A seguinte estação da nossa viagem veio a ser Itaqui. Ao escurecer alcançamos o rio Itaqui. Na época ainda não havia ponte e a travessia do rio dava-se por barca. Acontece que a barca não funcionava depois do escurecer. O que fazer?. Não havia nenhuma possibilidade de encontrar um estabelecimento para pernoitar. A saída foi pernoitar na margem do rio, esperar o clarear o dia para a barca nos levar até a outra margem. O Berensen e o Alcides acomodaram-se nos bancos da Wemagete e eu juntei umas braçadas de capim seco e enrolado num poncho passei a noite acomodado de baixo de um Sarandi na margem do rio.
Na manhã seguinte seguimos viagem até Itaqui. Não há muito a anotar sobre a visita aquela cidade. A uma certa altura ao caminhar pelo centro da cidade, ao atravessar a praça topamos com um senhor que veio ao nosso encontro e nos saudou. Pela aparência e estilo da roupa devia ser algum estancieiro que morava na cidade. Depois de nos identificarmos, o Berensen chefe do escritório da multinacional Ferrostahl em Porto Alegre, o Alcides coordenador da Faculdade de Ciências Econômicas em São e eu professor na Universidade Federal de Porto Alegre além das faculdades em São Leopoldo e informarmos o porque da nossa viagem pelo Rio Grande do Sul, ele tirou o chapéu, fez uma mesura e disse: “então vocês são coisa muito lá por cima!” Convidou- nos para conhecer a sua casa. Morava num bela e ampla mansão bem no centro. Acomodados na sua sala de estar ornamentada com símbolos gaúchos, pinturas e fotografias, conversamos por uma boa hora. Insistiu que almoçássemos com ele. Enquanto assava uma picanha no espeto continuamos a conversa até a hora do almoço pelo meio dia. Aquele encontro não programado fez com que levasse para o resto da vida uma recordação agradável daquela cidadezinha na barranca do Rio Uruguai. A figura daquele estancieiro trabalhador, honesto e de uma simpatia cativante fixou-se na minha memória como uma fotografia que não se esquece. Depois do almoço despedimo-nos do estanceiro para ainda na mesma tarde visitar as ruínas de São Miguel das Missões.
Ao por do sol paramos em frente a sede com o museu das Missões em São Miguel Arcanjo uma das sete Reduções, como já lembrei mais acima. Na época não havia nem pousada muito menos um hotel para passar a noite. A solução foi a mesma daquela da noite anterior passada na margem do Itaqui. O Berensen e o Alcides acomodaram-se nas “poltronas” da wemaguete e eu na varanda do museu. Depois de um lanche que serviu de janta ficamos conversando por um bom tempo tendo como cenário à nossa frente a fachada da imponente igreja severamente maltratada pelo tempo, porém, irradiando, por isso mesmo um fascínio indescritível. Acomodei-me do jeito que deu entre as estátuas esculpidas pelos artistas guaranis e a emblemática “Cruz de Lorena” esculpida num bloco de arenito, testemunha da obra civilizatória única empreendida pelos missionários jesuítas no século XVII e XVIII. Passei a noite praticamente em branco, não pelo cansaço mas, pelo cenário que me rodeava. Mais acima tentei descrever e mostrar o que as Missões representaram e ainda representam para conhecer e avaliar a história da América tanto espanhola quanto portuguesa. Aquela noite e todo o dia seguinte pude apreciar e sentir in loco o significado daquela experiência única sendo construída naquele cenário. Felizmente as ruínas de São Miguel são hoje protegidas como patrimônio cultural da humanidade. Tornaram-se um centro de visitação pública por parte de turistas curiosos, historiadores, arquitetos, urbanistas, artistas, de preferência escultores e, não em último lugar por peregrinos para quem esse cenário é sagrado. Aliás a atmosfera do sagrado, do espiritual, do místico que paira sobre esse pedaço chão no noroeste do Rio Grande do Sul, Norte da Argentina e sul do Paraguai, reveste-se de um sentido todo especial pois, foi ai que foram martirizados Roque Gonzales, Afonso Rodrigues e João de Castilho, hoje venerados como santos pelos católicos.
