Da Enxada à Cátedra [ 66 ]

Valorização do Vale do Rio dos Sinos. Acontece que as contribuições a serem oferecida pelas Faculdades de São Leopoldo até 1963 não estavam esgotadas com as há pouco lembradas. Durante aquele ano, novamente em sintonia com o Conselho Comunitário do município de São Leopoldo, do prefeito Clodomiro Martins, da Câmara de Vereadores, do engajamento da Associação Comercial e Industrial, da Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos, a Faculdade de Ciências Econômicas assumiu e liderou um audacioso projeto de “Valorização do Vale do Rio dos Sinos. Em ressumo tratava-se de um “Projeto de Desenvolvimento Regional e de Promoção Humana”. A primeira etapa consistiu em proceder a um diagnóstico da situação geográfica e sócio econômica, destacando as potencialidades da região, os problemas acumulados por uma história de 150 anos e as iniciativas a serem tomadas e postas em prática a fim de evitar um desenvolvimento errático da região. Só para chamar a atenção. Uma situação em linhas gerais idêntica à bacia do Sinos podia ser estendida para as demais bacias do Gravataí, Caí, Taquari, Pardo e Jacuí, todos confluindo para formar o lago Guaíba. O Projeto de valorização regional, objeto dessa parte das minhas memórias, ajustado às peculiaridades de cada uma das bacias mencionadas, poderia servir de protótipo para todas. Aliás iniciativas nesse sentido foram tentadas uma década mais tarde para o Caí e o Taquari não passando, porém, de esboços que não foram levados em frente. Depois dessa observação voltemos ao projeto da bacia do Sinos.

Guardo como uma preciosidade a cópia do texto original que serviu de base para conquistar o apoio das autoridades locais, estaduais, federais e que motivou a assinatura do convênio de Apoio Técnico” entre o Governo Brasileiro e a RFA (então República Federal da Alemanha).

O primeiro passo de um projeto regional consiste em delimitar a sua abrangência geograficamente. No projeto interessava a bacia fluvial do rio dos Sinos. Com uma superfície de aproximadamente 4.000 quilômetros quadrados, situado no Rio Grande do Sul entre a latitude sul entre os paralelos 29o e 30 min e 29o 56min e entre os meridianos entre os 50o20min e 51o18min latitude oste de Gr. No momento da elaboração do projeto entre 1962 e 1963 a bacia do Sinos contava com 13 municípios formando a Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos. Os municípios surgiram de distritos emancipados de quatro “matrizes” históricas: Santo Antônio da Patrulha, São Leopoldo, Taquara e Canoas.

O clima, tomando a média anual de 19,9oC como base, enquadra-se no conceito de clima subtropical e temperado, com uma média de 25oC no verão e 15oC no inverno. As chuvas são mais ou menos uniformemente distribuídas durante o ano todo. Não se notam diferenças muito acentuadas entre os meses do verão e do inverno, outono e primavera. Observa-se uma boa diferença na média da precipitação entre as três regiões em que o rio dos Sinos pode ser dividida. No alto Rio dos Sinos fica em torno de 2.000 mm, na região média 1.600 e na baixa cerca de 1.00mm.

A densidade demográfica, baseada no recenseamento geral de 1960 apresenta os seguintes números. Nos municípios no Alto Rio dos Sinos: Santo Antônio com 1292 quilômetros quadrados – 54.738 habitantes; Rolante com 415 quilômetros quadrados – 16.381 habitantes; Três Coroas com 163 quilômetros quadrados – 6.041 habitantes; Taquara com 594 quilômetros quadrados – 33.010 habitantes. Total da região: 2.464 quilômetros quadrados – 110.170 habitantes.

Municípios do Médio do Rio dos Sinos. Sapiranga com 190 quilômetros quadrados – 11.984 habitantes; Campo Bom com 56 quilômetros quadrados – 8.541 habitantes; Dois Irmãos com 301 quilômetros quadrados – 11.717 habitantes; Estância Velha com 198 quilômetros quadrados – 11.493 habitantes; Novo Hamburgo 2111 quilômetros quadrados – 53.916 habitantes. Total da região: 956 quilômetros quadrados – 97.653 habitantes. Municípios do Baixo Rio dos Sinos: São Leopoldo com Sapucaia do Sul: 175 quilômetros quadrados – 82.238 habitantes; Esteio: 40 quilômetros quadrados – 22.217 habitantes; Canoas 313 quilômetros quadrados – 104.257 habitantes. Total da região: 528 quilômetros quadrados – 208.712 habitantes.

Total geral da região geopolítica do Vale do Rio dos Sinos: 3.948 quilômetros quadrados – 416.535 habitantes.

Quanto à distribuição da população urbana e rural os números somam: Para o Alto Rio dos Sinos: Urbana 30.993 – Rural 79.177; para o Médio Rio dos Sinos: Urbana 68.373 – Rural 29.280; para o Baixo Rio dos Sinos: Urbana 167.653 – Rural 41.080. À população urbana cabem apenas 35,9%, enquanto a população rural cobre 64,1%.

Outro dado importante cabe à densidade populacional. No Alto Rio dos Sinos correspondem 44,71 habitantes por quilômetro quadrado, no Médio Rio dos Sinos 102,14 e no Baixo Rio dos Sinos 395,29. Esses dados mostram que a densidade populacional média da região fica em 105,5 habitantes por quilômetro quadrado. Percebe-se, portanto, um expressivo adensamento populacional na medida em que a região converge para Porto Alegre com seu complexo industrial em acelerado crescimento, expandindo-se para dentro do vale do Sinos, favorecendo a formação de núcleos e bairros urbanos que reclamavam as devidas providências para enfrentar as enchentes periódicas, o saneamento básico, abastecimento de água, vias de circulação, disciplinamento da instalação de distritos industriais e por aí vai.

Com os dados acima em mãos foi constituído no segundo semestre de 1963 um grupo de trabalho com a tarefa de elaborar um projeto de “Valorização do Vale do Sinos”, nos moldes a ser apresentado às instâncias municipais, estaduais e federais com o objetivo, em primeiro lugar do apoio oficial e, em segundo lugar, buscar suporte técnico e financeiro para executá-lo. Foi nessa fase que entrei de corpo e alma no projeto. Compuseram o grupo de trabalho o Pe. Marcus Bach, diretor da Faculdade de Ciências Econômicas, o coordenador da mesma, Alcides Giehl, o chefe do Departamento de Economia prof. Arthur Rambo, o Prof. Lenine Nequete e o aluno Reinaldo Adams. O grupo contou com a assessoria do sr. Georg Berensen, na época chefe do Escritório da Ferrostal do Brasil em Porto Alegre, empenhada na implantação da Aços Finos Piratini. A colaboração de Berensen foi de fundamental importância na fase da apresentação do Projeto ao Governo da República Federal da Alemanha em busca de financiamento para a realização do empreendimento.

O grupo de estudos constatou de saída que a solução para contornar os problemas causados pelas enchentes implicava envolver o conjunto de desafios envolvidos no desenvolvimento da bacia do rio como um todo. A solução para as cheias, portanto, deveria ser encarado como uma parte de uma situação regional e neste contexto outros aspetos não podiam deixar de fazer parte do Projeto. A “Valorização” deveria necessariamente ser compreendida como um projeto de desenvolvimento regional, tomando em consideração o controle das enchentes, abastecimento de água, saneamento básico, planejamento urbano, localização de distritos industriais, malha rodoviária, florestamento e reflorestamento das encostas, navegação fluvial, modernização da agricultura e animais domésticos, fomento da horticultura e fruticultura, criação de gado leiteiro, implantação de aviários e tantas outras potencialidades viáveis nas variações climáticas locais e características geomorfológicas e edafológicas da região. Ainda em 1963 o projeto foi concluído.

De outra parte, impunha-se obviamente que um projeto dessa natureza não podia ser levado em frente sem o conhecimento e o apoio das autoridades públicas e privadas nele interessadas. Foi preciso expor o projeto para a Associação dos Prefeitos do Vale do Sinos assim como conquistar a parceria de cada legislativo e executivo municipal. Ao mesmo tempo o Projeto foi apresentado aos órgãos públicos estaduais e federais, órgãos de classe, conselhos comunitários sem o apoio dos quais a execução seria inviável. Esse relacionamento entre a Faculdade de Ciências Econômicas e os parceiros que acabamos de mencionar, contou com um poderoso facilitador. Um bom número dos professores da Faculdade eram profissionais ligados a entidades de classe, repartições e órgãos públicos. Assim, por ex., o prof. Ary Burger ocupava a presidência do Banco Regional de Desenvolvimento Econômico, o prof. José Cinel ligado à Associação Comercial de Porto Alegre e outros ainda, além de exercerem profissões liberais, lecionavam na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Universidade Católica de Porto Alegre. Em todas as instâncias o projeto teve um inesperado bom acolhimento. No plano estatual o Governador Ildo Meneguetti pôs à disposição o aparato da burocracia e infraestrutura técnica. No plano federal o apoio foi igualmente favorável. Os resultados dessas múltiplas tramitações nas diversas esferas públicas e privadas acham-se condensadas na ata da Congregação da Faculdade de Ciências Econômicas de 29 de junho de 1963

Neste sentido, por iniciativa da Faculdade, está em estudo um Plano de Retificação do Rio dos Sinos, que deverá ser realizado com a ajuda do Governo Alemão no que se refere ao setor técnico e financeiro que ora se encontra no Itamarati. Este plano terá duas facetas: Uma a retificação do rio dos Sinos. De caráter técnico que será elaborado pelos técnicos alemães; outra socio- antropológico-cultural-econômica em que trabalharão os nossos professores e alunos cujas equipes já estão constituídas. O Projeto já passou pelo Itamarati com parecer favorável e apresentado por Egydio Michaelsen ao Governo alemão e por ele aprovado. Para fevereiro de 1964 está anunciada a chegada de um perito do Governo Alemão para definir a colaboração com a Faculdade de Economia.

Seguiram meses de contatos, entendimentos e acertos como preparação para receber a equipe de técnicos alemães. No ofício 001 de 1964, dirigido ao sr. Valnir Chagas, conselheiro do Conselho Federal de Educação consta o comunicado da aprovação com elogios do Projeto Rio dos Sinos pelo Itamarati e o Governo Alemão, informando também a vinda de um técnico do Governo Alemão em fevereiro de 1964. O técnico anunciado, entretanto, não chegou em fevereiro mas, no mês de julho, como consta no Diário de Notícias, edição de 14 de julho ao noticiar a presença do técnico alemão Leo Büttner, representante do governo daquele país acompanhado pelo engenheiro Rolf Ramm, representando a firma Agrar und Hydrotechnik, especializada em planejamento regional, empresa a ser contratada pelo Governo Alemão para elaborar o projeto definitivo.

Como o mês de julho coincidia com as férias de inverno tanto na UFRGS quanto nas Faculdades de São Leopoldo onde lecionava, assumi a tarefa de acompanhar os dois técnicos nas suas visitas pelo vale do Rio dos Sinos principalmente as prefeituras e tomando contato com a características geomorfológicas, hidrológicas, edafológicas, a realidade agrária, a expansão urbana, as condições e meios de circulação etc. Como base das observações “in loco” os dois técnicos elaborariam seu parecer sobre a viabilidade ou não do projeto apresentado. Um acerto com a Secretaria de Obras Públicas do Estado e a Faculdade de Ciências Econômicas, resultou na disponibilização de uma viatura com motorista para percorrer a região. Naquele mês de julho dediquei-me em tempo integral circulando pela região em companhia dos dois técnicos fazendo o papel de intérprete e guia na visita às prefeituras, a empresas, associações de classe, repartições estaduais e federais. Muito úteis foram também os conhecimentos históricos, a realidade social, além da formação geológica da região que havia estudado a fundo no meu bacharelado em História Natural, já mencionado mais acima. Munidos com os dados colhidos durante o mês de julho, os dois técnicos elaboraram um parecer recomendando que o Governo Alemão assumisse o patrocínio financeiro da sua execução. Este contratou a empresa de planejamento regional Agrar und Hydrotechnik para assumir a tarefa.

