O Ano de 1963
O ano de 1963 fixou-se na minha memória como decisivo, tanto no que se refere à formação acadêmica, quanto no rumo da atividade em duas universidades como docente e pesquisador. A fim de não embaralhar os acontecimentos nessas duas dimensões, falo primeiro da conclusão da formação teológica para depois detalhar o começo do envolvimento para valer na faculdade de Filosofia Ciências e Letras e na Faculdade Ciências Econômicas de São Leopoldo, embriões da futura universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Conclusão da formação teológica.
Mais acima já lembrei que fui aprovado no exame final do terceiro ano com um grau plenamente satisfatório para continuar no quarto e último ano em 1963 no da Teologia Maior. Essa condição habilitava-me prestar o exame o “ad gradum”. Em poucas palavras esse exame cobria uma revisão dos três anos de Filosofia e dos quatro anos de Teologia.
O ritual daquele último ano previa a frequência das preleções durante o primeiro semestre. Em meados de maio foi-me entregue uma relação de 100 teses: 50 de filosofia e 50 de teologia de cujos conteúdos deveria dar conta perante a banca que seria constituída para o exame “ad gradum”. Com as 100 teses na mão estava dispensado da assistência às preleções. Aqui cabe um esclarecimento para o fato porque essas teses me foram entregues em meados de maio e não em julho como costumava acontecer. Acontece que o Pe. Ignácio Schmitz fora destinado pelos superiores para fazer a “terceira provação”, o ano de fecho da formação dos jesuítas, em Kerten na Áustria, a partir de setembro daquele ano. Com isso caberia a mim assumir as preleções sobre os tupis-guaranis na universidade federal do Rio Grande do Sul e as de Antropologia na Faculdade Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo.
De posse das 100 teses, o exame do “ad gradum” foi marcado para o dia 20 de setembro. Dispunha, portanto, de pouco mais de 4 meses para dar conta dos conteúdos. Continuei dando regulamente as aulas na universidade em Porto Alegre nas terças à tarde e nas quartas nos dois turnos. Nos demais dias mergulhei o mais fundo possível nos conteúdos relacionados nas teses que seriam objeto dos questionamentos que os examinadores fariam no dia do exame. A fim de evitar ao máximo qualquer perturbação e permitir a necessária concentração não costumava estudar no quarto. Nos dias de chuva recolhia-me ou na casa das abelhas já referida acima, ou na cabana escondida no meio de um bosque natural perto da lagoa do Cristo Rei. Nos dias de sol optava pelo bosque de árvores nativas até hoje parcialmente preservado na encosta à direita da avenida Unisinos subindo a partir da estação do trem. Foram 4 meses em que mergulhei o mais profundamente possível na doutrina e no pensamento dos Padres fundadores da Igreja, dos teólogos formuladores da doutrina, com ênfase na Escolástica: Aristóteles cristianizado por São Thomas de Aquino, Platão, Sto. Agostinho, Suarez, as Sagradas Escrituras, os Evangelhos, as Cartas de São Paulo, São Pedro, a doutrina e dogmas definidos nos diversos concílios, especialmente no de Trento, os teólogos posteriores de maior relevância, os nomes de referência em Exegese, Moral, Direito Canônico, História da Igreja, ocuparam todos os espaços disponíveis naqueles 4 meses. A tudo isso veio somar-se a revisão dos 3 anos de filosofia compreendendo a complexidade, a convergência e divergência natural nos grandes campos compreendidos pelo conceito Filosofia ou formação Filosófica: a Lógica, a Ontologia, a Ética, a Cosmologia, a História da Filosofia e por aí vai. Lembro-me com um toque de nostalgia daqueles 4 meses em que passei dia após dia sozinho, quase como um eremita, naquele bosque emblemático envolto de um clima perto do místico, o farfalahr do vento na copa das árvores, o canto dos pássaros, o zumbido de um uma colmeia de abelhas aninhado no oco de uma figueira do mato e naquela casinha do apiário escutando como melodia de fundo o zumbido de milhões de abelhas, indo e vindo das 40 ou 50 colmeias alinhadas por perto, somado ao perfume paradisíaco das laranjeiras em flor no começo da primavera. Não poucas vezes nem voltava para o Colégio para o almoço. Um bom chimarrão e uma marmita preparada por meu especial amigo, o irmão cozinheiro, permitiam que não se desperdiçasse o precioso tempo. Lá pelo dia 15 de setembro a frente de combate estava alinhada na minha cabeça para encarar as investidas da banca formada por cinco cabeças iluminadas, dispostas a tirar o couro de quem pretendesse fazer parte futuramente da categoria dos “professos”, vencendo a barreira do “exame ad gradum”. Cabe aqui um pequeno inciso. Mais acima já lembrei que os sacerdotes jesuítas dividiam-se em duas categorias: “os coadjutores” e “os professos”. Integrar a categoria dos “professos” pressupunha a aprovação no “exame ad gradum” e ou em casos de qualidades humanas espirituais notórias daqueles que não chegaram a se submeter ou não foram aprovados nesse exame. Quanto me recordo eu fui o único da minha turma de teologia que chegou a prestar esse exame. Os “professos” emitiam, posteriormente, além dos três votos normais: pobreza, castidade e obediência, um quarto, o voto de obediência direta ao papa. Formavam, por assim dizer uma elite dentro da ordem. De suas fileiras costumavam ser indicados os responsáveis por cargos de importância maior como superiores provinciais, superiores de faculdades de teologia, o superior geral da ordem e outros mais. Como já referi “coadjutores” que se distinguissem como bons administradores, cientistas e ou em outras tarefas a eles confiados, costumavam ser promovidos a “professos”. Entre os meus conhecidos cito duas dessas promoções. A primeira delas foi a do Pe. Edvino Friederichs, meu antigo professor de Ciências Naturais no Ginásio em Salvador do Sul. Pela sua capacidade administrativa fora do comum ocupou por duas vezes o posto de Provincial da Província Sul-brasileira da Companhia de Jesus e, consequentemente promovido a professo. O segundo exemplo foi o Pe. Ignacio Schmitz promovido a professo pelo nome conquistado com professor na universidade federal do Rio Grande do Sul e Unisinos somado à excelência de suas pesquisas arqueológicas que lhe renderam reconhecimento nacional e internacional. Mas, é preciso lembrar um detalhe pouco conhecido que assegurava ao professo uma garantia na própria ordem. Se por algum motivo os superiores decidissem desligar um professo, o quarto voto lhe garantia que o processo tramitasse não nas instâncias internas da Ordem mas no nível superior da Congregação dos Religiosos órgão ligado e subordinado diretamente ao papa.
