Da Enxada à Cátedra [ 86 ]

O Acervo de Documentação e Pesquisa (ADOPE)

Em 2005, com 75 anos de idade encerrei definitivamente minhas atividades docentes formais na Unisinos. Meu contrato como professor titular com dedicação exclusiva foi encerrado de acordo com a liturgia obrigatória pelas leis trabalhistas. Em vez de esperar o tempo regulamentar a universidade propôs um novo contrato, desta vez sem dedicação exclusiva, sem obrigações letivas na condição de Pesquisador com um salário reduzido à metade, com o objetivo de coordenar a formação de um Acervo de Documentação e Pesquisa a partir das muitas fontes e publicações relativas à imigração alemã além de outros acervos particulares e institucionais que se tinham acumulado junto ao Núcleo de Estudos Teuto-brasileiros. Aceitei a proposta e com as leais e fiéis colaboradoras Isabel C. Arendt e Janaína Silva fomos ocupar as três salas reservadas no subsolo do pavilhão 5 do extinto Ciclo Básico.

Naquele espaço encontravam-se depositadas a biblioteca do prof. Kurt Walzer, já mencionada mais acima, meia dúzia de pequenas bibliotecas cedidas por famílias, todo acervo documental das Cooperativas do Rio Grande do Sul, o Acervo Documental da Sociedade União Popular. A esses vieram somar-se nos dois anos seguintes, o Acervo do Pe. Balduino Rambo, e acervo documental do Falido Frigorifico Vacariense confiado à Unisinos a título de “guarda judicial”. O primeiro passo consistiu em acomodar em estantes os acervos documentais e os livros avulsos para em seguida, passar a catalogar os livros de acordo com regras técnicas e organizar os acervos documentais do extinto Centro de Documentação e Pesquisas (CEDOPE), da Sociedade União Popular e do Pe. Rambo. À Janaína coube a catalogação dos livros e à Isabel coordenar a organização dos Acervos de acordo com as regras técnicas usuais nesses casos. A catalogação dos livros não implicava em recursos financeiros específicos, o que não vinha a ser o caso dos Acervos Documentais. Sem muita perda de tempo a Isabel e eu montamos três projetos para a captação de recursos. O do Pe. Rambo pedia recursos ao BNDES, o da Sociedade União Polpular, ao Programa de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura (Lei Rouanet) e o do CEDOPE, focado no cooperativismo, ao programa de incentivo da cultura da PETROBRAS. Os três foram aprovados. Acontece que somente dois foram de fato executados: o do Pe. Rambo e o do Cooperativismo. Para o da Sociedade União Popular aprovado pela Lei Rouanet não foi possível captar os recursos em tempo hábil por falta de interesse das não poucas empresas visitadas. O Acervo de Documentação e Pesquisa de que estamos falando foi na verdade o resultado da evolução do Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros, sob a jurisdição do Pós Graduação em História. Por ordem superior, entretanto, passou a ser incorporado na biblioteca central da universidade, mais especificamente no setor de livros raros e antigos e a biblioteca histórica que abrigava as muitas bibliotecas espalhadas pelas paróquias, seminários e casas de formação dos jesuítas no sul do Brasil, reunidas no terceiro e sexto andar da biblioteca. A história e características desse conjunto de incalculável valor, pretendo detalhar mais abaixo. Para encurtar. O acervo do ADOPE migrou para o sexto andar da biblioteca e passou a fazer parte do rico e precioso conjunto de obras reunidas pelos jesuítas alemães desde 1849. O cuidado dos acervos documentais ficou sob a responsabilidade da Isabel enquanto a acomodação dos livros e revistas em dezenas de prateleiras coube a Janaína. Por minha conta e responsabilidade ficou a tarefa de proceder a uma classificação prévia em grandes áreas, como geografia, história, filosofia etc. das cerca de 200.000 obras acumuladas em caixas de papelão que não deixavam de se multiplicar na medida em que chegavam mais e mais pequenas, médias e bibliotecas maiores com a do Colégio Cristo Rei, da sede antiga da Unisinos no centro de São Leopoldo e do Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.

Antes de descrever a minha função específica de organizar os acervos da biblioteca histórica da Unisinos, parece oportuno refletir um pouco sobre a história da preservação da memória histórica a partir do momento que dispomos de “documentos” que a trouxeram até nós sem quebra de continuidade.

Memória histórica – Bibliotecas.

As tradições, a história, o patrimônio cultural de um povo constituem-se na sua própria razão de ser. Desde tempos imemoriais, desde a aurora da história, o homem viveu em hordas, bandos, tribos, parentelas, nômades ou seminômades, caçadores coletores de frutos e raízes, ou agricultores primitivos e criadores de animais. Uma das suas grandes preocupações foi a preservação da sua história e suas tradições, enfim sua memória. Recorreram aos mais variados instrumentos para que o fio da memória histórica não sofresse rupturas importantes e não se apagassem as trilhas que conectam o passado com o presente.

Dependendo das características circunstanciais que determinaram a direção e o ritmo da história, recorreu-se aos mais diversos recursos disponíveis para preservá-la. Desde que o homem se fez presente na terra, com portador de inteligência reflexa, preocupou-se com a memória individual e coletiva. “Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre isso uma nova realidade” (Caldera, 2004, p.14). Sendo assim entende- se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, ao mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade para que não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao transitório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultará fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar.

Tanto os povos letrados quanto os ágrafos puseram a serviço da preservação da memória histórica, os meios mais diversos de que dispunham. Entre muitos povos a história e a tradição foram, e em não poucos casos são ainda hoje, transmitidos via oral, de geração em geração, pelas pessoas mais idosas. A elas cabe a tarefa de narrar às gerações mais novas, principalmente às crianças, a história dos antepassados. Agrupadas em volta de fogueiras, recolhidas no interior de tendas, no interior de cavernas ou abrigos rústicos, as crianças ouviam os anciãos e anciãs falarem dos antepassados, dos mitos, dos heróis, dos deuses, dos demônios. Pintados com cores vivas desfilavam diante dos seus olhos infantis curiosos os heróis fundadores. Tanto fazia se eram personagens reais ou imaginários. Lá estavam eles com toda a sua autenticidade e ninguém punha em dúvida a história que estava sendo narrada e que os punha em contato com suas raízes. E como esses anciãos e anciãs esquimós, índios das pradarias do Mississipi, tupis-guaranis, araucanos, maputches, incas, bantus, australianos, chineses, indianos, germanos, etc., etc., devem-se ter esmerado em retratar com as cores mais vivas possíveis, as sagas e os heróis dos seus povos. A esses anciãos e anciãs cabia ao mesmo tempo o papel dos livros, das bibliotecas, das escolas e dos mestres. Por encarnarem a memória viva gozavam de prestígio inconteste conforme os registros dos etnógrafos e etnólogos que se ocuparam com eles.

Além da via oral, da boca dos anciãos ou de outras formas de transmissão oral, outras tornaram- se correntes. A história pode ser contada com o recurso às artes plásticas: desenho, pintura, estatuária, assim como com as tecnologias de fabricação de instrumentos e artefatos de todos os tipos e finalidades, da cestaria, vestimenta, monumentos fúnebres, vestígios de alimentos, e muitos mais.

Em resumo são esses os “livros”, os “documentos”, as “fontes”, que compõem as “bibliotecas” que guardam e preservam a memória dos povos ágrafos ou a fase ágrafa dos povos letrados, permitindo de alguma forma o acesso à sua história não escrita.

Obviamente os “documentos” guardados na memória dos anciãos e anciãs e nas “bibliotecas” dos povos sem escrita, oferecem uma compreensão permeada de idiossincrasias e lacunas. Os perfis da história dos povos tornam-se mais nítidos, são enriquecidos com detalhes, assumem contornos mais claros, a partir do momento em que o homem começou a usar a escrita sistemática, baseada em caracteres com simbolismos convencionados. Enquadram-se nessa linha a escrita cuneiforme, os hieróglifos, os sinais, os logogramas da China e do Japão e outros mais. Entalhados em pedra, nas paredes de cavernas e abrigos naturais, em placas de cerâmica, escritos em peles de animais, em papiros e sobre outros fundos, permitiram o armazenamento sistemático e para o futuro da memória histórica das civilizações em consolidação tanto no ocidente quanto no oriente. A interpretação da escrita cuneiforme franqueou o acesso ao conteúdo do Código de Hamurabi, o mais antigo compêndio de leis do ocidente e ao conteúdo do poema épico escrito em caracteres cuneiformes e em arcádico, permitindo o acesso ao significado da busca da imortalidade de Gilgamesh, rei de Uruk, entre 2700 e 2500 A.C. Da mesma forma a decifração dos hieróglifos, abriu as portas para os detalhes da história do Egito dos últimos milênios A.C. sobretudo o imaginário sobre a morte no Livro dos Mortos que permeia significativamente os textos do Antigo Testamento da tradição judaico cristã.

