Nas segundas, terças, quintas e sextas-feiras a programação do intervalo da 16 às 17,30h ficava reservado à livre escolha de cada um. Na quarta-feira não havia atividade acadêmica programada. No jargão da instituição era o “dia de xácara”. Na parte da manhã os juniores costumavam dispersar-se pelas redondezas para dar catequese. Fui destacado para a escola da comunidade de Matiel, a meio caminho entre Pareci Novo e São Sebastião do Caí, onde a catequese era ministrada ainda em alemão. Percorria aquele trajeto de uma hora e pouco, de batina e chapéu clerical, patinando na areia solta quando seca ou atolando nela depois da chuva ou mesmo na chuva. Nas quartas-feiras de tarde e nas demais horas disponíveis nas tardes dos outros dias e nos fins de semana meu colega Alcides Giehl e eu começamos uma criação de abelhas nos fundos da propriedade da instituição. Construímos um telheiro de cerca de 30 metros de comprimento para abrigar as colmeias e em anexo um quarto fechado para guardar as ferramentas e os instrumentos usados no manejo das abelhas. O local escolhido não podia ser melhor. O apiário ficava na meia encosta leste do morro do colégio, as colmeias viradas para o sol nascente e na frente a planície do rio Caí coberta de laranjais e bosques de eucaliptos, alternando com manchas de vegetação nativa. No melhor momento o número de colmeias chegou a 40. Normalmente fazíamos 4 colheitas por ano. Uma em agosto para colher o mel que tinha sobrado do inverno, uma em outubro para o mel quase puro da floração das laranjeiras e outros cítricos, uma em fins de novembro com o mel da floração do eucalipto e a última em fins de abril com um mel misto de flores nativas e do eucalipto robusto de casca grossa. No segundo ano do bacharelado fui dispensado da catequese para dedicar-me o dia todo da quarta-feira ao apiário.
Entretanto, havia entrado em contato com o prof. Wolfgang Bücherl do Instituto Butantã em São Paulo, especialista em Aracnídeos. Preenchi os intervalos livres após o almoço e as aulas coletando aranhas no mato que cobria o morro do colégio. A mata virgem desenvolvida sobre os escombros de rochas de arenito oferecia inúmeros esconderijos de caranguejeiras e outras espécies de aranhas, enquanto outras tantas armavam suas redes-armadilha entre árvores e arbustos ou ficavam de tocaia nos ocos de árvores e debaixo das cascas soltas. Meu alvo principal foram as caranguejeiras, viúvas negras e outras espécies de porte um pouco maior. Não me lembro exatamente de quantos exemplares mandei para o prof. Bücherl, não vivas mas preservadas em álcool. Calculo que só de caranguejeiras o número deve ter passado dos 100. O administrador do colégio cedera um quarto desocupado no último andar logo abaixo do telhado. Nele acomodei um bom número de caixas de sapato e, na medida que capturava as aranhas as largava naquele recinto e depois de um certo número as mandava para o Butantã. A remessa a meu ver mais preciosa que mandei para o prof. Bücherl, foi um frasco contendo cerca de um decímetro cúbico de veneno extraído de caranguejeiras. Para a obtenção do veneno empreguei a mesma técnica que se usa na extração do veneno de serpentes, isto é, enganchando as presas na borda de um pequeno frasco de vidro e forçando-as levemente para trás.
Aquelas horas e mais horas esgueirando-me entre as árvores e blocos de arenito renderam, além das aranhas, preciosas horas de reflexão e meditação sobre a natureza, o lugar que nela cabe ao homem e de modo especial o divino que exalava da floresta na sua unidade manifestada na pluralidade sem conta de formas e criaturas. Tenho certeza de que aqueles momentos sozinho comigo mesmo, perambulando por aquele magnífico pedaço do mundo de Deus, contribuíram infinitamente mais para consolidar a minha cosmovisão humana e espiritual, do que as meditações formais de uma hora cada manhã, ajoelhado numa sala fechada, refletindo sobre “pontos” propostos na noite anterior por algum asceta ou diretor espiritual com ares de dono da verdade.
