Depois do almoço descemos pela margem direita do Mosela para terminar em Koblenz onde este rio desemboca no Reno no “Deutscher Eck”. Aliás a origem de Koblenz deve-se ao encontro dos dois rios que os romanos chamavam de “Confluentia”. Descer pelo vale do Mosela desperta no forasteiro um turbilhão de sentimentos difícil de identificar e dimensionar. Ora são os vinhedos que sobem as encostas da margem esquerda e datam do tempo dos romanos e os vinhos nobres do Mosela, o “Moselwein”, apreciados pelo mundo inteiro pela sua qualidade; ora são as aldeias e pequenas cidades que convidam para uma parada e uma reflexão; ora são os personagens e tipos humanos moldados naquele contexto rico em história. Só para lembrar. O emigrantes e seus descendentes que se fixaram no sul do Brasil, originários daquele vale emblemático, costumavam ser conhecidos e identificados como “moselanos”. Dos mais conhecidos lembro o nome de Aloys Friedrichs, nascido em Merl, imigrado para Porto Alegre onde se notabilizou ao fundar o “Turnerbund” ou Federação dos Ginastas, hoje SOGIPA. Mas o nome mais eminente do Mosela vem a ser o cardeal Nicolau de Cusa nascido em 1401 em Bernkastel Kues. Foi nomeado cardeal e passou a sua vida exercendo diversos cargos na cúria romana. Veio a ser nomeado bispo de Brixen, hoje Bressanone no Tirol do Sul, norte da Itália. Conquistou fama pelas sua obras filosófico- teológicas com destaque para o livro “Douta Ignorantia”. Consta dele a compreensão da natureza mais do que nunca válida ainda hoje ao afirmar que “ex partibus omnibus ellucet totum”, mal traduzido quer dizer “o todo manifesta-se pelas suas muitas partes”. Nicolau de Cusa é considerado como um dos filósofo mais importantes na transição da Idade Média para a Renascença. Com sua visão do mundo na sua essência, ainda válida hoje, definiu as três formas do saber: os sentidos, a razão e o intelecto. No seu entender o intelecto está acima da razão e dos sentidos. Pelo intelecto iluminado pelo “todo” como objeto chega-se ao “uno” que vem a ser Deus. Nicolau de Cusa fundou em Bernkastel Kues um asilo para idosos até hoje em funcionamento e no qual se encontra preservado seu acervo filosófico-teológico. Uma curiosidade histórica relativa à Fundação merece ser lembrada. Os alvos dos bombardeios durante a segunda guerra mundial, sob o comando do marechal da RAF Arthur Harris programara o bombardeio da ponte sobre o Mosela em Bernkastel Kues. Se executado não tinha como não atingir severamente a fundação acima mencionada. A ponte foi poupada por uma manobra de subalternos de Harris e assim a cidade e o monumento histórico mais significativo do Mosela ficou intacto e recebe milhares de visitantes por ano de países até fora da Europa, principalmente idosos
Para o dia seguinte programamos uma visita para as aldeias Hahn, Peterswald e Löffelscheid, região do Hunsrück donde emigrou meu tris avô Mathias Rambo em 1829. A aldeia, melhor talvez cidadezinha Hahn tornou-se conhecida depois da segunda guerra mundial. Por sua localização estratégica somada à topografia os americanos instalaram nas suas imediações uma gigantesca base aérea militar, hoje transformada em aeroporto subsidiário ao de Frankfurt. Nas proximidades do aeroporto passamos por enormes galpões ainda abarrotados de munições não utilizadas com o fim da guerra. A primeira parada foi em Peterswald. Na lista de endereços do Pe. Mallmann constavam dois com o sobrenome Rambo. No primeiro não havia ninguém em casa. No segundo fomos recebidos pelos sr. Herrmann Rambo e sua esposa pelas 10h da manhã. Consciente da desconfiança em relação a visitas de parentes longínquos, principalmente do Brasil, fiz saber logo que estávamos apenas querendo conhecer o lugar donde meus antepassados emigraram para o Brasil e não se preocupassem com o almoço pois, que iríamos passar por Löffelscheid e depois descer até o Mosela encontrar uma filha do Michel que trabalhava na Fundação Kues à qual já me referi mais acima. Por nossa surpresa convidou-nos para entrar, tomar um refrigerante e tivemos uma hora de boa conversa com o Herrmann e sua esposa. Eles não guardavam a mínima memória dos parentes longínquos emigrados para o Brasil e a América do Norte. Cabe aqui lembrar que o irmão do meu trisavô a Mathias migrou para a América do Norte e na sua descendência destaca-se o engenheiro químico Arthur John Rambo integrando a elite dos boinas verdes que lutaram no Vietnã e lá veio a morrer durante o conflito durante uma emboscada e inspirou a série “Rambo”, referência dos heróis americanos caídos naquele conflito.