O passo decisivo para um registro compreensivo e cada vez mais exato, foi dado com a invenção dos diversos alfabetos. Somando menos de três dezenas de símbolos gráficos, agrupados numa infinidade de combinações, permitem na prática, registrar, os sons, os vocábulos e formular os conceitos, expressar o estado de alma, as aspirações, crenças etc., próprios das inúmeras tradições culturais históricas. Os documentos, as fontes, os livros, desde então oferecidos ao público, somados aos anteriores, desde o Código de Hamurabi, do poema de Gilgamesh, do Livro dos Mortos do Egito, foram reunidos em recintos apropriados, conhecidos desde tempos remotos como “bibliotecas”. A mais famosa delas, a Biblioteca de Alexandria abrigava, quanto se sabe, a linha mestra da história e do conhecimento da antiguidade remota do Ocidente. Desafortunadamente caiu vítima do espírito fanático e iconoclasta de conquistadores islâmicos que a incineraram por julgar o conteúdo herético e por isso inútil. Dados históricos registram que as chamas levaram semanas e meses, para reduzir a cinzas a história do norte da África, com destaque para o Egito, do Oriente próximo e médio e da bacia do Mediterrâneo. A história posterior desgraçadamente tem a registrar inúmeros exemplos semelhantes. Por razões políticas, religiosas, étnicas, ou simplesmente pela ignorância mais crassa, obras sem conta e bibliotecas inteiras foram impiedosamente destruídas e mutiladas e, infelizmente, o são ainda hoje. Aqui cabe uma observação. Os livros com encadernação de luxo, livros com encadernação simples, livros em forma de brochuras, periódicos, revistas, escritos avulsos, correspondências, partituras de música, registros de contabilidade, anotações em folhas avulsas, bilhetes impressos de toda natureza e conteúdo, guardam de alguma maneira uma parcela ou uma gota da memória do passado. Trata-los como inúteis, pior como lixo e vende-los para a reciclagem, não passa de ignorância para não falar em estupidez. Por isso é de fundamental importância que pessoas responsáveis para lidar com acervos e bibliotecas tenham um mínimo de consciência dos tesouros que lhes são confiados para a guarda. Posso estar exagerando, mas se dependesse de mim nenhuma linha anotada na orelha de um jornal ou de um bilhete qualquer, deveria ser descartado por serem fragmentos da memória que transmitem de alguma forma uma mensagem ou registram um momento, uma gota no oceano da história. Aliás, enquanto esvaziava as caixas guardei numa estante as folhas ou páginas soltas de jornais e revistas, rascunhos escritos a mão e, por isso, tive que ouvir da curadora dos acervos a observação pouco simpática chamando-me de “coletor de lixo”.

Mesmo assim as bibliotecas foram-se multiplicando em número e aumentando a quantidade e valor das obras. Pelo menos o essencial da cultura clássica, suas linhas de pensamento, sua literatura, sua ciência, encontraram guarida nas bibliotecas dos grandes centros de cultura e do poder do ocidente, do oriente próximo e remoto. Nos séculos tumultuados, marcados pelas grandes migrações dos povos na Europa, as bibliotecas migraram para os mosteiros, onde encontraram uma relativa segurança. Os monges distantes e quase imunes às turbulências do século, lançaram-se à tarefa pela qual a história posterior lhes deveria ser eternamente grata. Puseram-se a copiar os textos com paciência e perseverança. As obras assim multiplicadas puderam ser guardadas em locais distintos, diminuindo em muito o risco da perda, extravio ou destruição pura e simples.

Embora nos séculos finais da Antiguidade e durante a Idade Média, a produção do conhecimento, as obras literárias e o avanço nas ciências, tivessem perdido muito do seu brilho e dinamismo, conta a seu favor o mérito de ter sido a fiel guardiã do legado do mundo antigo clássico. Estigmatizá-la pejorativamente com a “Idade das Trevas” não passa de um primarismo grosseiro de avaliação. Ao abrigo dos mosteiros a memória cultural da Antiguidade Clássica encontrou segurança durante séculos, aguardando o momento para servir de ponte e de combustível para alimentar o motor da Renascença.

Quando a Idade Média chegou ao seu final e o furacão da Renascença começou a varrer a Europa, a providencial invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, ofereceu o pressuposto técnico para que a memória histórica guardada nos mosteiros e a avalanche da produção nova e inédita, pudesse ser fácil e rapidamente posta à disposição do grande público. Em meio a essa frenética agitação surgiram as primeiras universidades em Florença, Paris, Praga, Oxford, Cambridge, Heidelberg, Berlim. Essas e muitas outras que foram surgindo transformaram-se em centros de produção do conhecimento. Na sua origem essas instituições centravam seus interesses na Teologia, na Filosofia, Humanidades, Matemática, Medicina, Jurisprudência. A partir daí começou a migração para as universidades do conhecimento guardado nos mosteiros e o novo que vinha sendo produzido. O resultado natural dessa movimentação foi a instalação de bibliotecas e acervos documentais, como parte obrigatória integrante das universidades.

A partir desse momento as universidades tomaram o lugar dos mosteiros na preservação da memória histórica escrita. No mesmo ritmo em que o furacão da Renascença foi-se alastrando, avolumou-se a produção de novos conhecimentos. E foi nas universidades e no seu entorno sob sua influência direta e indireta, que a mente humana deu demonstrações dos seus fabulosos potenciais. Em meio a essa efervescência generalizada as universidades com suas bibliotecas e acervos documentais, ofereceram os estímulos e as inspirações que as transformaram no nascedouro de uma nova era da história. A concepção de novas ideias, a produção de novos conhecimentos, a moldagem de uma nova cosmovisão, não foram o produto de um “deus ex machina”. Resultaram da redescoberta dos conhecimentos cuidadosamente preservados na penumbra das bibliotecas dos mosteiros. E é nessa perspectiva que a Idade Média com seus mosteiros adquire sua verdadeira e inegável importância histórica. O fato de ter impedido que se interrompesse o canal de comunicação do Mundo Antigo Clássico com a história dos povos dos séculos XV e XVI, confere-lhe um significado de difícil avaliação. Medir o papel da Idade Média e seus mosteiros apenas pela ausência do espetacular, do barulho das invenções, pelo estrépito do embate das ideias em conflito, pela presença e influência onipresente da Igreja em todos os níveis da sociedade, certamente não chega a tocar naquilo que a tornou fundamental para a história.

E as universidades, as grandes herdeiras das fontes do saber e do conhecimento, guardadas nos mosteiros, multiplicaram-se e espalharam-se com rapidez pela Europa toda. Transformaram-se no fórum em que uma nova era estava sendo gestada. Em meio ao embate das ideias em que a nova geração pensante da Renascença se envolveu nas “aulas magnas” das academias, o saberguardado por séculos, estimulou e amadureceu frutos espetaculares. A semente, fruto do espírito fecundo e, porque não dizê-lo, da genialidade dos antigos, depois de hibernar por mil anos nos mosteiros, germinou com todo o vigor, no chão fecundo da atmosfera propícia das universidades.

Em meio ao fervo da Renascença a produção do conhecimento vem acompanhado no mesmo ritmo, com florescimento das artes, das letras e das ciências. Novas tecnologias conheceram momentos de glória. Sem pretender diminuir as novas tecnologias em geral, destaco novamente pela sua importância a invenção da Imprensa por Johannes Gutenberg. Sem ela a popularização dos conhecimentos guardados nas bibliotecas e o novo que se produzia em profusão, dificilmente teria ultrapassado os recintos nos quais era produzido. Pela facilidade da reprodução dos textos atingiu e conquistou um número de leitores cada vez maior, e não tardou para atingir as classes sociais menos favorecidas. As consequências foram óbvias. As ideias novas e antigas, as mudanças acontecidas na cosmovisão, nos hábitos, nos costumes, nas crenças, passaram a fazer parte do dia a dia até das pessoas comuns. O desfecho era previsível. A história da humanidade enveredou por um rumo que ainda hoje decide sobre os caminhos a seguir. Outra consequência. Na esteira da dinâmica desse processo agiganta-se o volume de obras que saem das oficinas gráficas em constante multiplicação numérica, no mesmo ritmo em que as tecnologias de impressão vão-se aprimorando. O crescimento quantitativo e qualitativo enriqueceu e multiplicou as bibliotecas. O conceito “biblioteca” deixa de soar como algo “monacal” ou “acadêmico”, fora do alcance do comum dos mortais, para servir também como termômetro do nível cultural, até das comunidades do mundo rural.

Sendo assim entende-se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, o mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade e não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao aleatório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultaria fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar. E para resumir o que vínhamos refletindo é legítimo afirmar que “as bibliotecas deveriam se tratadas como santuários onde os mortos continuam vivendo e os mudos falando”.

Da Enxada à Cátedra [ 85 ]

Depois da volta dessa última viagem em meados de setembro de 2001 não guardei na memória nenhum evento que mereça registro especial além das providências rotineiras da coordenação do PPGH. Entramos depois no ano de 2002 que seria para mim o último como coordenador. E, para ser sincero, estava na hora de passar o bastão para um substituto e desta vez, me livrar de vez de compromissos administrativos, que aliás nunca me seduziram, mas assumidos como parte da missão a cumprir na universidade. A troca de comando deu-se numa reunião do Colegiado do Programa em janeiro de 2003, na qual o prof. Werner Altmann foi eleito. Chancelada a decisão do Colegiado pelo Diretor do Centro, Pe. José Ivo Follmann, o prof. Werner foi empossado e eu me instalei num dos gabinetes do quarto andar perto da secretaria. Retomei a todo vapor as pesquisas sobre a imigração alemã, traduzi obras de referência na área e comecei a escrever a trilogia tendo como foco a atividade dos jesuítas alemães no sul do Brasil: “O Projeto Educacional” publicado em 2009 sob o Título “Um Sonho e uma Realidade”; “O Projeto Social” em 2011 com o título “Somando Forças”; “O Projeto Pastoral” em 2013, todos pela Editora da Unisinos. Um semestre sim e outro não, ministrava seminários para os mestrandos e doutorandos além de orientar dissertações e teses. Pelo o final de 2004 fomos atropelados pelo falecimento prematuro com câncer no fígado do prof. Marcos Tramontini, uma das grandes promessas para reforçar a pesquisa histórica da imigração alemã. Aliás sua tese de doutorado defendida na PUCRGS tornou- se referência desfazendo com farta documentação que o mito do isolamento das primeiras gerações de imigrantes alemães formavam grupos isolados, à margem dos luso-brasileiros, entregues a si mesmos, vítimas do abandono por parte das autoridades provinciais e nacionais. A participação na guerra Cisplatina, na Revolução Farroupilha, na Guerra do Paraguai, na Revolução Federalista e outros eventos demonstram que o isolamento vinha no mínimo a ser relativo.

