Viagem ao Chile.
Para fins de janeiro e começos de fevereiro de 1999 com a Inez, minha esposa e nosso vizinho prof. Antônio Sidekum programamos uma viagem ao Chile. No roteiro constava com destaque Santiago, Valparaíso e, mais para o sul, até Puerto Montt, Puerto Arenas, Puerto Varas, Valdivia, Frutillar, Los Angeles, áreas povoadas, a partir de meados do século XIX, predominantemente por imigrantes alemães. Os detalhes da viagem foram sugeridos pelo prof. Sidekum que mantinha relações acadêmicas e de amizade com intelectuais chilenos e providenciou a reserva de um hotel no centro da capital. Num voo noturno da VARIG viajamos a Santiago no dia 30 ou 31 de janeiro. Passamos no dia seguinte conhecendo o centro da cidade e aproveitamos para alugar um carro para viajar os mais de mil quilômetros até Puerto Montt, além de trocar o dinheiro brasileiro pelo chileno. No banco fomos informados que o Real estava sem cotação e não podia ser trocado. Acontece que naqueles dias a paridade da moeda brasileira equiparada ao dólar anos antes, com o Plano Real, fora substituída pela flutuação do câmbio. Teríamos ficado sem dinheiro para enfrentar o aluguel de um carro e seguirmos para o sul. Mas, uma coincidência nos tirou da enrascada. Da minha viagem a Halle na Alemanha no ano anterior haviam sobrado 800 marcos e por uma dessas coincidências os tinha levado para trocar em vez de levar dinheiro brasileiro. Com isso o empasse estava superado.
Alugamos um carro e no dia 3 de fevereiro enfrentamos a viagem de mais 1000 quilômetros para o sul pela rodovia pan-americana em fase de conclusão naquele trajeto pela planície costeira. Sempre tive paixão por montanhas e florestas. Lavei a alma viajando dois dias acompanhando os Andes que subiam até as nuvens a uma distância relativamente pequena. Vale apena refletir um pouco sobre a história da formação dessa cordilheira que acompanha de norte a sul a costa ocidental da América do Sul numa extensão de 8 mil quilômetros e altura máxima no Aconcágua de 6.961 metros. Ao apreciar essa majestosa cordilheira acompanhando pelo leste o trajeto entre Santiago e Puerto Montt, a imaginação recua para 80 milhões de anos passado quando ocorreu a primeira fase da sua formação e 40 Milhões de anos quando se completou o processo de elevação. Resultou da colisão de duas placas tectônicas, a oceânica de Nasca e a Sul Americana. Quem está acostumado a contar o quotidiano em horas, em semanas, em meses e no máximo em anos e a história do homem em séculos e milênios, ao contemplar esse espetáculo grandioso e belo, alinhando-se ao longo da estrada com 349 quilômetros de largura em Antofagasta no norte e em torno de 15 em Puerto Montt, sente dificuldade para imaginar os períodos cronológicos necessários para a moldagem da fisionomia geomorfológica da terra em que surgiu a espécie humana e nela construiu a sua história. Na medida em que avançávamos para o sul desfilavam os cumes e picos mais altos cobertos de neve eterna mesmo no alto do verão. A uma certa altura surgiu no horizonte lá no sul o cume do vulcão Vila Rica expelindo a sua fumacinha emblemática. No fim do primeiro dia entramos na pequena cidade de Los Angeles. Pernoitamos num hotel simples, porém aconchegante. Ao nos apresentarmos na recepção o Antônio lembrou a recepcionista que eu estava de aniversário pois era 3 de fevereiro. O resultado não podia ser melhor. A janta foi por conta da data. Na manhã seguinte pegamos novamente a estrada Pan Americana em direção ao sul cruzando a região colonizada pelos imigrantes alemães como já lembrei mais acima. Aquela paisagem humanizada de acordo com o típico estilo desses imigrantes que lá se estabeleceram a partir de meados do século XIX, mais se parecia como um pedaço da Europa Central ou mesmo no sul do Brasil. Até a vinda dos imigrantes as florestas nas margens do lago de Langhue permaneceram desabitadas pois, os nativos herdaram a lenda que o lago era povoado por espíritos hostis ao homem.
