, sem favor nenhum, um acervo que provavelmente não tem similar no País.

Paralelamente às instituições de ensino, as paróquias sob a responsabilidade de jesuítas foram equipadas com bibliotecas. A tudo isso somaram-se bibliotecas particulares especializadas como a do Pe. Milton Valente e do jurista von Langendonc além de não poucas outras. Eleva-se assim para próximo de meio milhão de títulos. Os periódicos, revistas jornais, partituras de música e canto sobem a dezenas milhares, somados ao acervos documentais.

A descrição muito sintética e com certeza fragmentária teve com objetivo dar uma pálida ideia potencial e riqueza a ser explorada por pesquisadores dos mais diversos campos do conhecimento.

Na medida que em que a organização das bibliotecas, das coleções de revistas, dos acervos de documentos avançavam, começou a tomar corpo a ideia reunir todo esse conjunto de fontes de pesquisa num “Memorial Jesuíta”. O diretor da biblioteca central, Pe Mallmann e o reitor Pe. Bohnen o aprovaram. Uma proposta que não prosperou por razões que não cabe discutir aqui, foi de incluir no Memorial as coleções científicas e demais acervos e fontes de pesquisa do Instituto Anchietano de Pesquisas. Dessa forma o Memorial Jesuíta proposto limitou-se aos acervos bibliográficos e históricos do terceiro e sexto andar da biblioteca central. A reitoria e a direção da biblioteca central nomearam uma comissão integrada por representantes da administração acadêmica e financeira da universidade, o diretor da biblioteca e representantes de empresas e entidades de fora da universidade. Essa comissão pretendia levar ao público interno e externo o significado e o valor, também para a sociedade em geral, a conveniência de criar o Memorial como referência não só da universidade como também para a sociedade local, regional e nacional. Em não poucas das reuniões um dos pontos cruciais analisados foi a captação de recursos em empresas e entidades civis visando a sustentabilidade do projeto. As perspectivas animadoras empacaram no momento em que a administração financeira da universidade impôs o seu ponto de vista de que as eventuais dotações de empresas e pessoas físicas deveriam entrar no caixa único. Dessa forma o Memorial dependeria da dotação orçamentária destinada à biblioteca central. Na prática integraria na biblioteca acadêmica e subordinado á direção da mesma como os demais setores. Com isso as empresas, pessoas físicas e entidades em geral perderam interesse pelo projeto e deixaram de participar da sua montagem. O resultado óbvio não podia ser outro. O Memorial, ou o que sobrou dele, foi espalhafatosamente legitimado e instalado numa solene reunião do Conselho Universitário com falas altissonantes mas não passando do protocolar. Foi uma noite que lembro com um ressaibo de decepção. Afinal a iniciativa do projeto fora minha, a montagem e redação do texto para a avaliação e posterior aprovação foram minhas (guardo comigo os originais) e a organização básica para servir de ponto de partida para uma catalogação técnica fora também minha. Como já lembrei mais acima, os em torno de 300.000 títulos passaram, um por um, por minhas mãos. Naquela noite fiquei recolhido no meio do público como um participante anônimo. Não fui convidado para uma manifestação. Meu nome e a parte que coube na história do memorial nem sequer mereceu uma menção nas falas nem do reitor substituto do Pe. Bohnen nem do curador indicado. Poucas vezes na vida flagrei-me numa tamanha e até ostensiva marginalização numa iniciativa que partira de mim, apoiada e incentivada pelo reitor anterior Pe. Bohnen e o diretor da biblioteca Pe. Mallmann. Um projeto que tinha tudo para projetar a universidade como um centro cultural de referência, tanto regional, quanto nacional, atraindo pesquisadores, mestrandos e doutorandos também de fora do país. Assim o que fora planejado para ser, pelo mínimo, um dos possíveis ícones com potencial de projetar a Unisinos com um centro de excelência na produção do conhecimento, murchou para terminar em mais um setor da biblioteca. O Pe. Bohnen quando reitor manifestara inclusive a intenção de mandar construir um prédio especialmente projetado para abrigar os acervos que mofam no terceiro e sexto andar da biblioteca somado às coleções científicas literárias e documentais com status de independentes, ocupando o antigo pavilhão 5 do extinto Ciclo Básico.

Centro de Altos Estudos
Não posso deixar de mencionar que o Memorial na sua versão original ganharia muito em brilho oferecendo condições para que especialistas em todas as áreas do conhecimento, pudessem explorar o seu potencial. Foi com essa intenção que apresentei a proposta para a criação de um grupo de “Altos Estudos”, inspirado nas famosas “Casas de Escritores”, nas quais os jesuítas costumavam reunir a nata dos intelectuais da Ordem. Famosas e respeitadas internacionalmente por suas contribuições de alto nível oferecidas ao público no formato de periódicos e livros, cito como exemplares: A casa de escritores de Roma, de Paris, Maria Laach na Alemanha, Lisboa, Bélgica e outras e os respectivos periódicos: “Acta Romana Societatis Iesu”, Études”, Stimmen der Zeit”, “Brotéria”, “Coleção dos Bolandistas”. Evidentemente esse Centro de Altos Estudos não pretendia ser uma “Casa de Escritores” integrada apenas por jesuítas, mas aberta a todo e quaisquer pesquisador e ou pesquisadora de alto nível dedicados aos muitos campos dos saber tanto da Filosofia e Ciências Humanas, quanto das Ciências Naturais, quanto das Letras e Artes, Direito, Economia, Ciências da Saúde, Arquitetura, Engenharia, além das mais diversas modalidades de tecnologia. Inclusive a proposta contemplava a edição de uma revista anual. Com a versão final implantada do Memorial reduzido à uma sombra da proposta original, o “Centro de Altos Estudos” nem sequer foi avaliado. Guardo comigo cópias do original dos dois projetos, tanto do Memorial quanto do Centro de Altos estudos.