Foi assim que a Faculdade de Ciências Econômicas, criada há escassos 5 anos, já conquistara credibilidade internacional bancando financeira e tecnicamente um projeto de desenvolvimento regional, elaborado por professores e alunos da jovem instituição. Nos dois anos que se seguiram até a vinda da equipe técnica alemã foram feitos os contatos e acertos para que não ocorresse algum percalço maior quando da chegada da equipe da Alemanha. Tudo foi acertado com a Secretaria das Obras Públicas sob a responsabilidade do Secretário Pergher. Com ele foram acelerados os detalhes de quem assumiria as despesas de moradia e o transporte da equipe pela região em estudo. Seu apoio logístico, político e moral foram determinantes para o sucesso da obra. Visitas também foram programadas e efetuadas com a CORSAN, Metroplan e o sétimo distrito do Ministério de Minas e Energia com sede em Porto Alegre. Entidades de Classe, Associações Comerciais e Industrias, empresários, etc., foram informados do que estava acontecendo.

Todo esse trabalho de preparação e intermediação foi conduzido pela Faculdade de Ciências Econômicas. Participei de um número sem conta de reuniões com o Banco de Desevolvimento Econômico, Associações Comerciais, Prefeituras, Secretarias do Estado, Empresários, Conselhos Comunitáriosetc. Participei de um número sem conta também de contatos e preparação dos subsídios para facilitar e orientar a equipe técnica que chegaria em meados de 1967. No acordo firmado entre o Governo do Estado e República Feral da Alemanha, ficou acertado que o Estado arcaria com as despesas de moradia e o combustível e a manutenção das duas viaturas que vinham na bagagem dos técnicos. Ficou ainda acertado que, concluídos os trabalhos, as viaturas e todo equipamento técnico trazido, seriam incorporados ao patrimônio da Secretaria de Obras Públicas.

Nesse meio tempo a Secretaria da Agricultura designou o prof. Edgar Írio Simm como interlocutor entre o Estado e a Faculdade de Ciências Econômicas na qual era também professor. Caracterizava-se pela personalidade jovial, sempre disposto, avesso a complicações burocráticas e sempre carregava na manga uma solução.

Com a aproximação data da chegada da equipe técnica, prevista para julho de 1967 o coordenador da Faculdade Alcides Giehl, o prof. Simm e eu, providenciamos as moradias. A previsão da permanência da equipe era de cerca de um ano ou talvez um pouco mais. Foi acertado o aluguel de uma sala para a sede das atividades, mais dois apartamentos no edifício na esquina da Primeiro de Março e João Neves da Fontoura, duas casas no Morro do Espelho, uma casa em Novo Hamburgo e para o chefe da equipe um apartamento na Av. Independência em Porto Alegre.

De fato, em meados de julho de 1967, como previsto, a equipe técnica apresentou-se em São Leopoldo. Chefiava-a o eng. Otfried Schneider acompanhado do eng. Lemmer, do eng. Especialista em barragens Flach, o geólogo Hoffmann, um eng. Agrônomo, o topógrafo Verhoeven, o economista Berg e o desenhista Schmechel. À equipe veio somar-se o eng. Alemão Kurt Koch, radicado em São Paulo. Com a presença do sr. Mohrmann, Diretor Presidente da empresa alemã, foi celebrado um acordo entre a Agrar und Hydrotechnik e a Faculdade de Ciências Econômicas. Nele foram acertadas as competências e as obrigações das duas partes. Coube-me o papel de intermediário, credenciado pela equipe técnica entre as repartições públicas, as prefeituras e demais instâncias envolvidas e interessadas no projeto. Foi assim que, durante pouco mais do que um ano vi-me na condição de prestador de serviços ao Governo Alemão. Como na época eu era jesuíta a remuneração a mim paga pela equipe de técnicos, se não me falha a memória foi de 70.000 marcos foi depositada no caixa da Faculdade de Ciências Econômicas.

A Agrar und Hydrotechnik municiou a equipe técnica com duas viaturas: uma “variant”, na época não fabricada no Brasil, um “mungo”, viatura fabricado pela DKW, usado pelo exército alemão para transpor terrenos alagados e pântanos, passar por rios e cursos de água maiores. Além das viaturas a equipe trouxe equipamentos completos de última geração, para confeccionar mapas topográficos, desenhos, tabelas, etc. Como já lembrei mais acima, terminado o trabalho, todos esses equipamentos e as duas viaturas foram incorporados no patrimônio da Secretaria de Obras Publicas do Estado.

A equipe desenvolveu seu trabalho durante o segundo semestre de 1967 e o primeiro de 1968. Como naquele período ainda atuava no regime de 12 horas na UFRGS todo o tempo que sobrava das aulas e outros compromissos em São Leopoldo, cabia-me servir de intérprete e contato com as instâncias públicas e privadas envolvidas no projeto. O prof. Simm desempenhou o mesmo papel mas como representante do governo do Estado. Foi nessas condições que nós dois acompanhamos os integrantes da equipe alemã. Carrego boas lembranças dessas andanças pelo Vale do Sinos. De um lado foram prazerosas pela companhia do sempre jovial prof. Simm. De outro foi uma escola de vida e tanto que esses contatos diretos com as realidades, os problemas e potencialidades da região proporcionaram.

O contato com as prefeituras e câmaras de vereadores foi, aos poucos, revelando as características do comportamento político local, assim como os interesses e o perfil dos prefeitos, seus funcionários e os vereadores. Todos foram receptivos ao projeto, de modo especial no que tocava às enchentes periódicas. Não se percebeu má vontade no fornecimento de dados, nem sonegação de informações importantes. Merece destaque o prefeito de São Leopoldo, Clodomiro Martins, pelo comprometimento com a causa e pelo suporte logístico prestado. Pôs à disposição da equipe dos técnicos uma das poucas viaturas da prefeitura na época, além do espaço para reuniões técnicas. Destacaram-se também pela disponibilidade do pessoal e da infraestrutura os prefeitos Santini de Novo Hamburgo; Oscar Petry de Sapiranga; Lehnart de Taquara; Timmen de Rolante; Lagranha de Canoas; o prefeito de Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Três Coroas, Campo Bom, Esteio. O interesse deles e de outros prefeitos foi óbvio pois, as cheias do Sinos afetavam de alguma forma a todos.

Não se pode esquecer, entretanto, que se tratava de um projeto de valorização da bacia do Sinos como um todo. A questão das cheias periódicas fazia parte, portanto, de um conjunto de desafios a serem enfrentados, sem dúvida o mais visível e de maior impacto político. Em se tratando, porém, de um diagnóstico acompanhado de sugestões mutuamente complementares, outras questões de não menor importância não podiam se deixadas de lado. Sem pretender estabelecer prioridades ou categorias de importância, passo a enumerar algumas delas que considero mais urgentes. Acontece que foi nessas questões que a receptividade de não poucos prefeitos deixou a desejar. Não vou citar nem municípios nem prefeitos onde a resistência foi mais ostensiva e houve até sonegação de dados e informações. Considerando as circunstâncias de mais de 50 anos passados é preciso admitir que esse tipo de reação era esperável.

Às enchentes vieram associar-se problemas básicos de infraestrutura como o abastecimento de água, o saneamento básico, circulação de pessoas e mercadorias, disciplinamento da expansão urbana, educação básica e instituições de formação técnica, modernização do setor agropecuário, incentivo ao florestamento e reflorestamento cientificamente conduzido e por aí vai. Destaco alguns desses desafios para os quais a equipe técnica propôs soluções concretas e viáveis.

Depois das enchentes o abastecimento de água figurava entre as maiores necessidades. Na década de 1960 , o parque industrial do Vale do Sinos em pleno crescimento atraia um afluxo desordenado de migrantes vindos de todo o Rio Grande do sul e do leste de Santa Catarina. Na época, a CORSAN estava implantando estações de tratamento de água em diversos municípios. Outros, como São Leopoldo dispunham há décadas de instalações próprias, outras ainda, como Campo Bom, acalentavam a perspectiva de um projeto municipal de tratamento e abastecimento de água próprio ao modelo de São Leopoldo. Não é complicado entender que a sensibilização para um proposta nova, cobrindo a demanda de todo Vale do Sinos se deparasse com oposições de peso. Feitos os levantamentos dos dados hidrológicos e topográficos, as conclusões técnicas apontavam para recomendação de uma solução global. Projetando-se para os próximos anos uma população de 1.500.000 habitantes para o Vale do Sinos, excluindo Porto Alegre e, calculando-se o consumo de 300 litros dia por pessoa, havia uma solução técnica viável. A ampliação de uma represa já existente no rio Paranhana, na altura de Três Coroas, estaria em condições de formar um reservatório com capacidade suficiente para cobrir a demanda acima estimada. Bastaria, portanto, uma única estação de tratamento para cobrir as necessidades de Três Coroas, Igrejinha, Taquara, Parobé, Sapiranga, Campo Bom Novo Hamburgo São Leopoldo até Canoas. A segunda grande vantagem oferecia o declive contínuo da estação central de tratamento até Canoas. Uma tubulação devidamente dimensionada levaria por declive a água tratada para toda região média e baixa do Sinos. No momento em que a demanda superasse o volume estimado restaria ainda o recurso de uma estação de tratamento no Rolante e ou no curso superior do próprio rio dos Sinos na altura em que os morros de ambos as margens se aproximam. Argumentos como autonomia municipal, projetos e sistemas de abastecimento já existentes ou em curso, o envolvimento da política da CORSAN em nível estadual, falaram mais alto. A proposta não passou do papel.

Uma segunda sugestão feita pelos técnicos alemães também não passou de uma proposta, acompanhado de estudos de viabilidade. Considerando a demanda crescente da circulação de pessoas e mercadorias na região, somado à confluência do norte e nordeste do Estado em direção a Porto Alegre, a médio prazo a BR 116 não suportaria tamanho tráfego, especialmente de Novo Hamburgo a Porto Alegre. Como o custo do alargamento dessa rodovia seria proibitivo por causa das desapropriações em áreas urbanas, a proposta foi uma rodovia alternativa fora dos aglomerados urbanos. A sugestão da equipe técnica resumia-se na combinação do controle das cheias do rio com a implantação de uma rodovia. Os diques de proteção projetados a partir de Campo Bom a Porto Alegre, se dimensionados, poderiam servir a partir de São Leopoldo, como leito de uma rodovia de via dupla. A proposta previa o prolongamento dessa rodovia até Estância Velha, passando pela Scharlau. Acontece que os diques de São Leopoldo a Porto Alegre foram abandonados e com eles a ideia de uma rodovia alternativa caiu no esquecimento. Mais de 40 anos depois, com a Br 116 irremediavelmente sobrecarregada uma solução parecida à dos técnicos alemães foi concluída com a entrega ao tráfego da Br 448 de Sapucaia a Porto Alegre. E, quanto consta, o prolongamento dessa rodovia até Portão deve acontecer no futuro. De qualquer maneira a combinação de contenção das cheias com uma rodovia de desafogo da Br 116 parece ter sido uma boa ideia.

Esse assunto foi objeto de uma longa matéria no Correio do Povo de 10 de abril de 1970. Naquela data os técnicos alemães já haviam concluído o Relatório de suas atividades do Vale do Sinos, acrescidos das propostas tecnicamente viáveis junto com propostas de enfrentamento e solução dos desafios diagnosticados. O diagnóstico da expansão urbana somada à industrialização em plena aceleração acendeu a luz amarela de alerta para um outro problema: a contaminação dos lençóis freáticos e a poluição dos rios e seus afluentes avançava num ritmo preocupante. Na época ainda se pescavam peixes nobres como dourados na altura do Zoológico e a água do rio fervida podia ser usada tranquilamente. A recomendação dos técnicos alertou que se não fossem tomadas medidas urgentes e para valer no prazo de 40 ou 50 anos o Sinos não passaria de uma cloaca. Infelizmente as recomendações não foram levadas devidamente a sério. Nem as autoridades públicas, nem as empresas como curtumes, indústrias químicas e outras fontes poluidoras tomaram providências para valer. O problema foi-se agravando pelo tratamento precário dos dejetos ou o lançamento puro e simples em terrenos baldios ou cursos de água terminando no rio. O prognóstico dos técnicos alemães confirmou-se a num nível assustador. O rio no qual há 60 anos ainda se pescavam dourados, a cada passo aparece nos noticiários até nacionais, por causa da mortandade de peixes em grande escala, prova que o alerta de 5 décadas passadas, continua mofando nas gavetas da burocracia oficial e a sua execução atropelada pela voragem de uma industrialização e urbanização predatória. Além de amenizar o problema cíclico das enchentes, desafogar o tráfego, resolver o desafio do saneamento básico, abastecimento de água, outras questões não puderam ser ignoradas. Convém não esquecer que no final da década de 1960 o milagre brasileiro” começava a esboçar- se. Regiões como o Vale do Sinos viraram cenários de grande efervescência. Migrantes de todos os rincões do Rio Grande do Sul e o leste de Santa Catarina convergiam para o Vale. Urgia um planejamento urbano voltado para o zoneamento e a infraestrutura condizente com as características da região. A multiplicação e o crescimento de vilas e bairros periféricos, loteamentos clandestinos, simples ocupações, muitas em localização imprópria, reclamavam um disciplinamento legal adequado. Faziam-se urgentes políticas públicas e legislações adequadas para a localização de distritos industrias, urbanização de vilas, zoneamento de áreas residenciais, e outras questões relacionadas com esse setor.