Pela meia tarde entramos em Puerto Mont. Depois de uma volta pela cidade e o porto fomos em busca de um hotel. Não encontramos nenhum com vaga. A saída foi procurar um em Puerto Varas. Tivemos sorte. No hotel “Los Colonos” na margem do lago encontramos hospedagem para quatro dias. A lembrança que mais me impactou foi a cabeça coberta de neve do vulcão inativo Osorno, destacando-se na cordilheira lá para o lado sul. Na manhã seguinte fomos de carro até extremidade sul do lago onde este, passando por cima de blocos de rochas termina formando um rio de bom tamanho. Na margem leste do lago e do rio os contrafortes dos Ande sobem em degraus quase a prumo cobertos de vegetação e até árvores de maior porte agarradas nas fendas das rochas. Almoçamos no restaurante estrategicamente acomodado perto das corredeiras do escoadouro do lago. Depois de caminhar pelas trilhas da redondeza retornamos a Puerto Varas pelo caminho que percorremos na ida. Parecia que estávamos percorrendo alguma região agrícola da Europa, mas uma lhama com seu bebê acomodada num pasto perto de uma igrejinha em estilo europeu nos chamou à realidade. Na volta para a cidade foi a vez de dar um giro passando por um supermercado para depois subirmos até o ponto mais alto onde se ergue uma bela igreja, novamente em estilo europeu. Nela caiu-me em vista uma placa com o nome dos párocos que administraram a freguesia, do primeiro ao último. Nessa relação os nomes, especialmente os mais antigos foram jesuítas alemães, enviados pela província da Ordem da Alemanha para a missão mantida por ela no sul do Chile, como também mantinha missões nas Montanhas Rochosas, no sul do Brasil e na Índia. Ao lado daquela igreja fomos recebidos por uma família de descendentes de alemães. A dona da casa, uma senhora de meia idade e o filho não falavam mais o alemão, mas a avó, uma senhora de seus 80 anos, sim.
O dia seguinte foi reservado para conhecer melhor a cidade portuária de Puerto Montt. A primeira coisa a cair em vista foi um desses imensos navios de cruzeiro ancorado na baía afastado do porto. Mas o que mais interessou e impressionou foi o monumento aos imigrantes erguido na beira do porto. O conjunto expressa como poucos desses monumentos o espírito da saga dos imigrantes vindos da Europa, alemães, italianos, poloneses e outros mais, ao se defrontarem com uma realidade completamente inusitada para um europeu. Afinal lagos e montanhas semelhantes aquelas do sul do Chile existiam também no sul da Alemanha. Entretanto, aquelas florestas quase impenetráveis, envoltas em mistério e com a fama de povoados por espíritos hostis aos povoadores, que deveriam ser enfrentadas, e substituídas por plantações de alimentos e nelas consolidar uma nova “querência”, uma nova “Heimat”. O monumento alusivo mostra um homem com machado na mão apontando para o cenário em que lhe competia construir o futuro para a família e uma nova pátria para filhos e netos. Segue a figura robusta de outro homem com machado na mão, depois a mulher com um bebê nos braços e uma criança de seus três anos segurando o seu vestido. O que mais impressiona são os traços e a postura dessa mulher. Encarando com determinação indomável a realidade à sua frente, parece dizer: “homens abram a primeira clareira, construam o primeiro abrigo eu, da minha parte, darei conta do que me cabe.” Na minha opinião o monumento ao imigrante alemão em São Leopoldo perde em muito no seu simbolismo para aquele de Puerto Montt. Bem mais perto chega o monumento do imigrante italiano em Caxias do Sul.
Depois de conhecer a região portuária da cidade fomos almoçar num restaurante de boa aparência onde nos aguardavam algumas surpresas. Logo na entrada um pano de parede caprichosamente feito à mão com os dizeres. “Unser tägliches Brot gib uns heute” – “O pão nosso de cada dia nos dai hoje!”. Entrando no recinto do restaurante tive a sensação de me encotrar no Orfeu de São Leopoldo. Não me lembro do cardápio mas a disposição das mesas, o fregueses conversando esperando ser atendidos, os serviçais, o cerimonia ao servir os pratos, as decorações, tudo emprestava ao ambiente um clima de familiaridade, como o Orfeu. Passamos a tarde visitando o centro histórico de Puerto Montt com destaque para o antigo colégio dos Jesuítas.