As “férias maiores” no final do segundo ano do noviciado e no final dos dois anos do Juniorado compõem um capítulo especial naquela fase da minha formação. Começa por aí que foram desfrutadas em Caravaggio no interior de Farroupilha. Naquela altura dos acontecimentos – 1951- 1952-1953, o santuário de Nossa Senhora do Caravaggio estava em fase de construção. Acontece que o pároco daquela paróquia o Pe. Bortolan tinha sido aluno do Seminário Central de São Leopoldo dirigido pelos jesuítas e levou para o resta da vida uma grande admiração e afeição pelos seus antigos mestres e pelo espírito inaciano de compromisso com a missão de servir à Igreja. Pois, ele ofereceu o Santuário em construção para o nosso alojamento por duas semanas, isto é, no período das festividades de fim de ano. Em meados de dezembro embarcamos no trem até Farroupilha. Na estação nos esperava o Sr. Verona com seu caminhão de carga “Internacional” e levou-nos até Caravaggio. Instalamo-nos nas dependências do Santuário em construção. Foram três temporadas memoráveis por várias razões. Assistíamos a missa na velha igreja matriz e fazíamos as refeições no salão paroquial. Durante o dia cada qual escolhia a maneira preferida de passar utilmente o tempo. Havia um campo de futebol para quem preferia esse tipo de exporte. Outros preferiam a sombra de um pequeno bosque para jogar cartas, ler ou simplesmente bater um bom papo. O meu interesse e o de mais dois ou três colegas resumia-se em percorrer as redondezas e vasculhar uma bela relíquia de mata virgem à margem de um arroio de montanha com centenas de magníficos exemplares de xaxim de até 4 ou 5 metros de altura e algumas araucárias que tinham escapado do machado dos colonos. Na época o xaxim não constava entre as espécies protegidas por lei, o que permitiu que cortássemos meia dúzia deles para cultivar orquídeas na volta para casa. Pelo fato de sempre me ter interessado por insetos aproveitava o começo da noite para capturar espécies noturnas armando um lençol branco no bosque ao que me referi há pouco e projetando nele o feixe de luz de uma lanterna. Não me lembro onde foi parar a coleta noturna desses insetos. De qualquer maneira destaco esse fato para relembrar que a natureza e suas criaturas atraíram sempre a minha admiração e o meu interesse.
Memoráveis foram as 5 ou 6 excursões no caminhão do sr. Verona. Uma delas teve como destino o seminário dos frades capuchinos em Vila Flores, entre Veranópolis e Nova Prata. Foi a primeira vez que percorri e tive o prazer de admirar aquela magnífica paisagem da descida de Bento Gonçalves até a ponte do Rio das Antas e subindo no outro lado até Veranópolis e Vila Flores. Se bem me recordo a estrada era de chão batido. A acolhida no seminário dos capuchinhos, bem ao estilo alegre e descontraído dos italianos, não podia ter sido mais cordial. Acampamos num bosque natural nos fundos da grande propriedade pertencente ao seminário. Pela meia tarde a comunidade dos frades nos esperava com uma surpresa. Levaram-nos para uma enorme adega fazendo parte das instalações do seminário. Pipas de vinho grandes, médias e pequenas alinhavam-se na penumbra do recinto. Mas, o que mais chamou a atenção foi a quantidade e variedade de salames, copas, salamitos e outros embutidos pendurados nos barrotes de madeira. Evidentemente não podia faltar um espaço convenientemente grande para uma infinidade queijos exalando aquele perfume característico além da aparência convidativa para uma degustação. Todos reunidos o superior do seminário mandou pendurar um bom número de salames numa trave bem no alto com o desafio: “quem pulando consegue agarrar um salame pode ficar com ele”. Foi aquela festa. Nem todos lograram alcançar a presa, entre eles eu. No final da tarde retornamos a Caravaggio, paramos na ponte e tomamos um maravilhoso banho nas corredeiras do rio das Antas e cansados mas felizes da vida voltamos ao nosso acampamento no Santuário de Caravaggio ainda em construção. Só para a curiosidade. Jamais imaginaria naquele dia passado em Vila Flores, que lá perto morava uma menina de seus 9 anos que, 20 anos mais tarde, me faria percorrer inúmeras vezes aquele trajeto descendo e subindo o vale do Rio das Antas. Mas, essa história deixo para mais adiante.
Uma segunda viagem, também no caminhão do Verona, nos levou a Santa Lúcia do Piaí para acampar junto à fonte da “Água Azul”. Para os conhecedores da história das missões dos jesuítas no Rio Grande do Sul nos séculos XVII e XVIII, naquele local, na beira dos campos de Cima da Serra, o missionário jesuíta Cristóvão de Mendonça foi morto pelos índios em 1635. Para os menos familiares com a história das missões dos jesuítas daquele século e meio no Rio Grande do Sul, cabem algumas informações importantes sobre esse missionário. Todas elas podem ser reunidas numa só: Porque o missionário jesuíta Cristóvão de Mendonça terminou sendo morto pelos índios naquele fim de mundo, centenas de quilômetros longe de qualquer vestígio de civilização? É conhecido de todo e qualquer pessoa razoavelmente informada que a introdução do gado vacum no Rio Grande do Sul deve-se à iniciativa do missionário Cristóvão de Mendonça na década de 1630 nas Reduções do noroeste do Rio Grande do Sul. Os rebanhos de gado multiplicaram-se pelos campos do sul do Estado, dando origem a “Vacaria do Mar”. A partir desse estoque foram transferidas matrizes e reprodutores para os campos de Cima da Serra. Multiplicaram-se e povoaram os campos do planalto que ficou conhecido como “Vacaria dos Pinhais”. Missionários jesuítas procedentes das Sete Missões entre eles Cristóvão de Mendonça assumiram a catequese dos guaranis da região. Num embate com eles o missionário foi morto em 1635 na localidade conhecida com “Agua Azul”. Para nós jovens jesuítas esse local onde um missionário paradigmático cumpridor de uma missão e dando a vida enquanto e porque a estava cumprindo, foi de um significado histórico importante. Para nós essa visita significou, antes de mais nada, uma peregrinação a um lugar onde as cascatas e florestas do Alto Caí e a “água azul” daquela fonte ecoavam ainda as reminiscências dos lances da epopeia que terminou na morte de Cristóvão de Mendonça em cumprimento da missão que lhe fora confiada dois séculos antes.
