Da Enxada à Cátedra [ 65 ]

Diagnóstico sócio econômico de Dois Irmãos.

Na verdade esse projeto não foi iniciativa do Curso de Ciências Sociais de São Leopoldo. Sua origem veio do Instituto de Pesquisas Econômicas da UFRGS junto à Faculdade de Ciências Econômicas em convênio com a universidade de Wissconsin nos USA, com a qual mantinha um ativo intercâmbio no plano da formação acadêmica, da formação de pesquisadores e da pesquisa propriamente dita. Acontece que nesse intercâmbio pesquisadores de Wissconsin escolheram Dois Irmãos como protótipo da implantação, desenvolvimento e consolidação histórica, social e econômica de uma comunidade de imigrantes alemães. Pode parecer estranho que pesquisadores americanos fossem procurar uma comunidade típica desse perfil no sul do Brasil e escolhessem como amostra Dois Irmãos, quando os USA contavam com cerca de 7 milhões de imigrantes alemães e o Rio Grande do Sul aproximadamente 350000. A explicação encontra-se, pelo menos em grande parte, na legislação que disciplinava a imigração tanto num quanto no outro dos dois países. Nos Estados Unidos vigoravam regras mais explícitas que visavam em última análise uma inserção mais rápida do imigrante e seus descendentes na nova Pátria ou, se preferirmos, na realidade da nacionalidade americana. Assim, por ex., a primeira geração nascida na América obrigatoriamente tinha que aprender o inglês. Isso não significou que o alemão ou outras línguas estrangeiras fossem proibidas nem forçava a abandonar as tradições familiares e sociais trazidos no momento da imigração. Nem vigorava algo parecido como no Brasil durante a Campanha de Nacionalização no período do Estado Novo implantado por Getúlio Vargas em 1937. As regras vigentes disciplinando a imigração nos Estados Unidos resultaram numa assimilação mais rápida e, principalmente, sem os traumas causados por medidas draconianas, atropelando a dinâmica histórico-antropológica que comanda os processos de inserção numa nova realidade como no Brasil. Aqui no Brasil inexistiam leis e regulamentos nesse sentido pelo menos nos primeiros 100 anos. Os imigrantes continuaram falando o alemão (normalmente algum dialeto com destaque para o Hunsrückisch e o Westfaliano, até a quarta e quinta geração dos aqui nascidos. Eu próprio, da quarta geração, fui aprender a falar português aos 12 anos. Essas circunstâncias foram determinantes na formação das comunidades, na preservação da língua e tradições, no desenvolvimento econômico, inclusive na postura como cidadãos brasileiros. Com raras exceções os descendentes de imigrantes alemães assumiam-se como cidadãos brasileiros obedecendo a todos os rituais que a legislação lhes exigia como tais. Como Dois Irmãos representava um paradigma da organização histórica das comunidades teuto-brasileiras por ter sido uma das primeiras e mais emblemáticas nesse processo peculiar de inserção na nacionalidade, os pesquisadores da universidade de Wissconsin envolvidos no intercâmbio com o Instituto de Pesquisas Econômicas da UFRGS, escolheram esse município como protótipo da dinâmica sócio economia e histórica válida, em grandes linhas, para todos os imigrantes alemães no sul do Brasil.

Acontece que, em começos de 1960 para realizar o levantamento dos dados e informações na sua fonte, isto é, entrevistando os colonos em suas propriedades, exigia-se o conhecimento do alemão, de modo especial o dialeto falado por eles e além disso ter familiaridade com os costumes, as circunstâncias e a história dessa população. Não havia como recrutar esses profissionais entre os pesquisadores do Instituto de Pesquisas da UFRGS. Entre os alunos das Ciências Sociais de São Leopoldo estudavam no curso vários procedentes do meio rural e no convívio familiar se falava o dialeto. Foi por isso que a direção do IEPE entrou em contato comigo para localizar dois ou três entrevistadores entre os alunos do curso de Ciências Sociais. Não me lembro exatamente se foram dois ou três os escolhidos, todos eles de famílias residentes em Dois Irmãos. Como se pode concluir, uma mão de obra ideal para entrevistar os proprietários e famílias escolhidos para a amostragem. Nessa colaboração com o instituto de pesquisas da universidade federal não foi firmado nenhum convênio formal, estipulando compromissos mútuos. Eu pessoalmente acompanhei os pesquisadores de Wissconsin na fase da escolha da amostragem e acompanhei de longe os entrevistadores destacados entre os alunos do meu departamento. As etapas posteriores da pesquisa, como tabelamento, análise e interpretação dos dados foi toda executada pelos especialistas do IEPE. Um belo exemplo de como diferentes centros e institutos de pesquisa, em vez de competirem, se unem e se dão as mãos para somar os resultados obtidos pela competência peculiar própria a cada uma das instituições envolvidas nos mesmos campos do conhecimento e ou em objetivos afins dos seus pesquisadores. Esse princípio, para não dizer política acadêmica, deveria valer para as faculdades isoladas, os centros universitários e mais ainda para as universidades publicas e privadas. Em vez da pulverização dos conhecimentos dentro e entre as instituição de pesquisa e ensino superior, hoje uma regra com poucas exceções, a retomada do velho princípio “Doctrina multiplex – Veritas uma” – “As Doutrinas são muitas, porém, a Verdade é uma”, multiplicaria por 10, senão por 100 ou mais vezes o resultados dos recursos investidos.