Da Enxada à Cátedra [ 88 ]

O potencial de conhecimento acumulado

A formação de bibliotecas não é um processo aleatório, uma simples preocupação em colecionar obras, reuni-las num recinto apropriado para simular o nível cultural do seu dono. Esse pode até ser o caso de algumas bibliotecas particulares ou de colecionadores de livros. No mais as bibliotecas de profissionais liberais, de intelectuais, de pessoas cultas, no sentido genérico, refletem os interesses e ou as preferências por conhecimentos determinados dos seus proprietários. Esse fato torna-se ainda mais determinante quando estão em jogo bibliotecas de instituições de ensino, de associações, de instituições religiosas, de casas de formação de natureza mais diversa, bibliotecas municipais, estaduais, nacionais, universitárias, de entidades culturais, etc. etc. Em cada uma delas fica clara a preferência dada aos interesses que motivaram a constituição de cada biblioteca em particular. Assim na biblioteca de um profissional liberal, engenheiro, arquiteto, médico, advogado, predominam obviamente as obras necessárias ou úteis para o exercício e atualização da profissão. Um professor de história, de filosofia, de economia, de direito cuidará que sua biblioteca esteja munida das melhores obras da sua especialidade. Esse fato não impede que uma porcentagem considerável da composição dos acervos ofereça obras que atendem às preferências literárias, religiosas, científicas e outras de cada dono ou colecionador. Assim é comum que a biblioteca reunida de um engenheiro, médico ou arquiteto, venha complementada com obras de literatura, arte, filosofia, história da ciência, etc. O exemplo mais emblemático vem a ser a “Coleção Cristo Rei”.

Parece pertinente descrever em poucas linhas o “perfil intelectual” de que estamos falando. Situados no tempo esses intelectuais eram todos jesuítas e completaram a formação antes da década de 1960. Contavam com isso na média com 14 anos de formação em nível superior, sem contar os anos de ensino fundamental e médio: Dois anos de estudos e prática ascética no noviciado; três anos de Letras Clássicas e Retórica; três anos de Filosofia; três a quatro anos de pratica pedagógica somada por muitos a um curso universitário da preferência de cada um; quatro anos de Teologia e mais um ano de estudo e prática de ascese. Somente depois somava-se um biênio ou mais, em nível de doutorado para especializar-se em algum campo da Filosofia ou Teologia. Só então passavam a integrar o corpo docente das faculdades Filosofia e Teologia. Entende-se assim que os mestres que reuniram a coleção Cristo Rei, alimentassem interesses intelectuais complementares, e por vezes, bem diversos do conteúdo das cátedras que regiam. Um professor de Teologia Dogmática cultivava como lazer a leitura de viagens, obras de literatura, compêndios de história, obras científicas e por aí vai. Dessa forma a coleção em foco oferece obras importantes, algumas únicas em praticamente todos os campos dos conhecimentos básicos das Ciências do Espírito e das Ciências Naturais, Humanas e Letras.

Se de um lado o perfil intelectual dos docentes de Filosofia e Teologia explica em parte a composição da Coleção Cristo Rei, um outro elemento foi decisivo. No currículo dos dois cursos, além das disciplinas que formavam a coluna mestra de cada um, costumavam-se oferecer disciplinas complementares que tinham como finalidade despertar a atenção e o interesse dos alunos de filosofia e teologia, sobre o avanço nos diversos outros campos do conhecimento e pesquisa científica e seus reflexos sobre a filosofia e teologia. O tratamento que se dava àquelas disciplinas constava no currículo não como obrigatórias em si, isto é, que fossem exigidos conteúdos pré-determinados de Física ou Biologia, por ex., mas oferecidos na medida da sua importância somada a especialistas disponíveis a ministrá-las. Constavam como “questões seletas” – “questiones selectae”. Com essa prática entrou na biblioteca um considerável número de obras também “seletas”.

A Coleção Cristo Rei serviu de subsídio aos professores e estudantes de Filosofia e Teologia jesuítas. Por isso sua constituição sofreu obviamente o direcionamento tendo em vistas uma formação afinada com a ortodoxia católica, orientada pelo viés da base teórico metodológica adotada nas faculdades sob a responsabilidade de jesuítas. Esse fato chama atenção a uma outra característica dessa coleção. Ela é seletiva oferecendo obras que em princípio não se afastam da ortodoxia oficial. E parece importante apontar para a particularidade de que a coleção foi reunida na sua totalidade entre o final do século XIX e meados do século XX. Cobre, portanto o período entre os dois Concílios do Vaticano. Em outras palavras, corresponde ao período áureo da implantação do projeto da Restauração Católica. O tomismo e o Suarezeanismo traçavam o rumo das preleções e eram os responsáveis pelo seu perfil. Destinavam-se em primeiro lugar para subsidiar a preparação das preleções dos professores de Filosofia e Teologia e como tal altamente especializadas. Em princípio não se destinavam à consulta dos estudantes. Estes serviam-se basicamente de compêndios e textos elaborados pelos mestres e somente aqueles que alimentavam alguma pretensão para no futuro dedicarem-se a estudos avançados em Filosofia ou Teologia.

Considerando as características que acabamos de registrar acima, a Coleção Cristo Rei constitui- se num complexo de obras que condensam o pensamento, a orientação e a doutrina oficial da Igreja Católica, entre os dois Concílios Vaticano. Em linhas gerais reflete o retorno à rigidez da ortodoxia doutrinária, moral e disciplinar definida pelo Concílio de Trento. Retrata também uma tomada de posição ostensiva e combativa em relação a um número de postulados doutrinários defendidos pela modernidade laica. Entres esses destacam-se como pontos altos da polêmica entre a Igreja e o avanço das Ciências Naturais, com acento para o Evolucionismo pregado por Darwin e seus adeptos, com destaque para o Materialismo Monista de Ernest Häckel, Julião Huxley e muitos outros. Vale chamar a atenção de que o eco desses embates foi claramente percebido no sul do Brasil. O segmento mais culto dos imigrantes alemães, como profissionais liberais, comerciantes, artesãos dos centros urbanos, liderados por Karl von Kosertiz, valeram-se da “Deutsche Zeitung” e do Koseritz Volkskalender, para popularizar o ideário evolucionista materialista. Nesse plano duelaram principalmente com os padres jesuítas dos colégios e paróquias nos centros maiores como Porto Alegre, São Leopoldo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e outros. Em resumo. A coleção Cristo Rei vem a ser um bom lugar para o estudioso encontrar fontes e informações a respeito da formação filosófica, teológica, moral, canônica e histórica dos candidatos ao sacerdócio, entre os dois concílios Vaticano.

Da Enxada à Cátedra [ 87 ]

A Biblioteca Histórica da Unisinos.