Descemos depois até o Mosela onde almoçamos para depois seguir até Boppart onde admiramos as ruinas preservadas do tempo dos romanos. Pela meia tarde subimos o planalto até nossa pousada em Emmelshausen. Na manhã seguinte, último dia no Hunsrück, chão em que se encontram as raízes remotas de todos os “Rambos” do sul do Brasil, vistamos o museu histórico regional. O Michel, um grande entusiasta do museu fez questão de nos mostrar a cultura material da história da região aí preservada: utensílios e instrumentos agrícolas, artigos domésticos, indumentária, mobília etc. No fim da manhã passamos na papelaria para buscar a caneta Mont Blanc encomendada dias antes, passar numa farmácia, propriedade de uma coreana que falava perfeitamente o alemão. Depois do meio dia o Michel nos levou até a agência de viagem a fim de programar o roteiro a ser cumprido entre Koblenz e Milão, Bergamo, Cremona e Trevísio, terra dos antepassados da Inez. Depois de tudo planejado passamos na agência da Avis que nos alugara o carro para o acerto de contas. E, assim, a visita à terra dos meus antepassados, o Hunsrück, estava concluída. Voltamos ao nosso alojamento para reunir nossos pertences e na manhã seguinte descer de ônibus até Koblenz onde embarcaríamos no trem para Milão. Depois acertadas as contas e um bom papo com o nosso hospedeiro Stoffel, comerciante de vinhos, fomos dormir a última noite em Emmelshausen. Para a noite seguinte esperava-nos o hotel Arli em Bergamo.
Na manhã seguinte ao clarear o dia embarcamos no ônibus que nos levaria até Koblenz. Uma onda de frio precoce vinda do norte fez com que a espera do embarque fosse bem desagradável. A partida do trem em Koblenz a Milão fora marcada para as 10h. Aconteceu então uma eventualidade por assim dizer inominável na Alemanha. Fomos avisados que o trem chegaria com uma hora de atraso. As reclamações tomaram conta da plataforma de embarque. Soubemos então que alguém se tinha jogado nos trilhos do trem entre Bonn e Koblenz. Pontualmente depois de uma hora o trem entrou na estação e embarcamos. No decorrer da viagem foi compensando o atraso e desembarcamos em Milão no horário previsto.
Seguindo pela margem esquerda do Reno para o sul a viagem nos permitiu apreciar o cenário marcado por inúmeras reminiscências de profundo significado de uma história que se perde nas brumas do tempo de mais de 5.000 anos passados. Os dados históricos dão conta que uma poderosa floresta cobria o centro norte da Europa entre o Báltico e os Alpes e entre o mar do norte e as estepes da Rússia. Desde a remota pré-história os povos germânicos viveram e consolidaram suas tradições naquelas florestas. Entre os muitos gigantes de folhas caducas e perenes: tílias, álamos, abetos plátanos, Nogueiras e o carvalho que pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra dos carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, resolviam-se os problemas internos das comunidades. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os povos germânicos que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor e, em massa, converteram- se ao cristianismo.
