Da Enxada à Cátedra [ 64 ]

Antes de me concentrar exclusivamente nas obrigações acadêmicas inerentes à chefia do Departamento, chamo a atenção ao fato de que tanto as Ciências Sociais quanto a Educação e a História davam o tom na Missão de um século dos jesuítas alemães sul do Brasil. O resultado foram três grandes projetos abarcando, por assim dizer, todas as iniciativas e atividades por eles postas em prática. Não entro aqui em detalhes pois, como já lembrei em outro parte, publiquei pela Edit. Unisinos três livros cada um deles centrado em um dos três projetos.

Retomo as recordações das tarefas que me esperavam como chefe do duplo departamento de História e Sociologia. Como já referi mais acima, como em 20 de setembro, um mês depois da instalação do Curso de História, submeti-me ao exame ad gradum” como conclusão da minha formação acadêmica como jesuíta, fui residir na comunidade dos jesuítas no centro de São Leopoldo. A primeira tarefa foi preparar a prova do exame vestibular da primeira turma de candidatos ao Curso de História. Paralelamente assumi as aulas de Antropologia Cultural no Curso de Ciências Sociais substituindo o Pe. I. Schmitz que viajara para a Áustria para os 10 meses de “Terceira Provação”. O significado desse estágio na formação do jesuíta também foi devidamente explicado mais acima. Já em meio ao andamento do semestre fui recebido com uma ou tal desconfiança pelos alunos de Ciências Sociais. Uma aluna deixou claro que me aguardava um esforço e capricho todo especial para preencher a lacuna deixada por meu antecessor, considerado uma sumidade na matéria pelos alunos e eu quase como que um desconhecido, além de bacharelado e licenciado em outras áreas, embora professor de Antropologia Física na universidade federal. O primeiro “abacaxi” a descascar foi avaliar uma prova bimestral aplicada pelo Pe. Schmitz. Pelo que me lembro ninguém contestou a minha avaliação. Pelo que posso concluir levei o semestre a contento. Passo agora a comentar o que me aguardava naquele segundo semestre de 1963

Instituto Anchietano de Pesquisas.

O Instituto Anchietano de Pesquisas fundado em 1956 pelo grupo de cientistas jesuítas lideradas pelo Pe. Balduino Rambo, Luiz G. Jaeger, Arnaldo Bruxel, Luiz Sehnem, Inácio Schmitz, Arthur Bohnen, Milton Valente, Ernesto Maurmann e outros, tinha a sua sede no Colégio Anchieta, na rua Duque de Caxias em fase de transferência para a Av. Nilo Peçanha. Este Instituto estava subordinado diretamente à Província Sul Brasileira dos jesuítas. “As joias da coroa” vinham a ser o monumental acervo de documentação reunida pelo Pe. Arnaldo Bruxel sobre as Missões dos Jesuítas da Província do Paraguai entre começos do século XVII e meados do século XVIII, guardado no Colégio Cristo Rei. A não menos monumental de cerca de 90.000 itens de fanerógamos do Herbário Anchieta do Pe. Rambo somada a uma preciosa coleção de fungos do Pe. Rick, encontrava-se no Colégio Anchieta. O Pe. Luiz Sehnem com sua importante coleção de criptógamos, seu orquidário com dezenas de espécies instalara seu gabinete de pesquisa nas dependências das Faculdades de São Leopoldo no centro da cidade. Também o Pe. Milton Valente instalara seu recinto de pesquisas históricas centradas na antiga Roma num dos recintos daquelas Faculdades. Considerando essas circunstâncias somadas ao Curso de História Natural, Ciências Sociais, História, a tendência óbvia recomendava como sede definitiva do Instituto Anchietano de Pesquisas junto às Faculdades de São Leopoldo. O falecimento do Pe. Rambo em setembro de 1961 acelerou essa transferência por duas razões. Em primeiro lugar porque os professores de botânica da UFRGS argumentando que os jesuítas não tinham como conservar adequadamente o enorme volume de amostras de plantas coletadas pelo falecido, pretendiam fazer com que o governo o declarasse de utilidade pública e sua incorporação no setor de botânica daquela universidade. Em segundo lugar o Colégio Anchieta em fase de transferência para o novo endereço na Av. Nilo Peçanha não dispunha nem de espaço, nem de especialistas para não comprometer aquela coleção única em todo País, senão uma das mais ricas em todo mundo. O superior provincial ordenou então que o Herbário Anchieta fosse transferido para São Leopoldo e administrado pelo Curso de História Natural. Isso implicou numa série de iniciativas e tomada de decisões importantes.