Procedendo a um reconhecimento exploratório pelo terceiro e sexto andar da biblioteca central, flagrei-me no panorama perfeito para concluir os anos que restavam antes de encerrar minha jornada acadêmica formal em julho de 2013. Sem compromissos burocráticos, administrativos e docentes, inclusive dispensado de bater o ponto na entrada e saída do expediente, costumava iniciar o expediente às 730 ou 8h e encerrar pelas 16h. Enfileirados naquelas dezenas de estantes, ou ainda encaixotados em pilhas e pilhas de caixas de papelão, dispunha de todo o tempo para dialogar com os “mortos vivos” em suas obras e estas, por sua vez, embora mudas” falando uma linguagem singular, contando a saga do perene e do transitório da história da humanidade, tanto da perspectiva escura e deplorável, quanto da face iluminada e admirável. Livros sempre contaram entre meus companheiros prediletos desde aquele remoto ano de 1939 quando, aos 9 anos li, à luz de uma lamparina de óleo de amendoim, meu primeiro livro em alemão e impresso em gótico, já lembrado mais acima. “Noni e Mani” foi seu título e descrevia o quotidiano da infância dos dois meninos irmãos com esses nomes, lá na longínqua Islândia gelada com seus vulcões e fontes quentes. Foi uma experiência memorável ao deparar-me com um exemplar desse livro entre as dezenas de milhares de obras que passaram por minhas mãos nos anos seguintes.

Aleatoriamente acomodados em estantes ou simplesmente empilhados em caixas de papelão ou amontoados não chão, foi necessário proceder a uma classificação em grandes áreas de conhecimento: história, geografia, letras e artes, filosofia, teologia, ciências naturais, ciência e tecnologia etc. isto é, uma pré-classificação para facilitar uma posterior propriamente dita. Essa tarefa exigia um domínio razoável do grego e do latim, do inglês, do francês, do espanhol e evidentemente do português e do alemão. Como já lembrei mais acima, minha formação acadêmica me tinha proporcionado esse conhecimento básico. Pus mãos à obra e por um período de mais ou menos dois anos, em tempo integral, identifiquei pelos títulos, uma por uma, essas obras somando no seu todo em torno de 300.000. Foi uma experiência única pois, para mim pelo menos não se resumiu num procedimento friamente técnico identificando conteúdo e autor de cada obra. A sensação tátil, o odor inconfundível, a data das edições, o conteúdo, as circunstâncias históricas em que as obras foram publicadas, além de outros detalhes me levavam de volta ao tempo em que as obras foram escritas. Na medida em que passava de uma obra para outra desfilavam diante da imaginação os autores “vivos”, embora mortos, não poucos há mais de dois mil anos, mas falando na sua “mudez” do perene e do transitório da história da humanidade. Como seria pertinente que em qualquer biblioteca, por mais modesta que seja, o visitante, o curioso, o pesquisador fosse recebido com a admoestação escrita na entrada: “Hic mortui vivunt, hic muti loqunt! – “Aqui os mortos vivem, aqui os mudos falam”! Os Homeros, os Píndaros, os Tales de Mileto, os Epicuros, os Sócrates, os Aristóteles, os Platão da velha Grécia; os Virgílios, os Horácios, os Tácitos, os Cesars, os Cíceros, os Aristófanes da história de Roma; os padres da igreja “vivos” na gigantesca obra da Coleção “Minge”, resumo dos primeiros 400 anos do Cristianismo; os clássicos do Renascimento, do romantismo, da ilustração; os formuladores das grandes correntes filosóficas: Santo Agostinho, São Tomas de Aquino, Suarez, os Iluministas, Marx, Engels, Feuerbach, Hegel, Kant, Nietzsche, a Escola de Frankfurt; os gigantes da literatura renascentista, moderna, contemporânea e pós moderna: Cervantes, Maquiavel, Camões, Dante, Goethe, Schiller, Heine, Vitor Hugo, Sheakespeare, Milton, e os milhares de outros “mortos vivos”, falando uma linguagem peculiar na “mudez” de suas obras.

Depois aproximadamente dois anos a tarefa da organização básica do enorme acervo documental do sexto e em parte terceiro andar, estava concluído

A gênese das bibliotecas e acervos da Unisinos

Em linhas gerais os acervos depositados no sexto e terceiro andares da Unisinos têm a sua origem nas instituições que os jesuítas fundaram e mantiveram desde 1850 até 1950. Na medida em que as paróquias e capelanias foram criadas e os colégios fundados e postos a funcionar, foram equipados com bibliotecas. A partir da década de 1950 muitas dessas obras foram sendo desativadas ou passaram para outras mãos. Até o final dos anos 1969 as bibliotecas ficaram, por assim dizer, hibernando nas instituições às quais tinham servido. Entende-se que correram um risco não pequeno de caírem vítimas de administradores que não sabiam dar-lhes o devido valor ou presas dos cupins, ratos e intempéries. Não é exagerado admitir que, pelas mais diversas razões, uma porcentagem difícil de dimensionar, foi desviada para colecionadores, donos de sebos ou instituições que nada tinham a ver com a sua origem.

Finalmente o Pe. Aloysio Bohnen, reitor da Unisinos, atento ao valor dessas bibliotecas e o risco que corriam de se perderem irremediavelmente, encontrou no Pe. Arthur Rabuske a pessoa talhada para assumir o salvamento. Este percorreu, na medida do possível, todas as instituições conhecidas, encaixotou as bibliotecas e transportou-as para a antiga sede da Unisinos no centro de São Leopoldo. Num primeiro momento os livros aleatoriamente amontoados em salas, foram pincelados e colocados em estantes sem preocupação por uma classificação. O grosso do considerável conjunto de obras migrou em 2004 para o sexto andar da biblioteca da universidade. Procedeu-se então uma classificação tomando como base a CDU. Encontram-se até hoje nessa situação à espera de uma catalogação em regra e a sua disponibilização ao grande público inclusive via Internet.