Voltando ao meu exame ad gradum. Os dois ou três dias que o precederam restringi-me a uma recapitulação diária dos conteúdos. De resto procurava ocupar a mente caminhando pela bela natureza que na época ocupava toda a área onde hoje se ergue o complexo da Unisinos, o convento das carmelitas e arredores. Não podia faltar um chimarrão com meu pequeno de estatura mas grande amigo, o irmão Domingos Vinoti responsável pelas vacas e porcos, onde hoje se encontra o convento das carmelitas. Na véspera, 19 de setembro, obedecendo à orientação em vigor na época para os jesuítas em formação, procurei não me ocupar com os conteúdos a serem objeto de interrogações na manhã seguinte. Passei o dia perambulando nos lugares já mencionados, tentando ignorar por algumas horas tudo que fervia na minha cabeça e tentando fazer de conta que a manhã seguinte não passaria de uma troca de ideias com cinco eminências, doutores em filosofia e teologia.
Dia 20 de setembro de 1963. Chegara finalmente o dia de prestar contas do que aprendera e guardava na forma de conhecimento dos 3 anos de filosofia e dos 4 de teologia. Às 7h. em ponto entrei na sala destinada para o exame que se estenderia até às 11,30h. Atrás de uma comprida mesa esperavam da esquerda para a direita os padres Balduino Kipper, exegeta, Cândido Stefani, teólogo, Godofredo Kessler, teólogo e presidente da banca, Antônio Steffen, filósofo e Luiz Muller, também filósofo. As primeiras duas horas foram reservadas para a Filosofia, isto é, das 7h. até às 9h. Das 9 às 9,30 um intervalo para um lanche. Nesse lanche uma guloseima à base de moranguinho vinha a ser a maior curiosidade e não podia faltar. Acontece que na época os moranguinhos da horta do colégio ainda não estavam maduros. O Pe. Kessler se deu o trabalho de no dia anterior viajar de ônibus a Porto Alegre e comprar um quilo ou dois no mercado público. A presença obrigatória do moranguinho naquele intervalo do “exame ad gradum” inspirou o jargão entre os estudantes e professores da faculdade Teologia do Cristo Rei: “comer moranguinhos”. O fulano vai “comer moranguinhos” significava que fora considerado habilitado a enfrentar o “exame ad gradum”. Pois, em companhia dos examinadores, fui até o refeitório tomamos um lanche reforçado acompanhado dos emblemáticos moranguinhos. Pelo tom da conversa e a maneira como me trataram deu para perceber que a metade da batalha estava vencida. Das 9,30 às 11,30 foi a vez de ser sabatinado pelo padre Kipper sobre a Sagrada Escritura e os padres Kessler e Stefani sobre teologia propriamente dita. Saí exausto e acabado daquela batalha em que meus conhecimentos de filosofia e teologia foram virados às avessas, tudo em latim. O ritual prescrevia que o resultado seria comunicado mais tarde pelo secretário ou, novamente no jargão da ordem, pelo “sócio” do Provincial. Mas, pelas manifestações dos examinadores ao sairmos da sala do exame não havia lugar para dúvida de que me saíra muito bem no entrevero. E, de fato, mais ou menos um mês depois fui buscar na Cúria do Provincial a confirmação que fora aprovado e o secretário da Faculdade de Teologia expediu o certificado de licenciado. Guardo esse documento até hoje como a relíquia que marcou o encerramento da minha formação acadêmica no nível superior, somado ao bacharelado em Línguas e Literatura Clássicas, bacharel e filosofia, bacharel em História Natural e Geologia. Para a formação como jesuíta faltava ainda o ano da “Terceira Provação”, isto é, 10 meses dedicados a uma imersão sistemática e definitiva no espírito da Ordem. Não cheguei a passar por essa experiência pois, após alguns anos de adiamento resolvi me desligar da Ordem. Esse, porém, é um assunto que deixo para mais abaixo.