A primeira metade desse período, mais especificamente o ano de 2005, coincidiu com o centenário do nascimento do Pe. Balduino. Na condição de cientista nacional e internacionalmente reconhecido, foram organizados não poucos eventos comemorativos na Unisinos para lembrar a importância desse ilustre jesuíta, tanto como cientista, quanto como professor no Colégio Anchieta, como catedrático fundador na UFRGS, diretor do Museu do Estado, como idealizador do Parque dos aparados da Serra, como escritor e como decidido defensor das comunidades coloniais de origem alemã e seus valores religiosos, éticos, familiares, além da sua exemplar organização comunitária fundamentada no solidarismo. Coube ao prof. Martin Sander a responsabilidade de coordenar a montagem do projeto que polarizaria os eventos setoriais a serem programados durante o ano de 2005 e 2006. Submetido à apreciação à apreciação da Lei de Incentivo à Cultura, esta autorizou a captação de recursos para a publicação de dois livros e a montagem de uma exposição itinerante resumindo a trajetória de vida do Pe. Rambo, desde sua infância, até topo de sua atividade acadêmica, científica e social. Os recursos foram capturados na Copesul. O primeiro volume com o título “Na Trilha do Pe. Rambo”, ficou sob a responsabilidade dos jornalistas Eduardo Tavares, a quem coube a parte fotográfica e ilustrativa, e Renato Dalto, autor do texto bilíngue (português e inglês). O segundo volume intitulado “Pe. Rambo – Pluralidade na Unidade: memória, religião, cultura e ciência”, contou como organizadores os profs. Arthur Rambo, Imgart Grützmann e Isabel Cristina Arendt. A obra consta de 6 contribuições de estudiosos da obra do cientista e um anexo com as publicações científicas e literárias e duas páginas dedicadas ao necrológio.

Por ocasião do lançamento dos dois livros e a apresentação oficial do memorial itinerante a Unisinos com a sua cúpula administrativa patrocinou um evento solene no térreo da biblioteca central. Outro evento comemorativo foi organizado pela prefeitura e comunidade de Tupandi, incluindo o lançamento dos dois livros junto ao memorial que ficou exposto no solar dos Weber. Essa homenagem em Tupandi teve um significado todo especial. A comunidade local com suas lideranças lembraram um dos filhos elevado à categoria de cientista internacionalmente respeitado literalmente saído da roça, melhor, “da enxada à cátedra” de uma universidade federal e à fama de um cientista de primeira linha. Mais tarde esse memorial seria exposto inclusive no Aeroporto Internacional Salgado Filho. A justiça manda registrar aqui um reconhecimento, senão de gratidão toda especial ao grande prof. e pesquisador Martin Sander pela parte decisiva que lhe coube nesses eventos comemorativos, ao elaborar o projeto de comemoração e obter o apoio da Lei de Incentivo à Cultura, somado à captação dos recursos. Um muito obrigado do irmão mais novo do Pe. Rambo.

Da Enxada à Cátedra [ 84 ]

Uns 30 quilômetros ao sul de Koblenz deu para apreciar de passagem numa curva fechada do Reno o emblemático rochedo da Lorelei com seu castelo medieval no alto, com suas lendas inspiradoras de poetas. Um pouco mais para o sul predominando uma combinação de uma beleza rara, vinhedos com florestas secundárias.

A partir de Constança o trem avança gradativamente Alpes adentro. Na medida que a viagem progride os vales tornam-se mais estreitos entre as montanhas cada vez mais altas. A minha paixão pela geologia levou-me logicamente à pergunta pela gênese geomorfológica daquele gigantesco e magnífico complexo de montanhas. Foi preciso recuar cerca de 44 milhões de anos para entender como se moldou aquele cenário e seus contrapontos nos Andes e no Himalaia. Chamo a atenção que estou falando em dezenas de milhões de anos. Tenho consciência que essa perspectiva cronológica cause dificuldades em não poucos intelectuais titulados nas mais diversas especializações das Ciências Humanas assim como também em outras áreas de viés mais tecnológico. O processo de levantamento começou com o encontro da placa tectônica móvel da África com a placa Euroasiática fixa. Essa colisão fez com que as bordas das placas fossem empurradas lentamente para cima até altitudes que no Mont Blanc, a maior chega a 4.809 metros e no Materhorn o segundo pico mais alto com 4.478 metros. Acontece que na medida em que os dobramentos para o alto foram subindo cada vez mais, as camadas e formações geológicas mais antigas foram sendo empurradas até um ponto em que se dobraram sobre as mais recentes, sepultando-as lentamente. O resultado foi que a parte mais alta das montanhas vem a ser formada por camadas geológicas mais antigas. Como já lembrei mais acima esse processo se prolongou por milhões de anos e resultou no que se pode considerar o esqueleto original daquele complexo de montanhas.

O perfil físico geográfico definitivo dos Alpes foi moldado pelas glaciações dos últimos 600.000 anos. Cada período glacial durou em torno de 100.000 anos intercalado por um interglacial de cerca de 10.000 anos. Atualmente encontramo-nos num desses períodos interglaciais com a temperatura média anual 8 a 10 graus C acima da temperatura média das glaciações. A espessura da neve acumulada durante os períodos glaciais chegava a 2.500 metros. Lentamente esse gigantesco volume de neve e gelo descia a encosta das montanhas terminando em geleiras semelhantes a caudais de centenas de metros de espessura, que se movimentavam lentamente em direção à saída dos vales. Essa movimentação da neve e do gelo foi cinzelando as encostas das montanhas arrancando e carregando volumes incalculáveis de fragmentos de todos os tamanhos, dando origem aos típicos vales e forma de U. No degelo que ocorreu nos últimos 10.000 anos com a elevação da temperatura média da terra, os escolhos chamadas tecnicamente de morainas foram-se acumulando nas frentes do degelo. Resultaram daí arroios de montanha, rios e lagos, alguns deles de dimensões fora do comum como lago de Como, da Garda, Lugano e dezenas de menores. Na medida em que o degelo avançava a vegetação foi tomando conta das encostas e dos vales. Florestas de coníferas e espécies com folhas decíduas dominaram o fundo e a encosta das montanhas, espécies de menor porte, gramíneas, musgos e líquenes até o limite da neve eterna e nos penhascos, muitos deles inacessíveis onde floresce o Edelweiss, flor símbolo da Suíça e a rosa dos Alpes – “Alpenrose”. Não se pode esquecer que esse cenário maravilhoso atraísse muitas espécies de animais de todas as categorias taxonômicas. Pelo simbolismo destaco a cabra montês que se equilibra nos lugares mais impossíveis daqueles penhascos e a águia dos Alpes – o “Lemmergeier”, planando de uma montanha para outra pronta para surpreender algum cabrito distraído.

Pois, foi esse o cenário ou, se preferirmos, o “jardim” moldado pelo Criador para que o homem o cultivasse e o aperfeiçoasse para uma “casa”, na qual se sentisse “Em casa” – “zu Hause. Naqueles espaços, lugares e caminhos moldou-se uma estirpe humana única, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais, despertando os potenciais do humano no homem. Mais acima já lembramos como esse complexo de montanhas foi recebendo os povos que formaram a base da federação Suíça, o norte da Itália, o Tirol do Norte e do Sul, Lichtenstein, a Áustria, o sul da Baviera e leste da França. Aníbal Barca foi o primeiro a cruzar os Alpes com seu exército, cavalos e elefantes em 216 A.C. Como se tratava de uma expedição que visava a invasão do império romano pelo norte, a travessia não resultou na fixação de povoados naqueles vales e montanhas. Um século depois os Cimbros e Teutões, povos emigrados da Jutlândia, hoje Dinamarca, cruzaram os Alpes e foram barrados pelos romanos no norte da Itália e forçados a se refugiarem e fixarem nos vales alpinos do norte da Itália, onde ainda hoje podem ser encontrados vestígios da língua e costumes dos cimbros em aldeias isoladas nos vales. Finalmente o complexo dos Alpes foi definitivamente povoado com a migração dos povos germânicos entre o século IV e IX DC. Mas, em grandes linhas, o panorama daquele período já foi lembrado mais acima.

Sob o aspecto biogeográfico não deixa de cair em vista o perfil e localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural acrescentando um elemento a mais na estética da paisagem em vez de agredi-la. O mesmo se pode afirmar dos lugares, espaços e caminhos nos quais circulam e se comunicam as pessoas. Esse conjunto de acréscimos à estética natural da paisagem servem de exemplo como a simbiose entre a natureza cultivada pelo homem resulta numa sensação de “estar em casa” – um “zu Hause”. Uma paisagem humanizada dessas oferece modalidades sem fim de inspirações para manifestações artísticas para poetas, literatos, cantores, somados aos próprios instrumentos originados das características daquele panorama. Para não me alongar demais chamo a atenção ao emblemático “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes”. Mas, numa compreensão histórico-cultural o conceito “Trompa os Alpes” define, sem dúvida, melhor o significado de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas rebatidas pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com nossos equipamentos eletrônicos, para expressar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem entre aqueles que o escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira, empregando técnicas as mais modernas e avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha.

