Da Enxada à Cátedra [ 66 ]

Valorização do Vale do Rio dos Sinos. Acontece que as contribuições a serem oferecida pelas Faculdades de São Leopoldo até 1963 não estavam esgotadas com as há pouco lembradas. Durante aquele ano, novamente em sintonia com o Conselho Comunitário do município de São Leopoldo, do prefeito Clodomiro Martins, da Câmara de Vereadores, do engajamento da Associação Comercial e Industrial, da Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos, a Faculdade de Ciências Econômicas assumiu e liderou um audacioso projeto de “Valorização do Vale do Rio dos Sinos. Em ressumo tratava-se de um “Projeto de Desenvolvimento Regional e de Promoção Humana”. A primeira etapa consistiu em proceder a um diagnóstico da situação geográfica e sócio econômica, destacando as potencialidades da região, os problemas acumulados por uma história de 150 anos e as iniciativas a serem tomadas e postas em prática a fim de evitar um desenvolvimento errático da região. Só para chamar a atenção. Uma situação em linhas gerais idêntica à bacia do Sinos podia ser estendida para as demais bacias do Gravataí, Caí, Taquari, Pardo e Jacuí, todos confluindo para formar o lago Guaíba. O Projeto de valorização regional, objeto dessa parte das minhas memórias, ajustado às peculiaridades de cada uma das bacias mencionadas, poderia servir de protótipo para todas. Aliás iniciativas nesse sentido foram tentadas uma década mais tarde para o Caí e o Taquari não passando, porém, de esboços que não foram levados em frente. Depois dessa observação voltemos ao projeto da bacia do Sinos.

Guardo como uma preciosidade a cópia do texto original que serviu de base para conquistar o apoio das autoridades locais, estaduais, federais e que motivou a assinatura do convênio de Apoio Técnico” entre o Governo Brasileiro e a RFA (então República Federal da Alemanha).

O primeiro passo de um projeto regional consiste em delimitar a sua abrangência geograficamente. No projeto interessava a bacia fluvial do rio dos Sinos. Com uma superfície de aproximadamente 4.000 quilômetros quadrados, situado no Rio Grande do Sul entre a latitude sul entre os paralelos 29o e 30 min e 29o 56min e entre os meridianos entre os 50o20min e 51o18min latitude oste de Gr. No momento da elaboração do projeto entre 1962 e 1963 a bacia do Sinos contava com 13 municípios formando a Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos. Os municípios surgiram de distritos emancipados de quatro “matrizes” históricas: Santo Antônio da Patrulha, São Leopoldo, Taquara e Canoas.

O clima, tomando a média anual de 19,9oC como base, enquadra-se no conceito de clima subtropical e temperado, com uma média de 25oC no verão e 15oC no inverno. As chuvas são mais ou menos uniformemente distribuídas durante o ano todo. Não se notam diferenças muito acentuadas entre os meses do verão e do inverno, outono e primavera. Observa-se uma boa diferença na média da precipitação entre as três regiões em que o rio dos Sinos pode ser dividida. No alto Rio dos Sinos fica em torno de 2.000 mm, na região média 1.600 e na baixa cerca de 1.00mm.

A densidade demográfica, baseada no recenseamento geral de 1960 apresenta os seguintes números. Nos municípios no Alto Rio dos Sinos: Santo Antônio com 1292 quilômetros quadrados – 54.738 habitantes; Rolante com 415 quilômetros quadrados – 16.381 habitantes; Três Coroas com 163 quilômetros quadrados – 6.041 habitantes; Taquara com 594 quilômetros quadrados – 33.010 habitantes. Total da região: 2.464 quilômetros quadrados – 110.170 habitantes.

Municípios do Médio do Rio dos Sinos. Sapiranga com 190 quilômetros quadrados – 11.984 habitantes; Campo Bom com 56 quilômetros quadrados – 8.541 habitantes; Dois Irmãos com 301 quilômetros quadrados – 11.717 habitantes; Estância Velha com 198 quilômetros quadrados – 11.493 habitantes; Novo Hamburgo 2111 quilômetros quadrados – 53.916 habitantes. Total da região: 956 quilômetros quadrados – 97.653 habitantes. Municípios do Baixo Rio dos Sinos: São Leopoldo com Sapucaia do Sul: 175 quilômetros quadrados – 82.238 habitantes; Esteio: 40 quilômetros quadrados – 22.217 habitantes; Canoas 313 quilômetros quadrados – 104.257 habitantes. Total da região: 528 quilômetros quadrados – 208.712 habitantes.