Em primeiro lugar essa transferência não se resumiu numa simples mudança de endereço de Porto Alegre para São Leopoldo. Foi preciso disponibilizar um espaço para acomodar convenientemente as mais de 400 caixas da coleção de fanerógamos colecionadas pelo Pe. Rambo além da coleção de fungos do Pe. Rick. A direção das Faculdades de São Leopoldo cedeu o prédio de dois andares da esquina de rua Brasil com a Gonçalves. Com isso coube-me o primeiro desafio. Aquele prédio não passava de um semi ruina. No térreo havia alguns quartos ocupados por estudantes todos eles ex-alunos do Colégio Santo Inácio de Salvador do Sul e a outra metade um espaço com o assoalho irrecuperável minado de cupim. O assoalho do segundo andar encontravam-se nas mesmas condições. Sem uma reforma não havia condições mínimas para abrigar as preciosas coleções científicas do Instituto Anchietano de Pesquisas. A direção das faculdades deixou claro que não havia recursos para a reforma do prédio. O recado dava a subentender mais ou menos o seguinte: “Vire-se, faz das tripas coração”. Foi o que fiz. Pedi autorização do diretor das faculdades para usar a remuneração de um mês da UFRGS para comprar o material necessário para renovar os pisos dos dois andares. Não se deve esquecer que na época eu era jesuíta e com voto de pobreza entregava os proventos da universidade federal no caixa comum. Com esse recurso mandei vir de Farroupilha uma carga de tábuas de pinho prontas e aplainadas para renovar os assoalhos dos dois pisos. Assumi o trabalho de remover o assoalho antigo minado de cupins com o auxílio e orientação do marceneiro Lino Blume. No dia 23 de novembro de 1963, enquanto arrancávamos o assoalho antigo fomos surpreendidos com a notícia do assassinato do Presidente Kennedy. Colocados os novos assoalhos seguiu a instalação do laboratório de arqueologia para acomodar a equipe de pesquisas nessa área comandada pelo Pe. Schmitz, além do espaço necessário para abrigar o Herbário Anchieta. Vale lembrar um detalhe. Com a ordem do Provincial em mãos meu primo Odilo, ainda jesuíta na época foi buscar o Herbário no Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias. Passou um bom trabalho e teve que ouvir algumas qualificações menos simpáticas antes que o superior da comunidade liberasse a transferência.

A remoção da Xácara da Prefeitura.

Em 11 de junho de1957 o Pe. Urbano Thiesen, diretor da Faculdade de Filosofia Cristo Rei, até então restrita aos estudantes jesuítas, anunciou num discurso na Câmara de Vereadores de São Leopoldo, a decisão dos seus superiores, de abrir as portas para o público leigo a partir de 1958. Os prédios do Seminário Central no centro de São Leopoldo estavam desocupados desde o final de 1956, com a transferência do Seminário para Viamão. Durante o ano de 1957 foram devidamente adaptados para as novas funções. Essa decisão veio acompanhada da troca do nome de Faculdade de Filosofia Cristo Rei para Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Leopoldo. A história mais completa dessa fase de consolidação da futura Unisinos encontra-se detalhada no meu livro “Um Sonho e uma Realidade”, já mencionado mais acima. Mas há um detalhe importante que não posso deixar de mencionar. No discurso do Pe. Thiesen aos Vereadores ele resumiu o cerne do projeto por ele imaginado e posto em andamento ao oferecer o ensino superior para o grande público, não só do Vale do Sinos, mas para um público de âmbito regional e nacional. Conforme ele os cursos e faculdades em fases de implantação e as que fossem criadas de acordo com as necessidades e oportunidades, deveriam evoluir para uma “Casa de Sabedoria”, portanto, um centro de referência de excelência acadêmica além de um centro de pesquisa de ponta. De outra parte, entretanto, essa “Casa de Sabedoria” não deveria encapsular-se sobre si mesma, mas comprometer-se com a região sob sua influência e reverter os conhecimentos e tecnologias saídos dos laboratórios e gabinetes de pesquisa em favor do desenvolvimento econômico e promoção humana. Manifestou, para tanto a intenção de criar um Instituto de Sociologia e que a Sociologia constasse em todos os cursos já em funcionamento e nas faculdades e cursos a serem implantados com o correr do tempo. Como ele mesmo deixou claro em outro momento a Universidade de Oxford foi a sua inspiradora maior. Sobre esse pano de fundo explicam-se as iniciativas de ação em benefício do bem estar da população na região geográfica imediatamente sob a influência do centro universitário de São Leopoldo.