Não é por nada que uma paisagem dessas inspirou e continua inspirando poetas, cantores, romancistas, contadores de histórias de fadas, escultores em madeira e outros mais. Sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” – “Ave Maria der Berge”, cantada ou executada por conjuntos e instrumentos em sintonia com vozes masculinas e ou femininas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montnara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, Tirol do Sul, norte da Itália. Como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – lá longe ecoa uma cascata – os verdes pinheiros filtram os prateados raios de luz – uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi sempre uma marca do homem e das comunidades alpinas, testemunhada pelos emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão e artista moldado nessas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottsschnitzler”, mal traduzido o “Escultor de Deus”. Poderíamos descrever milhares de outras paisagens humanizadas de beleza indiscutível. Ao avalia-las não cabe fazer comparações pois, cada qual é única na sua moldagem num ambiente geográfico também único que nunca se repete e, por isso mesmo, ecoa na alma de uma forma singular. A natureza como “casa” da humanidade oferece infinitas modalidades concretas de como acontece a simbiose entre a alma e sua “mãe e pátria”. E, para que esse acontecer não passe por desvios e traumas é preciso que “a casa” ofereça as condições indispensáveis para poder ser chamada de “Lar”, “Querência”, “Heim” além de outras modalidades como as muitas culturas conceituam “O Bem Morar”. Holger Zaborowski resumiu em poucas linhas a multiplicidade e complexidade dos fatores que entram em cena ao tentarmos entender toda a dimensão e profundidade o significada do conceito do “bem morar” para o homem.

Independente das diferenças que nos separam, moramos numa complexa rede de espaços e compartimentos que vão do porão ao telhado, do jardim ao terraço da cozinha, da sala de estar à das refeições, dos quartos de dormir ao banheiro. Moramos também em espaços mais amplos: nas ruas e quarteirões da cidade, nas aldeias e cidades, nos países e continentes. De alguma forma moramos em todos esses espaços. Moramos de alguma maneira em todos eles mesmo que na prática ocupem um espaço à margem do dia. Acontece que no morar, tendo como pano de fundo esse panorama, realizamos as inúmeras potencialidades da nossa condição de humanos. Em resumo, foram esses os pensamentos e reflexões que povoaram a minha mente e imaginação nas horas em que o trem passando pelo lago e cidade de Lugano nos levou pela meia tarde até a fronteira da Suíça com a Itália e por fim até Milão.

De Milão embarcamos no trem regional para ao entardecer desembarcar em Bérgamo onde encontramos vaga para três dias no hotel Arli. No dia seguinte viajamos de trem até a estação central de Verona onde embarcamos no ramal regional até Cremona, local donde emigrou o avô materno da Inez para o sul do Brasil. Um taxi nos levou até Benemerse paróquia mais para o interior, localidade de nascimento dos Grandi, lado materno da Inez. Caminhamos por uma hora ou pouco mais para interior agrícola, visitamos o cemitério onde pude identificar alguns sobrenomes correntes nas colônias italianas no Rio Grande do Sul. Por fim tivemos um encontro com o pároco que nos mostrou a bela igreja com sua torre típica daquela região da Itália. A pia batismal e o carimbo da paróquia continuam sendo os mesmos do tempo dos emigrantes para o Brasil nas últimas décadas do século XIX. Pelo fim da tarde embarcamos no trem de volta para o pernoite em Bergamo.

Na manhã seguinte embarcamos novamente no trem e seguimos até Verona e de lá até Trevisio, região donde os avós paternos da Inez emigraram para o Brasil pelo final da década de 1870. Depois de caminhar pelas ruas da simpática cidade, resolvemos entrar numa mercearia de bom tamanho a fim de pedirmos orientação de como chegar a Gagliarine, 12 quilômetros para fora da cidade, local exato da procedência dos ancestrais do lado paterno da Inez. Caíram em vista os muitos tipos e tamanhos de queijos e, pendurados nos barrotes, dezenas de pernis de porco defumados. Depois de nos apresentarmos ao dono estabelecimento e identificar-nos como descendentes de alemães e italianos no sul do Brasil em visita aos locais na Alemanha e Itália donde emigraram nossos antepassados, a Inez perguntou se ele conhecia alguém de sobrenome Presotto. Com um sorriso meio maroto apontou um senhor de meia idade que atendia num café anexo à mercearia com a observação “aquele lá no balcão é um”. Fomos até ele e nos apresentamos. A recepção foi mais ou menos a mesma que eu tive com meus parentes na Alemanha. Ele simplesmente nos ignorou e nem um cafezinho nos ofereceu. Fomos almoçar num restaurante e depois do meio dia alugamos um taxi que nos levou até Gagliarine 12 quilômetros fora da cidade. Com a lição aprendida não procuramos parentes de segunda ou terceira geração da Inez. Visitamos o cemitério com os túmulos e jazigos de não poucos falecidos com o sobrenome comum entre os descendentes de italianos no sul do Brasil. De volta a Trevísio embarcamos no trem de volta a Bergamo. O primeiro compromisso do dia seguinte, 11 de setembro de 2001, foi a ida à agência de turismo para ver a possibilidade e uma viagem de trem até Roma. Enquanto conversávamos com o atendente assistimos pela televisão da agência, em tempo real, o impacto do segundo avião nas torres gêmeas de Nova York. Depois disso o agente nos desaconselhou viajar a Roma via Milão pois, o serviço de inteligência tinha localizado naquela cidade um núcleo terrorista ligado aos atentados nos Estados Unidos. Como a nossa reserva no hotel expirava no dia seguinte acertamos os detalhes para o retorno de trem a Frankfurt e de lá voltarmos para casa em São Leopoldo.

Mais tarde faríamos mais quatro viagens para o norte da Itália. A primeira a Vataro nas montanhas de Trento, outra novamente a Bergamo, a terceira a Bozzano e a última a Verona. Para evitar ser redundante passo a fazer algumas reflexões sobre aquele cenário geomorfológico e histórico das planícies e encostas do sul dos Alpes. Mais acima já lembrei como entre os séculos VI e IX aquela região, a Lombardia e o Vêneto foram o cenário de embates entre os romanos e os bárbaros, principalmente Visigodos no Veneto e Longobardos na Lombardia. Esta região foi palco de uma história movimentada como poucas na Europa, muito parecida com a da fronteira da Alemanha, da França e os Países Baixos, lembrados mais acima. As tropas de Napoleão devastaram a região no começo do século XIX movidas pela orgia do grande Corso em ampliar sempre mais seu império. Até a unificação da Itália toda a região ficou sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Depois da Primeira Guerra Mundial, com a fragmentação do Império Austro-Húngaro, o Tirol do Sul passou para o domínio da Itália. Um outro detalhe que não pode ser esquecido refere-se à participação da Força Expedicionária Brasileira nos combates de Caimore, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, Fornovo e o cemitério de Pistoia dos pracinhas caídos na guerra.

Encerrada a programação no norte da Itália embarcamos no dia 13 de setembro no trem em Milão para Frankfurt pelo mesmo percurso da ida. Pernoitamos no hotel Astron I perto do aeroporto e no dia seguinte tomamos contato com as redondezas e a movimentação no aeroporto, para às 22h embarcar de volta para casa. O que mais caiu em vista no aeroporto foi a presença de dezenas de policiais levando cães amestrados e empunhando metralhadoras de mão. Fazia parte das precauções indispensáveis devido aos atentados em Nova York pois, havia informações que o grupo terrorista responsável, tinha ramificações também na Alemanha.

Da Enxada à Cátedra [ 83 ]

Depois do almoço descemos pela margem direita do Mosela para terminar em Koblenz onde este rio desemboca no Reno no “Deutscher Eck”. Aliás a origem de Koblenz deve-se ao encontro dos dois rios que os romanos chamavam de “Confluentia”. Descer pelo vale do Mosela desperta no forasteiro um turbilhão de sentimentos difícil de identificar e dimensionar. Ora são os vinhedos que sobem as encostas da margem esquerda e datam do tempo dos romanos e os vinhos nobres do Mosela, o “Moselwein”, apreciados pelo mundo inteiro pela sua qualidade; ora são as aldeias e pequenas cidades que convidam para uma parada e uma reflexão; ora são os personagens e tipos humanos moldados naquele contexto rico em história. Só para lembrar. O emigrantes e seus descendentes que se fixaram no sul do Brasil, originários daquele vale emblemático, costumavam ser conhecidos e identificados como “moselanos”. Dos mais conhecidos lembro o nome de Aloys Friedrichs, nascido em Merl, imigrado para Porto Alegre onde se notabilizou ao fundar o “Turnerbund” ou Federação dos Ginastas, hoje SOGIPA. Mas o nome mais eminente do Mosela vem a ser o cardeal Nicolau de Cusa nascido em 1401 em Bernkastel Kues. Foi nomeado cardeal e passou a sua vida exercendo diversos cargos na cúria romana. Veio a ser nomeado bispo de Brixen, hoje Bressanone no Tirol do Sul, norte da Itália. Conquistou fama pelas sua obras filosófico- teológicas com destaque para o livro “Douta Ignorantia”. Consta dele a compreensão da natureza mais do que nunca válida ainda hoje ao afirmar que “ex partibus omnibus ellucet totum”, mal traduzido quer dizer “o todo manifesta-se pelas suas muitas partes”. Nicolau de Cusa é considerado como um dos filósofo mais importantes na transição da Idade Média para a Renascença. Com sua visão do mundo na sua essência, ainda válida hoje, definiu as três formas do saber: os sentidos, a razão e o intelecto. No seu entender o intelecto está acima da razão e dos sentidos. Pelo intelecto iluminado pelo “todo” como objeto chega-se ao “uno” que vem a ser Deus. Nicolau de Cusa fundou em Bernkastel Kues um asilo para idosos até hoje em funcionamento e no qual se encontra preservado seu acervo filosófico-teológico. Uma curiosidade histórica relativa à Fundação merece ser lembrada. Os alvos dos bombardeios durante a segunda guerra mundial, sob o comando do marechal da RAF Arthur Harris programara o bombardeio da ponte sobre o Mosela em Bernkastel Kues. Se executado não tinha como não atingir severamente a fundação acima mencionada. A ponte foi poupada por uma manobra de subalternos de Harris e assim a cidade e o monumento histórico mais significativo do Mosela ficou intacto e recebe milhares de visitantes por ano de países até fora da Europa, principalmente idosos