Entre as paróquias que de alguma forma contribuíram com a formação dos acervos, destacamos: São Miguel dos Dois Irmãos, Bom Jardim (Ivoti), São José do Hortêncio, Bom Princípio, São Salvador (Tupandi), São Sebastião do Caí, Santo Inácio da Feliz, Nova Petrópolis, São Leopoldo, Igreja de São José em Porto Alegre, Estrela, Lajeado, Santa Cruz do Sul, São João do Oeste, Itapiranga, Cerro Largo, Nova Trento. As bibliotecas paroquiais destinavam-se mais para os paroquianos do que para os párocos e seus auxiliares. As obras nelas contidas perseguiam como objetivos imediatos a formação religiosa, a formação e informação profana, o lazer e o estímulo à leitura. Predominam por isso obras de edificação, biografias de santos, livros de reza, sagradas escrituras, enfim, obras de conteúdo e formação religiosa. O lado profano dessas bibliotecas compunha-se de romances, livros de ficção, relatos de viagens, romances históricos como de Karl May, etc. Além disso encontravam-se nelas obras de consulta e obras de leitura mais apuradas, destinadas a suprir as exigências pastorais dos padres.

Enquanto essas bibliotecas paroquiais estavam ainda disponíveis e abertas ao público, desempenharam o papel de um poderoso estímulo na manutenção do nível cultural num patamar considerável. Costumava ser uma cena comum que os colonos, antes e depois da missa aos domingos, passassem pela casa paroquial ou algum outro local onde se localizava a biblioteca. Devolviam os livros lidos e levavam outros, pagando uma taxa simbólica pelo empréstimo. Nos domingos de tarde ou nas noites concentravam-se à luz de candeeiros de querosene ou lamparinas alimentadas com óleo de amendoim e, apesar do cansaço de um dia de trabalho pesado, liam às vezes horas a fio “alimentando o espírito” como costumavam dizer. Compreende- se que os leitores mais assíduos somavam minoria, como que uma elite intelectual. Costumavam ser pessoas conhecidas como tais e usavam encontrar-se nos domingos antes da missa para trocar informações, falar sobre as novidades que tinham lido e recomendar ao vizinho os livros de que tinham gostado e cujo conteúdo lhes parecia ser útil. Nessa “elite” de leitores assíduos, para não dizer fanáticos, incluo meu pai e meus dois irmãos casados e simples colonos. A programação dominical de meu pai resumia-se em assistir a “missa do cedo” na igreja matriz que ficava a uma hora a cavalo, voltar, acomodar-se na varanda da casa, ler jornais e almanaques até a hora do almoço e, depois de um sono de uma ou duas horas, retomar à leitura até ao anoitecer. Mas era principalmente meu segundo irmão mais velho, o mais velho lecionava na universidade como padre jesuíta, um simples colono, pai de numerosa família. Devo a ele, quando eu tinha nove ou dez anos, uma das experiências mais gratificantes e das influências talvez decisivas, para o meu interesse e curiosidade posterior por saber e conhecer cada vez mais, sem propriamente uma área de maior concentração. O Raymundo, esse era o nome do meu mano, costumava ler à luz avermelhada de uma candeia a óleo de amendoim, às vezes até madrugada a dentro. Deve ter lido uma dúzia dos romances históricos de Karl May, além de relatos de viagem como de Sven Hedin e livros de conteúdo histórico. Sabia como ninguém dramatizar os personagens bíblicos do Antigo Testamento. No dia seguinte no intervalo para descanso na roça, costumava contar o que tinha lido. Winnetou e Old Shaterhand, clássicos de Karl May sobre os índios americanos, vinham a ser seus personagens prediletos. Aliás a descrição da vida livre dos índios das Pradarias serviu também para despertar o jovem filósofo na época, Ernst Bloch, para a sua obsessão pela liberdade sem restrições como condição para realizar a harmonia final entre todas realidades, desde o homem passando pelos animais, plantas, minerais – para a concretização “do ideal do bem” – arealização da “Heimat”, da querência definitiva. Resumiu o seu pensamento na frase: “Onde há liberdade, há possibilidades, onde há possibilidades há esperança, onde há esperança a realização da harmonia final – o “Ideal do Bem” - é possível.

A oportunidade e o hábito da leitura propiciado pela modesta biblioteca da paróquia foi com certeza uma determinante decisiva para que meu irmão mais velho se tornasse um cientista de fama internacional, um outro irmão professor de física e química, uma terceiro um admirado professor de escola e líder comunitário e uma irmã com PHD na Universidade Católica de Washington e professora universitária de literatura americana e inglesa na Universidade Federal de Santa Maria e na Faculdade Imaculada Conceição, hoje UNIFRAN. Os estímulos e os exemplos com que vivi no quotidiano da minha infância levaram-me a me alfabetizar com minha irmã, entrevada pela paralisia infantil, antes mesmo de ingressar na escola da comunidade. Aos nove anos li o meu primeiro livro, emprestado da biblioteca paroquial, da primeira até a última página, naturalmente à luz mortiça de um candeeiro de óleo de amendoim. O título do livro, como já lembrei mais acima, foi “Noni und Mani” e o autor Jón Svenson. Jón Svenson era o Noni personagem do livro e Mani seu irmão, dois irmãos que viviam na Islândia. Noni migraria mais tarde para a Alemanha onde se tornou sacerdote jesuíta. O livro falava da infância dos dois meninos irmãos. O livro nada mais oferece do que o quotidiano dos dois irmãos nas terras geladas da Islândia com seus vulcões e fontes quentes. A leitura desse livro foi o estopim para o despertar em mim duma curiosidade e dum interesse que não esmoreceu até hoje, por terras, povos e culturas de regiões distantes. Localizo naquele final da década de 1930 as raízes da minha paixão pela geografia, pela história e pela antropologia. A descrição das paisagens polares da Islândia, o clima, a neve, o gelo, os vulcões, as fontes quentes, fez com que carregasse para o resto da vida um fascínio difícil de descrever pelas paisagens árticas. Foi uma emoção indescritível, quando classificando os acervos acumulados no sexto andar da biblioteca da Unisinos, encontrei um exemplar do “Noni e Mani”, idêntico ao que havia lido como primeiro livro aos nove anos, mais de oitenta anos atrás. Pelo carimbo de origem não foi possível determinar se foi o mesmo exemplar do livro que foi de tanta importância para minha formação. Também não é esse o detalhe que decide. O que importa é que o exemplar que tinha em mãos deve ter mexido com a imaginação de outros meninos como eu e de adultos também, em alguma paróquia da colônia.