Outro setor que reclamava uma atenção toda especial no Vale do Sinos era o setor agrícola e pastoril. Como é do conhecimento geral essa região foi o cenário, foi o berço da imigração alemã no Rio Grande do Sul. De São Leopoldo a colonização avançou em poucas décadas, até o extremo norte e noroeste da bacia do rio. O modelo de agricultura diversificada praticada nas pequenas propriedades familiares deixaram suas marcas, umas positivas, outras nem tanto e outras ainda preocupantes. O avanço da industrialização acompanhada pela urbanização pediam uma reorientação do modelo agrícola praticado até então na região. No lugar da tradicional policultura de subsistência, recomendava-se um espaço cada vez maior para a produção de hortifrutigranjeiros. O mercado consumidor da urbanização demandava volumes crescentes de hortaliças, frutas, leite e derivados, criação racional de aves. Para satisfazer essa demanda não faltavam solos adequados e em grande quantidade. Para a fruticultura e pastagens permanentes nos declives de 25% ou um pouco mais ou um pouco menos, das encostas inferiores dos morros ofereciam condições climáticas e edafológicas favoráveis para a produção de cítricos, abacate, figos, pêssegos e outras variedades de frutíferas. Os invernos curtos e irregulares com temperaturas que descem raramente abaixo dos 4 ou 5 graus desaconselham o cultivo de frutíferas que prosperam num mínimo de horas próximas a 0° graus, como maçãs, peras, ameixas, cerejas e outras. Tanto as áreas planas ao longo do rio e de seus afluentes e as encostas prestam- se muito bem para a formação de pastagens e criação de gado leiteiro.

Todo o norte e nordeste da bacia do Rio dos Sinos termina no planalto em altitudes que variam de 800 a 1.000 metros. Da meia encosta até o alto predominam declives de mais de 25%. Apesar das dificuldades para a prática da agricultura nessas encostas, elas foram em grande parte desmatadas. Devido à erosão e ao trabalho penoso para cultivá-las, estavam sendo abandonadas. Nada mais racional do que devolvê-las à sua vocação natural, isto é, servirem de reserva de uma das riquezas mundialmente mais disputadas: a madeira e seus derivados. Para tanto dispunham- se de duas alternativas. A primeira consistia em entregar aos mecanismos inerentes à própria natureza de se restaurar pelo florestamento espontâneo que evolui de uma forma muito semelhante ao que acontece na natureza, terminando em ecossistemas secundários muito parecidos com os originais. Foi por essa via que nas últimas décadas, grande parte das encostas, depois de abandonadas pelos agricultores, foram sendo tomadas pela vegetação original, chamando de volta também aves, mamíferos, répteis, batráquios e muitas espécies de outros animais e vegetais. A vasão das fontes duplicou ou triplicou, fontes que haviam secado tornaram a brotar. Muitas dessas encostas abandonadas exibem hoje uma exuberante floresta secundária, muito próxima da mata virgem que os imigrantes encontraram há 200 anos passados. As faixas de mata virgem intocadas confundem-se com a floresta secundária em expansão horizontal e vertical.

A segunda alternativa para recompor a cobertura vegetal permanente acontece pelo plantio de espécies de interesse econômico e ou prático. Destacam-se entre elas o eucalipto para madeira de construção, lenha e celulose e a acácia negra fornecedora de lenha, celulose e tanino. O pinus fornecedor de madeira vai ocupando cada vez mais espaço. Para um reflorestamento a mais longo prazo e mais diversificado poderiam entrar em questão o carvalho europeu e norte americano, nogueiras, castanheiras, álamos e outras mais somadas as muitas espécies de madeiras nativas como louro, canjerana, cabriúva, batinga, canela, araucária, canafístula, mata-olho, guajuíra e tantas outras.

Como se pode deduzir, o Projeto de Valorização do espaço geoeconômico, social e cultural, concebido e incrementado pela Faculdade de Ciências Econômicas, previa um conjunto integrado e um complexo de medidas complementares de natureza técnica, de iniciativas práticas que implicavam em políticas públicas e ações do setor privado para otimizar o potencial do Vale do Sinos como uma unidade regional. Fica claro também que os dirigentes da Faculdade de Ciências Econômicas desde o começo sonhavam com uma futura universidade, concebida como organicamente inserido na realidade regional. Uma instituição superior, mais ainda uma universidade, não podia permitir-se o luxo de encastelar-se numa torre de marfim. Além da excelência acadêmica, da produção de conhecimento e desenvolver métodos e tecnologias de ponta, tem a obrigação para voltar-se para seu entorno, diagnosticar problemas e oferecer soluções e dessa forma colaborar com o desenvolvimento social, econômico e da promoção do bem estar da sua população. Imbuídos dessa autêntica missão, os responsáveis dessa jovem instituição conceberam e levaram a bom termo o projeto da “Valorização do Vale do Rio dos Sinos”. E o Projeto foi de tal envergadura e formulado de forma técnica tal que República Federal da Alemanha (RFA) aceitou bancar a viabilidade técnica e econômica da proposta, contratando a “Agrar und Hydrotechnick”, empresa especializada em projetos nessa área.

Em resumo. Os resultados e as conclusões que a equipe técnica chegou resultaram num Relatório traduzido para o português que contou com minha participação, distribuído às repartições públicas envolvidas. Um exemplar foi entregue na biblioteca central da Unisinos e outro na biblioteca municipal de São Leopoldo.

Os técnicos alemães, tendo presente as causas das inundações: primeiro as fortes precipitações pluviais na porção montanhosa; segundo o fraco declive do rio nos cursos médio e inferior, além do refluxo do Guaíba pelo vento, onde desembocam; terceiro o represamento no baixo rio dos Sinos até Campo Bom, e a área de expansão da Grande Porto Alegre, propôs um sistema de diques na Região, visando quatro objetivos básicos: primeiro a conquista de novas áreas utilizáveis, considerando a expansão da Grande Porto Alegre; segundo, defesa das áreas habitadas e instalações industriais situadas dentro das áreas sujeitas a inundações; terceiro, entrosamento com o sistema de diques do DNOS; quarto, traçado mais apropriado para conseguir um escoamento mais rápido das águas em casos de inundação; quinto, fornecimento de água potável para essa região hoje já intensamente habitada.

Vale acrescentar que, por um acordo posterior celebrado entre o Governo Alemão e Brasileiro, foi concretizado apenas o tocante aos diques de contenção das cheias na área de São Leopoldo. E, diga-se ainda de passagem, demonstraram sua viabilidade e eficiência na cheia provocada pelo ciclone extratropical de maio de 2008 e 2023.

Da Enxada à Cátedra [ 65 ]

Diagnóstico sócio econômico de Dois Irmãos.

Na verdade esse projeto não foi iniciativa do Curso de Ciências Sociais de São Leopoldo. Sua origem veio do Instituto de Pesquisas Econômicas da UFRGS junto à Faculdade de Ciências Econômicas em convênio com a universidade de Wissconsin nos USA, com a qual mantinha um ativo intercâmbio no plano da formação acadêmica, da formação de pesquisadores e da pesquisa propriamente dita. Acontece que nesse intercâmbio pesquisadores de Wissconsin escolheram Dois Irmãos como protótipo da implantação, desenvolvimento e consolidação histórica, social e econômica de uma comunidade de imigrantes alemães. Pode parecer estranho que pesquisadores americanos fossem procurar uma comunidade típica desse perfil no sul do Brasil e escolhessem como amostra Dois Irmãos, quando os USA contavam com cerca de 7 milhões de imigrantes alemães e o Rio Grande do Sul aproximadamente 350000. A explicação encontra-se, pelo menos em grande parte, na legislação que disciplinava a imigração tanto num quanto no outro dos dois países. Nos Estados Unidos vigoravam regras mais explícitas que visavam em última análise uma inserção mais rápida do imigrante e seus descendentes na nova Pátria ou, se preferirmos, na realidade da nacionalidade americana. Assim, por ex., a primeira geração nascida na América obrigatoriamente tinha que aprender o inglês. Isso não significou que o alemão ou outras línguas estrangeiras fossem proibidas nem forçava a abandonar as tradições familiares e sociais trazidos no momento da imigração. Nem vigorava algo parecido como no Brasil durante a Campanha de Nacionalização no período do Estado Novo implantado por Getúlio Vargas em 1937. As regras vigentes disciplinando a imigração nos Estados Unidos resultaram numa assimilação mais rápida e, principalmente, sem os traumas causados por medidas draconianas, atropelando a dinâmica histórico-antropológica que comanda os processos de inserção numa nova realidade como no Brasil. Aqui no Brasil inexistiam leis e regulamentos nesse sentido pelo menos nos primeiros 100 anos. Os imigrantes continuaram falando o alemão (normalmente algum dialeto com destaque para o Hunsrückisch e o Westfaliano, até a quarta e quinta geração dos aqui nascidos. Eu próprio, da quarta geração, fui aprender a falar português aos 12 anos. Essas circunstâncias foram determinantes na formação das comunidades, na preservação da língua e tradições, no desenvolvimento econômico, inclusive na postura como cidadãos brasileiros. Com raras exceções os descendentes de imigrantes alemães assumiam-se como cidadãos brasileiros obedecendo a todos os rituais que a legislação lhes exigia como tais. Como Dois Irmãos representava um paradigma da organização histórica das comunidades teuto-brasileiras por ter sido uma das primeiras e mais emblemáticas nesse processo peculiar de inserção na nacionalidade, os pesquisadores da universidade de Wissconsin envolvidos no intercâmbio com o Instituto de Pesquisas Econômicas da UFRGS, escolheram esse município como protótipo da dinâmica sócio economia e histórica válida, em grandes linhas, para todos os imigrantes alemães no sul do Brasil.

Acontece que, em começos de 1960 para realizar o levantamento dos dados e informações na sua fonte, isto é, entrevistando os colonos em suas propriedades, exigia-se o conhecimento do alemão, de modo especial o dialeto falado por eles e além disso ter familiaridade com os costumes, as circunstâncias e a história dessa população. Não havia como recrutar esses profissionais entre os pesquisadores do Instituto de Pesquisas da UFRGS. Entre os alunos das Ciências Sociais de São Leopoldo estudavam no curso vários procedentes do meio rural e no convívio familiar se falava o dialeto. Foi por isso que a direção do IEPE entrou em contato comigo para localizar dois ou três entrevistadores entre os alunos do curso de Ciências Sociais. Não me lembro exatamente se foram dois ou três os escolhidos, todos eles de famílias residentes em Dois Irmãos. Como se pode concluir, uma mão de obra ideal para entrevistar os proprietários e famílias escolhidos para a amostragem. Nessa colaboração com o instituto de pesquisas da universidade federal não foi firmado nenhum convênio formal, estipulando compromissos mútuos. Eu pessoalmente acompanhei os pesquisadores de Wissconsin na fase da escolha da amostragem e acompanhei de longe os entrevistadores destacados entre os alunos do meu departamento. As etapas posteriores da pesquisa, como tabelamento, análise e interpretação dos dados foi toda executada pelos especialistas do IEPE. Um belo exemplo de como diferentes centros e institutos de pesquisa, em vez de competirem, se unem e se dão as mãos para somar os resultados obtidos pela competência peculiar própria a cada uma das instituições envolvidas nos mesmos campos do conhecimento e ou em objetivos afins dos seus pesquisadores. Esse princípio, para não dizer política acadêmica, deveria valer para as faculdades isoladas, os centros universitários e mais ainda para as universidades publicas e privadas. Em vez da pulverização dos conhecimentos dentro e entre as instituição de pesquisa e ensino superior, hoje uma regra com poucas exceções, a retomada do velho princípio “Doctrina multiplex – Veritas uma” – “As Doutrinas são muitas, porém, a Verdade é uma”, multiplicaria por 10, senão por 100 ou mais vezes o resultados dos recursos investidos.

