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O potencial de conhecimento acumulado
A formação de bibliotecas não é um processo aleatório, uma simples preocupação em colecionar obras, reuni-las num recinto apropriado para simular o nível cultural do seu dono. Esse pode até ser o caso de algumas bibliotecas particulares ou de colecionadores de livros. No mais as bibliotecas de profissionais liberais, de intelectuais, de pessoas cultas, no sentido genérico, refletem os interesses e ou as preferências por conhecimentos determinados dos seus proprietários. Esse fato torna-se ainda mais determinante quando estão em jogo bibliotecas de instituições de ensino, de associações, de instituições religiosas, de casas de formação de natureza mais diversa, bibliotecas municipais, estaduais, nacionais, universitárias, de entidades culturais, etc. etc. Em cada uma delas fica clara a preferência dada aos interesses que motivaram a constituição de cada biblioteca em particular. Assim na biblioteca de um profissional liberal, engenheiro, arquiteto, médico, advogado, predominam obviamente as obras necessárias ou úteis para o exercício e atualização da profissão. Um professor de história, de filosofia, de economia, de direito cuidará que sua biblioteca esteja munida das melhores obras da sua especialidade. Esse fato não impede que uma porcentagem considerável da composição dos acervos ofereça obras que atendem às preferências literárias, religiosas, científicas e outras de cada dono ou colecionador. Assim é comum que a biblioteca reunida de um engenheiro, médico ou arquiteto, venha complementada com obras de literatura, arte, filosofia, história da ciência, etc. O exemplo mais emblemático vem a ser a “Coleção Cristo Rei”.
Parece pertinente descrever em poucas linhas o “perfil intelectual” de que estamos falando. Situados no tempo esses intelectuais eram todos jesuítas e completaram a formação antes da década de 1960. Contavam com isso na média com 14 anos de formação em nível superior, sem contar os anos de ensino fundamental e médio: Dois anos de estudos e prática ascética no noviciado; três anos de Letras Clássicas e Retórica; três anos de Filosofia; três a quatro anos de pratica pedagógica somada por muitos a um curso universitário da preferência de cada um; quatro anos de Teologia e mais um ano de estudo e prática de ascese. Somente depois somava-se um biênio ou mais, em nível de doutorado para especializar-se em algum campo da Filosofia ou Teologia. Só então passavam a integrar o corpo docente das faculdades Filosofia e Teologia. Entende-se assim que os mestres que reuniram a coleção Cristo Rei, alimentassem interesses intelectuais complementares, e por vezes, bem diversos do conteúdo das cátedras que regiam. Um professor de Teologia Dogmática cultivava como lazer a leitura de viagens, obras de literatura, compêndios de história, obras científicas e por aí vai. Dessa forma a coleção em foco oferece obras importantes, algumas únicas em praticamente todos os campos dos conhecimentos básicos das Ciências do Espírito e das Ciências Naturais, Humanas e Letras.
Se de um lado o perfil intelectual dos docentes de Filosofia e Teologia explica em parte a composição da Coleção Cristo Rei, um outro elemento foi decisivo. No currículo dos dois cursos, além das disciplinas que formavam a coluna mestra de cada um, costumavam-se oferecer disciplinas complementares que tinham como finalidade despertar a atenção e o interesse dos alunos de filosofia e teologia, sobre o avanço nos diversos outros campos do conhecimento e pesquisa científica e seus reflexos sobre a filosofia e teologia. O tratamento que se dava àquelas disciplinas constava no currículo não como obrigatórias em si, isto é, que fossem exigidos conteúdos pré-determinados de Física ou Biologia, por ex., mas oferecidos na medida da sua importância somada a especialistas disponíveis a ministrá-las. Constavam como “questões seletas” – “questiones selectae”. Com essa prática entrou na biblioteca um considerável número de obras também “seletas”.
A Coleção Cristo Rei serviu de subsídio aos professores e estudantes de Filosofia e Teologia jesuítas. Por isso sua constituição sofreu obviamente o direcionamento tendo em vistas uma formação afinada com a ortodoxia católica, orientada pelo viés da base teórico metodológica adotada nas faculdades sob a responsabilidade de jesuítas. Esse fato chama atenção a uma outra característica dessa coleção. Ela é seletiva oferecendo obras que em princípio não se afastam da ortodoxia oficial. E parece importante apontar para a particularidade de que a coleção foi reunida na sua totalidade entre o final do século XIX e meados do século XX. Cobre, portanto o período entre os dois Concílios do Vaticano. Em outras palavras, corresponde ao período áureo da implantação do projeto da Restauração Católica. O tomismo e o Suarezeanismo traçavam o rumo das preleções e eram os responsáveis pelo seu perfil. Destinavam-se em primeiro lugar para subsidiar a preparação das preleções dos professores de Filosofia e Teologia e como tal altamente especializadas. Em princípio não se destinavam à consulta dos estudantes. Estes serviam-se basicamente de compêndios e textos elaborados pelos mestres e somente aqueles que alimentavam alguma pretensão para no futuro dedicarem-se a estudos avançados em Filosofia ou Teologia.