A bem da verdade é preciso chamar a atenção de que os leitores assíduos não somavam a maioria. Eram, contudo, suficientes para desempenharem o papel de “fermento cultural” nas suas comunidades. O alemão ensinado nas escolas para todas as crianças e a realimentação da língua com posteriores leituras assíduas ou não, fazia com que todos entendessem perfeitamente o alemão erudito. Tanto assim que os sermões, alocuções, conferências, palestras, etc., eram apresentadas em alemão erudito e o colono ou colona menos letrado os entendia e fazia questão que fosse assim. Um sermão ou um discurso do professor em dialeto soaria no mínimo estranho.

Até o começo da segunda guerra mundial os leitores assíduos formavam, por assim dizer, uma elite intelectual no meio colonial, como já lembrei mais acima. Costumavam ser escolhidos como subprefeitos, fabriqueiros, capatazes na manutenção das estradas distritais, etc. Os frequentadores assíduos das bibliotecas paroquiais, costumavam ser também assinantes de jornais, leitores de almanaques, periódicos e publicações avulsas. Formavam um estrato culto, possuidor de conhecimentos gerais, de uma cultura apreciável. Emitiam com segurança e conhecimento de causa, opiniões políticas, ajuizavam sobre questões relativas à situação social, econômica, cultural e religiosa. Assumiam inclusive posições críticas diante de questões locais, regionais, nacionais e até internacionais. Não se omitiam nem em discussões de natureza religiosa. Dois fatores praticamente simultâneos mudaram de vez esse quadro, lamentavelmente para pior, para muito pior. O primeiro foi a malfadada Campanha de Nacionalização implantada no país a partir de 1938 e o segundo a Segunda Guerra Mundial na qual o Brasil terminaria declarando guerra à Alemanha, fato que radicalizou o primeiro. Não é aqui nem o lugar nem a ocasião para entrar em detalhes nessa discussão. Merece destaque apenas o fato de que a língua alemã ter sido proscrita e as fontes que a alimentavam e realimentavam o nível cultural dos colonos, isto é, a escola, a imprensa e as bibliotecas postas no ostracismo. Pior. As escolas foram nacionalizadas ou fechadas e foi alimentada toda uma fúria iconoclasta que resultou na queima e destruição de livros, jornais e periódicos. Ora as vítimas foram acervos de pessoas, ora de famílias, ora de instituições. Bibliotecas parcialmente danificadas e desfalcadas, recolheram-se à clandestinidade a espera de tempos mais propícios. Muita coisa se perdeu durante esse período conturbado. O quanto, é difícil de avaliar. Contudo sobreviveu o suficiente desses acervos para permitir uma avaliação quantitativa do volume dessas bibliotecas distribuídas pelas comunidades coloniais. Foi possível preservar também o bastante para se formar uma ideia mais ou menos compreensiva dos interesses do público leitor da época. O que foi possível resgatar soma um número respeitável de obras. Concentram-se aí, na essência, as fontes que permitem dimensionar a abrangência das expectativas em relação à cultura geral e principalmente, o perfil da religiosidade, da espiritualidade e da disciplina religiosa pregada ao povo.

Paralelamente e sem uma vinculação obrigatória com a Campanha de Nacionalização, a maioria das paróquias, administradas por jesuítas passou para a responsabilidade do clero diocesano. Essa mudança implicou no recolhimento simples e puro dos acervos, sem uma preocupação seletiva, para as dependências da antiga sede da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no centro de São Leopoldo. Lá ficaram guardados longe do acesso ao público, durante quarenta ou mais anos, expostos à deterioração natural, a eventualidades não previsíveis, e à displicência como um patrimônio dessa natureza costuma ser visto e avaliado por não poucos, incluindo os próprios jesuítas, fascinados, para não dizer obcecados pela pirotecnia orquestrada pela parafernália da tecnologia. O Pe. Rabuske (in memoriam) referindo-se a esse aspecto, assim se expressou:

( ...) faz-se oportuno dizer que, neste último quartel do século, ou seja nos últimos 25 anos, mais ou menos, tais causas têm existido em geral se vem repetindo um pouco ou até muito em toda a parte. Não se trata, portanto, de um fenômeno típico ou exclusivo nosso, brasileiro, mas extensivo, infelizmente, a outros países, dos quais, por uma longa tradição cultural-científica, tal fato mesmo poderia esperar-se. Conhecemos a esse respeito alguns exemplos, que bem poderíamos definir de “clamorosos”, para não dizer “escandalosos”. Não nos cabe o papel inglório decliná-los em concreto, mas em vez disso, apontá-los como bastante próprios da nossa época, sempre apressada, pragmática, materialista, imediatista, “funcional” e porque não condená-los – sempre destruidora de valiosos e insubstituíveis bens, documentos e monumentos culturais, por perenes. Gente interessada na conservação insistente de tais valores sabe-o de sobejo, a partir de muita abnegada, obscura e inglória, sobretudo desde não poucos e pequenos sofrimentos pessoais. A que atribuir, perguntamos, tal situação lamentável, sem dúvida, doentia e até epidêmica, e por isso mesmo necessitada de uma urgente intervenção medicinal concreta e eficaz. Aqui as respostas se apresentam em boa quantidade. Com frequência será falta do necessário espaço físico, onde acomodar semelhante material impresso. Outras vezes se torna um total despreparo cultural nos responsáveis ou mesmo herdeiros, que apesar de sua formação superior, não titubeiam em proceder de um modo destruidor e anticultural, com respeito ao legado precioso, cujo alcance não atinam ou compreendem. (Rabuske Arthur. In Anais do 5o Simpósio, p. 110-111)

Ninguém tem mais autoridade do que Pe. Rabuske para deixar registrado essas observações. Não fosse ele, apoiado firmemente pelo Pe. Aloísio Bohnen, as bibliotecas paroquiais assim como outros acervos, estariam irremediavelmente perdidos, ou pelo menos muito mais seriamente desfalcados ou danificados. Graças à sua rara sensibilidade no que diz respeito às coisas da cultura, as coisas do alimento espiritual, pelo que é possível avaliar, foi salvo o bastante, tanto quantitativa quanto qualitativamente, para reconstruir a linha mestra dos interesses culturais e religiosos, ao nível esperado das comunidades da época. É de se admirar que após tantas e tais peripécias não tivessem sofrido danos e perdas ainda maiores.