Cooperativa Agropecuária Piá. Antes de lembrar a participação na criação da Cooperativa Piá cabe um esclarecimento como fui envolvido no nascedouro desse projeto, já que a iniciativa não partiu da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mas da Faculdade de Ciências Econômicas. Ao assumir a chefia do departamento de História e Sociologia e as aulas de Antropologia oferecida como optativa, contando créditos, também na Pedagogia, nas Letras e Ciências Econômicas, meu envolvimento nessa nova realidade me afastou da História Natural. As disciplinas de Geologia e Paleontologia, de Mineralogia e Petrografia foram confiados a professores leigos dessas especialidades procedentes de outras instituições. A aproximação sempre maior com a Faculdade de Ciências Econômicas aconteceu em primeiro lugar devido à amizade e do perfil do projeto de universidade que seu diretor, o Pe. Marcus Bach e seu coordenador Alcides Giehl em sintonia com um grupo de professores leigos daquela Faculdade. Assumi as aulas de Antropologia Cultural oferecida como optativa, contando créditos, aos futuros economistas. A aceitação superou todas as espectativas, chegando ao ponto de em alguns semestres organizarem-se turmas de alunos até em sábados à tarde. Dedicava os dois turnos do dia aos cursos da Faculdade de Filosofia somadas às 12 horas da UFRGS e o turno da noite à Faculdade de Ciências Econômicas. Nessa situação participava dos Conselhos Técnico Administrativos das duas faculdades. Aconteceu então que ao ser criado o Departamento de Economia o Conselho indicou meu nome para chefiá- lo. Nas circunstâncias de hoje confiar a chefia de departamentos de unidades acadêmicas aparentemente tão distantes entre si, com certeza seria visto no mínimo com estranheza. Mas vamos ao que interessa mais de perto, isto é, às iniciativas para enfrentar a situação nada animadora da população rural de Nova Petrópolis. A estagnação econômica acompanhada pelos reflexos negativos sobre os demais atividades dos colonos fazia-se notar a cada dia que passava. Foi então que o prefeito o Sr. Albano Hansen decidiu ir em busca de medidas de médio e longo prazo para atalhar esse processo de deterioração da situação dos pequenos agricultores. Como nas demais regiões em que predominava a agricultura familiar diversificada, também no município de Nova Petrópolis esse modelo esgotara seu potencial de crescimento. A fuga dos jovens para centros urbanos em busca de oportunidades mais promissoras para melhorar as condições de vida, de formação profissional diversificada e a conquista de títulos acadêmicos para abrir espaço nas profissões liberais, no magistério, no serviço público e por aí vai. Métodos ultrapassados, culturas de baixa produtividade, exaustão dos solos, fracionamento exagerado dos lotes coloniais, além de outras consequências negativas levaram os colonos ao empobrecimento e à beira da falência. Para aqueles que continuaram na atividade de produtores rurais apresentavam-se duas saídas: ou sobreviver penosamente e sem grande futuro plantando o que durante gerações garantiu a subsistência das famílias, ou partir para culturas seletivas com colocação garantida no mercado, viáveis nas peculiaridades topográficas, climáticas e edafológicas da região. A solução do problema implicava em iniciativas capazes de reverter radicalmente o “ser colono tradicional” em “ser um produtor rural” moderno centrando sua atividade em culturas e criação de animais com aceitação no mercado.

Com a entrada da década de 1960 a comunidade de Nova Petrópolis começou a movimentar-se para encontrar uma saída para o impasse. Os líderes comunitários aliaram-se às lideranças políticas Prefeitura e Câmara de vereadores em busca de uma solução global e de longo prazo. Escolheram como referência estrutural o modelo implantado no Brasil exatamente a partir de Nova Petrópolis. Em 1902 o padre jesuíta Theodor Amstad pôs em prática a ideia de uma cooperativa de crédito naquela localidade. Mais tarde foram sendo criadas cooperativas de produtores de leite, de suinocultura, além de um respeitável número de outras modalidades. Os organizadores da comissão fundadora da Cooperativa Agropecuária Piá convidaram o Pe. Marcus Bach, diretor da Faculdade de Ciências Econômicas de São Leopoldo para a reunião fundadora. Coube-me a honra de representá-lo naquele encontro. O prefeito Albano Hansen, presidente da reunião e grande entusiasta da forma cooperativa como solução para esse tipo de problemas, pôs os presentes ao par do objetivo do encontro. No andar dos debates foram traçados os principais passos a serem dados para se chegar a um projeto de longo prazo viável na forma de uma cooperativa. Para começar seria indispensável fazer um diagnóstico objetivo da real situação a fim de municiar com dados reais e confiáveis um projeto com a devida consistência. Levei para a reunião um esboço dos passos a serem dados na formulação de um diagnóstico preliminar e um modelo de questionário a ser aplicado entre os colonos. O que de mais significativo aconteceu naquela reunião foi a opção pela via cooperativa para recuperar e redinamizar a economia rural do município. Não cheguei a participar dos passos e procedimentos posteriores que fundamentaram o projeto que resultou na implantação da Cooperativa Agroindustrial Piá.

Da Enxada à Cátedra [ 64 ]

Antes de me concentrar exclusivamente nas obrigações acadêmicas inerentes à chefia do Departamento, chamo a atenção ao fato de que tanto as Ciências Sociais quanto a Educação e a História davam o tom na Missão de um século dos jesuítas alemães sul do Brasil. O resultado foram três grandes projetos abarcando, por assim dizer, todas as iniciativas e atividades por eles postas em prática. Não entro aqui em detalhes pois, como já lembrei em outro parte, publiquei pela Edit. Unisinos três livros cada um deles centrado em um dos três projetos.

Retomo as recordações das tarefas que me esperavam como chefe do duplo departamento de História e Sociologia. Como já referi mais acima, como em 20 de setembro, um mês depois da instalação do Curso de História, submeti-me ao exame ad gradum” como conclusão da minha formação acadêmica como jesuíta, fui residir na comunidade dos jesuítas no centro de São Leopoldo. A primeira tarefa foi preparar a prova do exame vestibular da primeira turma de candidatos ao Curso de História. Paralelamente assumi as aulas de Antropologia Cultural no Curso de Ciências Sociais substituindo o Pe. I. Schmitz que viajara para a Áustria para os 10 meses de “Terceira Provação”. O significado desse estágio na formação do jesuíta também foi devidamente explicado mais acima. Já em meio ao andamento do semestre fui recebido com uma ou tal desconfiança pelos alunos de Ciências Sociais. Uma aluna deixou claro que me aguardava um esforço e capricho todo especial para preencher a lacuna deixada por meu antecessor, considerado uma sumidade na matéria pelos alunos e eu quase como que um desconhecido, além de bacharelado e licenciado em outras áreas, embora professor de Antropologia Física na universidade federal. O primeiro “abacaxi” a descascar foi avaliar uma prova bimestral aplicada pelo Pe. Schmitz. Pelo que me lembro ninguém contestou a minha avaliação. Pelo que posso concluir levei o semestre a contento. Passo agora a comentar o que me aguardava naquele segundo semestre de 1963

Instituto Anchietano de Pesquisas.

O Instituto Anchietano de Pesquisas fundado em 1956 pelo grupo de cientistas jesuítas lideradas pelo Pe. Balduino Rambo, Luiz G. Jaeger, Arnaldo Bruxel, Luiz Sehnem, Inácio Schmitz, Arthur Bohnen, Milton Valente, Ernesto Maurmann e outros, tinha a sua sede no Colégio Anchieta, na rua Duque de Caxias em fase de transferência para a Av. Nilo Peçanha. Este Instituto estava subordinado diretamente à Província Sul Brasileira dos jesuítas. “As joias da coroa” vinham a ser o monumental acervo de documentação reunida pelo Pe. Arnaldo Bruxel sobre as Missões dos Jesuítas da Província do Paraguai entre começos do século XVII e meados do século XVIII, guardado no Colégio Cristo Rei. A não menos monumental de cerca de 90.000 itens de fanerógamos do Herbário Anchieta do Pe. Rambo somada a uma preciosa coleção de fungos do Pe. Rick, encontrava-se no Colégio Anchieta. O Pe. Luiz Sehnem com sua importante coleção de criptógamos, seu orquidário com dezenas de espécies instalara seu gabinete de pesquisa nas dependências das Faculdades de São Leopoldo no centro da cidade. Também o Pe. Milton Valente instalara seu recinto de pesquisas históricas centradas na antiga Roma num dos recintos daquelas Faculdades. Considerando essas circunstâncias somadas ao Curso de História Natural, Ciências Sociais, História, a tendência óbvia recomendava como sede definitiva do Instituto Anchietano de Pesquisas junto às Faculdades de São Leopoldo. O falecimento do Pe. Rambo em setembro de 1961 acelerou essa transferência por duas razões. Em primeiro lugar porque os professores de botânica da UFRGS argumentando que os jesuítas não tinham como conservar adequadamente o enorme volume de amostras de plantas coletadas pelo falecido, pretendiam fazer com que o governo o declarasse de utilidade pública e sua incorporação no setor de botânica daquela universidade. Em segundo lugar o Colégio Anchieta em fase de transferência para o novo endereço na Av. Nilo Peçanha não dispunha nem de espaço, nem de especialistas para não comprometer aquela coleção única em todo País, senão uma das mais ricas em todo mundo. O superior provincial ordenou então que o Herbário Anchieta fosse transferido para São Leopoldo e administrado pelo Curso de História Natural. Isso implicou numa série de iniciativas e tomada de decisões importantes.

Em primeiro lugar essa transferência não se resumiu numa simples mudança de endereço de Porto Alegre para São Leopoldo. Foi preciso disponibilizar um espaço para acomodar convenientemente as mais de 400 caixas da coleção de fanerógamos colecionadas pelo Pe. Rambo além da coleção de fungos do Pe. Rick. A direção das Faculdades de São Leopoldo cedeu o prédio de dois andares da esquina de rua Brasil com a Gonçalves. Com isso coube-me o primeiro desafio. Aquele prédio não passava de um semi ruina. No térreo havia alguns quartos ocupados por estudantes todos eles ex-alunos do Colégio Santo Inácio de Salvador do Sul e a outra metade um espaço com o assoalho irrecuperável minado de cupim. O assoalho do segundo andar encontravam-se nas mesmas condições. Sem uma reforma não havia condições mínimas para abrigar as preciosas coleções científicas do Instituto Anchietano de Pesquisas. A direção das faculdades deixou claro que não havia recursos para a reforma do prédio. O recado dava a subentender mais ou menos o seguinte: “Vire-se, faz das tripas coração”. Foi o que fiz. Pedi autorização do diretor das faculdades para usar a remuneração de um mês da UFRGS para comprar o material necessário para renovar os pisos dos dois andares. Não se deve esquecer que na época eu era jesuíta e com voto de pobreza entregava os proventos da universidade federal no caixa comum. Com esse recurso mandei vir de Farroupilha uma carga de tábuas de pinho prontas e aplainadas para renovar os assoalhos dos dois pisos. Assumi o trabalho de remover o assoalho antigo minado de cupins com o auxílio e orientação do marceneiro Lino Blume. No dia 23 de novembro de 1963, enquanto arrancávamos o assoalho antigo fomos surpreendidos com a notícia do assassinato do Presidente Kennedy. Colocados os novos assoalhos seguiu a instalação do laboratório de arqueologia para acomodar a equipe de pesquisas nessa área comandada pelo Pe. Schmitz, além do espaço necessário para abrigar o Herbário Anchieta. Vale lembrar um detalhe. Com a ordem do Provincial em mãos meu primo Odilo, ainda jesuíta na época foi buscar o Herbário no Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias. Passou um bom trabalho e teve que ouvir algumas qualificações menos simpáticas antes que o superior da comunidade liberasse a transferência.

A remoção da Xácara da Prefeitura.