Considerando as características que acabamos de registrar acima, a Coleção Cristo Rei constitui- se num complexo de obras que condensam o pensamento, a orientação e a doutrina oficial da Igreja Católica, entre os dois Concílios Vaticano. Em linhas gerais reflete o retorno à rigidez da ortodoxia doutrinária, moral e disciplinar definida pelo Concílio de Trento. Retrata também uma tomada de posição ostensiva e combativa em relação a um número de postulados doutrinários defendidos pela modernidade laica. Entres esses destacam-se como pontos altos da polêmica entre a Igreja e o avanço das Ciências Naturais, com acento para o Evolucionismo pregado por Darwin e seus adeptos, com destaque para o Materialismo Monista de Ernest Häckel, Julião Huxley e muitos outros. Vale chamar a atenção de que o eco desses embates foi claramente percebido no sul do Brasil. O segmento mais culto dos imigrantes alemães, como profissionais liberais, comerciantes, artesãos dos centros urbanos, liderados por Karl von Kosertiz, valeram-se da “Deutsche Zeitung” e do Koseritz Volkskalender, para popularizar o ideário evolucionista materialista. Nesse plano duelaram principalmente com os padres jesuítas dos colégios e paróquias nos centros maiores como Porto Alegre, São Leopoldo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e outros. Em resumo. A coleção Cristo Rei vem a ser um bom lugar para o estudioso encontrar fontes e informações a respeito da formação filosófica, teológica, moral, canônica e histórica dos candidatos ao sacerdócio, entre os dois concílios Vaticano.
Da Enxada à Cátedra [ 87 ]
A Biblioteca Histórica da Unisinos.
Procedendo a um reconhecimento exploratório pelo terceiro e sexto andar da biblioteca central, flagrei-me no panorama perfeito para concluir os anos que restavam antes de encerrar minha jornada acadêmica formal em julho de 2013. Sem compromissos burocráticos, administrativos e docentes, inclusive dispensado de bater o ponto na entrada e saída do expediente, costumava iniciar o expediente às 730 ou 8h e encerrar pelas 16h. Enfileirados naquelas dezenas de estantes, ou ainda encaixotados em pilhas e pilhas de caixas de papelão, dispunha de todo o tempo para dialogar com os “mortos vivos” em suas obras e estas, por sua vez, embora “mudas” falando uma linguagem singular, contando a saga do perene e do transitório da história da humanidade, tanto da perspectiva escura e deplorável, quanto da face iluminada e admirável. Livros sempre contaram entre meus companheiros prediletos desde aquele remoto ano de 1939 quando, aos 9 anos li, à luz de uma lamparina de óleo de amendoim, meu primeiro livro em alemão e impresso em gótico, já lembrado mais acima. “Noni e Mani” foi seu título e descrevia o quotidiano da infância dos dois meninos irmãos com esses nomes, lá na longínqua Islândia gelada com seus vulcões e fontes quentes. Foi uma experiência memorável ao deparar-me com um exemplar desse livro entre as dezenas de milhares de obras que passaram por minhas mãos nos anos seguintes.
Aleatoriamente acomodados em estantes ou simplesmente empilhados em caixas de papelão ou amontoados não chão, foi necessário proceder a uma classificação em grandes áreas de conhecimento: história, geografia, letras e artes, filosofia, teologia, ciências naturais, ciência e tecnologia etc. isto é, uma pré-classificação para facilitar uma posterior propriamente dita. Essa tarefa exigia um domínio razoável do grego e do latim, do inglês, do francês, do espanhol e evidentemente do português e do alemão. Como já lembrei mais acima, minha formação acadêmica me tinha proporcionado esse conhecimento básico. Pus mãos à obra e por um período de mais ou menos dois anos, em tempo integral, identifiquei pelos títulos, uma por uma, essas obras somando no seu todo em torno de 300.000. Foi uma experiência única pois, para mim pelo menos não se resumiu num procedimento friamente técnico identificando conteúdo e autor de cada obra. A sensação tátil, o odor inconfundível, a data das edições, o conteúdo, as circunstâncias históricas em que as obras foram publicadas, além de outros detalhes me levavam de volta ao tempo em que as obras foram escritas. Na medida em que passava de uma obra para outra desfilavam diante da imaginação os autores “vivos”, embora mortos, não poucos há mais de dois mil anos, mas falando na sua “mudez” do perene e do transitório da história da humanidade. Como seria pertinente que em qualquer biblioteca, por mais modesta que seja, o visitante, o curioso, o pesquisador fosse recebido com a admoestação escrita na entrada: “Hic mortui vivunt, hic muti loqunt! – “Aqui os mortos vivem, aqui os mudos falam”! Os Homeros, os Píndaros, os Tales de Mileto, os Epicuros, os Sócrates, os Aristóteles, os Platão da velha Grécia; os Virgílios, os Horácios, os Tácitos, os Cesars, os Cíceros, os Aristófanes da história de Roma; os padres da igreja “vivos” na gigantesca obra da Coleção “Minge”, resumo dos primeiros 400 anos do Cristianismo; os clássicos do Renascimento, do romantismo, da ilustração; os formuladores das grandes correntes filosóficas: Santo Agostinho, São Tomas de Aquino, Suarez, os Iluministas, Marx, Engels, Feuerbach, Hegel, Kant, Nietzsche, a Escola de Frankfurt; os gigantes da literatura renascentista, moderna, contemporânea e pós moderna: Cervantes, Maquiavel, Camões, Dante, Goethe, Schiller, Heine, Vitor Hugo, Sheakespeare, Milton, e os milhares de outros “mortos vivos”, falando uma linguagem peculiar na “mudez” de suas obras.