Para o dia seguinte programamos uma visita para as aldeias Hahn, Peterswald e Löffelscheid, região do Hunsrück donde emigrou meu tris avô Mathias Rambo em 1829. A aldeia, melhor talvez cidadezinha Hahn tornou-se conhecida depois da segunda guerra mundial. Por sua localização estratégica somada à topografia os americanos instalaram nas suas imediações uma gigantesca base aérea militar, hoje transformada em aeroporto subsidiário ao de Frankfurt. Nas proximidades do aeroporto passamos por enormes galpões ainda abarrotados de munições não utilizadas com o fim da guerra. A primeira parada foi em Peterswald. Na lista de endereços do Pe. Mallmann constavam dois com o sobrenome Rambo. No primeiro não havia ninguém em casa. No segundo fomos recebidos pelos sr. Herrmann Rambo e sua esposa pelas 10h da manhã. Consciente da desconfiança em relação a visitas de parentes longínquos, principalmente do Brasil, fiz saber logo que estávamos apenas querendo conhecer o lugar donde meus antepassados emigraram para o Brasil e não se preocupassem com o almoço pois, que iríamos passar por Löffelscheid e depois descer até o Mosela encontrar uma filha do Michel que trabalhava na Fundação Kues à qual já me referi mais acima. Por nossa surpresa convidou-nos para entrar, tomar um refrigerante e tivemos uma hora de boa conversa com o Herrmann e sua esposa. Eles não guardavam a mínima memória dos parentes longínquos emigrados para o Brasil e a América do Norte. Cabe aqui lembrar que o irmão do meu trisavô a Mathias migrou para a América do Norte e na sua descendência destaca-se o engenheiro químico Arthur John Rambo integrando a elite dos boinas verdes que lutaram no Vietnã e lá veio a morrer durante o conflito durante uma emboscada e inspirou a série “Rambo”, referência dos heróis americanos caídos naquele conflito.

Descemos depois até o Mosela onde almoçamos para depois seguir até Boppart onde admiramos as ruinas preservadas do tempo dos romanos. Pela meia tarde subimos o planalto até nossa pousada em Emmelshausen. Na manhã seguinte, último dia no Hunsrück, chão em que se encontram as raízes remotas de todos os “Rambos” do sul do Brasil, vistamos o museu histórico regional. O Michel, um grande entusiasta do museu fez questão de nos mostrar a cultura material da história da região aí preservada: utensílios e instrumentos agrícolas, artigos domésticos, indumentária, mobília etc. No fim da manhã passamos na papelaria para buscar a caneta Mont Blanc encomendada dias antes, passar numa farmácia, propriedade de uma coreana que falava perfeitamente o alemão. Depois do meio dia o Michel nos levou até a agência de viagem a fim de programar o roteiro a ser cumprido entre Koblenz e Milão, Bergamo, Cremona e Trevísio, terra dos antepassados da Inez. Depois de tudo planejado passamos na agência da Avis que nos alugara o carro para o acerto de contas. E, assim, a visita à terra dos meus antepassados, o Hunsrück, estava concluída. Voltamos ao nosso alojamento para reunir nossos pertences e na manhã seguinte descer de ônibus até Koblenz onde embarcaríamos no trem para Milão. Depois acertadas as contas e um bom papo com o nosso hospedeiro Stoffel, comerciante de vinhos, fomos dormir a última noite em Emmelshausen. Para a noite seguinte esperava-nos o hotel Arli em Bergamo.

Na manhã seguinte ao clarear o dia embarcamos no ônibus que nos levaria até Koblenz. Uma onda de frio precoce vinda do norte fez com que a espera do embarque fosse bem desagradável. A partida do trem em Koblenz a Milão fora marcada para as 10h. Aconteceu então uma eventualidade por assim dizer inominável na Alemanha. Fomos avisados que o trem chegaria com uma hora de atraso. As reclamações tomaram conta da plataforma de embarque. Soubemos então que alguém se tinha jogado nos trilhos do trem entre Bonn e Koblenz. Pontualmente depois de uma hora o trem entrou na estação e embarcamos. No decorrer da viagem foi compensando o atraso e desembarcamos em Milão no horário previsto.

Seguindo pela margem esquerda do Reno para o sul a viagem nos permitiu apreciar o cenário marcado por inúmeras reminiscências de profundo significado de uma história que se perde nas brumas do tempo de mais de 5.000 anos passados. Os dados históricos dão conta que uma poderosa floresta cobria o centro norte da Europa entre o Báltico e os Alpes e entre o mar do norte e as estepes da Rússia. Desde a remota pré-história os povos germânicos viveram e consolidaram suas tradições naquelas florestas. Entre os muitos gigantes de folhas caducas e perenes: tílias, álamos, abetos plátanos, Nogueiras e o carvalho que pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra dos carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, resolviam-se os problemas internos das comunidades. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os povos germânicos que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor e, em massa, converteram- se ao cristianismo.

Na primeira parte da viagem, Koblenz a Constança, o trem percorreu a linha de fronteira entre o antigo Império Romano e os territórios dominados pelos povos germânicos. Logo no começo do século I depois de Cristo, mais exatamente no ano 9, o poder de conquista dos romanos teve o seu avanço sobre a margem direita do Reno, definitivamente sustado com a derrota na batalha da floresta de Teutoburgo. As legiões romanas sob o comando de Varo foram destroçadas pelos guerreiros germânicos de Armínio. A história de vida do vencedor merece um breve comentário. Nasceu como príncipe na tribo dos Cherusci ou Cheruscos uma tribo germânica que dominava parte das florestas nas planícies do noroeste da Alemanha. Como criança foi sequestrado pelos romanos e educado como romano, sendo como jovem incorporado no exército onde conseguiu subir na hierarquia até o posto de tribuno. Revoltado com o tratamento dos romanos dado aos Cheruscos, arregimentou-os e atraiu Varo com três legiões para o terreno acidentado e coberta de um floresta hostil em Teutoburgo, familiar aos seus guerreiros. Depois de derrotar Varo com suas legiões o limite entre o Império Romano e a Germânia foi acertado como sendo o Reno. Acontece que há dois ou mais séculos fermentava em toda Germânia uma inquietude crescente que terminaria desencadeando as migrações dos povos entre século IV e IX redesenhando não só geograficamente a Europa, como principalmente o perfil cultural e étnico com a “romanização” da “germanidade” e vice versa a “germanização” da “romanidade”, somada à “cristianização” de ambas e implicitamente também a “helenização” da romanidade e cristandade e vice-versa. Em outras palavras neste contexto gestaram-se e consolidaram-se em linhas gerais os fundamentos da Cultura Ocidental.

A primeira onda das migrações dos povos germânicos a que nos referimos acima foi protagonizada ainda no primeiro século antes de Cristo, pelos Cimbros e Teutões. Procedentes da Jutlândia (atual Dinamarca) terminaram ocupando boa parte do norte da Itália. As guerras dos invasores contra a República Romana estenderam-se de 113 a 101 AC. Com a derrota tanto dos Cimbros quanto dos Teutões terminaram por fixar-se nos vales das encostas sul dos Alpes.

A segunda onda de migrações dos povos germânicos teve início em meados do século IV e prolongou-se até o século IX DC. Como aqui não é o lugar para entrar em detalhes dessa história de quase um milênio, limito-me a resumir em linhas muito gerais o significado histórico da viagem de trem de Koblenz a Milão. Acima já lembrei que o Reno fora fixado informalmente como sendo o limite entre o Império Romano e os povos germânicos, donos do restante da Europa Central e do Norte, estendendo-se até as estepes da Rússia. De alguma forma o trem percorreu o epicentro do encontro do mundo germânico com mundo romano. Resumindo. Os povos de maior importância que cruzaram aquela fronteira foram de norte ao sul os Anglos e Saxões que mais ao norte invadiram a Inglaterra, os Francos o norte da França, os Borgúndios o centro sul da França, os Vândalos passaram pela França, Espanha, atravessaram o Mediterrâneo fundando um império no norte da África, os Suevos passaram pela França, Espanha até as fronteiras com Portugal, os Alamanos fixaram-se na região do norte dos Alpes, os Visigodos vindos do leste passaram pelo norte da Itália, chegaram até Roma, continuaram pelo sul da França e terminaram na Espanha. Os Ostrogofos desceram até Constantinopla e Grécia. Um fator de grande importância nessa movimentação toda foi a invasão dos Hunos. Comandados por Átila saíram da Ásia central, cruzaram as planícies da Rússia para, finalmente, serem barrados na batalha dos Campos Catalâunicos, na atual França. Tive uma satisfação enorme em vivenciar essa parte da história tão importante para entender a alma da Cultura Ocidental, que, mais tarde moldaria de alguma forma, a fisionomia humana das três Américas, do sul da África, da Austrália, Nova Zelândia e outras regiões pelo mundo afora.

Da Enxada à Cátedra [ 82 ]

Viagem para a Alemanha e norte da Itália.