Em 11 de junho de1957 o Pe. Urbano Thiesen, diretor da Faculdade de Filosofia Cristo Rei, até então restrita aos estudantes jesuítas, anunciou num discurso na Câmara de Vereadores de São Leopoldo, a decisão dos seus superiores, de abrir as portas para o público leigo a partir de 1958. Os prédios do Seminário Central no centro de São Leopoldo estavam desocupados desde o final de 1956, com a transferência do Seminário para Viamão. Durante o ano de 1957 foram devidamente adaptados para as novas funções. Essa decisão veio acompanhada da troca do nome de Faculdade de Filosofia Cristo Rei para Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Leopoldo. A história mais completa dessa fase de consolidação da futura Unisinos encontra-se detalhada no meu livro “Um Sonho e uma Realidade”, já mencionado mais acima. Mas há um detalhe importante que não posso deixar de mencionar. No discurso do Pe. Thiesen aos Vereadores ele resumiu o cerne do projeto por ele imaginado e posto em andamento ao oferecer o ensino superior para o grande público, não só do Vale do Sinos, mas para um público de âmbito regional e nacional. Conforme ele os cursos e faculdades em fases de implantação e as que fossem criadas de acordo com as necessidades e oportunidades, deveriam evoluir para uma “Casa de Sabedoria”, portanto, um centro de referência de excelência acadêmica além de um centro de pesquisa de ponta. De outra parte, entretanto, essa “Casa de Sabedoria” não deveria encapsular-se sobre si mesma, mas comprometer-se com a região sob sua influência e reverter os conhecimentos e tecnologias saídos dos laboratórios e gabinetes de pesquisa em favor do desenvolvimento econômico e promoção humana. Manifestou, para tanto a intenção de criar um Instituto de Sociologia e que a Sociologia constasse em todos os cursos já em funcionamento e nas faculdades e cursos a serem implantados com o correr do tempo. Como ele mesmo deixou claro em outro momento a Universidade de Oxford foi a sua inspiradora maior. Sobre esse pano de fundo explicam-se as iniciativas de ação em benefício do bem estar da população na região geográfica imediatamente sob a influência do centro universitário de São Leopoldo.

Como chefe do Departamento de História e Sociologia coube-me a formulação e implementação do primeiro projeto de ação social beneficiando os moradores da Xácara da Prefeitura, sob constante risco de inundação. Localizada na área de banhados nos fundos da sede da Gedore abrigava uma população predominantemente de migrantes oriundos do interior do Rio Grande do Sul e do sul da região carbonífera de Criciúma e Tubarão e arredores, em condições desumanas sob todos os aspetos como saneamento básico, abastecimento de água potável, pobreza e tudo isso agravado pelas frequentes inundações do rio dos Sinos. O objetivo central resumia-se na remoção daqueles moradores para uma área livre de enchentes e com uma infraestrutura decente. Para tanto naturalmente foi preciso o entendimento com a Prefeitura. Uma vez configurado o projeto houve várias reuniões com o Conselho Comunitário do Município, com o prefeito e os secretários diretamente envolvidos na questão. Lembro-me com satisfação daquelas reuniões na antiga sede da Prefeitura numa época em que fatores de ordem ideológica e política não costumavam viciar iniciativas e projetos direcionados para a assistência social e ou o desenvolvimento e promoção humana.

O primeiro passo a ser dado consistiu obviamente num levantamento sócio econômico seguido de um diagnóstico sob a responsabilidade de especialistas na área. Coube-me a responsabilidade de formular o questionário a ser utilizado no levantamento e identificação da situação sócio econômica dos moradores da Xácara. Realizamos esse trabalho de campo nos sábados à tarde. Quatro alunos voluntários do curso de Ciências Sociais ofereceram-se para a aplicação do questionário visitando e entrevistando os moradores da Xácara. Não me lembro quantos sábados à tarde, apertados no meu fusca modelo 1951, foram necessários para completar essa fase do projeto. As Faculdades de São Leopoldo começavam cumprir a promessa do Pe Thiesen e envolver-se para valer na solução dos problemas humanos reclamando solução logo do lado de fora dos seus muros. Sentíamos, os alunos pesquisadores em começo de carreira e eu um jovem pesquisador, também em começo de carreira, uma sensação estranha mas desafiante ao tomar conhecimento dos dramas e traumas de uma comunidade vivendo, melhor sobrevivendo, nas piores condições. Concluída a fase do levantamento de dados de campo, reunimos os questionários preenchidos. A tabulação e o diagnóstico foram confiados a especialistas nesse tipo de pesquisa. Ficou mais do que evidente que a situação dos moradores daquela área, em constante ameaça de inundação, exigia a remoção para uma área fora do alcance das cheias periódicas do Sinos. A partir desse momento o comprometimento da prefeitura e câmara de vereadores foi decisiva. Essas autoridades ofereceram para a remoção dos moradores, a área do atual bairro Vila Esperança. Aliás esse nome foi sugerido pelo prefeito da época inspirado no significado da remoção. Por não me ter envolvido na fase da transferência dos moradores para o novo bairro pois, a responsabilidade cabia à administração pública, não tenho nada a comentar. Só para concluir. Os dados colhidos no campo, sua posterior análise e o diagnóstico sócio econômico, foram mais tarde condensados num livro pelo Pe. Roque Lauschner (in memoriam) que na fase da execução do projeto concluía sua formação em Ciências Econômicas na UFRGS. O Pe. Pedro Beltrão, doutor em Ciências Políticas e Sociais, pouco se envolveu no projeto da Xácara da Prefeitura pois, lecionava um semestre nas Faculdades de São Leopoldo e o outro na Universidade Gregoriana em Roma.

Da Enxada à Cátedra [ 63 ]

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e Ciências Econômicas

Em fins de setembro reuni meus poucos pertences e fui morar na ala residencial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na avenida D. João Becker, em frente à estação rodoviária. Nos prédios destruídos por um incêndio em 1981, na quadra hoje ocupada pela prefeitura estava sendo instalado o complexo da História Natural e Geologia com os respetivos laboratórios, salas de aula, museu, marcenaria, oficina de equipamentos de vidro utilizados nos laboratórios e no andar térreo de um dos prédios a administração das faculdades já em funcionamento. Nos prédios ainda existentes no outro lado da rua Bento Gonçalves, além da ala residencial já mencionada, funcionavam os cursos de Letras, Pedagogia, Ciências Sociais além da Faculdade de Ciências Econômicas. Nesses espaços localizava-se a Biblioteca Central, o auditório, o barzinho e dois belos jardins internos à disposição dos alunos e professores. Em resumo aquilo que evoluiria 6 anos mais tarde para a Universidade do Vale do Rio dos Sinos entrava na fase da consolidação dos fundamentos, tanto no que dizia respeito ao aspeto físico das instalações, quanto da consolidação dos cursos já em funcionamento e dos novos a serem criados. Nessas circunstâncias exigia-se o possível e o impossível do grupo de jesuítas encarregados de pôr em pé e sobre fundamentos sólidos a tão sonhada futura universidade. Por um bom tempo foi preciso adiar pretensões de pesquisa e aperfeiçoamento acadêmico, arregaçar as mangas e fazer o papel de “pau para toda obra”, de “carregador de piano”, sacrificar todos os momentos disponíveis, inclusive sábados e domingos e não poucas vezes noites inteiras ou parte delas, para que a obra crescesse sólida e harmoniosa.

Para começo de conversa, assumi as aulas de Antropologia no Curso de Ciências Sociais ministradas até fins de agosto pelo Pe. I. Schmitz. Em termos docentes coube-me levar o semestre até o fim daquele ano. E nisso resumiu-se, por assim dizer, tarefa acadêmica formal. Confiei as aulas de geologia, mineralogia e petrografia que vinha ministrando desde 1959 no Curso de História Natural, a professores leigos. Continuei evidentemente a cumprir as 12 horas da universidade federal em Porto Alegre onde assumi interinamente a cátedra durante a licença de afastamento do titular, o Pe. I. Schmitz. A fim de não embaralhar as múltiplas providências a serem tomadas para consolidar as bases da universidade em gestação, tento organizá-las de acordo com sua natureza.

A organização do espaço físico.

Convém lembrar que aqueles magníficos prédios que ocupavam as duas quadras separadas pela rua Bento Gonçalves, projetados pelo arquiteto João Grünewald, o “Mestre João”, serviram, de 1913 a 1956 como seminário menor na quadra onde hoje se localiza a prefeitura e seminário maior nos prédios ainda hoje existentes. Os dois níveis de seminário, um de nível médio e outro superior funcionavam como internatos e moradia dos professores, todos jesuítas, assim como os irmãos leigos e um número variável de rapazes vindos da colônia para serviços complementares na limpeza, cozinha, horta, jardins, marcenaria, etc. Todos esses espaços tiveram que ser adaptados às demandas das faculdades com exigências específicas. Na ala residencial dos professores pouca coisa foi preciso remodelar. O mesmo valia para a cozinha, a adega, a dispensa, a marcenaria, o salão de atos, a biblioteca, o museu, os jardins e outros mais. Os demais espaços exigiram por vezes adaptações mais ou menos radicais. Em não poucos casos era preciso remover paredes e divisórias para dar lugar a sempre mais salas de aula na medida em que o número de alunos aumentava com a multiplicação de cursos novos. A necessidade por espaços para acomodar as diretorias, as chefias de departamento, as secretarias, os laboratórios de pesquisa, gabinetes para os professores, exigiam espaços adequados. Os trabalhos que exigiam mão de obra especializada, evidentemente, obrigavam apelar ao recurso a profissionais na área.

Acontece que naquele remoto ano de 1963 as jovens Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e, de modo especial, das Ciências Econômicas passavam por um momento crucial quanto à sua sustentabilidade. Chegou ao ponto de os superiores da ordem em Roma proibirem a abertura de novos cursos e o superior provincial ordenar o fechamento da Faculdade de Ciências Econômicas, isso entre 1961 e 1962. Com esse cenário nada animador meu colega Alcides Giehl coordenador das Ciências Econômicas, o Pe. Marcus Bach diretor da mesma e alguns professores leigos, resolvemos encarar a situação. Lembro-me que o Alcides e eu derrubamos uma parede de “estuque” durante uma noite de sábado para instalar uma sala de aula para a segunda-feira seguinte. Numa outra ocasião de sábado para domingo passamos a noite encerando o chão carcomido pelos cupins da antiga capela dos seminaristas, para receber os alunos das Ciências Econômicas na semana seguinte. Uma parte do sótão dividido em celas para servir de dormitório para os seminaristas foi transformado num recinto para abrigar um “laboratório de línguas”, ideia inovadora de última geração trazido pelo Pe. Evaldo Heckler que voltara com o mestrado concluído na universidade de Georgtwon nos Estados Unidos.

O impasse financeiro da Faculdade de Ciências Econômicas foi superado recorrendo a uma empréstimo, principalmente entre os colonos de Bom Princípio, São Wendelino, Harmonia e Tupandi. Os doadores receberam como garantia recibos com a especificação dos juros a que tinham direito por ocasião da devolução da quantia emprestada. Até minha mãe contribuiu com uma boa soma guardada de quando vendeu a propriedade que lhe coubera na partilha por ocasião do falecimento do pai. Quem se encarregou de percorrer numa combi de terceira mão as localidades acima mencionadas, foi o irmão Agostinho Kohler. Ele conhecia a grande maioria dos moradores mais antigos pois, trabalhara nas paróquias de Bom Princípio e Tupandi, na época em que elas se encontravam sob a responsabilidade de padres jesuítas. O gargalo financeiro, também afetou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ao ponto de os professores leigos ficarem por vários meses sem salário. Algo incrível aconteceu então, hoje certamente impensável. Apenas um único docente ameaçou abandonar o posto. Todos os demais continuaram dando normalmente suas aulas, esperando que a situação se equacionasse. Os empréstimos captados junto aos colonos, o crescente número de alunos e, principalmente, a compreensão e comprometimento solidários dos professores, fez com que em fins de 1962 a crise estivesse superada. O salário dos professores foi posto em dia e os empréstimos devolvidos com os juros combinados e as faculdades, tanto de Filosofia, Ciências e Letras como a de Ciências Econômicas, entraram num ritmo de crescimento numérico de alunos realmente animador. Nesse meio tempo a qualidade de conhecimentos e a sólida formação profissional garantida pelo corpo docente escolhido a dedo pelo Diretor, Pe. Marcus Bach e o coordenador Pe. Alcides Giehl, fez com que empresas até de São Paulo disputassem os jovens economistas recém formados. A mesma dinâmica, isto é, um corpo docente altamente qualificado resultando numa formação de elevado nível, fez com que os cursos da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras atraíssem candidatos procedentes de outros estados e até do centro do País. Esses fenômeno contou com um fator que não pode ser esquecido. No começo da década de 1960 o Rio Grande do Sul contava com 3 universidades: a Federal do Rio Grande do Sul, a Federal de Santa Maria e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. As demais instituições de ensino superior do Estado encontravam-se em fase de projeto, no máximo em começos de implantação. A mesma situação valia para Santa Catarina e Paraná. Essa realidade canalizou inúmeros candidatos à formação superior procedentes de fora do Vale do Rio Dos Sinos e Porto Alegre. São Leopoldo evoluiu para uma autêntica cidade universitária com a movimentação da Rua Grande (Independência), nos bares e restaurantes, onde se reuniam rapazes e moças das procedências mais diversas do Rio Grande do Sul e de fora dele. Na época era comum ouvir a observação que em São Leopoldo todos os alojamentos, até os sótãos das casas abrigavam estudantes vindos de fora.