Depois aproximadamente dois anos a tarefa da organização básica do enorme acervo documental do sexto e em parte terceiro andar, estava concluído
A gênese das bibliotecas e acervos da Unisinos
Em linhas gerais os acervos depositados no sexto e terceiro andares da Unisinos têm a sua origem nas instituições que os jesuítas fundaram e mantiveram desde 1850 até 1950. Na medida em que as paróquias e capelanias foram criadas e os colégios fundados e postos a funcionar, foram equipados com bibliotecas. A partir da década de 1950 muitas dessas obras foram sendo desativadas ou passaram para outras mãos. Até o final dos anos 1969 as bibliotecas ficaram, por assim dizer, hibernando nas instituições às quais tinham servido. Entende-se que correram um risco não pequeno de caírem vítimas de administradores que não sabiam dar-lhes o devido valor ou presas dos cupins, ratos e intempéries. Não é exagerado admitir que, pelas mais diversas razões, uma porcentagem difícil de dimensionar, foi desviada para colecionadores, donos de sebos ou instituições que nada tinham a ver com a sua origem.
Finalmente o Pe. Aloysio Bohnen, reitor da Unisinos, atento ao valor dessas bibliotecas e o risco que corriam de se perderem irremediavelmente, encontrou no Pe. Arthur Rabuske a pessoa talhada para assumir o salvamento. Este percorreu, na medida do possível, todas as instituições conhecidas, encaixotou as bibliotecas e transportou-as para a antiga sede da Unisinos no centro de São Leopoldo. Num primeiro momento os livros aleatoriamente amontoados em salas, foram pincelados e colocados em estantes sem preocupação por uma classificação. O grosso do considerável conjunto de obras migrou em 2004 para o sexto andar da biblioteca da universidade. Procedeu-se então uma classificação tomando como base a CDU. Encontram-se até hoje nessa situação à espera de uma catalogação em regra e a sua disponibilização ao grande público inclusive via Internet.
Entre as paróquias que de alguma forma contribuíram com a formação dos acervos, destacamos: São Miguel dos Dois Irmãos, Bom Jardim (Ivoti), São José do Hortêncio, Bom Princípio, São Salvador (Tupandi), São Sebastião do Caí, Santo Inácio da Feliz, Nova Petrópolis, São Leopoldo, Igreja de São José em Porto Alegre, Estrela, Lajeado, Santa Cruz do Sul, São João do Oeste, Itapiranga, Cerro Largo, Nova Trento. As bibliotecas paroquiais destinavam-se mais para os paroquianos do que para os párocos e seus auxiliares. As obras nelas contidas perseguiam como objetivos imediatos a formação religiosa, a formação e informação profana, o lazer e o estímulo à leitura. Predominam por isso obras de edificação, biografias de santos, livros de reza, sagradas escrituras, enfim, obras de conteúdo e formação religiosa. O lado profano dessas bibliotecas compunha-se de romances, livros de ficção, relatos de viagens, romances históricos como de Karl May, etc. Além disso encontravam-se nelas obras de consulta e obras de leitura mais apuradas, destinadas a suprir as exigências pastorais dos padres.
Enquanto essas bibliotecas paroquiais estavam ainda disponíveis e abertas ao público, desempenharam o papel de um poderoso estímulo na manutenção do nível cultural num patamar considerável. Costumava ser uma cena comum que os colonos, antes e depois da missa aos domingos, passassem pela casa paroquial ou algum outro local onde se localizava a biblioteca. Devolviam os livros lidos e levavam outros, pagando uma taxa simbólica pelo empréstimo. Nos domingos de tarde ou nas noites concentravam-se à luz de candeeiros de querosene ou lamparinas alimentadas com óleo de amendoim e, apesar do cansaço de um dia de trabalho pesado, liam às vezes horas a fio “alimentando o espírito” como costumavam dizer. Compreende- se que os leitores mais assíduos somavam minoria, como que uma elite intelectual. Costumavam ser pessoas conhecidas como tais e usavam encontrar-se nos domingos antes da missa para trocar informações, falar sobre as novidades que tinham lido e recomendar ao vizinho os livros de que tinham gostado e cujo conteúdo lhes parecia ser útil. Nessa “elite” de leitores assíduos, para não dizer fanáticos, incluo meu pai e meus dois irmãos casados e simples colonos. A programação dominical de meu pai resumia-se em assistir a “missa do cedo” na igreja matriz que ficava a uma hora a cavalo, voltar, acomodar-se na varanda da casa, ler jornais e almanaques até a hora do almoço e, depois de um sono de uma ou duas horas, retomar à leitura até ao anoitecer. Mas era principalmente meu segundo irmão mais velho, o mais velho lecionava na universidade como padre jesuíta, um simples colono, pai de numerosa família. Devo a ele, quando eu tinha nove ou dez anos, uma das experiências mais gratificantes e das influências talvez decisivas, para o meu interesse e curiosidade posterior por saber e conhecer cada vez mais, sem propriamente uma área de maior concentração. O Raymundo, esse era o nome do meu mano, costumava ler à luz avermelhada de uma candeia a óleo de amendoim, às vezes até madrugada a dentro. Deve ter lido uma dúzia dos romances históricos de Karl May, além de relatos de viagem como de Sven Hedin e livros de conteúdo histórico. Sabia como ninguém dramatizar os personagens bíblicos do Antigo Testamento. No dia seguinte no intervalo para descanso na roça, costumava contar o que tinha lido. Winnetou e Old Shaterhand, clássicos de Karl May sobre os índios americanos, vinham a ser seus personagens prediletos. Aliás a descrição da vida livre dos índios das Pradarias serviu também para despertar o jovem filósofo na época, Ernst Bloch, para a sua obsessão pela liberdade sem restrições como condição para realizar a harmonia final entre todas realidades, desde o homem passando pelos animais, plantas, minerais – para a concretização “do ideal do bem” – arealização da “Heimat”, da querência definitiva. Resumiu o seu pensamento na frase: “Onde há liberdade, há possibilidades, onde há possibilidades há esperança, onde há esperança a realização da harmonia final – o “Ideal do Bem” - é possível.