Total geral da região geopolítica do Vale do Rio dos Sinos: 3.948 quilômetros quadrados – 416.535 habitantes.

Quanto à distribuição da população urbana e rural os números somam: Para o Alto Rio dos Sinos: Urbana 30.993 – Rural 79.177; para o Médio Rio dos Sinos: Urbana 68.373 – Rural 29.280; para o Baixo Rio dos Sinos: Urbana 167.653 – Rural 41.080. À população urbana cabem apenas 35,9%, enquanto a população rural cobre 64,1%.

Outro dado importante cabe à densidade populacional. No Alto Rio dos Sinos correspondem 44,71 habitantes por quilômetro quadrado, no Médio Rio dos Sinos 102,14 e no Baixo Rio dos Sinos 395,29. Esses dados mostram que a densidade populacional média da região fica em 105,5 habitantes por quilômetro quadrado. Percebe-se, portanto, um expressivo adensamento populacional na medida em que a região converge para Porto Alegre com seu complexo industrial em acelerado crescimento, expandindo-se para dentro do vale do Sinos, favorecendo a formação de núcleos e bairros urbanos que reclamavam as devidas providências para enfrentar as enchentes periódicas, o saneamento básico, abastecimento de água, vias de circulação, disciplinamento da instalação de distritos industriais e por aí vai.

Com os dados acima em mãos foi constituído no segundo semestre de 1963 um grupo de trabalho com a tarefa de elaborar um projeto de “Valorização do Vale do Sinos”, nos moldes a ser apresentado às instâncias municipais, estaduais e federais com o objetivo, em primeiro lugar do apoio oficial e, em segundo lugar, buscar suporte técnico e financeiro para executá-lo. Foi nessa fase que entrei de corpo e alma no projeto. Compuseram o grupo de trabalho o Pe. Marcus Bach, diretor da Faculdade de Ciências Econômicas, o coordenador da mesma, Alcides Giehl, o chefe do Departamento de Economia prof. Arthur Rambo, o Prof. Lenine Nequete e o aluno Reinaldo Adams. O grupo contou com a assessoria do sr. Georg Berensen, na época chefe do Escritório da Ferrostal do Brasil em Porto Alegre, empenhada na implantação da Aços Finos Piratini. A colaboração de Berensen foi de fundamental importância na fase da apresentação do Projeto ao Governo da República Federal da Alemanha em busca de financiamento para a realização do empreendimento.

O grupo de estudos constatou de saída que a solução para contornar os problemas causados pelas enchentes implicava envolver o conjunto de desafios envolvidos no desenvolvimento da bacia do rio como um todo. A solução para as cheias, portanto, deveria ser encarado como uma parte de uma situação regional e neste contexto outros aspetos não podiam deixar de fazer parte do Projeto. A “Valorização” deveria necessariamente ser compreendida como um projeto de desenvolvimento regional, tomando em consideração o controle das enchentes, abastecimento de água, saneamento básico, planejamento urbano, localização de distritos industriais, malha rodoviária, florestamento e reflorestamento das encostas, navegação fluvial, modernização da agricultura e animais domésticos, fomento da horticultura e fruticultura, criação de gado leiteiro, implantação de aviários e tantas outras potencialidades viáveis nas variações climáticas locais e características geomorfológicas e edafológicas da região. Ainda em 1963 o projeto foi concluído.