Para o segundo semestre de 2001 programei com a Inez uma viagem de duas etapas para a Europa. A primeira teve como destino o Hunsrück na Alemanha, região donde emigraram meus antepassados tanto do lado paterno quanto do materno. A segunda foi para o norte da Itália com o objetivo de conhecer os locais de origem dos antepassados da Inez, do lado paterno vindos de Trevísio e do materno de Cremona. Para a visita dupla para Alemanha e Itália centradas nas regiões que acabo de identificar foi motivada por razões em parte acadêmicas pois, minhas pesquisas e publicações centravam-se na imigração para o sul do Brasil de imigrantes da Europa Central e, complementarmente do Norte da Itália. O outro motivo não menos determinante foi gozar de um intervalo de lazer. Eu me encontrava em fim de carreira pois no final de 2002 encerravam-se os oito anos como Coordenador do PPGH de História com 72 anos de idade. Por ter viajado muito pouco para fora do País, como para o pós-doutorado em Paris em 1988, a viagem a Halle em 1999 e a viagem para o Chile que acabei de relembrar, despertou a vontade de conhecer um pouco mais a fundo a Europa, de modo especial a Alemanha, a Inglaterra, a República Tsheca, o norte da Itália, Roma, Urbino, Rimini e Pésaro. Um motivo não menos importante foi propiciar à Inez o prazer de viajar, pelo qual ela alimentava uma verdadeira peixão, muito mais do que eu próprio. Os dois filhos, o Paulo e a Ingrid já caminhavam com os próprios pés, a situação financeira sob controle. À viagem que em seguida irei descrever irão somar-se até 2011 mais seis com o mesmo destino. Meu voo de Porto Alegre a Frankfurt foi bancado pela Unisinos, o da Inez saiu da nossa poupança. Tudo acertado com agência de viagem do Banco do Brasil partimos na última semana de agosto. O Pe. Mallmann que tinha parentes próximos e amigos morando em Emmelshausen e Halsenbach providenciou, por meio de um amigo de sobrenome Michel a estadia no Hunsrück na pousada de um comerciante de vinhos de nome Stoffel. Além disso deu-se ao trabalho de localizar nos registros telefônicos nada menos de 120 pessoas com o sobrenome Rambo. O sr. Michel combinou com seu filho que morava em Mannheim, a nos localizar no aeroporto de Frankfurt e nos levar até Emmelshausen. Na compra da passagem na agência do Banco do Brasil na Unisinos fora incluído também o aluguel de um carro da Avis para nos movimentarmos livremente na parte da visita à terra dos meus antepassados.

O voo de Porto Alegre a São Paulo e de lá até Frankfurt foi tranquilo. No desembarque esperava o filho do Michel que nos levou de carro até a casa dos pais em Emmelshausen. Depois de um bom papo informal acrescido do plano de visitas nos próximos dias, passamos por um supermercado para comprar artigos para o consumo pelos quais tivemos que providenciar pois, a diária da hospedaria em que passaríamos os dias de visita não incluía as refeições. Já ao entardecer nos acomodamos no apartamento reservado para aluguel anexo à moradia do sr. Stoffel. Confiei ao Michel a chave do carro alugado pois, ele nos levaria nos dias seguintes, aos lugares que nos interessavam visitar. Às 8h em ponto, como convém a um bom alemão, o Michel estacionou na rua em frente ao nosso alojamento, pronto para circular pelos endereços programados para aquele dia.

A primeira parada foi em na cidade Kastelaun. Deixamos o caro no estacionamento no centro e, a pé, visitamos o histórico mercado de animais. Em resumo. Todos os anos, em data marcada, os agricultores da redondeza levavam os animais destinados à venda, até a praça principal da cidade, onde eram realizados os leilões. Depois da visita aquele local procuramos numa rua no centro da cidade um dos endereços de um morador de sobrenome Rambo que constava na lista que o Pe. Mallmann preparara. Encontrada a rua e localizado o endereço o Michel tocou a campainha. Uma senhora de meia idade apareceu na porta acompanhada de um enorme cachorro. Nosso cicerone nos apresentou como sendo do sul do Brasil e interessados em conhecer região donde emigrara meu trisavô Mathias Rambo em 1829 e ao mesmo tempo conhecer alguém desse sobrenome. A reação da mulher foi de poucas palavras e nas entrelinhas fez perceber que não éramos bem vindos. Ela apenas deu a entender que o marido não se encontrava em casa e por isso não nos poderia receber. Entendido o recado subimos para dar uma olhada nas ruinas do antigo castelo.

Aqui cabe uma explicação para a frieza daquela recepção. Acontece que terminada a segunda guerra mundial lideranças católicas e protestantes, entre elas meu irmão Balduino, o Pe. Pauquet, o sr. Siegman, Fritz Rottermund, Antônio Campani, Gastão Englert, Albano Volkmer e muitos outros, criaram em Porto Alegre a SEF – Socorro à Europa Faminta. Consistiu basicamente em arrecadar alimentos não perecíveis, roupas, calçados, somas em dinheiro para socorrer a Alemanha em ruinas, fome generalizada, sem abrigos e sem alimentos. Como os acordos firmados no final da guerra proibiam a entrega direta desse tipo de ajuda à Alemanha, foi mandado via Cruz Vermelha da Suécia sob o título genérico de Socorro à Europa Faminta. Se não me engano a campanha arrecadou nos estados do sul, principalmente Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná quinze cargas de navio. Dezenas de milhares de alemães foram salvos com esses donativos. Acontece que já no final da década de 1940 mas, principalmente na de 1950 a Alemanha se recuperara espantosamente solidificando uma economia robusta proporcionando um nível de vida invejável para seus cidadãos. Neste contexto entende-se a desconfiança dos alemães, de modo especial na Renânia-Palatinado em relação aos visitantes de descendentes da região vindos do sul do Brasil. A culpa cabe de modo especial a religiosos, padres diocesanos inclusive bispos e não poucos aproveitadores de todos os naipes que nas décadas de 1960 a 1980 percorreram aquela região e outras mais da Alemanha, cobrando por assim dizer, o ressarcimento dos auxílios doados pela SEF e outras entidades. Não poucos religiosos e padres diocesanos ofereciam-se para cuidar de paróquias substituindo os párocos em férias. Aproveitavam a permanência como párocos substitutos temporários ou auxiliares nas paróquias para organizar coletas em favor de seminários, paróquias, entidades de assistência e caridade, além de outros destinos menos confessáveis. Contam as más línguas que chegou ao ponto de um bispo do interior do Rio Grande do Sul trazer na bagagem uma Mercedes que ficou retida na alfândega do Rio de Janeiro por irregularidades burocráticas relativas à importação. Uma receptividade parecida esperava-nos também no norte da Itália. Essa experiência fez com que evitássemos daí para frente encontros com moradores das aldeias que visitamos depois.

Perto do meio dia, terminada a vista às ruinas do castelo, subimos até a estrada principal que que atravessa o Hunsrück para terminar em Trier – a “Hunsrücker Höhe Strasse”. Almoçamos num restaurante frequentado por motoristas, turistas e transeuntes de todos os feitios. A tarde foi reservada para uma visita à Simmern, donde emigrou meu bisavô Vier do lado materno. Sob o aspecto urbanístico e arquitetônico a cidade oferece o perfil quase que padrão das aldeias e cidades pequenas e médias da região do Hunsrück. O que, entretanto, empresta um destaque e historicamente marcante é a torre prisão, hoje transformada em museu, para onde foi recolhido o lendário e folclórico salteador e assaltante “Schinderhannes”(“Johannes Bückler”). Depois de evadir-se da prisão foi capturado e guilhotinado em Mainz em 1803. Seus feitos como líder de um bando de salteadores de estrada que cometiam toda a sorte de delitos, transformou-se num símbolo de crueldade. Chamar alguém de “Schinderhannes” significava o mesmo que ser um “judiador”. Os emigrantes vindos do Hunsrück trouxeram na sua bagagem, como foi o caso dos meus antepassados, tanto do lado paterno quanto do materno, o simbolismo negativo inspirado naquele personagem. Lembro-me como se tivesse sido ontem, minha mãe me repreendendo com um sonoro “du Schinnerhannes”, quando maltratava algum animal, cachorro, cavalo ou outro e isso mais de 100 anos depois do desembarque do meu avô no Brasil.

Com a visita a Simmern o programa daquele dia estava cumprido e nos recolhemos ao nosso alojamento em Emmelshausen. Aproveitamos o final da tarde para dar uma caminhada pela cidade. Comprei uma caneta Mont Blanc e entramos na igreja matriz da cidade. Não se tratava de nenhuma dessas catedrais famosas construídas na Idade Média. O que mais me chamou a tenção foi uma relação de nomes afixada num local estratégico com os nomes dos soldados caídos na segunda guerra mundial. Lá constavam não poucos sobrenomes familiares entre os descendentes de imigrantes no sul do Brasil como o de Josepf Knecht e dezenas de outros.

No dia seguinte o Michel nos levaria pela “Hunsrücker Höhe Strase” até Trier descendo depois acompanhando o Mosela até Koblenz onde desemboca no Reno no “Deutscher Eck”. Naquele dia a esposa do Michel resolveu fazer-nos companhia. Depois de uma viagem tranquila entramos na cidade histórica que durante anos foi a sede do Império Romano. Fundada em 16 A.C peloimperador Augusto com o nome “Treverorum” pode ser considerada a cidade mais antiga da Alemanha. No final do século III da era cristã Trier ou Treveris passou a ser a capital do Império Romano. Seis imperadores romanos reinaram a partir dessa cidade que também era reconhecida então como a “Segunda Roma”. Quem tem um mínimo de conhecimento da história da Europa Ocidental sabe que, conquistadas as Gálias, em grandes linhas a França de hoje e territórios adjacentes por Cesar, ainda antes de Cristo, os romanos foram empurrando as fronteiras do Império para o norte e para o leste. Ocuparam a Grã Bretanha e no continente avançaram e consolidaram as fronteiras em toda margem esquerda do Reno. Os vestígios do domínio romano nos primeiros séculos da nossa era podem ser observados ainda hoje principalmente no centro e sul da Inglaterra como também em toda margem ocidental do Reno tendo Trier como capital e sede do império. São ruinas de cidades, fortalezas, obras de engenharia como a ponte sobre o Reno que deixa estupefatos os engenheiros da especialidade de hoje. As tentativas de conquistar a Europa central não tiveram êxito devido às táticas de combate consolidadas pelos povos germânicos no interior das florestas por toda a Europa Central e do Norte até as estepes da Rússia. O herói imortalizado pela Netflix, vem a ser Armínio um germânico criado pelos romanos e engajado no seu exército e feito comandante de uma Coorte sob as ordens de Polibius Q. Varus. Observando como seu superior oprimia seus conterrâneos germânicos, aproveitou a oportunidade para conquistar popularidade e poder de liderança entre eles. Terminou assim como comandante dos guerreiros germânicos que derrotaram as legiões de Varo na Floresta de Teuteburgo, desestimulando de vez novas tentativas de apoderar-se daquele mar de florestas assustadoras escondendo povos e mais povos acostumados às táticas de combate exigidas naquele ambiente. Vale chamar a atenção que a batalha de Teuteburgo marcou o fim do avanço do Império Romano para dentro da Europa Central e do Norte e evitou a romanização dos povos germânicos por isso pode ser considerado um dos lances mais importantes e decisivos do jogo de xadrez que moldou a Cultura Ocidental no seu nascedouro.