A oportunidade e o hábito da leitura propiciado pela modesta biblioteca da paróquia foi com certeza uma determinante decisiva para que meu irmão mais velho se tornasse um cientista de fama internacional, um outro irmão professor de física e química, uma terceiro um admirado professor de escola e líder comunitário e uma irmã com PHD na Universidade Católica de Washington e professora universitária de literatura americana e inglesa na Universidade Federal de Santa Maria e na Faculdade Imaculada Conceição, hoje UNIFRAN. Os estímulos e os exemplos com que vivi no quotidiano da minha infância levaram-me a me alfabetizar com minha irmã, entrevada pela paralisia infantil, antes mesmo de ingressar na escola da comunidade. Aos nove anos li o meu primeiro livro, emprestado da biblioteca paroquial, da primeira até a última página, naturalmente à luz mortiça de um candeeiro de óleo de amendoim. O título do livro, como já lembrei mais acima, foi “Noni und Mani” e o autor Jón Svenson. Jón Svenson era o Noni personagem do livro e Mani seu irmão, dois irmãos que viviam na Islândia. Noni migraria mais tarde para a Alemanha onde se tornou sacerdote jesuíta. O livro falava da infância dos dois meninos irmãos. O livro nada mais oferece do que o quotidiano dos dois irmãos nas terras geladas da Islândia com seus vulcões e fontes quentes. A leitura desse livro foi o estopim para o despertar em mim duma curiosidade e dum interesse que não esmoreceu até hoje, por terras, povos e culturas de regiões distantes. Localizo naquele final da década de 1930 as raízes da minha paixão pela geografia, pela história e pela antropologia. A descrição das paisagens polares da Islândia, o clima, a neve, o gelo, os vulcões, as fontes quentes, fez com que carregasse para o resto da vida um fascínio difícil de descrever pelas paisagens árticas. Foi uma emoção indescritível, quando classificando os acervos acumulados no sexto andar da biblioteca da Unisinos, encontrei um exemplar do “Noni e Mani”, idêntico ao que havia lido como primeiro livro aos nove anos, mais de oitenta anos atrás. Pelo carimbo de origem não foi possível determinar se foi o mesmo exemplar do livro que foi de tanta importância para minha formação. Também não é esse o detalhe que decide. O que importa é que o exemplar que tinha em mãos deve ter mexido com a imaginação de outros meninos como eu e de adultos também, em alguma paróquia da colônia.
A bem da verdade é preciso chamar a atenção de que os leitores assíduos não somavam a maioria. Eram, contudo, suficientes para desempenharem o papel de “fermento cultural” nas suas comunidades. O alemão ensinado nas escolas para todas as crianças e a realimentação da língua com posteriores leituras assíduas ou não, fazia com que todos entendessem perfeitamente o alemão erudito. Tanto assim que os sermões, alocuções, conferências, palestras, etc., eram apresentadas em alemão erudito e o colono ou colona menos letrado os entendia e fazia questão que fosse assim. Um sermão ou um discurso do professor em dialeto soaria no mínimo estranho.
Até o começo da segunda guerra mundial os leitores assíduos formavam, por assim dizer, uma elite intelectual no meio colonial, como já lembrei mais acima. Costumavam ser escolhidos como subprefeitos, fabriqueiros, capatazes na manutenção das estradas distritais, etc. Os frequentadores assíduos das bibliotecas paroquiais, costumavam ser também assinantes de jornais, leitores de almanaques, periódicos e publicações avulsas. Formavam um estrato culto, possuidor de conhecimentos gerais, de uma cultura apreciável. Emitiam com segurança e conhecimento de causa, opiniões políticas, ajuizavam sobre questões relativas à situação social, econômica, cultural e religiosa. Assumiam inclusive posições críticas diante de questões locais, regionais, nacionais e até internacionais. Não se omitiam nem em discussões de natureza religiosa. Dois fatores praticamente simultâneos mudaram de vez esse quadro, lamentavelmente para pior, para muito pior. O primeiro foi a malfadada Campanha de Nacionalização implantada no país a partir de 1938 e o segundo a Segunda Guerra Mundial na qual o Brasil terminaria declarando guerra à Alemanha, fato que radicalizou o primeiro. Não é aqui nem o lugar nem a ocasião para entrar em detalhes nessa discussão. Merece destaque apenas o fato de que a língua alemã ter sido proscrita e as fontes que a alimentavam e realimentavam o nível cultural dos colonos, isto é, a escola, a imprensa e as bibliotecas postas no ostracismo. Pior. As escolas foram nacionalizadas ou fechadas e foi alimentada toda uma fúria iconoclasta que resultou na queima e destruição de livros, jornais e periódicos. Ora as vítimas foram acervos de pessoas, ora de famílias, ora de instituições. Bibliotecas parcialmente danificadas e desfalcadas, recolheram-se à clandestinidade a espera de tempos mais propícios. Muita coisa se perdeu durante esse período conturbado. O quanto, é difícil de avaliar. Contudo sobreviveu o suficiente desses acervos para permitir uma avaliação quantitativa do volume dessas bibliotecas distribuídas pelas comunidades coloniais. Foi possível preservar também o bastante para se formar uma ideia mais ou menos compreensiva dos interesses do público leitor da época. O que foi possível resgatar soma um número respeitável de obras. Concentram-se aí, na essência, as fontes que permitem dimensionar a abrangência das expectativas em relação à cultura geral e principalmente, o perfil da religiosidade, da espiritualidade e da disciplina religiosa pregada ao povo.