Ao clarear do dia flagrei-me a poucos metros da fachada da igreja maltratada pelo tempo com sua torre emblemática. A poucas dezenas de metros onde passara a noite a enorme cruz de Lorena, símbolo das reduções, como que vigiando as ruínas da sede da redução, em parte vítimas das intempéries mas, vítimas também da depredação dos herdeiros da Missão transformando-a numa autêntica pedreira, pilhando o material das construções. A primeira visita foi às ruínas da igreja. Ainda não gozando da proteção e vigilância do patrimônio histórico, sem infraestrutura adequada e sem guias e guardas, o interior tomado pelas macegas, as paredes danificadas pela ação do tempo, evidentemente sem vestígio da cobertura, sem querer, a “melancolia da história” continuava pairando sobre aquele cenário. O passo seguinte foi a visita ao cemitério à direita do templo. Continua a receber os falecidos das proximidades. Compreensivelmente pouco ou quase nada restou das sepulturas originais dos guaranis. Do lado direito da igreja, também tomado pelo mato os alicerces da moradia dos missionários. Em seguida foi a hora de dar uma caminhada pelos terrenos cobertos de mato e macega onde os nativos, sob a orientação dos missionários, cultivavam hortas para suprir as necessidades dos moradores e dos padres. Na etapa seguinte percorremos o conjunto de ruínas tomadas parcialmente pelo mato, da aldeia propriamente dita, sede da redução ocupando as laterais e os fundos de uma grande praça central. Na frente diretamente para a praça alinhavam-se as moradias dos índios e nos fundos as oficinas, depósitos, artesanatos, ateliers de arte sacra. A grande praça servia de palco para cerimônias, religiosas, competições esportivas, apresentação de peças de teatro, exibições de ginástica e outras programações de interesse coletivo. Mais acima já lembrei que o comando supremo da administração de uma redução cabia aos missionários nela residentes. Em assembleia presidida pelos missionários escolhia-se um chefe maior, hoje diríamos prefeito e um conselho superior formado, na conceituação de hoje, por uma “Câmara de Vereadores”. As catequeses e demais modalidades de formação religiosa e profana eram dadas na língua dos nativos. Em escolas e cursos específicos as mulheres apropriavam-se das artes e ofícios domésticos e os homens aprendiam principalmente a arte da escultura em madeira e arenito, a pedra predominante da região, além de ofícios como de ferreiro, marceneiro, funileiro e outros mais.
Na redução de São Miguel Arcanjo o missionário Anton Sepp nascido em Brixen ou Bressanone no Tirol do sul hoje sob a jurisdição da Itália, portador de uma formação acurada em música no Conservatório de Londres, perito em outras especialidades, fez funcionar com seus Guaranis a primeira usina de fundição de ferro do Brasil recorrendo à ”pedra cupim” como minério. Sob sua orientação foi instalada a primeira tipografia e o primeiro livro impresso no Rio Grande do Sul. Das oficinas, forjas e fundições de São Miguel saíram sinos e todo o tipo de ferramentas indispensáveis na agricultura, nas artes e, porque não, armas indispensáveis em momentos de ameaça às reduções.
No meio da tarde demos uma esticada até a margem do rio Piratini onde se encontravam as pedreiras para extrair as pedras para as construção da igreja, moradias, oficinas etc. Chega a ser espantoso o trabalho e o empenho em buscar as pedras de construção a uma tal distância e nas condições de transporte no século XVII e XVIII. Sem querer vem à memória, preservadas as devidas proporções, as pirâmides do Egito erguidas com blocos incomparavelmente maiores, mais pesados e transportados de uma distância muito maior do que os da redução de São Miguel.