Em questão de dois anos aproximadamente o trabalho de organização básica dos acervos de sexto andar e parte do terceiro estava concluída. Em dezenas de estantes alinhavam-se disciplinadamente as obras de centenas e milhares de “mortos vivos” deixando a sua mensagem para as atuais gerações na “mudez eloquente”de suas obras. Paralelamente uma bibliotecária prática organizou em duas dezenas ou mais de estantes cerca de 1200 títulos de revistas e periódicos dos mais diversos conteúdos assinados pelos jesuítas nas suas instituições, de modo especial nas casas de formação do clero sob sua responsabilidade. Salvo melhor juízo este gigantesco acervo que concentra e preserva a memória histórico cultural no sentido mais amplo dos pouco mais de 100 anos a contar de 1850 a 1960, pode ser considerado uma fonte de pesquisa, na sua multiplicidade e profundidade sem igual no Brasil, cobrindo o período em foco. Destaco alguns títulos como amostra: “Civilta Catolica” desde a primeira edição em 1849; “Stimmen der Zeit”, desde o primeiro número na década de 1860; “Estudes”, “Broteria” dos jesuítas de Portugal; “Vozes de Petrópolis” e por aí vai.

Da Enxada à Cátedra [ 86 ]

O Acervo de Documentação e Pesquisa (ADOPE)

Em 2005, com 75 anos de idade encerrei definitivamente minhas atividades docentes formais na Unisinos. Meu contrato como professor titular com dedicação exclusiva foi encerrado de acordo com a liturgia obrigatória pelas leis trabalhistas. Em vez de esperar o tempo regulamentar a universidade propôs um novo contrato, desta vez sem dedicação exclusiva, sem obrigações letivas na condição de Pesquisador com um salário reduzido à metade, com o objetivo de coordenar a formação de um Acervo de Documentação e Pesquisa a partir das muitas fontes e publicações relativas à imigração alemã além de outros acervos particulares e institucionais que se tinham acumulado junto ao Núcleo de Estudos Teuto-brasileiros. Aceitei a proposta e com as leais e fiéis colaboradoras Isabel C. Arendt e Janaína Silva fomos ocupar as três salas reservadas no subsolo do pavilhão 5 do extinto Ciclo Básico.

Naquele espaço encontravam-se depositadas a biblioteca do prof. Kurt Walzer, já mencionada mais acima, meia dúzia de pequenas bibliotecas cedidas por famílias, todo acervo documental das Cooperativas do Rio Grande do Sul, o Acervo Documental da Sociedade União Popular. A esses vieram somar-se nos dois anos seguintes, o Acervo do Pe. Balduino Rambo, e acervo documental do Falido Frigorifico Vacariense confiado à Unisinos a título de “guarda judicial”. O primeiro passo consistiu em acomodar em estantes os acervos documentais e os livros avulsos para em seguida, passar a catalogar os livros de acordo com regras técnicas e organizar os acervos documentais do extinto Centro de Documentação e Pesquisas (CEDOPE), da Sociedade União Popular e do Pe. Rambo. À Janaína coube a catalogação dos livros e à Isabel coordenar a organização dos Acervos de acordo com as regras técnicas usuais nesses casos. A catalogação dos livros não implicava em recursos financeiros específicos, o que não vinha a ser o caso dos Acervos Documentais. Sem muita perda de tempo a Isabel e eu montamos três projetos para a captação de recursos. O do Pe. Rambo pedia recursos ao BNDES, o da Sociedade União Polpular, ao Programa de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura (Lei Rouanet) e o do CEDOPE, focado no cooperativismo, ao programa de incentivo da cultura da PETROBRAS. Os três foram aprovados. Acontece que somente dois foram de fato executados: o do Pe. Rambo e o do Cooperativismo. Para o da Sociedade União Popular aprovado pela Lei Rouanet não foi possível captar os recursos em tempo hábil por falta de interesse das não poucas empresas visitadas. O Acervo de Documentação e Pesquisa de que estamos falando foi na verdade o resultado da evolução do Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros, sob a jurisdição do Pós Graduação em História. Por ordem superior, entretanto, passou a ser incorporado na biblioteca central da universidade, mais especificamente no setor de livros raros e antigos e a biblioteca histórica que abrigava as muitas bibliotecas espalhadas pelas paróquias, seminários e casas de formação dos jesuítas no sul do Brasil, reunidas no terceiro e sexto andar da biblioteca. A história e características desse conjunto de incalculável valor, pretendo detalhar mais abaixo. Para encurtar. O acervo do ADOPE migrou para o sexto andar da biblioteca e passou a fazer parte do rico e precioso conjunto de obras reunidas pelos jesuítas alemães desde 1849. O cuidado dos acervos documentais ficou sob a responsabilidade da Isabel enquanto a acomodação dos livros e revistas em dezenas de prateleiras coube a Janaína. Por minha conta e responsabilidade ficou a tarefa de proceder a uma classificação prévia em grandes áreas, como geografia, história, filosofia etc. das cerca de 200.000 obras acumuladas em caixas de papelão que não deixavam de se multiplicar na medida em que chegavam mais e mais pequenas, médias e bibliotecas maiores com a do Colégio Cristo Rei, da sede antiga da Unisinos no centro de São Leopoldo e do Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.

Antes de descrever a minha função específica de organizar os acervos da biblioteca histórica da Unisinos, parece oportuno refletir um pouco sobre a história da preservação da memória histórica a partir do momento que dispomos de “documentos” que a trouxeram até nós sem quebra de continuidade.

Memória histórica – Bibliotecas.

As tradições, a história, o patrimônio cultural de um povo constituem-se na sua própria razão de ser. Desde tempos imemoriais, desde a aurora da história, o homem viveu em hordas, bandos, tribos, parentelas, nômades ou seminômades, caçadores coletores de frutos e raízes, ou agricultores primitivos e criadores de animais. Uma das suas grandes preocupações foi a preservação da sua história e suas tradições, enfim sua memória. Recorreram aos mais variados instrumentos para que o fio da memória histórica não sofresse rupturas importantes e não se apagassem as trilhas que conectam o passado com o presente.

Dependendo das características circunstanciais que determinaram a direção e o ritmo da história, recorreu-se aos mais diversos recursos disponíveis para preservá-la. Desde que o homem se fez presente na terra, com portador de inteligência reflexa, preocupou-se com a memória individual e coletiva. “Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre isso uma nova realidade” (Caldera, 2004, p.14). Sendo assim entende- se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, ao mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade para que não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao transitório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultará fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar.