Paralelamente e sem uma vinculação obrigatória com a Campanha de Nacionalização, a maioria das paróquias, administradas por jesuítas passou para a responsabilidade do clero diocesano. Essa mudança implicou no recolhimento simples e puro dos acervos, sem uma preocupação seletiva, para as dependências da antiga sede da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no centro de São Leopoldo. Lá ficaram guardados longe do acesso ao público, durante quarenta ou mais anos, expostos à deterioração natural, a eventualidades não previsíveis, e à displicência como um patrimônio dessa natureza costuma ser visto e avaliado por não poucos, incluindo os próprios jesuítas, fascinados, para não dizer obcecados pela pirotecnia orquestrada pela parafernália da tecnologia. O Pe. Rabuske (in memoriam) referindo-se a esse aspecto, assim se expressou:
( ...) faz-se oportuno dizer que, neste último quartel do século, ou seja nos últimos 25 anos, mais ou menos, tais causas têm existido em geral se vem repetindo um pouco ou até muito em toda a parte. Não se trata, portanto, de um fenômeno típico ou exclusivo nosso, brasileiro, mas extensivo, infelizmente, a outros países, dos quais, por uma longa tradição cultural-científica, tal fato mesmo poderia esperar-se. Conhecemos a esse respeito alguns exemplos, que bem poderíamos definir de “clamorosos”, para não dizer “escandalosos”. Não nos cabe o papel inglório decliná-los em concreto, mas em vez disso, apontá-los como bastante próprios da nossa época, sempre apressada, pragmática, materialista, imediatista, “funcional” e porque não condená-los – sempre destruidora de valiosos e insubstituíveis bens, documentos e monumentos culturais, por perenes. Gente interessada na conservação insistente de tais valores sabe-o de sobejo, a partir de muita abnegada, obscura e inglória, sobretudo desde não poucos e pequenos sofrimentos pessoais. A que atribuir, perguntamos, tal situação lamentável, sem dúvida, doentia e até epidêmica, e por isso mesmo necessitada de uma urgente intervenção medicinal concreta e eficaz. Aqui as respostas se apresentam em boa quantidade. Com frequência será falta do necessário espaço físico, onde acomodar semelhante material impresso. Outras vezes se torna um total despreparo cultural nos responsáveis ou mesmo herdeiros, que apesar de sua formação superior, não titubeiam em proceder de um modo destruidor e anticultural, com respeito ao legado precioso, cujo alcance não atinam ou compreendem. (Rabuske Arthur. In Anais do 5o Simpósio, p. 110-111)
Ninguém tem mais autoridade do que Pe. Rabuske para deixar registrado essas observações. Não fosse ele, apoiado firmemente pelo Pe. Aloísio Bohnen, as bibliotecas paroquiais assim como outros acervos, estariam irremediavelmente perdidos, ou pelo menos muito mais seriamente desfalcados ou danificados. Graças à sua rara sensibilidade no que diz respeito às coisas da cultura, as coisas do alimento espiritual, pelo que é possível avaliar, foi salvo o bastante, tanto quantitativa quanto qualitativamente, para reconstruir a linha mestra dos interesses culturais e religiosos, ao nível esperado das comunidades da época. É de se admirar que após tantas e tais peripécias não tivessem sofrido danos e perdas ainda maiores.
Em questão de dois anos aproximadamente o trabalho de organização básica dos acervos de sexto andar e parte do terceiro estava concluída. Em dezenas de estantes alinhavam-se disciplinadamente as obras de centenas e milhares de “mortos vivos” deixando a sua mensagem para as atuais gerações na “mudez eloquente”de suas obras. Paralelamente uma bibliotecária prática organizou em duas dezenas ou mais de estantes cerca de 1200 títulos de revistas e periódicos dos mais diversos conteúdos assinados pelos jesuítas nas suas instituições, de modo especial nas casas de formação do clero sob sua responsabilidade. Salvo melhor juízo este gigantesco acervo que concentra e preserva a memória histórico cultural no sentido mais amplo dos pouco mais de 100 anos a contar de 1850 a 1960, pode ser considerado uma fonte de pesquisa, na sua multiplicidade e profundidade sem igual no Brasil, cobrindo o período em foco. Destaco alguns títulos como amostra: “Civilta Catolica” desde a primeira edição em 1849; “Stimmen der Zeit”, desde o primeiro número na década de 1860; “Estudes”, “Broteria” dos jesuítas de Portugal; “Vozes de Petrópolis” e por aí vai.
Da Enxada à Cátedra [ 86 ]
O Acervo de Documentação e Pesquisa (ADOPE)
Em 2005, com 75 anos de idade encerrei definitivamente minhas atividades docentes formais na Unisinos. Meu contrato como professor titular com dedicação exclusiva foi encerrado de acordo com a liturgia obrigatória pelas leis trabalhistas. Em vez de esperar o tempo regulamentar a universidade propôs um novo contrato, desta vez sem dedicação exclusiva, sem obrigações letivas na condição de Pesquisador com um salário reduzido à metade, com o objetivo de coordenar a formação de um Acervo de Documentação e Pesquisa a partir das muitas fontes e publicações relativas à imigração alemã além de outros acervos particulares e institucionais que se tinham acumulado junto ao Núcleo de Estudos Teuto-brasileiros. Aceitei a proposta e com as leais e fiéis colaboradoras Isabel C. Arendt e Janaína Silva fomos ocupar as três salas reservadas no subsolo do pavilhão 5 do extinto Ciclo Básico.
