Da Enxada à Cátedra [ 84 ]

Uns 30 quilômetros ao sul de Koblenz deu para apreciar de passagem numa curva fechada do Reno o emblemático rochedo da Lorelei com seu castelo medieval no alto, com suas lendas inspiradoras de poetas. Um pouco mais para o sul predominando uma combinação de uma beleza rara, vinhedos com florestas secundárias.

A partir de Constança o trem avança gradativamente Alpes adentro. Na medida que a viagem progride os vales tornam-se mais estreitos entre as montanhas cada vez mais altas. A minha paixão pela geologia levou-me logicamente à pergunta pela gênese geomorfológica daquele gigantesco e magnífico complexo de montanhas. Foi preciso recuar cerca de 44 milhões de anos para entender como se moldou aquele cenário e seus contrapontos nos Andes e no Himalaia. Chamo a atenção que estou falando em dezenas de milhões de anos. Tenho consciência que essa perspectiva cronológica cause dificuldades em não poucos intelectuais titulados nas mais diversas especializações das Ciências Humanas assim como também em outras áreas de viés mais tecnológico. O processo de levantamento começou com o encontro da placa tectônica móvel da África com a placa Euroasiática fixa. Essa colisão fez com que as bordas das placas fossem empurradas lentamente para cima até altitudes que no Mont Blanc, a maior chega a 4.809 metros e no Materhorn o segundo pico mais alto com 4.478 metros. Acontece que na medida em que os dobramentos para o alto foram subindo cada vez mais, as camadas e formações geológicas mais antigas foram sendo empurradas até um ponto em que se dobraram sobre as mais recentes, sepultando-as lentamente. O resultado foi que a parte mais alta das montanhas vem a ser formada por camadas geológicas mais antigas. Como já lembrei mais acima esse processo se prolongou por milhões de anos e resultou no que se pode considerar o esqueleto original daquele complexo de montanhas.

O perfil físico geográfico definitivo dos Alpes foi moldado pelas glaciações dos últimos 600.000 anos. Cada período glacial durou em torno de 100.000 anos intercalado por um interglacial de cerca de 10.000 anos. Atualmente encontramo-nos num desses períodos interglaciais com a temperatura média anual 8 a 10 graus C acima da temperatura média das glaciações. A espessura da neve acumulada durante os períodos glaciais chegava a 2.500 metros. Lentamente esse gigantesco volume de neve e gelo descia a encosta das montanhas terminando em geleiras semelhantes a caudais de centenas de metros de espessura, que se movimentavam lentamente em direção à saída dos vales. Essa movimentação da neve e do gelo foi cinzelando as encostas das montanhas arrancando e carregando volumes incalculáveis de fragmentos de todos os tamanhos, dando origem aos típicos vales e forma de U. No degelo que ocorreu nos últimos 10.000 anos com a elevação da temperatura média da terra, os escolhos chamadas tecnicamente de morainas foram-se acumulando nas frentes do degelo. Resultaram daí arroios de montanha, rios e lagos, alguns deles de dimensões fora do comum como lago de Como, da Garda, Lugano e dezenas de menores. Na medida em que o degelo avançava a vegetação foi tomando conta das encostas e dos vales. Florestas de coníferas e espécies com folhas decíduas dominaram o fundo e a encosta das montanhas, espécies de menor porte, gramíneas, musgos e líquenes até o limite da neve eterna e nos penhascos, muitos deles inacessíveis onde floresce o Edelweiss, flor símbolo da Suíça e a rosa dos Alpes – “Alpenrose”. Não se pode esquecer que esse cenário maravilhoso atraísse muitas espécies de animais de todas as categorias taxonômicas. Pelo simbolismo destaco a cabra montês que se equilibra nos lugares mais impossíveis daqueles penhascos e a águia dos Alpes – o “Lemmergeier”, planando de uma montanha para outra pronta para surpreender algum cabrito distraído.

Pois, foi esse o cenário ou, se preferirmos, o “jardim” moldado pelo Criador para que o homem o cultivasse e o aperfeiçoasse para uma “casa”, na qual se sentisse “Em casa” – “zu Hause. Naqueles espaços, lugares e caminhos moldou-se uma estirpe humana única, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais, despertando os potenciais do humano no homem. Mais acima já lembramos como esse complexo de montanhas foi recebendo os povos que formaram a base da federação Suíça, o norte da Itália, o Tirol do Norte e do Sul, Lichtenstein, a Áustria, o sul da Baviera e leste da França. Aníbal Barca foi o primeiro a cruzar os Alpes com seu exército, cavalos e elefantes em 216 A.C. Como se tratava de uma expedição que visava a invasão do império romano pelo norte, a travessia não resultou na fixação de povoados naqueles vales e montanhas. Um século depois os Cimbros e Teutões, povos emigrados da Jutlândia, hoje Dinamarca, cruzaram os Alpes e foram barrados pelos romanos no norte da Itália e forçados a se refugiarem e fixarem nos vales alpinos do norte da Itália, onde ainda hoje podem ser encontrados vestígios da língua e costumes dos cimbros em aldeias isoladas nos vales. Finalmente o complexo dos Alpes foi definitivamente povoado com a migração dos povos germânicos entre o século IV e IX DC. Mas, em grandes linhas, o panorama daquele período já foi lembrado mais acima.