No fim da tarde retornamos a Puerto Varas e deixamos tudo pronto para, no dia seguinte cedo, começar o caminho de volta a Santiago. Dessa vez a primeira parada para pernoite foi em Vila Rica. Do outro lado do lago erguia-se majestoso o vulcão do mesmo nome expelindo a sua fumacinha que se desfazia entre as nuvens e no crepúsculo do entardecer. Sendo verão a neve cobria apenas os flancos mais altos da montanha. Passamos a noite numa hospedaria bem simples e frugal para na manhã do dia seguinte subirmos de carro até a altura permitida pela regulamentação para visita de turistas. Desembarcamos do carro e caminhamos pelas redondezas. Uma sensação estranha toma conta da gente ao observar o conjunto e os detalhes daquele cenário telúrico. A montanha gigante subindo até as nuvens, os restos de neve brilhando no sol da manhã de verão, os flancos mais baixos retalhados pelas torrentes de água do degelo da primavera, a vegetação rasteira na meia encosta e a floresta nos vales da base se parecem como tropas de assalto tentando conquistar as encostas do gigante. Refletindo tranquilamente e sem preconceitos, pondo de lado a racionalidade científica, a racionalidade filosófica e teológica, ou qualquer outra racionalidade que se possa imaginar, o faro da intuição leva à convicção que a história desse cenário tem um autor responsável pela sua gênese e sua moldagem. Parece que o divino perpassa esse cenário de parar o fôlego, que alguém mora na penumbra da floresta do sopé e vegetação das encostas recortadas pelas torrentes de água do degelo e alguém vigia no topo daquele gigante. Pouco me importa se algum geólogo que por ventura ler essa reflexão torcer o nariz e me classificar como um romântico alienado metido a poeta. Ainda hoje, passados mais de 20 anos, ao se falar do Chile, as duas imagens que se destacam de outras na minha memória, são o vulcão Osorno inativo vestido de neve no topo e o Villa Rica expelindo aquela fumacinha emblemática que, quem sabe, seja o prenúncio de uma erupção apocalíptica, ocasionada pelas misteriosas tensões telúricas acumuladas no interior do nosso planeta. Naquele dia à tarde fui me acomodar na beira do lago e por uma hora ou mais, com o Villa Rica no outro e a cordilheira dos Andes como moldura a perder de vista estendendo-se para o sul e o norte, foi a vez de repassar a história mais recente daquele cenário maravilhoso: os povos nativos e as lendas por eles cultivadas, o encontro com os primeiros europeus e, finalmente o povoamento sistemático por imigrantes alemães a partir de meados do século XIX. Não é aqui o lugar de alongar-me nos detalhes dessa história, remeto-os para a matéria publicada no meu livro “Duzentos Anos da Imigração Alemã no Brasil, no qual dediquei dois capítulos à “Presença Alemã na América Latina” com destaque para o Chile, Argentina e Brasil.
Na amanhã seguinte retomamos a viagem de volta a Santiago. Não muitos quilômetros para o norte seguindo pela Pan Americana, entramos à esquerda na estrada que termina na cidade Valdívia, também apelidada de a São Leopoldo do Chile, tanto pelo que representou pela presença dos colonizadores alemães, quanto pela configuração geográfica cortada por um rio à semelhança do rio dos Sinos. Antes de entrar na cidade ergue-se uma torre de considerável altura que serviu como posto de controle para vigiar o acesso à cidade. Percorremos o centro da cidade e foi possível identificar no estilo arquitetônico a preocupação maior dos habitantes com os frequentes terremotos de maior ou menor intensidade. O mais catastrófico veio a ser aquele de 22 de maio de 1960 de 9,5 na escala de Richter, reduzindo a cidade em grande parte a escombros e um saldo de 1655 mortos. Na reconstrução da catedral os engenheiros planejaram a armação do telhado todo de vigas e caibros de madeira, de tal forma que permitem um jogo de locomoção que pelo menos diminui o risco de desabamento em sismos de menor intensidade do que foi o de 1960. Sem forro esse engenhoso arcabouço do telhado pode ser apreciado pelos que frequentam ou visitam a catedral. Ao longo do rio alinham-se dezenas de bancas com frutas produzidas na região: maçãs, peras, abacates, amoras, cerejas, uvas e por aí vai.
Pela meia tarde seguimos viagem até Temuco onde pernoitamos. Essa cidade situa-se historicamente no limite entre o Chile do centro norte e o sul, conhecido como “La Frontera”. Conforme informam os historiadores Timuco oferecia atendimento odontológico para toda região da “Frontera” e os Argentinos do sul do país atravessavam os Andes para tratar os dentes. De resto a cidade não oferece maiores surpresas além do belo parque no centro e alguns prédios que caem em vista pela sua esmerada arquitetura.
Depois de duas noites e um dia em Temuco reunimos nossos pertences e enfrentamos o último trecho até Santiago, sempre pela Pan Americana. Pela meia tarde, recolhemo-nos no nosso hotel no centro da capital depois de acertar a devolução do carro na locadora. Sobrando ainda um bom tempo até anoitecer decidimos dar uma volta no centro passando pela praça com destaque para o palácio do governo e um pouco mais adiante a catedral.
