Da Enxada à Cátedra [ 89 ]

A Gênese do Memorial Jesuíta. 

No almanaque “Die Fahne des Hl. Ignatius”, 1950, o Pe. Balduino Rambo publicou uma matéria intitulada: “Em Memória da Velha Guarda”. Nela homenageou os fundadores da Província Sul Brasileira da Companhia de Jesus por ocasião do centenário da chegada dos primeiros jesuítas alemães em 1849. Ao comentar as enormes dificuldades que os pioneiros enfrentaram, destacou a total penúria de bibliotecas e demais subsídios relativos ao suporte cultural. A um certa altura observou: “Com certeza o nosso povo colonial se apercebeu muito pouco do quanto o padre sofria com a escassez de livros e os estímulos intelectuais em geral. Enfrentaram o problema da melhor forma possível. É de pasmar como muitos deles encontraram tempo, em meio à monótona atividade pastoral, para dedicar-se à leitura de obras de formação geral. Na biblioteca reunida pelo Pe. Fintan Börlocher encontram-se obras de conteúdo histórico, em vão procurados em outra parte. A biblioteca do Pe. Franz Murmann contem as obras mais selecionadas sobre Homilética e Sagrada Escritura”

Estes são apenas dois exemplos que mostram o lendário interesse dos jesuítas pelo “alimento espiritual”. Ao mesmo tempo nos faz entender como, num século e meio, reuniram em suas casas e instituições no sul do Brasil, um gigantesco tesouro cultural. Os dois nomes acima são emblemáticos para a grande maioria dos jesuítas que dedicaram a sua vida à edificação da obra pastoral, social e educacional sem paralelo nos estados do sul do Brasil. A justiça manda acrescentar a esses toda uma galeria de nomes que se tornaram referência nacional e internacional. Todos eles contribuíram significativamente para amealhar esse imenso e rico patrimônio cultural. São recorrentes os nomes de Johannes Rick, Ambros Schupp, Karl Teschauer, Johannes Hafkemeyer, Werner von um zur Mühlen, Josef Mors, Max von Lassberg, Theodor Amstad e por aí vai. Manda a justiça igualmente que se lembre o batalhão de jesuítas menos conhecidos, alguns relegados ao anonimato que, num trabalho de formiga contribuíram para reunir esse magnífico tesouro cultural. E a partir do momento em que “velha guarda” confiou a obra começada às mãos dos jesuítas nativos, legou-lhes também o gosto e a paixão pelo cultivo em todos os ramos do saber humano, profano e religioso.

Os colégios que foram sendo fundados: o Conceição em São Leopoldo, o Anchieta em Porto Alegre, o catarinense em Florianópolis, o Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande, o Seminário, o Noviciado, o Juniorado e a Terceira Provação em Pareci Novo, o Seminário Central em São Leopoldo, o Seminário Menor em Cerro Largo, o Seminário Menor em Santa Maria, o Seminário Menor em Gravataí, o Seminário Menor em Salvador do Sul, o Colégio Medianeira em Curitiba, fora abundantemente providos com bibliotecas. Em alguns casos como nas faculdades de Filosofia e Teologia Cristo Rei a biblioteca enriquecida com a assinatura de um número excepcional de revistas e periódicos, constitui, sem favor nenhum, um acervo que provavelmente não tem similar no País.

Paralelamente às instituições de ensino, as paróquias sob a responsabilidade de jesuítas foram equipadas com bibliotecas. A tudo isso somaram-se bibliotecas particulares especializadas como a do Pe. Milton Valente e do jurista von Langendonc além de não poucas outras. Eleva-se assim para próximo de meio milhão de títulos. Os periódicos, revistas jornais, partituras de música e canto sobem a dezenas milhares, somados ao acervos documentais.

A descrição muito sintética e com certeza fragmentária teve com objetivo dar uma pálida ideia potencial e riqueza a ser explorada por pesquisadores dos mais diversos campos do conhecimento.