Tanto os povos letrados quanto os ágrafos puseram a serviço da preservação da memória histórica, os meios mais diversos de que dispunham. Entre muitos povos a história e a tradição foram, e em não poucos casos são ainda hoje, transmitidos via oral, de geração em geração, pelas pessoas mais idosas. A elas cabe a tarefa de narrar às gerações mais novas, principalmente às crianças, a história dos antepassados. Agrupadas em volta de fogueiras, recolhidas no interior de tendas, no interior de cavernas ou abrigos rústicos, as crianças ouviam os anciãos e anciãs falarem dos antepassados, dos mitos, dos heróis, dos deuses, dos demônios. Pintados com cores vivas desfilavam diante dos seus olhos infantis curiosos os heróis fundadores. Tanto fazia se eram personagens reais ou imaginários. Lá estavam eles com toda a sua autenticidade e ninguém punha em dúvida a história que estava sendo narrada e que os punha em contato com suas raízes. E como esses anciãos e anciãs esquimós, índios das pradarias do Mississipi, tupis-guaranis, araucanos, maputches, incas, bantus, australianos, chineses, indianos, germanos, etc., etc., devem-se ter esmerado em retratar com as cores mais vivas possíveis, as sagas e os heróis dos seus povos. A esses anciãos e anciãs cabia ao mesmo tempo o papel dos livros, das bibliotecas, das escolas e dos mestres. Por encarnarem a memória viva gozavam de prestígio inconteste conforme os registros dos etnógrafos e etnólogos que se ocuparam com eles.

Além da via oral, da boca dos anciãos ou de outras formas de transmissão oral, outras tornaram- se correntes. A história pode ser contada com o recurso às artes plásticas: desenho, pintura, estatuária, assim como com as tecnologias de fabricação de instrumentos e artefatos de todos os tipos e finalidades, da cestaria, vestimenta, monumentos fúnebres, vestígios de alimentos, e muitos mais.

Em resumo são esses os “livros”, os “documentos”, as “fontes”, que compõem as “bibliotecas” que guardam e preservam a memória dos povos ágrafos ou a fase ágrafa dos povos letrados, permitindo de alguma forma o acesso à sua história não escrita.

Obviamente os “documentos” guardados na memória dos anciãos e anciãs e nas “bibliotecas” dos povos sem escrita, oferecem uma compreensão permeada de idiossincrasias e lacunas. Os perfis da história dos povos tornam-se mais nítidos, são enriquecidos com detalhes, assumem contornos mais claros, a partir do momento em que o homem começou a usar a escrita sistemática, baseada em caracteres com simbolismos convencionados. Enquadram-se nessa linha a escrita cuneiforme, os hieróglifos, os sinais, os logogramas da China e do Japão e outros mais. Entalhados em pedra, nas paredes de cavernas e abrigos naturais, em placas de cerâmica, escritos em peles de animais, em papiros e sobre outros fundos, permitiram o armazenamento sistemático e para o futuro da memória histórica das civilizações em consolidação tanto no ocidente quanto no oriente. A interpretação da escrita cuneiforme franqueou o acesso ao conteúdo do Código de Hamurabi, o mais antigo compêndio de leis do ocidente e ao conteúdo do poema épico escrito em caracteres cuneiformes e em arcádico, permitindo o acesso ao significado da busca da imortalidade de Gilgamesh, rei de Uruk, entre 2700 e 2500 A.C. Da mesma forma a decifração dos hieróglifos, abriu as portas para os detalhes da história do Egito dos últimos milênios A.C. sobretudo o imaginário sobre a morte no Livro dos Mortos que permeia significativamente os textos do Antigo Testamento da tradição judaico cristã.

O passo decisivo para um registro compreensivo e cada vez mais exato, foi dado com a invenção dos diversos alfabetos. Somando menos de três dezenas de símbolos gráficos, agrupados numa infinidade de combinações, permitem na prática, registrar, os sons, os vocábulos e formular os conceitos, expressar o estado de alma, as aspirações, crenças etc., próprios das inúmeras tradições culturais históricas. Os documentos, as fontes, os livros, desde então oferecidos ao público, somados aos anteriores, desde o Código de Hamurabi, do poema de Gilgamesh, do Livro dos Mortos do Egito, foram reunidos em recintos apropriados, conhecidos desde tempos remotos como “bibliotecas”. A mais famosa delas, a Biblioteca de Alexandria abrigava, quanto se sabe, a linha mestra da história e do conhecimento da antiguidade remota do Ocidente. Desafortunadamente caiu vítima do espírito fanático e iconoclasta de conquistadores islâmicos que a incineraram por julgar o conteúdo herético e por isso inútil. Dados históricos registram que as chamas levaram semanas e meses, para reduzir a cinzas a história do norte da África, com destaque para o Egito, do Oriente próximo e médio e da bacia do Mediterrâneo. A história posterior desgraçadamente tem a registrar inúmeros exemplos semelhantes. Por razões políticas, religiosas, étnicas, ou simplesmente pela ignorância mais crassa, obras sem conta e bibliotecas inteiras foram impiedosamente destruídas e mutiladas e, infelizmente, o são ainda hoje. Aqui cabe uma observação. Os livros com encadernação de luxo, livros com encadernação simples, livros em forma de brochuras, periódicos, revistas, escritos avulsos, correspondências, partituras de música, registros de contabilidade, anotações em folhas avulsas, bilhetes impressos de toda natureza e conteúdo, guardam de alguma maneira uma parcela ou uma gota da memória do passado. Trata-los como inúteis, pior como lixo e vende-los para a reciclagem, não passa de ignorância para não falar em estupidez. Por isso é de fundamental importância que pessoas responsáveis para lidar com acervos e bibliotecas tenham um mínimo de consciência dos tesouros que lhes são confiados para a guarda. Posso estar exagerando, mas se dependesse de mim nenhuma linha anotada na orelha de um jornal ou de um bilhete qualquer, deveria ser descartado por serem fragmentos da memória que transmitem de alguma forma uma mensagem ou registram um momento, uma gota no oceano da história. Aliás, enquanto esvaziava as caixas guardei numa estante as folhas ou páginas soltas de jornais e revistas, rascunhos escritos a mão e, por isso, tive que ouvir da curadora dos acervos a observação pouco simpática chamando-me de “coletor de lixo”.