De outra parte, impunha-se obviamente que um projeto dessa natureza não podia ser levado em frente sem o conhecimento e o apoio das autoridades públicas e privadas nele interessadas. Foi preciso expor o projeto para a Associação dos Prefeitos do Vale do Sinos assim como conquistar a parceria de cada legislativo e executivo municipal. Ao mesmo tempo o Projeto foi apresentado aos órgãos públicos estaduais e federais, órgãos de classe, conselhos comunitários sem o apoio dos quais a execução seria inviável. Esse relacionamento entre a Faculdade de Ciências Econômicas e os parceiros que acabamos de mencionar, contou com um poderoso facilitador. Um bom número dos professores da Faculdade eram profissionais ligados a entidades de classe, repartições e órgãos públicos. Assim, por ex., o prof. Ary Burger ocupava a presidência do Banco Regional de Desenvolvimento Econômico, o prof. José Cinel ligado à Associação Comercial de Porto Alegre e outros ainda, além de exercerem profissões liberais, lecionavam na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Universidade Católica de Porto Alegre. Em todas as instâncias o projeto teve um inesperado bom acolhimento. No plano estatual o Governador Ildo Meneguetti pôs à disposição o aparato da burocracia e infraestrutura técnica. No plano federal o apoio foi igualmente favorável. Os resultados dessas múltiplas tramitações nas diversas esferas públicas e privadas acham-se condensadas na ata da Congregação da Faculdade de Ciências Econômicas de 29 de junho de 1963

Neste sentido, por iniciativa da Faculdade, está em estudo um Plano de Retificação do Rio dos Sinos, que deverá ser realizado com a ajuda do Governo Alemão no que se refere ao setor técnico e financeiro que ora se encontra no Itamarati. Este plano terá duas facetas: Uma a retificação do rio dos Sinos. De caráter técnico que será elaborado pelos técnicos alemães; outra socio- antropológico-cultural-econômica em que trabalharão os nossos professores e alunos cujas equipes já estão constituídas. O Projeto já passou pelo Itamarati com parecer favorável e apresentado por Egydio Michaelsen ao Governo alemão e por ele aprovado. Para fevereiro de 1964 está anunciada a chegada de um perito do Governo Alemão para definir a colaboração com a Faculdade de Economia.

Seguiram meses de contatos, entendimentos e acertos como preparação para receber a equipe de técnicos alemães. No ofício 001 de 1964, dirigido ao sr. Valnir Chagas, conselheiro do Conselho Federal de Educação consta o comunicado da aprovação com elogios do Projeto Rio dos Sinos pelo Itamarati e o Governo Alemão, informando também a vinda de um técnico do Governo Alemão em fevereiro de 1964. O técnico anunciado, entretanto, não chegou em fevereiro mas, no mês de julho, como consta no Diário de Notícias, edição de 14 de julho ao noticiar a presença do técnico alemão Leo Büttner, representante do governo daquele país acompanhado pelo engenheiro Rolf Ramm, representando a firma Agrar und Hydrotechnik, especializada em planejamento regional, empresa a ser contratada pelo Governo Alemão para elaborar o projeto definitivo.

Como o mês de julho coincidia com as férias de inverno tanto na UFRGS quanto nas Faculdades de São Leopoldo onde lecionava, assumi a tarefa de acompanhar os dois técnicos nas suas visitas pelo vale do Rio dos Sinos principalmente as prefeituras e tomando contato com a características geomorfológicas, hidrológicas, edafológicas, a realidade agrária, a expansão urbana, as condições e meios de circulação etc. Como base das observações “in loco” os dois técnicos elaborariam seu parecer sobre a viabilidade ou não do projeto apresentado. Um acerto com a Secretaria de Obras Públicas do Estado e a Faculdade de Ciências Econômicas, resultou na disponibilização de uma viatura com motorista para percorrer a região. Naquele mês de julho dediquei-me em tempo integral circulando pela região em companhia dos dois técnicos fazendo o papel de intérprete e guia na visita às prefeituras, a empresas, associações de classe, repartições estaduais e federais. Muito úteis foram também os conhecimentos históricos, a realidade social, além da formação geológica da região que havia estudado a fundo no meu bacharelado em História Natural, já mencionado mais acima. Munidos com os dados colhidos durante o mês de julho, os dois técnicos elaboraram um parecer recomendando que o Governo Alemão assumisse o patrocínio financeiro da sua execução. Este contratou a empresa de planejamento regional Agrar und Hydrotechnik para assumir a tarefa.