Superada a crise financeira e retirada pelos superiores maiores da Ordem a proibição de abertura de novos cursos, tanto a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, quanto a de Ciências Econômicas, entraram num ritmo acelerado de crescimento e ampliação. Não só foram implantados novos cursos como também tomadas iniciativas importantes de extensão.

Cursos de Matemática, física e História.

No ano de 1963 o embrião da Universidade do Vale do Rio dos Sinos entrou numa fase robusta de consolidação da sua base acadêmica. Além de se envolver em iniciativas tópicas em favor da comunidade do município de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Estância Velha, Dois Irmãos e outros mais do Vale do Sinos, projetos de maior abrangência e significado para o desenvolvimento para a região tiveram a origem nas duas faculdades então em funcionamento. A faculdade de Filosofia, Ciências e Letras contava naquela data com os Cursos de Filosofia, Letras Clássicas, Pedagogia, Ciências Sociais e História Natural. Em 1963 o Conselho Técnico Administrativo da Faculdade decidiu implantar os cursos de física, matemática e História. A história detalhada da implantação dos novos cursos pode ser encontrada no livro comemorativo dos 40 anos da Unisinos: “Um Sonho e uma Realidade – Unisinos – 1953-1969” (Edit. Unisinos, 2009). Como já lembrei mais acima o meu envolvimento com a formatação, ampliação e consolidação dos fundamentos da universidade começou desde seus primeiros começos em 1954. Nos primeiros 10 anos o foco principal do meu interesse foram as Ciências Naturais, com a instalação do primeiro laboratório coordenado pelo Pe. Hauser, ainda num quarto nos prédios do Colégio Cristo Rei. Mais tarde, em 1957 já cursando História Natural na UFRGS, dei a minha colaboração na implantação desse curso nos antigos prédios no centro de São Leopoldo. Minha atividade como docente começou em 1959, ministrando a disciplina de Geologia para os três alunos da primeira turma: Rolpf Gehlen, Flávio Luchese e Glésia Marques. Nos dois anos seguintes coube-me ministrar, além da Geologia, as disciplina de Mineralogia e Petrografia, além de participar do aperfeiçoamento da estrutura administrativa e acadêmica do curso, da elaboração do Regimento e da seleção de professores leigos. O fato de, a partir de março de 1960, estar comprometido com minha licenciatura em teologia e docência de Antropologia na UFRGS, entreguei os compromissos docentes de Mineralogia, Petrografia e Geologia a professores leigos escolhidos entre meus mestres da universidade federal: Ely Denhardt, Eugênio Gruhman, Paulo Lacerda e outros mais. Na época eu era jesuíta e estávamos ainda no período pré conciliar, a contratação do prof. Denhardt, um luterano e do prof. Gruhmann, um judeu, causou um tal ou qual espanto entre outros jesuítas.

Não cheguei a participar diretamente da criação e consolidação do Curso de Pedagogia além de colaborar no recrutamento de docentes e mais tarde lecionando Antropologia no formato de uma Introdução ao Estudo do Homem. Ao curso que me coube um empenho maior foi o de Ciências Sociais também no que dizia respeito ao recrutamento de docentes e mais tarde ministrando a disciplina de Antropologia Cultural. Em resumo essa foi a realidade acadêmica em que me envolvi até 1963 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da futura Unisinos.

A reviravolta para valer tomou corpo a partir do segundo semestre de 1963. Acima já lembrei que o meu exame “ad gradum”, isto é a conquista da licenciatura em Teologia aconteceu em 20 de setembro daquele ano. Com isso minha formação acadêmica como jesuíta estava concluída. Encontrava-me pois, em condições de dedicar-me em tempo integral à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no projeto da criação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Já que essa última exigia uma dedicação muito intensa, mantive o compromisso de 12 horas na primeira. A primeira providência foi morar na comunidade dos jesuítas na antiga sede da Unisinos no centro de São Leopoldo.

Ainda em agosto de 1963 ocorreu a instalação do curso de História. Na mesma ocasião foi decidido criar o Departamento de História e Ciências Sociais. Como o Pe. I. Schmitz viajaria em princípios de setembro para Kernten na Áustria para concluir a sua formação como jesuíta com um ano de “Terceira Provação”, fui eleito chefe do departamento que acabava de ser criado. Além do departamento coube-me assumir as preleções de antropologia dos dois cursos mais na Pedagogia onde a disciplina também constava no currículo. Como se pode deduzir falta de trabalho não foi problema somado aos compromissos com a universidade federal. Obviamente as primeiras providências focaram a consolidação do Departamento de História e Ciências Sociais numa unidade acadêmica interdisciplinar. A dificuldade de recrutar docentes qualificados e a consequente consolidação do Curso de Ciências Sociais criado em 1958 levou 5 anos. Nesses primeiros anos o curso enfrentou problemas sérios na formação de um corpo docente de bom nível. Começava por aí que não era fácil encontrar titulados nessa área específica. Nenhuma das três universidades em funcionamento no Rio Grande do Sul contava com programas de pós graduação “stricto sensu”. Os professores de sociologia também da URGS e da PUCRS costumavam ser recrutados entre formados em Direito, Economia e outras áreas. O curso de Ciências Sociais da Unisinos contou desde a sua criação com o Pe. Pedro C. Beltrão com doutorado em Sociologia pela universidade de Lovaina com enfoque na Sociologia da Família e Demografia. Além do Pe. Beltrão o prof. da disciplina Doutrinas Econômicas Gabriel Keglevich também era portador do título de doutor, mas em Ciências Econômicas pela universidade de Budapest. Completavam o corpo docente fundador o prof. de matemática Joaquim Blessmann Formado pelo ITA, Antenor Wink Brum estatística, Reinholdo Ullmann geografia humana, Ignácio Schmitz Antropologia, Jesus Hortal sociologia, Marcus Bach deontologia. Os superiores maiores dos jesuítas providenciaram nos anos que se seguiram a formação de um corpo docente com jovens recrutados nas próprias fileiras. Este foi reforçado e principalmente qualificado com o então Pe. Norberto Etges com doutorado em Sociologia pela Universidade de St. Louis, o Pe. Roque Lauschner graduado em Ciências Econômicas pela UFRGS e mais tarde com o doutorado em Sociologia Rural pela Universidade Gregoriana, o Pe. Odelso Schneider com doutorado pelo ILADES no Chile, o Pe. Ivo José Follmann com o doutorado em Sociologia pela Universidade de Lovaina.

Não foi esse o caso do Curso de História. No momento da instalação em agosto de 1963 contava com um corpo docente melhor qualificado. Esse conceito de melhor qualificado” evidentemente não se aplicaria aos requisitos acadêmicos exigidos para formar o corpo docente de um novo curso de graduação, a ser implantado quase 60 anos depois. Integravam o corpo docente fundador os professores Pedro Ignácio Schmitz, licenciado em História e Geografia e professor de Etnografia e Etnologia na universidade federal, Betariz V. Franzen, licenciada em História e Geografia da UFRGS, o Pe. Milton Valente com doutorado de Estado pela Sorbonne de Paris, o Pe. Oscar J. Nedel com doutorado em Biologia pela universidade de Munique, eu próprio na condição de professor de Antropologia na UFRGS e licenciado em História Natural e Geologia, também pela mesma universidade e licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo. Pode parecer estranho que o corpo docente fosse composto por titulares de áreas aparentemente distantes da história. Acontece que até aquela altura não existiam pós graduações “stricto Sensu” como já lembrado mais acima. Para obter um título de mestre ou PHD só em alguma universidade americana e o doutorado em universidades inglesas, alemãs, francesas, espanholas, italianas ou portuguesas. Essa situação explica que o critério mais comum quando se fundava uma nova faculdade ou um novo curso recorria-se ao “notório saber”,acolhido como válido na esfera da administração da educação no nível estadual e federal. Para exemplificar. Na criação da Faculdade Filosofia Ciências e Letras UFRGS, o corpo docente do curso de história foi recrutado entre formados em direito e áreas afins e outros, mesmo sem grau superior legalmente reconhecido como foi o do Pe. Balduino Rambo. Foram empossados como catedráticos fundadores a título de “notório saber”. Nos anos que se seguiram a maioria dos fundadores do curso de história da Unisinos conquistaram o título de “livre docente” na disciplina sob sua responsabilidade associado ao de “doutor” em Filosofia. Este foi o meu caso e do Pe. Ignácio Schmitz. A profa. Beatriz Franzen obteve seu doutorado pela Universidade de Lisboa. Com o correr dos anos os candidatos a vagas de titulares das disciplinas, tinham que ser obrigatoriamente portadores de título de “doutor” na área de História.

Depois desse inciso volto à instalação formal do Curso de História no segundo semestre de 1963. O candidato nato para o cargo de Chefe do Departamento vinha a ser naturalmente o Pe. Schmitz. Acontece, como acima já lembrei, ele partiria em setembro para a “Terceira Provação” em Kernten na Áustria. Foi por essa razão que fui escolhido pelo colegiado do curso como chefe do novo departamento. Acontece que o curso de Ciências Sociais até então funcionava sem estrutura departamental. O Pe. Nedel diretor da Faculdade que presidia a reunião propôs reunir num só departamento a História e as Ciências Sociais. Aprovada a sugestão saí da reunião como chefe do departamento de História e Ciências Sociais, situação que se prolongou até depois da criação oficial da Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 1969. As Faculdades de São Leopoldo agora formando uma universidade reconhecida pelo Ministério da Educação com o perfil da Reforma Universitária tornada obrigatória a partir de 1968 também para as instituições de ensino superior particulares, motivou o desmembramento em Departamento de História e Departamento de Sociologia. (Ciências Sociais). De então em diante continuei responsável por este último. Já em 1975 foi criado o Departamento de Filosofia e Teologia e, por nomeação do diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Pe. L. Mallmann, assumi esse novo departamento a partir de dezembro daquele ano. Entreguei a chefia do Departamento de Sociologia, para dispor de mais tempo na preparação da tese de Livre Docência associada à do Doutorado em Filosofia, defendida em 1976 na PUCRS.

Da Enxada à Cátedra [ 62 ]

O Ano de 1963

O ano de 1963 fixou-se na minha memória como decisivo, tanto no que se refere à formação acadêmica, quanto no rumo da atividade em duas universidades como docente e pesquisador. A fim de não embaralhar os acontecimentos nessas duas dimensões, falo primeiro da conclusão da formação teológica para depois detalhar o começo do envolvimento para valer na faculdade de Filosofia Ciências e Letras e na Faculdade Ciências Econômicas de São Leopoldo, embriões da futura universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Conclusão da formação teológica.

Mais acima já lembrei que fui aprovado no exame final do terceiro ano com um grau plenamente satisfatório para continuar no quarto e último ano em 1963 no da Teologia Maior. Essa condição habilitava-me prestar o exame o ad gradum”. Em poucas palavras esse exame cobria uma revisão dos três anos de Filosofia e dos quatro anos de Teologia.

O ritual daquele último ano previa a frequência das preleções durante o primeiro semestre. Em meados de maio foi-me entregue uma relação de 100 teses: 50 de filosofia e 50 de teologia de cujos conteúdos deveria dar conta perante a banca que seria constituída para o exame “ad gradum”. Com as 100 teses na mão estava dispensado da assistência às preleções. Aqui cabe um esclarecimento para o fato porque essas teses me foram entregues em meados de maio e não em julho como costumava acontecer. Acontece que o Pe. Ignácio Schmitz fora destinado pelos superiores para fazer a “terceira provação”, o ano de fecho da formação dos jesuítas, em Kerten na Áustria, a partir de setembro daquele ano. Com isso caberia a mim assumir as preleções sobre os tupis-guaranis na universidade federal do Rio Grande do Sul e as de Antropologia na Faculdade Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo.