Mesmo assim as bibliotecas foram-se multiplicando em número e aumentando a quantidade e valor das obras. Pelo menos o essencial da cultura clássica, suas linhas de pensamento, sua literatura, sua ciência, encontraram guarida nas bibliotecas dos grandes centros de cultura e do poder do ocidente, do oriente próximo e remoto. Nos séculos tumultuados, marcados pelas grandes migrações dos povos na Europa, as bibliotecas migraram para os mosteiros, onde encontraram uma relativa segurança. Os monges distantes e quase imunes às turbulências do século, lançaram-se à tarefa pela qual a história posterior lhes deveria ser eternamente grata. Puseram-se a copiar os textos com paciência e perseverança. As obras assim multiplicadas puderam ser guardadas em locais distintos, diminuindo em muito o risco da perda, extravio ou destruição pura e simples.

Embora nos séculos finais da Antiguidade e durante a Idade Média, a produção do conhecimento, as obras literárias e o avanço nas ciências, tivessem perdido muito do seu brilho e dinamismo, conta a seu favor o mérito de ter sido a fiel guardiã do legado do mundo antigo clássico. Estigmatizá-la pejorativamente com a “Idade das Trevas” não passa de um primarismo grosseiro de avaliação. Ao abrigo dos mosteiros a memória cultural da Antiguidade Clássica encontrou segurança durante séculos, aguardando o momento para servir de ponte e de combustível para alimentar o motor da Renascença.

Quando a Idade Média chegou ao seu final e o furacão da Renascença começou a varrer a Europa, a providencial invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, ofereceu o pressuposto técnico para que a memória histórica guardada nos mosteiros e a avalanche da produção nova e inédita, pudesse ser fácil e rapidamente posta à disposição do grande público. Em meio a essa frenética agitação surgiram as primeiras universidades em Florença, Paris, Praga, Oxford, Cambridge, Heidelberg, Berlim. Essas e muitas outras que foram surgindo transformaram-se em centros de produção do conhecimento. Na sua origem essas instituições centravam seus interesses na Teologia, na Filosofia, Humanidades, Matemática, Medicina, Jurisprudência. A partir daí começou a migração para as universidades do conhecimento guardado nos mosteiros e o novo que vinha sendo produzido. O resultado natural dessa movimentação foi a instalação de bibliotecas e acervos documentais, como parte obrigatória integrante das universidades.

A partir desse momento as universidades tomaram o lugar dos mosteiros na preservação da memória histórica escrita. No mesmo ritmo em que o furacão da Renascença foi-se alastrando, avolumou-se a produção de novos conhecimentos. E foi nas universidades e no seu entorno sob sua influência direta e indireta, que a mente humana deu demonstrações dos seus fabulosos potenciais. Em meio a essa efervescência generalizada as universidades com suas bibliotecas e acervos documentais, ofereceram os estímulos e as inspirações que as transformaram no nascedouro de uma nova era da história. A concepção de novas ideias, a produção de novos conhecimentos, a moldagem de uma nova cosmovisão, não foram o produto de um “deus ex machina”. Resultaram da redescoberta dos conhecimentos cuidadosamente preservados na penumbra das bibliotecas dos mosteiros. E é nessa perspectiva que a Idade Média com seus mosteiros adquire sua verdadeira e inegável importância histórica. O fato de ter impedido que se interrompesse o canal de comunicação do Mundo Antigo Clássico com a história dos povos dos séculos XV e XVI, confere-lhe um significado de difícil avaliação. Medir o papel da Idade Média e seus mosteiros apenas pela ausência do espetacular, do barulho das invenções, pelo estrépito do embate das ideias em conflito, pela presença e influência onipresente da Igreja em todos os níveis da sociedade, certamente não chega a tocar naquilo que a tornou fundamental para a história.

E as universidades, as grandes herdeiras das fontes do saber e do conhecimento, guardadas nos mosteiros, multiplicaram-se e espalharam-se com rapidez pela Europa toda. Transformaram-se no fórum em que uma nova era estava sendo gestada. Em meio ao embate das ideias em que a nova geração pensante da Renascença se envolveu nas “aulas magnas” das academias, o saberguardado por séculos, estimulou e amadureceu frutos espetaculares. A semente, fruto do espírito fecundo e, porque não dizê-lo, da genialidade dos antigos, depois de hibernar por mil anos nos mosteiros, germinou com todo o vigor, no chão fecundo da atmosfera propícia das universidades.

Em meio ao fervo da Renascença a produção do conhecimento vem acompanhado no mesmo ritmo, com florescimento das artes, das letras e das ciências. Novas tecnologias conheceram momentos de glória. Sem pretender diminuir as novas tecnologias em geral, destaco novamente pela sua importância a invenção da Imprensa por Johannes Gutenberg. Sem ela a popularização dos conhecimentos guardados nas bibliotecas e o novo que se produzia em profusão, dificilmente teria ultrapassado os recintos nos quais era produzido. Pela facilidade da reprodução dos textos atingiu e conquistou um número de leitores cada vez maior, e não tardou para atingir as classes sociais menos favorecidas. As consequências foram óbvias. As ideias novas e antigas, as mudanças acontecidas na cosmovisão, nos hábitos, nos costumes, nas crenças, passaram a fazer parte do dia a dia até das pessoas comuns. O desfecho era previsível. A história da humanidade enveredou por um rumo que ainda hoje decide sobre os caminhos a seguir. Outra consequência. Na esteira da dinâmica desse processo agiganta-se o volume de obras que saem das oficinas gráficas em constante multiplicação numérica, no mesmo ritmo em que as tecnologias de impressão vão-se aprimorando. O crescimento quantitativo e qualitativo enriqueceu e multiplicou as bibliotecas. O conceito “biblioteca” deixa de soar como algo “monacal” ou “acadêmico”, fora do alcance do comum dos mortais, para servir também como termômetro do nível cultural, até das comunidades do mundo rural.

Sendo assim entende-se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, o mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade e não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao aleatório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultaria fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar. E para resumir o que vínhamos refletindo é legítimo afirmar que “as bibliotecas deveriam se tratadas como santuários onde os mortos continuam vivendo e os mudos falando”.