Na primeira parte da viagem, Koblenz a Constança, o trem percorreu a linha de fronteira entre o antigo Império Romano e os territórios dominados pelos povos germânicos. Logo no começo do século I depois de Cristo, mais exatamente no ano 9, o poder de conquista dos romanos teve o seu avanço sobre a margem direita do Reno, definitivamente sustado com a derrota na batalha da floresta de Teutoburgo. As legiões romanas sob o comando de Varo foram destroçadas pelos guerreiros germânicos de Armínio. A história de vida do vencedor merece um breve comentário. Nasceu como príncipe na tribo dos Cherusci ou Cheruscos uma tribo germânica que dominava parte das florestas nas planícies do noroeste da Alemanha. Como criança foi sequestrado pelos romanos e educado como romano, sendo como jovem incorporado no exército onde conseguiu subir na hierarquia até o posto de tribuno. Revoltado com o tratamento dos romanos dado aos Cheruscos, arregimentou-os e atraiu Varo com três legiões para o terreno acidentado e coberta de um floresta hostil em Teutoburgo, familiar aos seus guerreiros. Depois de derrotar Varo com suas legiões o limite entre o Império Romano e a Germânia foi acertado como sendo o Reno. Acontece que há dois ou mais séculos fermentava em toda Germânia uma inquietude crescente que terminaria desencadeando as migrações dos povos entre século IV e IX redesenhando não só geograficamente a Europa, como principalmente o perfil cultural e étnico com a “romanização” da “germanidade” e vice versa a “germanização” da “romanidade”, somada à “cristianização” de ambas e implicitamente também a “helenização” da romanidade e cristandade e vice-versa. Em outras palavras neste contexto gestaram-se e consolidaram-se em linhas gerais os fundamentos da Cultura Ocidental.
A primeira onda das migrações dos povos germânicos a que nos referimos acima foi protagonizada ainda no primeiro século antes de Cristo, pelos Cimbros e Teutões. Procedentes da Jutlândia (atual Dinamarca) terminaram ocupando boa parte do norte da Itália. As guerras dos invasores contra a República Romana estenderam-se de 113 a 101 AC. Com a derrota tanto dos Cimbros quanto dos Teutões terminaram por fixar-se nos vales das encostas sul dos Alpes.
A segunda onda de migrações dos povos germânicos teve início em meados do século IV e prolongou-se até o século IX DC. Como aqui não é o lugar para entrar em detalhes dessa história de quase um milênio, limito-me a resumir em linhas muito gerais o significado histórico da viagem de trem de Koblenz a Milão. Acima já lembrei que o Reno fora fixado informalmente como sendo o limite entre o Império Romano e os povos germânicos, donos do restante da Europa Central e do Norte, estendendo-se até as estepes da Rússia. De alguma forma o trem percorreu o epicentro do encontro do mundo germânico com mundo romano. Resumindo. Os povos de maior importância que cruzaram aquela fronteira foram de norte ao sul os Anglos e Saxões que mais ao norte invadiram a Inglaterra, os Francos o norte da França, os Borgúndios o centro sul da França, os Vândalos passaram pela França, Espanha, atravessaram o Mediterrâneo fundando um império no norte da África, os Suevos passaram pela França, Espanha até as fronteiras com Portugal, os Alamanos fixaram-se na região do norte dos Alpes, os Visigodos vindos do leste passaram pelo norte da Itália, chegaram até Roma, continuaram pelo sul da França e terminaram na Espanha. Os Ostrogofos desceram até Constantinopla e Grécia. Um fator de grande importância nessa movimentação toda foi a invasão dos Hunos. Comandados por Átila saíram da Ásia central, cruzaram as planícies da Rússia para, finalmente, serem barrados na batalha dos Campos Catalâunicos, na atual França. Tive uma satisfação enorme em vivenciar essa parte da história tão importante para entender a alma da Cultura Ocidental, que, mais tarde moldaria de alguma forma, a fisionomia humana das três Américas, do sul da África, da Austrália, Nova Zelândia e outras regiões pelo mundo afora.