Cooperativa Agropecuária Piá. Antes de lembrar a participação na criação da Cooperativa Piá cabe um esclarecimento como fui envolvido no nascedouro desse projeto, já que a iniciativa não partiu da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mas da Faculdade de Ciências Econômicas. Ao assumir a chefia do departamento de História e Sociologia e as aulas de Antropologia oferecida como optativa, contando créditos, também na Pedagogia, nas Letras e Ciências Econômicas, meu envolvimento nessa nova realidade me afastou da História Natural. As disciplinas de Geologia e Paleontologia, de Mineralogia e Petrografia foram confiados a professores leigos dessas especialidades procedentes de outras instituições. A aproximação sempre maior com a Faculdade de Ciências Econômicas aconteceu em primeiro lugar devido à amizade e do perfil do projeto de universidade que seu diretor, o Pe. Marcus Bach e seu coordenador Alcides Giehl em sintonia com um grupo de professores leigos daquela Faculdade. Assumi as aulas de Antropologia Cultural oferecida como optativa, contando créditos, aos futuros economistas. A aceitação superou todas as espectativas, chegando ao ponto de em alguns semestres organizarem-se turmas de alunos até em sábados à tarde. Dedicava os dois turnos do dia aos cursos da Faculdade de Filosofia somadas às 12 horas da UFRGS e o turno da noite à Faculdade de Ciências Econômicas. Nessa situação participava dos Conselhos Técnico Administrativos das duas faculdades. Aconteceu então que ao ser criado o Departamento de Economia o Conselho indicou meu nome para chefiá- lo. Nas circunstâncias de hoje confiar a chefia de departamentos de unidades acadêmicas aparentemente tão distantes entre si, com certeza seria visto no mínimo com estranheza. Mas vamos ao que interessa mais de perto, isto é, às iniciativas para enfrentar a situação nada animadora da população rural de Nova Petrópolis. A estagnação econômica acompanhada pelos reflexos negativos sobre os demais atividades dos colonos fazia-se notar a cada dia que passava. Foi então que o prefeito o Sr. Albano Hansen decidiu ir em busca de medidas de médio e longo prazo para atalhar esse processo de deterioração da situação dos pequenos agricultores. Como nas demais regiões em que predominava a agricultura familiar diversificada, também no município de Nova Petrópolis esse modelo esgotara seu potencial de crescimento. A fuga dos jovens para centros urbanos em busca de oportunidades mais promissoras para melhorar as condições de vida, de formação profissional diversificada e a conquista de títulos acadêmicos para abrir espaço nas profissões liberais, no magistério, no serviço público e por aí vai. Métodos ultrapassados, culturas de baixa produtividade, exaustão dos solos, fracionamento exagerado dos lotes coloniais, além de outras consequências negativas levaram os colonos ao empobrecimento e à beira da falência. Para aqueles que continuaram na atividade de produtores rurais apresentavam-se duas saídas: ou sobreviver penosamente e sem grande futuro plantando o que durante gerações garantiu a subsistência das famílias, ou partir para culturas seletivas com colocação garantida no mercado, viáveis nas peculiaridades topográficas, climáticas e edafológicas da região. A solução do problema implicava em iniciativas capazes de reverter radicalmente o “ser colono tradicional” em “ser um produtor rural” moderno centrando sua atividade em culturas e criação de animais com aceitação no mercado.

Com a entrada da década de 1960 a comunidade de Nova Petrópolis começou a movimentar-se para encontrar uma saída para o impasse. Os líderes comunitários aliaram-se às lideranças políticas Prefeitura e Câmara de vereadores em busca de uma solução global e de longo prazo. Escolheram como referência estrutural o modelo implantado no Brasil exatamente a partir de Nova Petrópolis. Em 1902 o padre jesuíta Theodor Amstad pôs em prática a ideia de uma cooperativa de crédito naquela localidade. Mais tarde foram sendo criadas cooperativas de produtores de leite, de suinocultura, além de um respeitável número de outras modalidades. Os organizadores da comissão fundadora da Cooperativa Agropecuária Piá convidaram o Pe. Marcus Bach, diretor da Faculdade de Ciências Econômicas de São Leopoldo para a reunião fundadora. Coube-me a honra de representá-lo naquele encontro. O prefeito Albano Hansen, presidente da reunião e grande entusiasta da forma cooperativa como solução para esse tipo de problemas, pôs os presentes ao par do objetivo do encontro. No andar dos debates foram traçados os principais passos a serem dados para se chegar a um projeto de longo prazo viável na forma de uma cooperativa. Para começar seria indispensável fazer um diagnóstico objetivo da real situação a fim de municiar com dados reais e confiáveis um projeto com a devida consistência. Levei para a reunião um esboço dos passos a serem dados na formulação de um diagnóstico preliminar e um modelo de questionário a ser aplicado entre os colonos. O que de mais significativo aconteceu naquela reunião foi a opção pela via cooperativa para recuperar e redinamizar a economia rural do município. Não cheguei a participar dos passos e procedimentos posteriores que fundamentaram o projeto que resultou na implantação da Cooperativa Agroindustrial Piá.

This entry was posted on quinta-feira, 14 de novembro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.