Sob o aspecto biogeográfico não deixa de cair em vista o perfil e localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural acrescentando um elemento a mais na estética da paisagem em vez de agredi-la. O mesmo se pode afirmar dos lugares, espaços e caminhos nos quais circulam e se comunicam as pessoas. Esse conjunto de acréscimos à estética natural da paisagem servem de exemplo como a simbiose entre a natureza cultivada pelo homem resulta numa sensação de “estar em casa” – um “zu Hause”. Uma paisagem humanizada dessas oferece modalidades sem fim de inspirações para manifestações artísticas para poetas, literatos, cantores, somados aos próprios instrumentos originados das características daquele panorama. Para não me alongar demais chamo a atenção ao emblemático “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes”. Mas, numa compreensão histórico-cultural o conceito “Trompa os Alpes” define, sem dúvida, melhor o significado de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas rebatidas pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com nossos equipamentos eletrônicos, para expressar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem entre aqueles que o escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira, empregando técnicas as mais modernas e avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha.

Não é por nada que uma paisagem dessas inspirou e continua inspirando poetas, cantores, romancistas, contadores de histórias de fadas, escultores em madeira e outros mais. Sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” – “Ave Maria der Berge”, cantada ou executada por conjuntos e instrumentos em sintonia com vozes masculinas e ou femininas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montnara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, Tirol do Sul, norte da Itália. Como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – lá longe ecoa uma cascata – os verdes pinheiros filtram os prateados raios de luz – uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi sempre uma marca do homem e das comunidades alpinas, testemunhada pelos emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão e artista moldado nessas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottsschnitzler”, mal traduzido o “Escultor de Deus”. Poderíamos descrever milhares de outras paisagens humanizadas de beleza indiscutível. Ao avalia-las não cabe fazer comparações pois, cada qual é única na sua moldagem num ambiente geográfico também único que nunca se repete e, por isso mesmo, ecoa na alma de uma forma singular. A natureza como “casa” da humanidade oferece infinitas modalidades concretas de como acontece a simbiose entre a alma e sua “mãe e pátria”. E, para que esse acontecer não passe por desvios e traumas é preciso que “a casa” ofereça as condições indispensáveis para poder ser chamada de “Lar”, “Querência”, “Heim” além de outras modalidades como as muitas culturas conceituam “O Bem Morar”. Holger Zaborowski resumiu em poucas linhas a multiplicidade e complexidade dos fatores que entram em cena ao tentarmos entender toda a dimensão e profundidade o significada do conceito do “bem morar” para o homem.

Independente das diferenças que nos separam, moramos numa complexa rede de espaços e compartimentos que vão do porão ao telhado, do jardim ao terraço da cozinha, da sala de estar à das refeições, dos quartos de dormir ao banheiro. Moramos também em espaços mais amplos: nas ruas e quarteirões da cidade, nas aldeias e cidades, nos países e continentes. De alguma forma moramos em todos esses espaços. Moramos de alguma maneira em todos eles mesmo que na prática ocupem um espaço à margem do dia. Acontece que no morar, tendo como pano de fundo esse panorama, realizamos as inúmeras potencialidades da nossa condição de humanos. Em resumo, foram esses os pensamentos e reflexões que povoaram a minha mente e imaginação nas horas em que o trem passando pelo lago e cidade de Lugano nos levou pela meia tarde até a fronteira da Suíça com a Itália e por fim até Milão.

De Milão embarcamos no trem regional para ao entardecer desembarcar em Bérgamo onde encontramos vaga para três dias no hotel Arli. No dia seguinte viajamos de trem até a estação central de Verona onde embarcamos no ramal regional até Cremona, local donde emigrou o avô materno da Inez para o sul do Brasil. Um taxi nos levou até Benemerse paróquia mais para o interior, localidade de nascimento dos Grandi, lado materno da Inez. Caminhamos por uma hora ou pouco mais para interior agrícola, visitamos o cemitério onde pude identificar alguns sobrenomes correntes nas colônias italianas no Rio Grande do Sul. Por fim tivemos um encontro com o pároco que nos mostrou a bela igreja com sua torre típica daquela região da Itália. A pia batismal e o carimbo da paróquia continuam sendo os mesmos do tempo dos emigrantes para o Brasil nas últimas décadas do século XIX. Pelo fim da tarde embarcamos no trem de volta para o pernoite em Bergamo.