Naquele espaço encontravam-se depositadas a biblioteca do prof. Kurt Walzer, já mencionada mais acima, meia dúzia de pequenas bibliotecas cedidas por famílias, todo acervo documental das Cooperativas do Rio Grande do Sul, o Acervo Documental da Sociedade União Popular. A esses vieram somar-se nos dois anos seguintes, o Acervo do Pe. Balduino Rambo, e acervo documental do Falido Frigorifico Vacariense confiado à Unisinos a título de “guarda judicial”. O primeiro passo consistiu em acomodar em estantes os acervos documentais e os livros avulsos para em seguida, passar a catalogar os livros de acordo com regras técnicas e organizar os acervos documentais do extinto Centro de Documentação e Pesquisas (CEDOPE), da Sociedade União Popular e do Pe. Rambo. À Janaína coube a catalogação dos livros e à Isabel coordenar a organização dos Acervos de acordo com as regras técnicas usuais nesses casos. A catalogação dos livros não implicava em recursos financeiros específicos, o que não vinha a ser o caso dos Acervos Documentais. Sem muita perda de tempo a Isabel e eu montamos três projetos para a captação de recursos. O do Pe. Rambo pedia recursos ao BNDES, o da Sociedade União Polpular, ao Programa de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura (Lei Rouanet) e o do CEDOPE, focado no cooperativismo, ao programa de incentivo da cultura da PETROBRAS. Os três foram aprovados. Acontece que somente dois foram de fato executados: o do Pe. Rambo e o do Cooperativismo. Para o da Sociedade União Popular aprovado pela Lei Rouanet não foi possível captar os recursos em tempo hábil por falta de interesse das não poucas empresas visitadas. O Acervo de Documentação e Pesquisa de que estamos falando foi na verdade o resultado da evolução do Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros, sob a jurisdição do Pós Graduação em História. Por ordem superior, entretanto, passou a ser incorporado na biblioteca central da universidade, mais especificamente no setor de livros raros e antigos e a biblioteca histórica que abrigava as muitas bibliotecas espalhadas pelas paróquias, seminários e casas de formação dos jesuítas no sul do Brasil, reunidas no terceiro e sexto andar da biblioteca. A história e características desse conjunto de incalculável valor, pretendo detalhar mais abaixo. Para encurtar. O acervo do ADOPE migrou para o sexto andar da biblioteca e passou a fazer parte do rico e precioso conjunto de obras reunidas pelos jesuítas alemães desde 1849. O cuidado dos acervos documentais ficou sob a responsabilidade da Isabel enquanto a acomodação dos livros e revistas em dezenas de prateleiras coube a Janaína. Por minha conta e responsabilidade ficou a tarefa de proceder a uma classificação prévia em grandes áreas, como geografia, história, filosofia etc. das cerca de 200.000 obras acumuladas em caixas de papelão que não deixavam de se multiplicar na medida em que chegavam mais e mais pequenas, médias e bibliotecas maiores com a do Colégio Cristo Rei, da sede antiga da Unisinos no centro de São Leopoldo e do Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.
Antes de descrever a minha função específica de organizar os acervos da biblioteca histórica da Unisinos, parece oportuno refletir um pouco sobre a história da preservação da memória histórica a partir do momento que dispomos de “documentos” que a trouxeram até nós sem quebra de continuidade.
Memória histórica – Bibliotecas.
As tradições, a história, o patrimônio cultural de um povo constituem-se na sua própria razão de ser. Desde tempos imemoriais, desde a aurora da história, o homem viveu em hordas, bandos, tribos, parentelas, nômades ou seminômades, caçadores coletores de frutos e raízes, ou agricultores primitivos e criadores de animais. Uma das suas grandes preocupações foi a preservação da sua história e suas tradições, enfim sua memória. Recorreram aos mais variados instrumentos para que o fio da memória histórica não sofresse rupturas importantes e não se apagassem as trilhas que conectam o passado com o presente.
Dependendo das características circunstanciais que determinaram a direção e o ritmo da história, recorreu-se aos mais diversos recursos disponíveis para preservá-la. Desde que o homem se fez presente na terra, com portador de inteligência reflexa, preocupou-se com a memória individual e coletiva. “Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre isso uma nova realidade” (Caldera, 2004, p.14). Sendo assim entende- se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, ao mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade para que não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao transitório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultará fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar.
Tanto os povos letrados quanto os ágrafos puseram a serviço da preservação da memória histórica, os meios mais diversos de que dispunham. Entre muitos povos a história e a tradição foram, e em não poucos casos são ainda hoje, transmitidos via oral, de geração em geração, pelas pessoas mais idosas. A elas cabe a tarefa de narrar às gerações mais novas, principalmente às crianças, a história dos antepassados. Agrupadas em volta de fogueiras, recolhidas no interior de tendas, no interior de cavernas ou abrigos rústicos, as crianças ouviam os anciãos e anciãs falarem dos antepassados, dos mitos, dos heróis, dos deuses, dos demônios. Pintados com cores vivas desfilavam diante dos seus olhos infantis curiosos os heróis fundadores. Tanto fazia se eram personagens reais ou imaginários. Lá estavam eles com toda a sua autenticidade e ninguém punha em dúvida a história que estava sendo narrada e que os punha em contato com suas raízes. E como esses anciãos e anciãs esquimós, índios das pradarias do Mississipi, tupis-guaranis, araucanos, maputches, incas, bantus, australianos, chineses, indianos, germanos, etc., etc., devem-se ter esmerado em retratar com as cores mais vivas possíveis, as sagas e os heróis dos seus povos. A esses anciãos e anciãs cabia ao mesmo tempo o papel dos livros, das bibliotecas, das escolas e dos mestres. Por encarnarem a memória viva gozavam de prestígio inconteste conforme os registros dos etnógrafos e etnólogos que se ocuparam com eles.