De posse das 100 teses, o exame do “ad gradum” foi marcado para o dia 20 de setembro. Dispunha, portanto, de pouco mais de 4 meses para dar conta dos conteúdos. Continuei dando regulamente as aulas na universidade em Porto Alegre nas terças à tarde e nas quartas nos dois turnos. Nos demais dias mergulhei o mais fundo possível nos conteúdos relacionados nas teses que seriam objeto dos questionamentos que os examinadores fariam no dia do exame. A fim de evitar ao máximo qualquer perturbação e permitir a necessária concentração não costumava estudar no quarto. Nos dias de chuva recolhia-me ou na casa das abelhas já referida acima, ou na cabana escondida no meio de um bosque natural perto da lagoa do Cristo Rei. Nos dias de sol optava pelo bosque de árvores nativas até hoje parcialmente preservado na encosta à direita da avenida Unisinos subindo a partir da estação do trem. Foram 4 meses em que mergulhei o mais profundamente possível na doutrina e no pensamento dos Padres fundadores da Igreja, dos teólogos formuladores da doutrina, com ênfase na Escolástica: Aristóteles cristianizado por São Thomas de Aquino, Platão, Sto. Agostinho, Suarez, as Sagradas Escrituras, os Evangelhos, as Cartas de São Paulo, São Pedro, a doutrina e dogmas definidos nos diversos concílios, especialmente no de Trento, os teólogos posteriores de maior relevância, os nomes de referência em Exegese, Moral, Direito Canônico, História da Igreja, ocuparam todos os espaços disponíveis naqueles 4 meses. A tudo isso veio somar-se a revisão dos 3 anos de filosofia compreendendo a complexidade, a convergência e divergência natural nos grandes campos compreendidos pelo conceito Filosofia ou formação Filosófica: a Lógica, a Ontologia, a Ética, a Cosmologia, a História da Filosofia e por aí vai. Lembro-me com um toque de nostalgia daqueles 4 meses em que passei dia após dia sozinho, quase como um eremita, naquele bosque emblemático envolto de um clima perto do místico, o farfalahr do vento na copa das árvores, o canto dos pássaros, o zumbido de um uma colmeia de abelhas aninhado no oco de uma figueira do mato e naquela casinha do apiário escutando como melodia de fundo o zumbido de milhões de abelhas, indo e vindo das 40 ou 50 colmeias alinhadas por perto, somado ao perfume paradisíaco das laranjeiras em flor no começo da primavera. Não poucas vezes nem voltava para o Colégio para o almoço. Um bom chimarrão e uma marmita preparada por meu especial amigo, o irmão cozinheiro, permitiam que não se desperdiçasse o precioso tempo. Lá pelo dia 15 de setembro a frente de combate estava alinhada na minha cabeça para encarar as investidas da banca formada por cinco cabeças iluminadas, dispostas a tirar o couro de quem pretendesse fazer parte futuramente da categoria dos “professos”, vencendo a barreira do “exame ad gradum”. Cabe aqui um pequeno inciso. Mais acima já lembrei que os sacerdotes jesuítas dividiam-se em duas categorias: “os coadjutores” e “os professos”. Integrar a categoria dos “professos” pressupunha a aprovação no “exame ad gradum” e ou em casos de qualidades humanas espirituais notórias daqueles que não chegaram a se submeter ou não foram aprovados nesse exame. Quanto me recordo eu fui o único da minha turma de teologia que chegou a prestar esse exame. Os “professos” emitiam, posteriormente, além dos três votos normais: pobreza, castidade e obediência, um quarto, o voto de obediência direta ao papa. Formavam, por assim dizer uma elite dentro da ordem. De suas fileiras costumavam ser indicados os responsáveis por cargos de importância maior como superiores provinciais, superiores de faculdades de teologia, o superior geral da ordem e outros mais. Como já referi “coadjutores” que se distinguissem como bons administradores, cientistas e ou em outras tarefas a eles confiados, costumavam ser promovidos a “professos”. Entre os meus conhecidos cito duas dessas promoções. A primeira delas foi a do Pe. Edvino Friederichs, meu antigo professor de Ciências Naturais no Ginásio em Salvador do Sul. Pela sua capacidade administrativa fora do comum ocupou por duas vezes o posto de Provincial da Província Sul-brasileira da Companhia de Jesus e, consequentemente promovido a professo. O segundo exemplo foi o Pe. Ignacio Schmitz promovido a professo pelo nome conquistado com professor na universidade federal do Rio Grande do Sul e Unisinos somado à excelência de suas pesquisas arqueológicas que lhe renderam reconhecimento nacional e internacional. Mas, é preciso lembrar um detalhe pouco conhecido que assegurava ao professo uma garantia na própria ordem. Se por algum motivo os superiores decidissem desligar um professo, o quarto voto lhe garantia que o processo tramitasse não nas instâncias internas da Ordem mas no nível superior da Congregação dos Religiosos órgão ligado e subordinado diretamente ao papa.

Voltando ao meu exame ad gradum. Os dois ou três dias que o precederam restringi-me a uma recapitulação diária dos conteúdos. De resto procurava ocupar a mente caminhando pela bela natureza que na época ocupava toda a área onde hoje se ergue o complexo da Unisinos, o convento das carmelitas e arredores. Não podia faltar um chimarrão com meu pequeno de estatura mas grande amigo, o irmão Domingos Vinoti responsável pelas vacas e porcos, onde hoje se encontra o convento das carmelitas. Na véspera, 19 de setembro, obedecendo à orientação em vigor na época para os jesuítas em formação, procurei não me ocupar com os conteúdos a serem objeto de interrogações na manhã seguinte. Passei o dia perambulando nos lugares já mencionados, tentando ignorar por algumas horas tudo que fervia na minha cabeça e tentando fazer de conta que a manhã seguinte não passaria de uma troca de ideias com cinco eminências, doutores em filosofia e teologia.

Dia 20 de setembro de 1963. Chegara finalmente o dia de prestar contas do que aprendera e guardava na forma de conhecimento dos 3 anos de filosofia e dos 4 de teologia. Às 7h. em ponto entrei na sala destinada para o exame que se estenderia até às 11,30h. Atrás de uma comprida mesa esperavam da esquerda para a direita os padres Balduino Kipper, exegeta, Cândido Stefani, teólogo, Godofredo Kessler, teólogo e presidente da banca, Antônio Steffen, filósofo e Luiz Muller, também filósofo. As primeiras duas horas foram reservadas para a Filosofia, isto é, das 7h. até às 9h. Das 9 às 9,30 um intervalo para um lanche. Nesse lanche uma guloseima à base de moranguinho vinha a ser a maior curiosidade e não podia faltar. Acontece que na época os moranguinhos da horta do colégio ainda não estavam maduros. O Pe. Kessler se deu o trabalho de no dia anterior viajar de ônibus a Porto Alegre e comprar um quilo ou dois no mercado público. A presença obrigatória do moranguinho naquele intervalo do “exame ad gradum” inspirou o jargão entre os estudantes e professores da faculdade Teologia do Cristo Rei: “comer moranguinhos”. O fulano vai “comer moranguinhos” significava que fora considerado habilitado a enfrentar o “exame ad gradum”. Pois, em companhia dos examinadores, fui até o refeitório tomamos um lanche reforçado acompanhado dos emblemáticos moranguinhos. Pelo tom da conversa e a maneira como me trataram deu para perceber que a metade da batalha estava vencida. Das 9,30 às 11,30 foi a vez de ser sabatinado pelo padre Kipper sobre a Sagrada Escritura e os padres Kessler e Stefani sobre teologia propriamente dita. Saí exausto e acabado daquela batalha em que meus conhecimentos de filosofia e teologia foram virados às avessas, tudo em latim. O ritual prescrevia que o resultado seria comunicado mais tarde pelo secretário ou, novamente no jargão da ordem, pelo sócio” do Provincial. Mas, pelas manifestações dos examinadores ao sairmos da sala do exame não havia lugar para dúvida de que me saíra muito bem no entrevero. E, de fato, mais ou menos um mês depois fui buscar na Cúria do Provincial a confirmação que fora aprovado e o secretário da Faculdade de Teologia expediu o certificado de licenciado. Guardo esse documento até hoje como a relíquia que marcou o encerramento da minha formação acadêmica no nível superior, somado ao bacharelado em Línguas e Literatura Clássicas, bacharel e filosofia, bacharel em História Natural e Geologia. Para a formação como jesuíta faltava ainda o ano da “Terceira Provação”, isto é, 10 meses dedicados a uma imersão sistemática e definitiva no espírito da Ordem. Não cheguei a passar por essa experiência pois, após alguns anos de adiamento resolvi me desligar da Ordem. Esse, porém, é um assunto que deixo para mais abaixo.

Da Enxada à Cátedra [ 61 ]

A seguinte estação da nossa viagem veio a ser Itaqui. Ao escurecer alcançamos o rio Itaqui. Na época ainda não havia ponte e a travessia do rio dava-se por barca. Acontece que a barca não funcionava depois do escurecer. O que fazer?. Não havia nenhuma possibilidade de encontrar um estabelecimento para pernoitar. A saída foi pernoitar na margem do rio, esperar o clarear o dia para a barca nos levar até a outra margem. O Berensen e o Alcides acomodaram-se nos bancos da Wemagete e eu juntei umas braçadas de capim seco e enrolado num poncho passei a noite acomodado de baixo de um Sarandi na margem do rio.

Na manhã seguinte seguimos viagem até Itaqui. Não há muito a anotar sobre a visita aquela cidade. A uma certa altura ao caminhar pelo centro da cidade, ao atravessar a praça topamos com um senhor que veio ao nosso encontro e nos saudou. Pela aparência e estilo da roupa devia ser algum estancieiro que morava na cidade. Depois de nos identificarmos, o Berensen chefe do escritório da multinacional Ferrostahl em Porto Alegre, o Alcides coordenador da Faculdade de Ciências Econômicas em São e eu professor na Universidade Federal de Porto Alegre além das faculdades em São Leopoldo e informarmos o porque da nossa viagem pelo Rio Grande do Sul, ele tirou o chapéu, fez uma mesura e disse: “então vocês são coisa muito lá por cima!” Convidou- nos para conhecer a sua casa. Morava num bela e ampla mansão bem no centro. Acomodados na sua sala de estar ornamentada com símbolos gaúchos, pinturas e fotografias, conversamos por uma boa hora. Insistiu que almoçássemos com ele. Enquanto assava uma picanha no espeto continuamos a conversa até a hora do almoço pelo meio dia. Aquele encontro não programado fez com que levasse para o resto da vida uma recordação agradável daquela cidadezinha na barranca do Rio Uruguai. A figura daquele estancieiro trabalhador, honesto e de uma simpatia cativante fixou-se na minha memória como uma fotografia que não se esquece. Depois do almoço despedimo-nos do estanceiro para ainda na mesma tarde visitar as ruínas de São Miguel das Missões.

Ao por do sol paramos em frente a sede com o museu das Missões em São Miguel Arcanjo uma das sete Reduções, como já lembrei mais acima. Na época não havia nem pousada muito menos um hotel para passar a noite. A solução foi a mesma daquela da noite anterior passada na margem do Itaqui. O Berensen e o Alcides acomodaram-se nas “poltronas” da wemaguete e eu na varanda do museu. Depois de um lanche que serviu de janta ficamos conversando por um bom tempo tendo como cenário à nossa frente a fachada da imponente igreja severamente maltratada pelo tempo, porém, irradiando, por isso mesmo um fascínio indescritível. Acomodei-me do jeito que deu entre as estátuas esculpidas pelos artistas guaranis e a emblemática “Cruz de Lorena” esculpida num bloco de arenito, testemunha da obra civilizatória única empreendida pelos missionários jesuítas no século XVII e XVIII. Passei a noite praticamente em branco, não pelo cansaço mas, pelo cenário que me rodeava. Mais acima tentei descrever e mostrar o que as Missões representaram e ainda representam para conhecer e avaliar a história da América tanto espanhola quanto portuguesa. Aquela noite e todo o dia seguinte pude apreciar e sentir in loco o significado daquela experiência única sendo construída naquele cenário. Felizmente as ruínas de São Miguel são hoje protegidas como patrimônio cultural da humanidade. Tornaram-se um centro de visitação pública por parte de turistas curiosos, historiadores, arquitetos, urbanistas, artistas, de preferência escultores e, não em último lugar por peregrinos para quem esse cenário é sagrado. Aliás a atmosfera do sagrado, do espiritual, do místico que paira sobre esse pedaço chão no noroeste do Rio Grande do Sul, Norte da Argentina e sul do Paraguai, reveste-se de um sentido todo especial pois, foi ai que foram martirizados Roque Gonzales, Afonso Rodrigues e João de Castilho, hoje venerados como santos pelos católicos.