Não é aqui o lugar para aprofundar e detalhar aquele período histórico. Como minha intenção consiste em chamar atenção que uma viagem não se resume em admirar monumentos, participar de eventos ou fazer compras, permiti-me alertar que o chão que se pisa em qualquer parte do nosso planeta esconde, para quem estiver dispôs e em condições de detectá-la, uma história física e geográfica contada em milhões e até bilhões de anos e uma saga humana de séculos e milênios.

Logo na entrada paramos para conhecer o que sobrou do fórum romano, basicamente os muros externos até meia altura e o interior franqueado aos visitantes como se fosse uma praça. Uma caminhada pelo centro da cidade não podíamos deixar de dar uma parada na frente da casa em que nasceu Karl Marx, entrar na imponente catedral católica em estilo romano dedicada a SãoPedro e que guarda a “túnica sagrada” uma das relíquias mais emblemáticas da história do cristianismo. Mais adiante nos chamou a atenção o monumento símbolo da cidade: a “Porta Nigra” (Porta Negra), datada do século III, um imponente portal-monumento construído no estilo romano antigo. O nome vem do fato de que com o correr de séculos, o seu exterior escureceu. Consta na lista dos monumentos históricos considerados patrimônio da humanidade.


Da Enxada à Cátedra [ 81 ]

Viagem ao Chile.

Para fins de janeiro e começos de fevereiro de 1999 com a Inez, minha esposa e nosso vizinho prof. Antônio Sidekum programamos uma viagem ao Chile. No roteiro constava com destaque Santiago, Valparaíso e, mais para o sul, até Puerto Montt, Puerto Arenas, Puerto Varas, Valdivia, Frutillar, Los Angeles, áreas povoadas, a partir de meados do século XIX, predominantemente por imigrantes alemães. Os detalhes da viagem foram sugeridos pelo prof. Sidekum que mantinha relações acadêmicas e de amizade com intelectuais chilenos e providenciou a reserva de um hotel no centro da capital. Num voo noturno da VARIG viajamos a Santiago no dia 30 ou 31 de janeiro. Passamos no dia seguinte conhecendo o centro da cidade e aproveitamos para alugar um carro para viajar os mais de mil quilômetros até Puerto Montt, além de trocar o dinheiro brasileiro pelo chileno. No banco fomos informados que o Real estava sem cotação e não podia ser trocado. Acontece que naqueles dias a paridade da moeda brasileira equiparada ao dólar anos antes, com o Plano Real, fora substituída pela flutuação do câmbio. Teríamos ficado sem dinheiro para enfrentar o aluguel de um carro e seguirmos para o sul. Mas, uma coincidência nos tirou da enrascada. Da minha viagem a Halle na Alemanha no ano anterior haviam sobrado 800 marcos e por uma dessas coincidências os tinha levado para trocar em vez de levar dinheiro brasileiro. Com isso o empasse estava superado.

Alugamos um carro e no dia 3 de fevereiro enfrentamos a viagem de mais 1000 quilômetros para o sul pela rodovia pan-americana em fase de conclusão naquele trajeto pela planície costeira. Sempre tive paixão por montanhas e florestas. Lavei a alma viajando dois dias acompanhando os Andes que subiam até as nuvens a uma distância relativamente pequena. Vale apena refletir um pouco sobre a história da formação dessa cordilheira que acompanha de norte a sul a costa ocidental da América do Sul numa extensão de 8 mil quilômetros e altura máxima no Aconcágua de 6.961 metros. Ao apreciar essa majestosa cordilheira acompanhando pelo leste o trajeto entre Santiago e Puerto Montt, a imaginação recua para 80 milhões de anos passado quando ocorreu a primeira fase da sua formação e 40 Milhões de anos quando se completou o processo de elevação. Resultou da colisão de duas placas tectônicas, a oceânica de Nasca e a Sul Americana. Quem está acostumado a contar o quotidiano em horas, em semanas, em meses e no máximo em anos e a história do homem em séculos e milênios, ao contemplar esse espetáculo grandioso e belo, alinhando-se ao longo da estrada com 349 quilômetros de largura em Antofagasta no norte e em torno de 15 em Puerto Montt, sente dificuldade para imaginar os períodos cronológicos necessários para a moldagem da fisionomia geomorfológica da terra em que surgiu a espécie humana e nela construiu a sua história. Na medida em que avançávamos para o sul desfilavam os cumes e picos mais altos cobertos de neve eterna mesmo no alto do verão. A uma certa altura surgiu no horizonte lá no sul o cume do vulcão Vila Rica expelindo a sua fumacinha emblemática. No fim do primeiro dia entramos na pequena cidade de Los Angeles. Pernoitamos num hotel simples, porém aconchegante. Ao nos apresentarmos na recepção o Antônio lembrou a recepcionista que eu estava de aniversário pois era 3 de fevereiro. O resultado não podia ser melhor. A janta foi por conta da data. Na manhã seguinte pegamos novamente a estrada Pan Americana em direção ao sul cruzando a região colonizada pelos imigrantes alemães como já lembrei mais acima. Aquela paisagem humanizada de acordo com o típico estilo desses imigrantes que lá se estabeleceram a partir de meados do século XIX, mais se parecia como um pedaço da Europa Central ou mesmo no sul do Brasil. Até a vinda dos imigrantes as florestas nas margens do lago de Langhue permaneceram desabitadas pois, os nativos herdaram a lenda que o lago era povoado por espíritos hostis ao homem.

Pela meia tarde entramos em Puerto Mont. Depois de uma volta pela cidade e o porto fomos em busca de um hotel. Não encontramos nenhum com vaga. A saída foi procurar um em Puerto Varas. Tivemos sorte. No hotel “Los Colonos” na margem do lago encontramos hospedagem para quatro dias. A lembrança que mais me impactou foi a cabeça coberta de neve do vulcão inativo Osorno, destacando-se na cordilheira lá para o lado sul. Na manhã seguinte fomos de carro até extremidade sul do lago onde este, passando por cima de blocos de rochas termina formando um rio de bom tamanho. Na margem leste do lago e do rio os contrafortes dos Ande sobem em degraus quase a prumo cobertos de vegetação e até árvores de maior porte agarradas nas fendas das rochas. Almoçamos no restaurante estrategicamente acomodado perto das corredeiras do escoadouro do lago. Depois de caminhar pelas trilhas da redondeza retornamos a Puerto Varas pelo caminho que percorremos na ida. Parecia que estávamos percorrendo alguma região agrícola da Europa, mas uma lhama com seu bebê acomodada num pasto perto de uma igrejinha em estilo europeu nos chamou à realidade. Na volta para a cidade foi a vez de dar um giro passando por um supermercado para depois subirmos até o ponto mais alto onde se ergue uma bela igreja, novamente em estilo europeu. Nela caiu-me em vista uma placa com o nome dos párocos que administraram a freguesia, do primeiro ao último. Nessa relação os nomes, especialmente os mais antigos foram jesuítas alemães, enviados pela província da Ordem da Alemanha para a missão mantida por ela no sul do Chile, como também mantinha missões nas Montanhas Rochosas, no sul do Brasil e na Índia. Ao lado daquela igreja fomos recebidos por uma família de descendentes de alemães. A dona da casa, uma senhora de meia idade e o filho não falavam mais o alemão, mas a avó, uma senhora de seus 80 anos, sim.

O dia seguinte foi reservado para conhecer melhor a cidade portuária de Puerto Montt. A primeira coisa a cair em vista foi um desses imensos navios de cruzeiro ancorado na baía afastado do porto. Mas o que mais interessou e impressionou foi o monumento aos imigrantes erguido na beira do porto. O conjunto expressa como poucos desses monumentos o espírito da saga dos imigrantes vindos da Europa, alemães, italianos, poloneses e outros mais, ao se defrontarem com uma realidade completamente inusitada para um europeu. Afinal lagos e montanhas semelhantes aquelas do sul do Chile existiam também no sul da Alemanha. Entretanto, aquelas florestas quase impenetráveis, envoltas em mistério e com a fama de povoados por espíritos hostis aos povoadores, que deveriam ser enfrentadas, e substituídas por plantações de alimentos e nelas consolidar uma nova “querência”, uma nova “Heimat”. O monumento alusivo mostra um homem com machado na mão apontando para o cenário em que lhe competia construir o futuro para a família e uma nova pátria para filhos e netos. Segue a figura robusta de outro homem com machado na mão, depois a mulher com um bebê nos braços e uma criança de seus três anos segurando o seu vestido. O que mais impressiona são os traços e a postura dessa mulher. Encarando com determinação indomável a realidade à sua frente, parece dizer: “homens abram a primeira clareira, construam o primeiro abrigo eu, da minha parte, darei conta do que me cabe.” Na minha opinião o monumento ao imigrante alemão em São Leopoldo perde em muito no seu simbolismo para aquele de Puerto Montt. Bem mais perto chega o monumento do imigrante italiano em Caxias do Sul.

Depois de conhecer a região portuária da cidade fomos almoçar num restaurante de boa aparência onde nos aguardavam algumas surpresas. Logo na entrada um pano de parede caprichosamente feito à mão com os dizeres. “Unser tägliches Brot gib uns heute” – “O pão nosso de cada dia nos dai hoje!”. Entrando no recinto do restaurante tive a sensação de me encotrar no Orfeu de São Leopoldo. Não me lembro do cardápio mas a disposição das mesas, o fregueses conversando esperando ser atendidos, os serviçais, o cerimonia ao servir os pratos, as decorações, tudo emprestava ao ambiente um clima de familiaridade, como o Orfeu. Passamos a tarde visitando o centro histórico de Puerto Montt com destaque para o antigo colégio dos Jesuítas.