Como chefe do Departamento de História e Sociologia coube-me a formulação e implementação do primeiro projeto de ação social beneficiando os moradores da Xácara da Prefeitura, sob constante risco de inundação. Localizada na área de banhados nos fundos da sede da Gedore abrigava uma população predominantemente de migrantes oriundos do interior do Rio Grande do Sul e do sul da região carbonífera de Criciúma e Tubarão e arredores, em condições desumanas sob todos os aspetos como saneamento básico, abastecimento de água potável, pobreza e tudo isso agravado pelas frequentes inundações do rio dos Sinos. O objetivo central resumia-se na remoção daqueles moradores para uma área livre de enchentes e com uma infraestrutura decente. Para tanto naturalmente foi preciso o entendimento com a Prefeitura. Uma vez configurado o projeto houve várias reuniões com o Conselho Comunitário do Município, com o prefeito e os secretários diretamente envolvidos na questão. Lembro-me com satisfação daquelas reuniões na antiga sede da Prefeitura numa época em que fatores de ordem ideológica e política não costumavam viciar iniciativas e projetos direcionados para a assistência social e ou o desenvolvimento e promoção humana.

O primeiro passo a ser dado consistiu obviamente num levantamento sócio econômico seguido de um diagnóstico sob a responsabilidade de especialistas na área. Coube-me a responsabilidade de formular o questionário a ser utilizado no levantamento e identificação da situação sócio econômica dos moradores da Xácara. Realizamos esse trabalho de campo nos sábados à tarde. Quatro alunos voluntários do curso de Ciências Sociais ofereceram-se para a aplicação do questionário visitando e entrevistando os moradores da Xácara. Não me lembro quantos sábados à tarde, apertados no meu fusca modelo 1951, foram necessários para completar essa fase do projeto. As Faculdades de São Leopoldo começavam cumprir a promessa do Pe Thiesen e envolver-se para valer na solução dos problemas humanos reclamando solução logo do lado de fora dos seus muros. Sentíamos, os alunos pesquisadores em começo de carreira e eu um jovem pesquisador, também em começo de carreira, uma sensação estranha mas desafiante ao tomar conhecimento dos dramas e traumas de uma comunidade vivendo, melhor sobrevivendo, nas piores condições. Concluída a fase do levantamento de dados de campo, reunimos os questionários preenchidos. A tabulação e o diagnóstico foram confiados a especialistas nesse tipo de pesquisa. Ficou mais do que evidente que a situação dos moradores daquela área, em constante ameaça de inundação, exigia a remoção para uma área fora do alcance das cheias periódicas do Sinos. A partir desse momento o comprometimento da prefeitura e câmara de vereadores foi decisiva. Essas autoridades ofereceram para a remoção dos moradores, a área do atual bairro Vila Esperança. Aliás esse nome foi sugerido pelo prefeito da época inspirado no significado da remoção. Por não me ter envolvido na fase da transferência dos moradores para o novo bairro pois, a responsabilidade cabia à administração pública, não tenho nada a comentar. Só para concluir. Os dados colhidos no campo, sua posterior análise e o diagnóstico sócio econômico, foram mais tarde condensados num livro pelo Pe. Roque Lauschner (in memoriam) que na fase da execução do projeto concluía sua formação em Ciências Econômicas na UFRGS. O Pe. Pedro Beltrão, doutor em Ciências Políticas e Sociais, pouco se envolveu no projeto da Xácara da Prefeitura pois, lecionava um semestre nas Faculdades de São Leopoldo e o outro na Universidade Gregoriana em Roma.

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