Foi assim que a Faculdade de Ciências Econômicas, criada há escassos 5 anos, já conquistara credibilidade internacional bancando financeira e tecnicamente um projeto de desenvolvimento regional, elaborado por professores e alunos da jovem instituição. Nos dois anos que se seguiram até a vinda da equipe técnica alemã foram feitos os contatos e acertos para que não ocorresse algum percalço maior quando da chegada da equipe da Alemanha. Tudo foi acertado com a Secretaria das Obras Públicas sob a responsabilidade do Secretário Pergher. Com ele foram acelerados os detalhes de quem assumiria as despesas de moradia e o transporte da equipe pela região em estudo. Seu apoio logístico, político e moral foram determinantes para o sucesso da obra. Visitas também foram programadas e efetuadas com a CORSAN, Metroplan e o sétimo distrito do Ministério de Minas e Energia com sede em Porto Alegre. Entidades de Classe, Associações Comerciais e Industrias, empresários, etc., foram informados do que estava acontecendo.

Todo esse trabalho de preparação e intermediação foi conduzido pela Faculdade de Ciências Econômicas. Participei de um número sem conta de reuniões com o Banco de Desevolvimento Econômico, Associações Comerciais, Prefeituras, Secretarias do Estado, Empresários, Conselhos Comunitáriosetc. Participei de um número sem conta também de contatos e preparação dos subsídios para facilitar e orientar a equipe técnica que chegaria em meados de 1967. No acordo firmado entre o Governo do Estado e República Feral da Alemanha, ficou acertado que o Estado arcaria com as despesas de moradia e o combustível e a manutenção das duas viaturas que vinham na bagagem dos técnicos. Ficou ainda acertado que, concluídos os trabalhos, as viaturas e todo equipamento técnico trazido, seriam incorporados ao patrimônio da Secretaria de Obras Públicas.

Nesse meio tempo a Secretaria da Agricultura designou o prof. Edgar Írio Simm como interlocutor entre o Estado e a Faculdade de Ciências Econômicas na qual era também professor. Caracterizava-se pela personalidade jovial, sempre disposto, avesso a complicações burocráticas e sempre carregava na manga uma solução.

Com a aproximação data da chegada da equipe técnica, prevista para julho de 1967 o coordenador da Faculdade Alcides Giehl, o prof. Simm e eu, providenciamos as moradias. A previsão da permanência da equipe era de cerca de um ano ou talvez um pouco mais. Foi acertado o aluguel de uma sala para a sede das atividades, mais dois apartamentos no edifício na esquina da Primeiro de Março e João Neves da Fontoura, duas casas no Morro do Espelho, uma casa em Novo Hamburgo e para o chefe da equipe um apartamento na Av. Independência em Porto Alegre.

De fato, em meados de julho de 1967, como previsto, a equipe técnica apresentou-se em São Leopoldo. Chefiava-a o eng. Otfried Schneider acompanhado do eng. Lemmer, do eng. Especialista em barragens Flach, o geólogo Hoffmann, um eng. Agrônomo, o topógrafo Verhoeven, o economista Berg e o desenhista Schmechel. À equipe veio somar-se o eng. Alemão Kurt Koch, radicado em São Paulo. Com a presença do sr. Mohrmann, Diretor Presidente da empresa alemã, foi celebrado um acordo entre a Agrar und Hydrotechnik e a Faculdade de Ciências Econômicas. Nele foram acertadas as competências e as obrigações das duas partes. Coube-me o papel de intermediário, credenciado pela equipe técnica entre as repartições públicas, as prefeituras e demais instâncias envolvidas e interessadas no projeto. Foi assim que, durante pouco mais do que um ano vi-me na condição de prestador de serviços ao Governo Alemão. Como na época eu era jesuíta a remuneração a mim paga pela equipe de técnicos, se não me falha a memória foi de 70.000 marcos foi depositada no caixa da Faculdade de Ciências Econômicas.