Além da via oral, da boca dos anciãos ou de outras formas de transmissão oral, outras tornaram- se correntes. A história pode ser contada com o recurso às artes plásticas: desenho, pintura, estatuária, assim como com as tecnologias de fabricação de instrumentos e artefatos de todos os tipos e finalidades, da cestaria, vestimenta, monumentos fúnebres, vestígios de alimentos, e muitos mais.
Em resumo são esses os “livros”, os “documentos”, as “fontes”, que compõem as “bibliotecas” que guardam e preservam a memória dos povos ágrafos ou a fase ágrafa dos povos letrados, permitindo de alguma forma o acesso à sua história não escrita.
Obviamente os “documentos” guardados na memória dos anciãos e anciãs e nas “bibliotecas” dos povos sem escrita, oferecem uma compreensão permeada de idiossincrasias e lacunas. Os perfis da história dos povos tornam-se mais nítidos, são enriquecidos com detalhes, assumem contornos mais claros, a partir do momento em que o homem começou a usar a escrita sistemática, baseada em caracteres com simbolismos convencionados. Enquadram-se nessa linha a escrita cuneiforme, os hieróglifos, os sinais, os logogramas da China e do Japão e outros mais. Entalhados em pedra, nas paredes de cavernas e abrigos naturais, em placas de cerâmica, escritos em peles de animais, em papiros e sobre outros fundos, permitiram o armazenamento sistemático e para o futuro da memória histórica das civilizações em consolidação tanto no ocidente quanto no oriente. A interpretação da escrita cuneiforme franqueou o acesso ao conteúdo do Código de Hamurabi, o mais antigo compêndio de leis do ocidente e ao conteúdo do poema épico escrito em caracteres cuneiformes e em arcádico, permitindo o acesso ao significado da busca da imortalidade de Gilgamesh, rei de Uruk, entre 2700 e 2500 A.C. Da mesma forma a decifração dos hieróglifos, abriu as portas para os detalhes da história do Egito dos últimos milênios A.C. sobretudo o imaginário sobre a morte no Livro dos Mortos que permeia significativamente os textos do Antigo Testamento da tradição judaico cristã.
O passo decisivo para um registro compreensivo e cada vez mais exato, foi dado com a invenção dos diversos alfabetos. Somando menos de três dezenas de símbolos gráficos, agrupados numa infinidade de combinações, permitem na prática, registrar, os sons, os vocábulos e formular os conceitos, expressar o estado de alma, as aspirações, crenças etc., próprios das inúmeras tradições culturais históricas. Os documentos, as fontes, os livros, desde então oferecidos ao público, somados aos anteriores, desde o Código de Hamurabi, do poema de Gilgamesh, do Livro dos Mortos do Egito, foram reunidos em recintos apropriados, conhecidos desde tempos remotos como “bibliotecas”. A mais famosa delas, a Biblioteca de Alexandria abrigava, quanto se sabe, a linha mestra da história e do conhecimento da antiguidade remota do Ocidente. Desafortunadamente caiu vítima do espírito fanático e iconoclasta de conquistadores islâmicos que a incineraram por julgar o conteúdo herético e por isso inútil. Dados históricos registram que as chamas levaram semanas e meses, para reduzir a cinzas a história do norte da África, com destaque para o Egito, do Oriente próximo e médio e da bacia do Mediterrâneo. A história posterior desgraçadamente tem a registrar inúmeros exemplos semelhantes. Por razões políticas, religiosas, étnicas, ou simplesmente pela ignorância mais crassa, obras sem conta e bibliotecas inteiras foram impiedosamente destruídas e mutiladas e, infelizmente, o são ainda hoje. Aqui cabe uma observação. Os livros com encadernação de luxo, livros com encadernação simples, livros em forma de brochuras, periódicos, revistas, escritos avulsos, correspondências, partituras de música, registros de contabilidade, anotações em folhas avulsas, bilhetes impressos de toda natureza e conteúdo, guardam de alguma maneira uma parcela ou uma gota da memória do passado. Trata-los como inúteis, pior como lixo e vende-los para a reciclagem, não passa de ignorância para não falar em estupidez. Por isso é de fundamental importância que pessoas responsáveis para lidar com acervos e bibliotecas tenham um mínimo de consciência dos tesouros que lhes são confiados para a guarda. Posso estar exagerando, mas se dependesse de mim nenhuma linha anotada na orelha de um jornal ou de um bilhete qualquer, deveria ser descartado por serem fragmentos da memória que transmitem de alguma forma uma mensagem ou registram um momento, uma gota no oceano da história. Aliás, enquanto esvaziava as caixas guardei numa estante as folhas ou páginas soltas de jornais e revistas, rascunhos escritos a mão e, por isso, tive que ouvir da curadora dos acervos a observação pouco simpática chamando-me de “coletor de lixo”.
Mesmo assim as bibliotecas foram-se multiplicando em número e aumentando a quantidade e valor das obras. Pelo menos o essencial da cultura clássica, suas linhas de pensamento, sua literatura, sua ciência, encontraram guarida nas bibliotecas dos grandes centros de cultura e do poder do ocidente, do oriente próximo e remoto. Nos séculos tumultuados, marcados pelas grandes migrações dos povos na Europa, as bibliotecas migraram para os mosteiros, onde encontraram uma relativa segurança. Os monges distantes e quase imunes às turbulências do século, lançaram-se à tarefa pela qual a história posterior lhes deveria ser eternamente grata. Puseram-se a copiar os textos com paciência e perseverança. As obras assim multiplicadas puderam ser guardadas em locais distintos, diminuindo em muito o risco da perda, extravio ou destruição pura e simples.