Depois dessa peregrinação física e, principalmente histórica, pelo cenário geográfico e a visita às ruínas de São Miguel, uma questão de fundo continua desafiando os estudiosos do modelo de organização social, política, econômica, religiosa sui generis, tomava forma e consolidava-se no norte da Argentina, no sul do Paraguai e noroeste do Rio Grande do Sul. Em primeiro lugar não se pode esquecer que os nativos das reduções encontravam-se sob a jurisdição colonial espanhola e como tais considerados súditos da coroa da Espanha, não passavam de uma reserva de possíveis escravos a ser explorada pelos bandeirantes. Como já lembramos mais acima, os nativos corriam o permanente risco de caírem nas mãos dos bandeirantes e reduzidos à escravidão. E, como é lícito interpretar, resultou no desastroso e, para não dizer criminoso, tratado do redesenho das fronteiras entre Madrid e Lisboa. Já lembramos mais acima que os índios que não se refugiaram com seus missionários na margem direita do rio Uruguai foram caçados e escravizados pelos bandos de Raposo Tavares ou simples e puramente trucidados e os sobreviventes retornaram à vida tribal nas florestas do Alto Uruguai, Oeste de Santa Catarina e Oeste do Paraná. Um número considerável dificilmente dimensionável foi diluído na voragem da miscigenação resultando no tipo humano conhecido como “missioneiro”.
Depois de todas essas visitas, observações e conclusões feitas sobre a missões jesuítas em geral na América latina e, especialmente sobre o Sete Povos no Rio Grande do Sul, ficou em aberto a pergunta chave. Depois das muitas análises feitas em encontros de antropólogos, historiadores, sociólogos,políticos,estudiososdareligiosidadeedasreligiões,nãosechegoua umaresposta conclusiva definitiva; depois de inúmeras matérias pertinentes publicadas em revistas especializadas e em livros; depois de vasculhar os documentos guardados na Biblioteca Nacional, nos arquivos de Assunion, Buenos Aires, Lisboa, Madrid, Roma, além da monumental coleção “De Angelis”, tudo reunido em microfilmes pelo Pe. Arnaldo Bruxel, não dispomos de uma resposta conclusiva sobre duas questões. Sobre a primeira. Quais os fundamentos Sócio filosóficos e religiosos sobre os quais estava sendo consolidado, o assim por vezes apelidado, “Império dos jesuítas?” (Até um lendário imperador Nicolau I, fruto da imaginação aparece nas lendas das missões) ou “República Socialista – Comunista Guaranítica”. Penso que, considerados ospersonagens envolvidos, os jesuítas e guaranis e outros povos nativos, a resposta situa-se num meio termo. “In medio stat virtus – “A virtude ou a verdade encontra-se no meio termo”, como ensina a antiga sabedoria romana. Parece que para entender essa experiência única na história de uma organização de grandes proporções não se pode esquecer que os missionários jesuítasrecorreram à estratégia de “cristianizar os nativos”, deixando espaço para concretizar-se paralelamente uma “nativização do cristianismo”. Tento explicar. Os missionários não começaram desmontando a estrutura tribal, base da sociedade dos nativos. Equiparam-na com o que havia de mais moderno da época em termos organização urbana, material de construção e estilo de moradia e instalações complementares, como pode ser deduzido da descrição mais acima da redução de São Miguel. O verdadeiramente novo parece ter sido a igreja, o cemitério, a moradia dos padres, à escola e às oficinas, como referência central da redução, além da escola, oficinas e demais instalações que variavam de acordo com as características circunstanciais de cada redução. Os missionários valiam-se da língua dos indígenas nas escolas e na catequese. Para tanto elaboraram gramáticas, catecismos etc. nessas línguas. Os problemas mais complicados e de difícil solução na fase inicial dessa miscigenação, foram com certeza a poligamia e a antropofagia, praticada pelos guaranis das Sete Missões no Rio Grande do Sul. Pela alfabetização e consequente abertura para um mundo além das fronteiras tribais e o contato com a cultura, principalmente a europeia e suas conquistas científicas e tecnológicas ou a “europeizização” foi conquistando cada vez mais espaço. Pela sua importância como fator sem o qual o progresso e a sustentabilidade não tinham como se manter foi o cultivo de alimentos e a criação de rebanhos bovinos, somados aos demais animais domésticos. Mais acima já lembramos que o plantel do qual descendiam as centenas de milhares, senão milhões de cabeças de bovinos na “Vacaria do Mar” no centro sul do Estado e na “Vacaria dos Pinais” em cima da serra, foi introduzido pelo missionário Cristóvão de Mendonça na primeira metade da década de 1630.