A Agrar und Hydrotechnik municiou a equipe técnica com duas viaturas: uma “variant”, na época não fabricada no Brasil, um “mungo”, viatura fabricado pela DKW, usado pelo exército alemão para transpor terrenos alagados e pântanos, passar por rios e cursos de água maiores. Além das viaturas a equipe trouxe equipamentos completos de última geração, para confeccionar mapas topográficos, desenhos, tabelas, etc. Como já lembrei mais acima, terminado o trabalho, todos esses equipamentos e as duas viaturas foram incorporados no patrimônio da Secretaria de Obras Publicas do Estado.

A equipe desenvolveu seu trabalho durante o segundo semestre de 1967 e o primeiro de 1968. Como naquele período ainda atuava no regime de 12 horas na UFRGS todo o tempo que sobrava das aulas e outros compromissos em São Leopoldo, cabia-me servir de intérprete e contato com as instâncias públicas e privadas envolvidas no projeto. O prof. Simm desempenhou o mesmo papel mas como representante do governo do Estado. Foi nessas condições que nós dois acompanhamos os integrantes da equipe alemã. Carrego boas lembranças dessas andanças pelo Vale do Sinos. De um lado foram prazerosas pela companhia do sempre jovial prof. Simm. De outro foi uma escola de vida e tanto que esses contatos diretos com as realidades, os problemas e potencialidades da região proporcionaram.

O contato com as prefeituras e câmaras de vereadores foi, aos poucos, revelando as características do comportamento político local, assim como os interesses e o perfil dos prefeitos, seus funcionários e os vereadores. Todos foram receptivos ao projeto, de modo especial no que tocava às enchentes periódicas. Não se percebeu má vontade no fornecimento de dados, nem sonegação de informações importantes. Merece destaque o prefeito de São Leopoldo, Clodomiro Martins, pelo comprometimento com a causa e pelo suporte logístico prestado. Pôs à disposição da equipe dos técnicos uma das poucas viaturas da prefeitura na época, além do espaço para reuniões técnicas. Destacaram-se também pela disponibilidade do pessoal e da infraestrutura os prefeitos Santini de Novo Hamburgo; Oscar Petry de Sapiranga; Lehnart de Taquara; Timmen de Rolante; Lagranha de Canoas; o prefeito de Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Três Coroas, Campo Bom, Esteio. O interesse deles e de outros prefeitos foi óbvio pois, as cheias do Sinos afetavam de alguma forma a todos.

Não se pode esquecer, entretanto, que se tratava de um projeto de valorização da bacia do Sinos como um todo. A questão das cheias periódicas fazia parte, portanto, de um conjunto de desafios a serem enfrentados, sem dúvida o mais visível e de maior impacto político. Em se tratando, porém, de um diagnóstico acompanhado de sugestões mutuamente complementares, outras questões de não menor importância não podiam se deixadas de lado. Sem pretender estabelecer prioridades ou categorias de importância, passo a enumerar algumas delas que considero mais urgentes. Acontece que foi nessas questões que a receptividade de não poucos prefeitos deixou a desejar. Não vou citar nem municípios nem prefeitos onde a resistência foi mais ostensiva e houve até sonegação de dados e informações. Considerando as circunstâncias de mais de 50 anos passados é preciso admitir que esse tipo de reação era esperável.

Às enchentes vieram associar-se problemas básicos de infraestrutura como o abastecimento de água, o saneamento básico, circulação de pessoas e mercadorias, disciplinamento da expansão urbana, educação básica e instituições de formação técnica, modernização do setor agropecuário, incentivo ao florestamento e reflorestamento cientificamente conduzido e por aí vai. Destaco alguns desses desafios para os quais a equipe técnica propôs soluções concretas e viáveis.