No fim da tarde retornamos a Puerto Varas e deixamos tudo pronto para, no dia seguinte cedo, começar o caminho de volta a Santiago. Dessa vez a primeira parada para pernoite foi em Vila Rica. Do outro lado do lago erguia-se majestoso o vulcão do mesmo nome expelindo a sua fumacinha que se desfazia entre as nuvens e no crepúsculo do entardecer. Sendo verão a neve cobria apenas os flancos mais altos da montanha. Passamos a noite numa hospedaria bem simples e frugal para na manhã do dia seguinte subirmos de carro até a altura permitida pela regulamentação para visita de turistas. Desembarcamos do carro e caminhamos pelas redondezas. Uma sensação estranha toma conta da gente ao observar o conjunto e os detalhes daquele cenário telúrico. A montanha gigante subindo até as nuvens, os restos de neve brilhando no sol da manhã de verão, os flancos mais baixos retalhados pelas torrentes de água do degelo da primavera, a vegetação rasteira na meia encosta e a floresta nos vales da base se parecem como tropas de assalto tentando conquistar as encostas do gigante. Refletindo tranquilamente e sem preconceitos, pondo de lado a racionalidade científica, a racionalidade filosófica e teológica, ou qualquer outra racionalidade que se possa imaginar, o faro da intuição leva à convicção que a história desse cenário tem um autor responsável pela sua gênese e sua moldagem. Parece que o divino perpassa esse cenário de parar o fôlego, que alguém mora na penumbra da floresta do sopé e vegetação das encostas recortadas pelas torrentes de água do degelo e alguém vigia no topo daquele gigante. Pouco me importa se algum geólogo que por ventura ler essa reflexão torcer o nariz e me classificar como um romântico alienado metido a poeta. Ainda hoje, passados mais de 20 anos, ao se falar do Chile, as duas imagens que se destacam de outras na minha memória, são o vulcão Osorno inativo vestido de neve no topo e o Villa Rica expelindo aquela fumacinha emblemática que, quem sabe, seja o prenúncio de uma erupção apocalíptica, ocasionada pelas misteriosas tensões telúricas acumuladas no interior do nosso planeta. Naquele dia à tarde fui me acomodar na beira do lago e por uma hora ou mais, com o Villa Rica no outro e a cordilheira dos Andes como moldura a perder de vista estendendo-se para o sul e o norte, foi a vez de repassar a história mais recente daquele cenário maravilhoso: os povos nativos e as lendas por eles cultivadas, o encontro com os primeiros europeus e, finalmente o povoamento sistemático por imigrantes alemães a partir de meados do século XIX. Não é aqui o lugar de alongar-me nos detalhes dessa história, remeto-os para a matéria publicada no meu livro “Duzentos Anos da Imigração Alemã no Brasil, no qual dediquei dois capítulos à “Presença Alemã na América Latina” com destaque para o Chile, Argentina e Brasil.

Na amanhã seguinte retomamos a viagem de volta a Santiago. Não muitos quilômetros para o norte seguindo pela Pan Americana, entramos à esquerda na estrada que termina na cidade Valdívia, também apelidada de a São Leopoldo do Chile, tanto pelo que representou pela presença dos colonizadores alemães, quanto pela configuração geográfica cortada por um rio à semelhança do rio dos Sinos. Antes de entrar na cidade ergue-se uma torre de considerável altura que serviu como posto de controle para vigiar o acesso à cidade. Percorremos o centro da cidade e foi possível identificar no estilo arquitetônico a preocupação maior dos habitantes com os frequentes terremotos de maior ou menor intensidade. O mais catastrófico veio a ser aquele de 22 de maio de 1960 de 9,5 na escala de Richter, reduzindo a cidade em grande parte a escombros e um saldo de 1655 mortos. Na reconstrução da catedral os engenheiros planejaram a armação do telhado todo de vigas e caibros de madeira, de tal forma que permitem um jogo de locomoção que pelo menos diminui o risco de desabamento em sismos de menor intensidade do que foi o de 1960. Sem forro esse engenhoso arcabouço do telhado pode ser apreciado pelos que frequentam ou visitam a catedral. Ao longo do rio alinham-se dezenas de bancas com frutas produzidas na região: maçãs, peras, abacates, amoras, cerejas, uvas e por aí vai.

Pela meia tarde seguimos viagem até Temuco onde pernoitamos. Essa cidade situa-se historicamente no limite entre o Chile do centro norte e o sul, conhecido como “La Frontera”. Conforme informam os historiadores Timuco oferecia atendimento odontológico para toda região da “Frontera” e os Argentinos do sul do país atravessavam os Andes para tratar os dentes. De resto a cidade não oferece maiores surpresas além do belo parque no centro e alguns prédios que caem em vista pela sua esmerada arquitetura.

Depois de duas noites e um dia em Temuco reunimos nossos pertences e enfrentamos o último trecho até Santiago, sempre pela Pan Americana. Pela meia tarde, recolhemo-nos no nosso hotel no centro da capital depois de acertar a devolução do carro na locadora. Sobrando ainda um bom tempo até anoitecer decidimos dar uma volta no centro passando pela praça com destaque para o palácio do governo e um pouco mais adiante a catedral.

Para o dia seguinte o Antônio planejou uma vista à histórica cidade de Valparaiso. Alugamos um taxi e assim foi bem mais fácil apreciar aquela paisagem única pela qual passa a estrada que termina na cidade que marcou época por várias razões. Na planície, principalmente à esquerda, tomada pelos vinhedos disciplinadamente alinhadas ao perder de vista. Uma visão emblemática que a mão ou intervenção do homem ao cultivar a terra com amor e racionalidade consegue somar o belo que encanta, à utilidade pragmática. No lado direito as montanhas de entulho nas saídas das galerias de mineração falam a linguagem eloquente que os recursos minerais, como o cobre no caso, chamam a atenção para os milhões de milênios necessários para preparar as matérias primas de que se alimenta, melhor tornou e continua tornando possível e viável o motor que impulsiona a sustentabilidade da civilização do século XXI. Pela meia manhã entramos na cidade de Valparaíso acomodada na encosta de uma baía encantadora. Não por nada o poeta dos poetas chilenos Pablo Neruda a escolheu para, contemplar o oceano, lá longe confundindo-se com o horizonte e dar vasão ao mundo poético que lhe valeu o Prêmio Nobel de literatura. Lembro com emoção o filme: “O Poeta e o Carteiro, inspirado na sua obra. Volto a Pablo Neruda mais abaixo. Em Valparaíso morava um filósofo amigo do Antônio, Sérgio Rojas se não me falha a memória. Fomos recebidos pela esposa pois, o Sérgio se encontrava de viagem em Paris. Almoçamos no restaurante simples e frugal acomodado num recinto da própria casa no qual a dona da casa oferecia almoço para pessoas vizinhas e com isso reforçava um pouco a renda da família. Depois do almoço percorremos a parte alta da cidade e visitamos a casa em que morou Pablo Neruda transformada em museu que preserva a memória do poeta. Construída num estilo peculiar no alto do morro Flórida por Sebstián Callado, permite uma vista de toda a cidade com o porto e seus prédios anexos e para além da baía sobre o oceano. Certamente uma localização ideal para um poeta dar asas a imaginação e alimentar a inspiração. Não foi permitido tirar fotografias. Chamou- me atenção especial o quarto de dormir do poeta com a cama e os móveis arrumados e no chão na cabeceira um par de pantufas e anexo o escritório de janelas amplas voltadas para o oceano. Para encerrar visitamos o porto com suas instalações. Valparaiso e San Antonio são os dois portos mais movimentados do Chile. Deixemos de lado San Antonio e fiquemos com o primeiro. Durante mais de 300 anos somado a San Antonio e outros portos menores ao longo da costa do Chile, partiam navios e recebiam outros tantos trocando mercadorias alimentando o comércio e o desenvolvimento do país. Como era praxe navios sem mercadorias para fornecer ao Chile, aportavam em seus portos transportando como lastro matérias primas como madeiras e outras mais. O porto de Valparaíso costumava receber muitos navios mercantes vindos da Califórniacarregados de madeira, com predominância absoluta do “red wod”, “a madeira vermelha”, uma espécie de sequoia abundante nos vales e encostas do norte da Califórnia. Móveis, pisos, estruturas de telhados, portais, etc., mais antigos foram confeccionados com essa madeira. Pela meia tarde o taxi alugado nos levou de volta até Santiago por uma estrada mais ao sul da percorrida de manhã na ida.

Reservamos o último dia para conhecer o morro de San Cristobal o terceiro mais alto da cidade com 800 metros do nível do mar e 300 acima da cidade. Na subida passa-se por uma série de curiosidades arquitetônicas e do seu topo desfruta-se uma vista panorâmica magnífica sobre a capital. À tarde foi a vez de fazer uma visita ao acervo da prêmio Nobel em Literatura Gabriela Mistral na Biblioteca Central. Sobrou ainda tempo para visitar a agência de modelos “Elite”, para a qual nossa filha Ingrid, na época residente em São Paulo, executou programações no Chile. À noite acertamos as contas com o hotel e na manhã seguinte partimos do aeroporto de Santiago para Porto Alegre. Com um céu sem nuvens foi possível apreciar do alto o belo grandioso dos Andes deslizando sob as asas do 767 da VARIG. Em Porto Alegre esperava-nos o nosso vizinho Aloísio Stein e pelo meio dia estávamos de volta em casa no nosso refúgio no bairro Campestre em São Leopoldo, esperando por mais viagens internacionais, todas para a Europa.