Para o dia seguinte o Antônio planejou uma vista à histórica cidade de Valparaiso. Alugamos um taxi e assim foi bem mais fácil apreciar aquela paisagem única pela qual passa a estrada que termina na cidade que marcou época por várias razões. Na planície, principalmente à esquerda, tomada pelos vinhedos disciplinadamente alinhadas ao perder de vista. Uma visão emblemática que a mão ou intervenção do homem ao cultivar a terra com amor e racionalidade consegue somar o belo que encanta, à utilidade pragmática. No lado direito as montanhas de entulho nas saídas das galerias de mineração falam a linguagem eloquente que os recursos minerais, como o cobre no caso, chamam a atenção para os milhões de milênios necessários para preparar as matérias primas de que se alimenta, melhor tornou e continua tornando possível e viável o motor que impulsiona a sustentabilidade da civilização do século XXI. Pela meia manhã entramos na cidade de Valparaíso acomodada na encosta de uma baía encantadora. Não por nada o poeta dos poetas chilenos Pablo Neruda a escolheu para, contemplar o oceano, lá longe confundindo-se com o horizonte e dar vasão ao mundo poético que lhe valeu o Prêmio Nobel de literatura. Lembro com emoção o filme: “O Poeta e o Carteiro”, inspirado na sua obra. Volto a Pablo Neruda mais abaixo. Em Valparaíso morava um filósofo amigo do Antônio, Sérgio Rojas se não me falha a memória. Fomos recebidos pela esposa pois, o Sérgio se encontrava de viagem em Paris. Almoçamos no restaurante simples e frugal acomodado num recinto da própria casa no qual a dona da casa oferecia almoço para pessoas vizinhas e com isso reforçava um pouco a renda da família. Depois do almoço percorremos a parte alta da cidade e visitamos a casa em que morou Pablo Neruda transformada em museu que preserva a memória do poeta. Construída num estilo peculiar no alto do morro Flórida por Sebstián Callado, permite uma vista de toda a cidade com o porto e seus prédios anexos e para além da baía sobre o oceano. Certamente uma localização ideal para um poeta dar asas a imaginação e alimentar a inspiração. Não foi permitido tirar fotografias. Chamou- me atenção especial o quarto de dormir do poeta com a cama e os móveis arrumados e no chão na cabeceira um par de pantufas e anexo o escritório de janelas amplas voltadas para o oceano. Para encerrar visitamos o porto com suas instalações. Valparaiso e San Antonio são os dois portos mais movimentados do Chile. Deixemos de lado San Antonio e fiquemos com o primeiro. Durante mais de 300 anos somado a San Antonio e outros portos menores ao longo da costa do Chile, partiam navios e recebiam outros tantos trocando mercadorias alimentando o comércio e o desenvolvimento do país. Como era praxe navios sem mercadorias para fornecer ao Chile, aportavam em seus portos transportando como lastro matérias primas como madeiras e outras mais. O porto de Valparaíso costumava receber muitos navios mercantes vindos da Califórniacarregados de madeira, com predominância absoluta do “red wod”, “a madeira vermelha”, uma espécie de sequoia abundante nos vales e encostas do norte da Califórnia. Móveis, pisos, estruturas de telhados, portais, etc., mais antigos foram confeccionados com essa madeira. Pela meia tarde o taxi alugado nos levou de volta até Santiago por uma estrada mais ao sul da percorrida de manhã na ida.
Reservamos o último dia para conhecer o morro de San Cristobal o terceiro mais alto da cidade com 800 metros do nível do mar e 300 acima da cidade. Na subida passa-se por uma série de curiosidades arquitetônicas e do seu topo desfruta-se uma vista panorâmica magnífica sobre a capital. À tarde foi a vez de fazer uma visita ao acervo da prêmio Nobel em Literatura Gabriela Mistral na Biblioteca Central. Sobrou ainda tempo para visitar a agência de modelos “Elite”, para a qual nossa filha Ingrid, na época residente em São Paulo, executou programações no Chile. À noite acertamos as contas com o hotel e na manhã seguinte partimos do aeroporto de Santiago para Porto Alegre. Com um céu sem nuvens foi possível apreciar do alto o belo grandioso dos Andes deslizando sob as asas do 767 da VARIG. Em Porto Alegre esperava-nos o nosso vizinho Aloísio Stein e pelo meio dia estávamos de volta em casa no nosso refúgio no bairro Campestre em São Leopoldo, esperando por mais viagens internacionais, todas para a Europa.