Depois das enchentes o abastecimento de água figurava entre as maiores necessidades. Na década de 1960 , o parque industrial do Vale do Sinos em pleno crescimento atraia um afluxo desordenado de migrantes vindos de todo o Rio Grande do sul e do leste de Santa Catarina. Na época, a CORSAN estava implantando estações de tratamento de água em diversos municípios. Outros, como São Leopoldo dispunham há décadas de instalações próprias, outras ainda, como Campo Bom, acalentavam a perspectiva de um projeto municipal de tratamento e abastecimento de água próprio ao modelo de São Leopoldo. Não é complicado entender que a sensibilização para um proposta nova, cobrindo a demanda de todo Vale do Sinos se deparasse com oposições de peso. Feitos os levantamentos dos dados hidrológicos e topográficos, as conclusões técnicas apontavam para recomendação de uma solução global. Projetando-se para os próximos anos uma população de 1.500.000 habitantes para o Vale do Sinos, excluindo Porto Alegre e, calculando-se o consumo de 300 litros dia por pessoa, havia uma solução técnica viável. A ampliação de uma represa já existente no rio Paranhana, na altura de Três Coroas, estaria em condições de formar um reservatório com capacidade suficiente para cobrir a demanda acima estimada. Bastaria, portanto, uma única estação de tratamento para cobrir as necessidades de Três Coroas, Igrejinha, Taquara, Parobé, Sapiranga, Campo Bom Novo Hamburgo São Leopoldo até Canoas. A segunda grande vantagem oferecia o declive contínuo da estação central de tratamento até Canoas. Uma tubulação devidamente dimensionada levaria por declive a água tratada para toda região média e baixa do Sinos. No momento em que a demanda superasse o volume estimado restaria ainda o recurso de uma estação de tratamento no Rolante e ou no curso superior do próprio rio dos Sinos na altura em que os morros de ambos as margens se aproximam. Argumentos como autonomia municipal, projetos e sistemas de abastecimento já existentes ou em curso, o envolvimento da política da CORSAN em nível estadual, falaram mais alto. A proposta não passou do papel.

Uma segunda sugestão feita pelos técnicos alemães também não passou de uma proposta, acompanhado de estudos de viabilidade. Considerando a demanda crescente da circulação de pessoas e mercadorias na região, somado à confluência do norte e nordeste do Estado em direção a Porto Alegre, a médio prazo a BR 116 não suportaria tamanho tráfego, especialmente de Novo Hamburgo a Porto Alegre. Como o custo do alargamento dessa rodovia seria proibitivo por causa das desapropriações em áreas urbanas, a proposta foi uma rodovia alternativa fora dos aglomerados urbanos. A sugestão da equipe técnica resumia-se na combinação do controle das cheias do rio com a implantação de uma rodovia. Os diques de proteção projetados a partir de Campo Bom a Porto Alegre, se dimensionados, poderiam servir a partir de São Leopoldo, como leito de uma rodovia de via dupla. A proposta previa o prolongamento dessa rodovia até Estância Velha, passando pela Scharlau. Acontece que os diques de São Leopoldo a Porto Alegre foram abandonados e com eles a ideia de uma rodovia alternativa caiu no esquecimento. Mais de 40 anos depois, com a Br 116 irremediavelmente sobrecarregada uma solução parecida à dos técnicos alemães foi concluída com a entrega ao tráfego da Br 448 de Sapucaia a Porto Alegre. E, quanto consta, o prolongamento dessa rodovia até Portão deve acontecer no futuro. De qualquer maneira a combinação de contenção das cheias com uma rodovia de desafogo da Br 116 parece ter sido uma boa ideia.