Embora nos séculos finais da Antiguidade e durante a Idade Média, a produção do conhecimento, as obras literárias e o avanço nas ciências, tivessem perdido muito do seu brilho e dinamismo, conta a seu favor o mérito de ter sido a fiel guardiã do legado do mundo antigo clássico. Estigmatizá-la pejorativamente com a “Idade das Trevas” não passa de um primarismo grosseiro de avaliação. Ao abrigo dos mosteiros a memória cultural da Antiguidade Clássica encontrou segurança durante séculos, aguardando o momento para servir de ponte e de combustível para alimentar o motor da Renascença.
Quando a Idade Média chegou ao seu final e o furacão da Renascença começou a varrer a Europa, a providencial invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, ofereceu o pressuposto técnico para que a memória histórica guardada nos mosteiros e a avalanche da produção nova e inédita, pudesse ser fácil e rapidamente posta à disposição do grande público. Em meio a essa frenética agitação surgiram as primeiras universidades em Florença, Paris, Praga, Oxford, Cambridge, Heidelberg, Berlim. Essas e muitas outras que foram surgindo transformaram-se em centros de produção do conhecimento. Na sua origem essas instituições centravam seus interesses na Teologia, na Filosofia, Humanidades, Matemática, Medicina, Jurisprudência. A partir daí começou a migração para as universidades do conhecimento guardado nos mosteiros e o novo que vinha sendo produzido. O resultado natural dessa movimentação foi a instalação de bibliotecas e acervos documentais, como parte obrigatória integrante das universidades.
A partir desse momento as universidades tomaram o lugar dos mosteiros na preservação da memória histórica escrita. No mesmo ritmo em que o furacão da Renascença foi-se alastrando, avolumou-se a produção de novos conhecimentos. E foi nas universidades e no seu entorno sob sua influência direta e indireta, que a mente humana deu demonstrações dos seus fabulosos potenciais. Em meio a essa efervescência generalizada as universidades com suas bibliotecas e acervos documentais, ofereceram os estímulos e as inspirações que as transformaram no nascedouro de uma nova era da história. A concepção de novas ideias, a produção de novos conhecimentos, a moldagem de uma nova cosmovisão, não foram o produto de um “deus ex machina”. Resultaram da redescoberta dos conhecimentos cuidadosamente preservados na penumbra das bibliotecas dos mosteiros. E é nessa perspectiva que a Idade Média com seus mosteiros adquire sua verdadeira e inegável importância histórica. O fato de ter impedido que se interrompesse o canal de comunicação do Mundo Antigo Clássico com a história dos povos dos séculos XV e XVI, confere-lhe um significado de difícil avaliação. Medir o papel da Idade Média e seus mosteiros apenas pela ausência do espetacular, do barulho das invenções, pelo estrépito do embate das ideias em conflito, pela presença e influência onipresente da Igreja em todos os níveis da sociedade, certamente não chega a tocar naquilo que a tornou fundamental para a história.
E as universidades, as grandes herdeiras das fontes do saber e do conhecimento, guardadas nos mosteiros, multiplicaram-se e espalharam-se com rapidez pela Europa toda. Transformaram-se no fórum em que uma nova era estava sendo gestada. Em meio ao embate das ideias em que a nova geração pensante da Renascença se envolveu nas “aulas magnas” das academias, o saberguardado por séculos, estimulou e amadureceu frutos espetaculares. A semente, fruto do espírito fecundo e, porque não dizê-lo, da genialidade dos antigos, depois de hibernar por mil anos nos mosteiros, germinou com todo o vigor, no chão fecundo da atmosfera propícia das universidades.
Em meio ao fervo da Renascença a produção do conhecimento vem acompanhado no mesmo ritmo, com florescimento das artes, das letras e das ciências. Novas tecnologias conheceram momentos de glória. Sem pretender diminuir as novas tecnologias em geral, destaco novamente pela sua importância a invenção da Imprensa por Johannes Gutenberg. Sem ela a popularização dos conhecimentos guardados nas bibliotecas e o novo que se produzia em profusão, dificilmente teria ultrapassado os recintos nos quais era produzido. Pela facilidade da reprodução dos textos atingiu e conquistou um número de leitores cada vez maior, e não tardou para atingir as classes sociais menos favorecidas. As consequências foram óbvias. As ideias novas e antigas, as mudanças acontecidas na cosmovisão, nos hábitos, nos costumes, nas crenças, passaram a fazer parte do dia a dia até das pessoas comuns. O desfecho era previsível. A história da humanidade enveredou por um rumo que ainda hoje decide sobre os caminhos a seguir. Outra consequência. Na esteira da dinâmica desse processo agiganta-se o volume de obras que saem das oficinas gráficas em constante multiplicação numérica, no mesmo ritmo em que as tecnologias de impressão vão-se aprimorando. O crescimento quantitativo e qualitativo enriqueceu e multiplicou as bibliotecas. O conceito “biblioteca” deixa de soar como algo “monacal” ou “acadêmico”, fora do alcance do comum dos mortais, para servir também como termômetro do nível cultural, até das comunidades do mundo rural.
Sendo assim entende-se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, o mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade e não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao aleatório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultaria fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar. E para resumir o que vínhamos refletindo é legítimo afirmar que “as bibliotecas deveriam se tratadas como santuários onde os mortos continuam vivendo e os mudos falando”.