Na manhã seguinte embarcamos novamente no trem e seguimos até Verona e de lá até Trevisio, região donde os avós paternos da Inez emigraram para o Brasil pelo final da década de 1870. Depois de caminhar pelas ruas da simpática cidade, resolvemos entrar numa mercearia de bom tamanho a fim de pedirmos orientação de como chegar a Gagliarine, 12 quilômetros para fora da cidade, local exato da procedência dos ancestrais do lado paterno da Inez. Caíram em vista os muitos tipos e tamanhos de queijos e, pendurados nos barrotes, dezenas de pernis de porco defumados. Depois de nos apresentarmos ao dono estabelecimento e identificar-nos como descendentes de alemães e italianos no sul do Brasil em visita aos locais na Alemanha e Itália donde emigraram nossos antepassados, a Inez perguntou se ele conhecia alguém de sobrenome Presotto. Com um sorriso meio maroto apontou um senhor de meia idade que atendia num café anexo à mercearia com a observação “aquele lá no balcão é um”. Fomos até ele e nos apresentamos. A recepção foi mais ou menos a mesma que eu tive com meus parentes na Alemanha. Ele simplesmente nos ignorou e nem um cafezinho nos ofereceu. Fomos almoçar num restaurante e depois do meio dia alugamos um taxi que nos levou até Gagliarine 12 quilômetros fora da cidade. Com a lição aprendida não procuramos parentes de segunda ou terceira geração da Inez. Visitamos o cemitério com os túmulos e jazigos de não poucos falecidos com o sobrenome comum entre os descendentes de italianos no sul do Brasil. De volta a Trevísio embarcamos no trem de volta a Bergamo. O primeiro compromisso do dia seguinte, 11 de setembro de 2001, foi a ida à agência de turismo para ver a possibilidade e uma viagem de trem até Roma. Enquanto conversávamos com o atendente assistimos pela televisão da agência, em tempo real, o impacto do segundo avião nas torres gêmeas de Nova York. Depois disso o agente nos desaconselhou viajar a Roma via Milão pois, o serviço de inteligência tinha localizado naquela cidade um núcleo terrorista ligado aos atentados nos Estados Unidos. Como a nossa reserva no hotel expirava no dia seguinte acertamos os detalhes para o retorno de trem a Frankfurt e de lá voltarmos para casa em São Leopoldo.

Mais tarde faríamos mais quatro viagens para o norte da Itália. A primeira a Vataro nas montanhas de Trento, outra novamente a Bergamo, a terceira a Bozzano e a última a Verona. Para evitar ser redundante passo a fazer algumas reflexões sobre aquele cenário geomorfológico e histórico das planícies e encostas do sul dos Alpes. Mais acima já lembrei como entre os séculos VI e IX aquela região, a Lombardia e o Vêneto foram o cenário de embates entre os romanos e os bárbaros, principalmente Visigodos no Veneto e Longobardos na Lombardia. Esta região foi palco de uma história movimentada como poucas na Europa, muito parecida com a da fronteira da Alemanha, da França e os Países Baixos, lembrados mais acima. As tropas de Napoleão devastaram a região no começo do século XIX movidas pela orgia do grande Corso em ampliar sempre mais seu império. Até a unificação da Itália toda a região ficou sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Depois da Primeira Guerra Mundial, com a fragmentação do Império Austro-Húngaro, o Tirol do Sul passou para o domínio da Itália. Um outro detalhe que não pode ser esquecido refere-se à participação da Força Expedicionária Brasileira nos combates de Caimore, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, Fornovo e o cemitério de Pistoia dos pracinhas caídos na guerra.

Encerrada a programação no norte da Itália embarcamos no dia 13 de setembro no trem em Milão para Frankfurt pelo mesmo percurso da ida. Pernoitamos no hotel Astron I perto do aeroporto e no dia seguinte tomamos contato com as redondezas e a movimentação no aeroporto, para às 22h embarcar de volta para casa. O que mais caiu em vista no aeroporto foi a presença de dezenas de policiais levando cães amestrados e empunhando metralhadoras de mão. Fazia parte das precauções indispensáveis devido aos atentados em Nova York pois, havia informações que o grupo terrorista responsável, tinha ramificações também na Alemanha.

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