Esse assunto foi objeto de uma longa matéria no Correio do Povo de 10 de abril de 1970. Naquela data os técnicos alemães já haviam concluído o Relatório de suas atividades do Vale do Sinos, acrescidos das propostas tecnicamente viáveis junto com propostas de enfrentamento e solução dos desafios diagnosticados. O diagnóstico da expansão urbana somada à industrialização em plena aceleração acendeu a luz amarela de alerta para um outro problema: a contaminação dos lençóis freáticos e a poluição dos rios e seus afluentes avançava num ritmo preocupante. Na época ainda se pescavam peixes nobres como dourados na altura do Zoológico e a água do rio fervida podia ser usada tranquilamente. A recomendação dos técnicos alertou que se não fossem tomadas medidas urgentes e para valer no prazo de 40 ou 50 anos o Sinos não passaria de uma cloaca. Infelizmente as recomendações não foram levadas devidamente a sério. Nem as autoridades públicas, nem as empresas como curtumes, indústrias químicas e outras fontes poluidoras tomaram providências para valer. O problema foi-se agravando pelo tratamento precário dos dejetos ou o lançamento puro e simples em terrenos baldios ou cursos de água terminando no rio. O prognóstico dos técnicos alemães confirmou-se a num nível assustador. O rio no qual há 60 anos ainda se pescavam dourados, a cada passo aparece nos noticiários até nacionais, por causa da mortandade de peixes em grande escala, prova que o alerta de 5 décadas passadas, continua mofando nas gavetas da burocracia oficial e a sua execução atropelada pela voragem de uma industrialização e urbanização predatória. Além de amenizar o problema cíclico das enchentes, desafogar o tráfego, resolver o desafio do saneamento básico, abastecimento de água, outras questões não puderam ser ignoradas. Convém não esquecer que no final da década de 1960 o milagre brasileiro” começava a esboçar- se. Regiões como o Vale do Sinos viraram cenários de grande efervescência. Migrantes de todos os rincões do Rio Grande do Sul e o leste de Santa Catarina convergiam para o Vale. Urgia um planejamento urbano voltado para o zoneamento e a infraestrutura condizente com as características da região. A multiplicação e o crescimento de vilas e bairros periféricos, loteamentos clandestinos, simples ocupações, muitas em localização imprópria, reclamavam um disciplinamento legal adequado. Faziam-se urgentes políticas públicas e legislações adequadas para a localização de distritos industrias, urbanização de vilas, zoneamento de áreas residenciais, e outras questões relacionadas com esse setor.

Outro setor que reclamava uma atenção toda especial no Vale do Sinos era o setor agrícola e pastoril. Como é do conhecimento geral essa região foi o cenário, foi o berço da imigração alemã no Rio Grande do Sul. De São Leopoldo a colonização avançou em poucas décadas, até o extremo norte e noroeste da bacia do rio. O modelo de agricultura diversificada praticada nas pequenas propriedades familiares deixaram suas marcas, umas positivas, outras nem tanto e outras ainda preocupantes. O avanço da industrialização acompanhada pela urbanização pediam uma reorientação do modelo agrícola praticado até então na região. No lugar da tradicional policultura de subsistência, recomendava-se um espaço cada vez maior para a produção de hortifrutigranjeiros. O mercado consumidor da urbanização demandava volumes crescentes de hortaliças, frutas, leite e derivados, criação racional de aves. Para satisfazer essa demanda não faltavam solos adequados e em grande quantidade. Para a fruticultura e pastagens permanentes nos declives de 25% ou um pouco mais ou um pouco menos, das encostas inferiores dos morros ofereciam condições climáticas e edafológicas favoráveis para a produção de cítricos, abacate, figos, pêssegos e outras variedades de frutíferas. Os invernos curtos e irregulares com temperaturas que descem raramente abaixo dos 4 ou 5 graus desaconselham o cultivo de frutíferas que prosperam num mínimo de horas próximas a 0° graus, como maçãs, peras, ameixas, cerejas e outras. Tanto as áreas planas ao longo do rio e de seus afluentes e as encostas prestam- se muito bem para a formação de pastagens e criação de gado leiteiro.

Todo o norte e nordeste da bacia do Rio dos Sinos termina no planalto em altitudes que variam de 800 a 1.000 metros. Da meia encosta até o alto predominam declives de mais de 25%. Apesar das dificuldades para a prática da agricultura nessas encostas, elas foram em grande parte desmatadas. Devido à erosão e ao trabalho penoso para cultivá-las, estavam sendo abandonadas. Nada mais racional do que devolvê-las à sua vocação natural, isto é, servirem de reserva de uma das riquezas mundialmente mais disputadas: a madeira e seus derivados. Para tanto dispunham- se de duas alternativas. A primeira consistia em entregar aos mecanismos inerentes à própria natureza de se restaurar pelo florestamento espontâneo que evolui de uma forma muito semelhante ao que acontece na natureza, terminando em ecossistemas secundários muito parecidos com os originais. Foi por essa via que nas últimas décadas, grande parte das encostas, depois de abandonadas pelos agricultores, foram sendo tomadas pela vegetação original, chamando de volta também aves, mamíferos, répteis, batráquios e muitas espécies de outros animais e vegetais. A vasão das fontes duplicou ou triplicou, fontes que haviam secado tornaram a brotar. Muitas dessas encostas abandonadas exibem hoje uma exuberante floresta secundária, muito próxima da mata virgem que os imigrantes encontraram há 200 anos passados. As faixas de mata virgem intocadas confundem-se com a floresta secundária em expansão horizontal e vertical.