Ao clarear do dia flagrei-me a poucos metros da fachada da igreja maltratada pelo tempo com sua torre emblemática. A poucas dezenas de metros onde passara a noite a enorme cruz de Lorena, símbolo das reduções, como que vigiando as ruínas da sede da redução, em parte vítimas das intempéries mas, vítimas também da depredação dos herdeiros da Missão transformando-a numa autêntica pedreira, pilhando o material das construções. A primeira visita foi às ruínas da igreja. Ainda não gozando da proteção e vigilância do patrimônio histórico, sem infraestrutura adequada e sem guias e guardas, o interior tomado pelas macegas, as paredes danificadas pela ação do tempo, evidentemente sem vestígio da cobertura, sem querer, a “melancolia da história” continuava pairando sobre aquele cenário. O passo seguinte foi a visita ao cemitério à direita do templo. Continua a receber os falecidos das proximidades. Compreensivelmente pouco ou quase nada restou das sepulturas originais dos guaranis. Do lado direito da igreja, também tomado pelo mato os alicerces da moradia dos missionários. Em seguida foi a hora de dar uma caminhada pelos terrenos cobertos de mato e macega onde os nativos, sob a orientação dos missionários, cultivavam hortas para suprir as necessidades dos moradores e dos padres. Na etapa seguinte percorremos o conjunto de ruínas tomadas parcialmente pelo mato, da aldeia propriamente dita, sede da redução ocupando as laterais e os fundos de uma grande praça central. Na frente diretamente para a praça alinhavam-se as moradias dos índios e nos fundos as oficinas, depósitos, artesanatos, ateliers de arte sacra. A grande praça servia de palco para cerimônias, religiosas, competições esportivas, apresentação de peças de teatro, exibições de ginástica e outras programações de interesse coletivo. Mais acima já lembrei que o comando supremo da administração de uma redução cabia aos missionários nela residentes. Em assembleia presidida pelos missionários escolhia-se um chefe maior, hoje diríamos prefeito e um conselho superior formado, na conceituação de hoje, por uma “Câmara de Vereadores”. As catequeses e demais modalidades de formação religiosa e profana eram dadas na língua dos nativos. Em escolas e cursos específicos as mulheres apropriavam-se das artes e ofícios domésticos e os homens aprendiam principalmente a arte da escultura em madeira e arenito, a pedra predominante da região, além de ofícios como de ferreiro, marceneiro, funileiro e outros mais.

Na redução de São Miguel Arcanjo o missionário Anton Sepp nascido em Brixen ou Bressanone no Tirol do sul hoje sob a jurisdição da Itália, portador de uma formação acurada em música no Conservatório de Londres, perito em outras especialidades, fez funcionar com seus Guaranis a primeira usina de fundição de ferro do Brasil recorrendo à ”pedra cupim” como minério. Sob sua orientação foi instalada a primeira tipografia e o primeiro livro impresso no Rio Grande do Sul. Das oficinas, forjas e fundições de São Miguel saíram sinos e todo o tipo de ferramentas indispensáveis na agricultura, nas artes e, porque não, armas indispensáveis em momentos de ameaça às reduções.

No meio da tarde demos uma esticada até a margem do rio Piratini onde se encontravam as pedreiras para extrair as pedras para as construção da igreja, moradias, oficinas etc. Chega a ser espantoso o trabalho e o empenho em buscar as pedras de construção a uma tal distância e nas condições de transporte no século XVII e XVIII. Sem querer vem à memória, preservadas as devidas proporções, as pirâmides do Egito erguidas com blocos incomparavelmente maiores, mais pesados e transportados de uma distância muito maior do que os da redução de São Miguel.

Depois dessa peregrinação física e, principalmente histórica, pelo cenário geográfico e a visita às ruínas de São Miguel, uma questão de fundo continua desafiando os estudiosos do modelo de organização social, política, econômica, religiosa sui generis, tomava forma e consolidava-se no norte da Argentina, no sul do Paraguai e noroeste do Rio Grande do Sul. Em primeiro lugar não se pode esquecer que os nativos das reduções encontravam-se sob a jurisdição colonial espanhola e como tais considerados súditos da coroa da Espanha, não passavam de uma reserva de possíveis escravos a ser explorada pelos bandeirantes. Como já lembramos mais acima, os nativos corriam o permanente risco de caírem nas mãos dos bandeirantes e reduzidos à escravidão. E, como é lícito interpretar, resultou no desastroso e, para não dizer criminoso, tratado do redesenho das fronteiras entre Madrid e Lisboa. Já lembramos mais acima que os índios que não se refugiaram com seus missionários na margem direita do rio Uruguai foram caçados e escravizados pelos bandos de Raposo Tavares ou simples e puramente trucidados e os sobreviventes retornaram à vida tribal nas florestas do Alto Uruguai, Oeste de Santa Catarina e Oeste do Paraná. Um número considerável dificilmente dimensionável foi diluído na voragem da miscigenação resultando no tipo humano conhecido como missioneiro”.

Depois de todas essas visitas, observações e conclusões feitas sobre a missões jesuítas em geral na América latina e, especialmente sobre o Sete Povos no Rio Grande do Sul, ficou em aberto a pergunta chave. Depois das muitas análises feitas em encontros de antropólogos, historiadores, sociólogos,políticos,estudiososdareligiosidadeedasreligiões,nãosechegoua umaresposta conclusiva definitiva; depois de inúmeras matérias pertinentes publicadas em revistas especializadas e em livros; depois de vasculhar os documentos guardados na Biblioteca Nacional, nos arquivos de Assunion, Buenos Aires, Lisboa, Madrid, Roma, além da monumental coleção “De Angelis”, tudo reunido em microfilmes pelo Pe. Arnaldo Bruxel, não dispomos de uma resposta conclusiva sobre duas questões. Sobre a primeira. Quais os fundamentos Sócio filosóficos e religiosos sobre os quais estava sendo consolidado, o assim por vezes apelidado, “Império dos jesuítas?” (Até um lendário imperador Nicolau I, fruto da imaginação aparece nas lendas das missões) ou “República Socialista – Comunista Guaranítica”. Penso que, considerados ospersonagens envolvidos, os jesuítas e guaranis e outros povos nativos, a resposta situa-se num meio termo. “In medio stat virtus – “A virtude ou a verdade encontra-se no meio termo”, como ensina a antiga sabedoria romana. Parece que para entender essa experiência única na história de uma organização de grandes proporções não se pode esquecer que os missionários jesuítasrecorreram à estratégia de “cristianizar os nativos”, deixando espaço para concretizar-se paralelamente uma “nativização do cristianismo”. Tento explicar. Os missionários não começaram desmontando a estrutura tribal, base da sociedade dos nativos. Equiparam-na com o que havia de mais moderno da época em termos organização urbana, material de construção e estilo de moradia e instalações complementares, como pode ser deduzido da descrição mais acima da redução de São Miguel. O verdadeiramente novo parece ter sido a igreja, o cemitério, a moradia dos padres, à escola e às oficinas, como referência central da redução, além da escola, oficinas e demais instalações que variavam de acordo com as características circunstanciais de cada redução. Os missionários valiam-se da língua dos indígenas nas escolas e na catequese. Para tanto elaboraram gramáticas, catecismos etc. nessas línguas. Os problemas mais complicados e de difícil solução na fase inicial dessa miscigenação, foram com certeza a poligamia e a antropofagia, praticada pelos guaranis das Sete Missões no Rio Grande do Sul. Pela alfabetização e consequente abertura para um mundo além das fronteiras tribais e o contato com a cultura, principalmente a europeia e suas conquistas científicas e tecnológicas ou a “europeizização” foi conquistando cada vez mais espaço. Pela sua importância como fator sem o qual o progresso e a sustentabilidade não tinham como se manter foi o cultivo de alimentos e a criação de rebanhos bovinos, somados aos demais animais domésticos. Mais acima já lembramos que o plantel do qual descendiam as centenas de milhares, senão milhões de cabeças de bovinos na “Vacaria do Mar” no centro sul do Estado e na “Vacaria dos Pinais” em cima da serra, foi introduzido pelo missionário Cristóvão de Mendonça na primeira metade da década de 1630.

Quanto à agricultura e produção de insumos indispensáveis para o diário de uma redução, é preciso alertar que os guaranis, por ex., viviam no Neolítico, isto é, da era da pedra polida praticando uma horticultura primitiva. Num regime de terra comunitária e de agricultura desenvolvida nessas condições os produtos de maior interesse para garantir o abastecimento da redução costumavam ser considerados um bem comum armazenados em depósitos comunitários. Ao mesmo tempo cada agricultor tinha direito a uma parcela do produto do seu trabalho a título de propriedade particular. Essas peculiaridades do uso da terra na produção agrícola levam à conclusão que nas reduções vigorava um regime intermediário, “uma terceira via” a qual classificaríamos hoje como “Solidarismo”, pelo menos muito próximo a esse conceito. Cem anos mais tarde o bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler definiu em seus célebres sermões em dezembro de 1848, o direito natural à propriedade e o limite da mesma ditada pelo direito dos outros, base que leva o Solidarismo a uma terceira via entre o Capitalismo Liberal e o Capitalismo do Estado. Mas, essa discussão já foi objeto de reflexão mais acima.

No nível da organização sociopolítica as reduções gozavam de autonomia. Ligava-as, porém, entre si a orientação dos superiores maiores dos missionários com sede em Assunción do Paraguai. A exportação de erva-mate, couros e outros bens revertiam para o patrimônio comum de cada redução. Esse modelo de organização das reduções evidentemente deve ter gerado preocupações tanto da coroa portuguesa quanto da espanhola pois, para muitos, principalmente as autoridades, sinalizava para o perigo de uma confederação autônoma ao modelo em andamento nas colônias norte americanas. Esse fantasma ameaçava tornar-se realidade na medida em que as missões progrediam com o aporte de tecnologias modernas, como fundição de ferro, ferramentas e armas de fogo. As consequências do tratado de Madrid desencadeou uma luta sangrenta, na qual se notabilizou o capitão guarani Sepé Tiaraju. Depois de dois anos de escaramuças e autênticas batalhas, os índios foram derrotados. Um contingente atravessou o rio Uruguai e foi refugiar-se no norte da Argentina e sul do Paraguai. Terminada a guerra em que milhares de índios morreram nos combates, inúmeros outros caíram nas mãos dos bandeirantes e reduzidos a escravos enquanto um número não menor refugiou-se nas florestas mais ao norte na margem esquerda do Uruguai, regredindo gradativamente ao nível tribal e à primitividade dos ancestrais de 150 anos antes.

Só para satisfazer a imaginação. Se o “Império” ou “Reino” ou República” temidos por uns e glorificados por outros tantos, se tivesse concretizado, a história da América do Sul teria tomado um rumo completamente diferente e o desenho do mapa geopolítico, além do nível cultural irreconhecivelmente outro do que o de hoje. Depois dessas reflexões estamos em condições de levantar o acampamento em São Miguel e continuar a viagem até São Luiz Gonzaga, outra sede de Redução.

As reduções de São João Batista e São Luiz Gonzaga encontram-se em estado bem mais precário do que São Miguel. De qualquer forma paira sobre os fragmentos de São Luiz Gonzaga e a igreja reformada permitindo do alto de sua torre uma visão sobre as redondezas, as ruínas encobertas pela vegetação de São João e a catedral de Santo Ângelo, réplica da igreja de São Miguel, a mesma atmosfera de “melancolia da história” como a observada pelo Pe. Rambo.

Pernoitamos em São Luiz Gonzaga e na manhã seguinte seguimos viagem com uma breve parada nas ruínas de São João, uma visita rápida à catedral de Santo Ângelo. De lá continuamos a nossa viagem até Santa Cruz do Sul, onde pernoitamos. Na manhã seguinte visitamos a catedral, percorremos o centro da cidade com uma parada na sede da Souza Cruz. À meia tarde enfrentamos os últimos 100 quilômetros até São Leopoldo, nossa residência no Colégio Cristo Rei. O Berensen voltou a Porto Alegre onde residia e o Alcides e eu retomamos a rotina do restante das férias: um retiro de oito dias, um curso intensivo de Hebraico e, no meu caso a preparação das preleções na Universidade Federal e as de Geologia na Faculdade de Ciências e Letras de São Leopoldo.