Quanto à agricultura e produção de insumos indispensáveis para o diário de uma redução, é preciso alertar que os guaranis, por ex., viviam no Neolítico, isto é, da era da pedra polida praticando uma horticultura primitiva. Num regime de terra comunitária e de agricultura desenvolvida nessas condições os produtos de maior interesse para garantir o abastecimento da redução costumavam ser considerados um bem comum armazenados em depósitos comunitários. Ao mesmo tempo cada agricultor tinha direito a uma parcela do produto do seu trabalho a título de propriedade particular. Essas peculiaridades do uso da terra na produção agrícola levam à conclusão que nas reduções vigorava um regime intermediário, “uma terceira via” a qual classificaríamos hoje como “Solidarismo”, pelo menos muito próximo a esse conceito. Cem anos mais tarde o bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler definiu em seus célebres sermões em dezembro de 1848, o direito natural à propriedade e o limite da mesma ditada pelo direito dos outros, base que leva o Solidarismo a uma terceira via entre o Capitalismo Liberal e o Capitalismo do Estado. Mas, essa discussão já foi objeto de reflexão mais acima.
No nível da organização sociopolítica as reduções gozavam de autonomia. Ligava-as, porém, entre si a orientação dos superiores maiores dos missionários com sede em Assunción do Paraguai. A exportação de erva-mate, couros e outros bens revertiam para o patrimônio comum de cada redução. Esse modelo de organização das reduções evidentemente deve ter gerado preocupações tanto da coroa portuguesa quanto da espanhola pois, para muitos, principalmente as autoridades, sinalizava para o perigo de uma confederação autônoma ao modelo em andamento nas colônias norte americanas. Esse fantasma ameaçava tornar-se realidade na medida em que as missões progrediam com o aporte de tecnologias modernas, como fundição de ferro, ferramentas e armas de fogo. As consequências do tratado de Madrid desencadeou uma luta sangrenta, na qual se notabilizou o capitão guarani Sepé Tiaraju. Depois de dois anos de escaramuças e autênticas batalhas, os índios foram derrotados. Um contingente atravessou o rio Uruguai e foi refugiar-se no norte da Argentina e sul do Paraguai. Terminada a guerra em que milhares de índios morreram nos combates, inúmeros outros caíram nas mãos dos bandeirantes e reduzidos a escravos enquanto um número não menor refugiou-se nas florestas mais ao norte na margem esquerda do Uruguai, regredindo gradativamente ao nível tribal e à primitividade dos ancestrais de 150 anos antes.
Só para satisfazer a imaginação. Se o “Império” ou “Reino” ou República” temidos por uns e glorificados por outros tantos, se tivesse concretizado, a história da América do Sul teria tomado um rumo completamente diferente e o desenho do mapa geopolítico, além do nível cultural irreconhecivelmente outro do que o de hoje. Depois dessas reflexões estamos em condições de levantar o acampamento em São Miguel e continuar a viagem até São Luiz Gonzaga, outra sede de Redução.
As reduções de São João Batista e São Luiz Gonzaga encontram-se em estado bem mais precário do que São Miguel. De qualquer forma paira sobre os fragmentos de São Luiz Gonzaga e a igreja reformada permitindo do alto de sua torre uma visão sobre as redondezas, as ruínas encobertas pela vegetação de São João e a catedral de Santo Ângelo, réplica da igreja de São Miguel, a mesma atmosfera de “melancolia da história” como a observada pelo Pe. Rambo.
Pernoitamos em São Luiz Gonzaga e na manhã seguinte seguimos viagem com uma breve parada nas ruínas de São João, uma visita rápida à catedral de Santo Ângelo. De lá continuamos a nossa viagem até Santa Cruz do Sul, onde pernoitamos. Na manhã seguinte visitamos a catedral, percorremos o centro da cidade com uma parada na sede da Souza Cruz. À meia tarde enfrentamos os últimos 100 quilômetros até São Leopoldo, nossa residência no Colégio Cristo Rei. O Berensen voltou a Porto Alegre onde residia e o Alcides e eu retomamos a rotina do restante das férias: um retiro de oito dias, um curso intensivo de Hebraico e, no meu caso a preparação das preleções na Universidade Federal e as de Geologia na Faculdade de Ciências e Letras de São Leopoldo.