A segunda alternativa para recompor a cobertura vegetal permanente acontece pelo plantio de espécies de interesse econômico e ou prático. Destacam-se entre elas o eucalipto para madeira de construção, lenha e celulose e a acácia negra fornecedora de lenha, celulose e tanino. O pinus fornecedor de madeira vai ocupando cada vez mais espaço. Para um reflorestamento a mais longo prazo e mais diversificado poderiam entrar em questão o carvalho europeu e norte americano, nogueiras, castanheiras, álamos e outras mais somadas as muitas espécies de madeiras nativas como louro, canjerana, cabriúva, batinga, canela, araucária, canafístula, mata-olho, guajuíra e tantas outras.

Como se pode deduzir, o Projeto de Valorização do espaço geoeconômico, social e cultural, concebido e incrementado pela Faculdade de Ciências Econômicas, previa um conjunto integrado e um complexo de medidas complementares de natureza técnica, de iniciativas práticas que implicavam em políticas públicas e ações do setor privado para otimizar o potencial do Vale do Sinos como uma unidade regional. Fica claro também que os dirigentes da Faculdade de Ciências Econômicas desde o começo sonhavam com uma futura universidade, concebida como organicamente inserido na realidade regional. Uma instituição superior, mais ainda uma universidade, não podia permitir-se o luxo de encastelar-se numa torre de marfim. Além da excelência acadêmica, da produção de conhecimento e desenvolver métodos e tecnologias de ponta, tem a obrigação para voltar-se para seu entorno, diagnosticar problemas e oferecer soluções e dessa forma colaborar com o desenvolvimento social, econômico e da promoção do bem estar da sua população. Imbuídos dessa autêntica missão, os responsáveis dessa jovem instituição conceberam e levaram a bom termo o projeto da “Valorização do Vale do Rio dos Sinos”. E o Projeto foi de tal envergadura e formulado de forma técnica tal que República Federal da Alemanha (RFA) aceitou bancar a viabilidade técnica e econômica da proposta, contratando a “Agrar und Hydrotechnick”, empresa especializada em projetos nessa área.

Em resumo. Os resultados e as conclusões que a equipe técnica chegou resultaram num Relatório traduzido para o português que contou com minha participação, distribuído às repartições públicas envolvidas. Um exemplar foi entregue na biblioteca central da Unisinos e outro na biblioteca municipal de São Leopoldo.

Os técnicos alemães, tendo presente as causas das inundações: primeiro as fortes precipitações pluviais na porção montanhosa; segundo o fraco declive do rio nos cursos médio e inferior, além do refluxo do Guaíba pelo vento, onde desembocam; terceiro o represamento no baixo rio dos Sinos até Campo Bom, e a área de expansão da Grande Porto Alegre, propôs um sistema de diques na Região, visando quatro objetivos básicos: primeiro a conquista de novas áreas utilizáveis, considerando a expansão da Grande Porto Alegre; segundo, defesa das áreas habitadas e instalações industriais situadas dentro das áreas sujeitas a inundações; terceiro, entrosamento com o sistema de diques do DNOS; quarto, traçado mais apropriado para conseguir um escoamento mais rápido das águas em casos de inundação; quinto, fornecimento de água potável para essa região hoje já intensamente habitada.

Vale acrescentar que, por um acordo posterior celebrado entre o Governo Alemão e Brasileiro, foi concretizado apenas o tocante aos diques de contenção das cheias na área de São Leopoldo. E, diga-se ainda de passagem, demonstraram sua viabilidade e eficiência na cheia provocada pelo ciclone extratropical de maio de 2008 e 2023.

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