Na medida que em que a organização das bibliotecas, das coleções de revistas, dos acervos de documentos avançavam, começou a tomar corpo a ideia reunir todo esse conjunto de fontes de pesquisa num “Memorial Jesuíta”. O diretor da biblioteca central, Pe Mallmann e o reitor Pe. Bohnen o aprovaram. Uma proposta que não prosperou por razões que não cabe discutir aqui, foi de incluir no Memorial as coleções científicas e demais acervos e fontes de pesquisa do Instituto Anchietano de Pesquisas. Dessa forma o Memorial Jesuíta proposto limitou-se aos acervos bibliográficos e históricos do terceiro e sexto andar da biblioteca central. A reitoria e a direção da biblioteca central nomearam uma comissão integrada por representantes da administração acadêmica e financeira da universidade, o diretor da biblioteca e representantes de empresas e entidades de fora da universidade. Essa comissão pretendia levar ao público interno e externo o significado e o valor, também para a sociedade em geral, a conveniência de criar o Memorial como referência não só da universidade como também para a sociedade local, regional e nacional. Em não poucas das reuniões um dos pontos cruciais analisados foi a captação de recursos em empresas e entidades civis visando a sustentabilidade do projeto. As perspectivas animadoras empacaram no momento em que a administração financeira da universidade impôs o seu ponto de vista de que as eventuais dotações de empresas e pessoas físicas deveriam entrar no caixa único. Dessa forma o Memorial dependeria da dotação orçamentária destinada à biblioteca central. Na prática integraria na biblioteca acadêmica e subordinado á direção da mesma como os demais setores. Com isso as empresas, pessoas físicas e entidades em geral perderam interesse pelo projeto e deixaram de participar da sua montagem. O resultado óbvio não podia ser outro. O Memorial, ou o que sobrou dele, foi espalhafatosamente legitimado e instalado numa solene reunião do Conselho Universitário com falas altissonantes mas não passando do protocolar. Foi uma noite que lembro com um ressaibo de decepção. Afinal a iniciativa do projeto fora minha, a montagem e redação do texto para a avaliação e posterior aprovação foram minhas (guardo comigo os originais) e a organização básica para servir de ponto de partida para uma catalogação técnica fora também minha. Como já lembrei mais acima, os em torno de 300.000 títulos passaram, um por um, por minhas mãos. Naquela noite fiquei recolhido no meio do público como um participante anônimo. Não fui convidado para uma manifestação. Meu nome e a parte que coube na história do memorial nem sequer mereceu uma menção nas falas nem do reitor substituto do Pe. Bohnen nem do curador indicado. Poucas vezes na vida flagrei-me numa tamanha e até ostensiva marginalização numa iniciativa que partira de mim, apoiada e incentivada pelo reitor anterior Pe. Bohnen e o diretor da biblioteca Pe. Mallmann. Um projeto que tinha tudo para projetar a universidade como um centro cultural de referência, tanto regional, quanto nacional, atraindo pesquisadores, mestrandos e doutorandos também de fora do país. Assim o que fora planejado para ser, pelo mínimo, um dos possíveis ícones com potencial de projetar a Unisinos com um centro de excelência na produção do conhecimento, murchou para terminar em mais um setor da biblioteca. O Pe. Bohnen quando reitor manifestara inclusive a intenção de mandar construir um prédio especialmente projetado para abrigar os acervos que mofam no terceiro e sexto andar da biblioteca somado às coleções científicas literárias e documentais com status de independentes, ocupando o antigo pavilhão 5 do extinto Ciclo Básico.

Centro de Altos Estudos
Não posso deixar de mencionar que o Memorial na sua versão original ganharia muito em brilho oferecendo condições para que especialistas em todas as áreas do conhecimento, pudessem explorar o seu potencial. Foi com essa intenção que apresentei a proposta para a criação de um grupo de “Altos Estudos”, inspirado nas famosas “Casas de Escritores”, nas quais os jesuítas costumavam reunir a nata dos intelectuais da Ordem. Famosas e respeitadas internacionalmente por suas contribuições de alto nível oferecidas ao público no formato de periódicos e livros, cito como exemplares: A casa de escritores de Roma, de Paris, Maria Laach na Alemanha, Lisboa, Bélgica e outras e os respectivos periódicos: “Acta Romana Societatis Iesu”, Études”, Stimmen der Zeit”, “Brotéria”, “Coleção dos Bolandistas”. Evidentemente esse Centro de Altos Estudos não pretendia ser uma “Casa de Escritores” integrada apenas por jesuítas, mas aberta a todo e quaisquer pesquisador e ou pesquisadora de alto nível dedicados aos muitos campos dos saber tanto da Filosofia e Ciências Humanas, quanto das Ciências Naturais, quanto das Letras e Artes, Direito, Economia, Ciências da Saúde, Arquitetura, Engenharia, além das mais diversas modalidades de tecnologia. Inclusive a proposta contemplava a edição de uma revista anual. Com a versão final implantada do Memorial reduzido à uma sombra da proposta original, o “Centro de Altos Estudos” nem sequer foi avaliado. Guardo comigo cópias do original dos dois projetos, tanto do Memorial quanto do Centro de Altos estudos.

This entry was posted on domingo, 12 de janeiro de 2025. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.