Uma terceira saída, sempre na carroceria do caminhão do sr. Verona foi a Caxias do Sul. Desembarcamos na praça na frente da catedral. Depois de visitar o interior da catedral passamos pelo antigo parque da Festa da Uva e depois visitamos a Metalúrgica Eberle. O maior interesse, entretanto, foi pela Metalúrgica Triches, especializada na criação e fabricação de peças sacras indispensáveis nos rituais litúrgicos: cálices, patenas, castiçais, custódias e por aí vai. Observamos a criação dos diversos modelos de cálices de ouro e prata por estilistas de extraordinária habilidade executando os desenhos com tinta nanquim pois, na época os recursos eletrônicos de hoje nem em sonho. A diretora da metalúrgica na época, a viúva do fundador e mãe do futuro governador Euclides Triches, muito religiosa, nos recebeu com a maior simpatia. A essa visita a Caxias do Sul seguiu uma outra ao Lanifíco em Galópolis da propriedade da família Chaves Barcelos, também relacionada tradicionalmente com os jesuítas. Tivemos a oportunidade de acompanhar todo o processo de preparação da lã desde a lavagem até a transformação em fios próprios para a tecelagem. Vale chamar à atenção que todas essas saídas eram programadas para, de alguma forma, servirem para ampliar e enriquecer os conhecimentos e experiências úteis para um futuro jesuíta, destinado à missão que lhe fosse confiada na pastoral direta, na docência em qualquer nível e/ou pesquisa científica. Depois da visita ao lanifício de Galópolis seguiu outra a Antônio Prado considerada quase como que um museu ao vivo da organização comunal e da arquitetura dos imigrantes italianos ao se instalarem nessa região.
O ano de 1953, o terceiro e último do bacharelado em Letras Clássicas e Retórica surpreendeu- me com uma perda que me afetou profundamente. Ainda no primeiro semestre, em abril ou maio o Pe. Balduino comunicou-me que o Raimundo, aquele meu irmão com quem eu tinha mais afinidade, como já lembrei mais acima, estava internado na Santa Casa em Porto Alegre. Fora diagnosticado com câncer em estágio avançado nos vasos linfáticos e estava passando por um tratamento intensivo de radioterapia. Com a autorização do meu superior viajei a Porto Alegre para lhe fazer uma visita. Encontrei-o deitado na cama isolado dos demais internados por um biombo. Levei um susto. Aquele homem de 44 anos não passava de uma sombra daquele gigante que enfrentava chuvas, tempestades, granizo, calor e frio para sustentar a numerosa família com apenas a filha mais velha casada morando em Itapiranga. Durante a visita chamaram o Raimundo para uma sessão de terapia. Nunca esquecerei aquela cena. Meu irmão predileto destruído pelo câncer, um cobertor nos ombros protegendo-o do frio, caminhando para a sala de terapia. Depois da sessão de terapia continuamos conversando até o meio dia quando serviram o almoço para ele acompanhado de uma garrafa de Malzbier bancada pela família. Naquele dia não almocei. Foi o último encontro em vida com o Raimundo. Pela meia tarde viajei de ônibus até o Cristo Rei em São Leopoldo onde pernoitei e no dia seguinte retornei à minha base em Pareci Novo. Tudo preparado para viajar no dia 11 de janeiro de 1954 ao Morro da Manteiga para uma visita ao Raimundo, desenganado e com previsão de poucos dias de vida, fui surpreendido com um telegrama de que ele falecera na tarde do dia anterior. Não deu tempo para participar do sepultamento por não ter como me deslocar a tempo para Tupandi, local do sepultamento pois, não havia ainda cemitério no Morro da Manteiga. Embrenhei-me no mato no morro do colégio de Pareci, acomodei-me entre as raízes de uma araucária e deixei correr livre os sentimentos pela segunda grande perda na minha família, a primeira foi a de meu pai 7 anos antes. No Paulusblatt, no de fevereiro de 1954 o necrológio do Raimundo veio com o título: “Der starke Mann vom Butterberg ist tot” – “Faleceu o Homem forte do Morro da Manteiga”.
Num sábado no meio das férias em Caravaggio apareceu o Pe. Balduino no seu Jeep para me levar até a Alto Feliz. A família do meu primo irmão Pe. Oswaldo morava naquela localidade. No dia 7 de dezembro ele fora ordenado sacerdote e no dia seguinte celebraria a primeira missa solene na paróquia Santo Inácio da Alto Feliz. Fiquei hospedado na casa do Albino Bergmann, colega dos tempos idos no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Lá se encontrava também minha mãe, minha irmã Ana e meu sobrinho Silvino. Para missa solene no domingo de manhã toda comunidade se fez presente para prestigiar a família e, especialmente, um dos seus membros que lograra chegar ao sacerdócio, uma honra para qualquer comunidade católica da época. Ao Pe. Balduino coube obviamente proferir o sermão festivo na igreja lotada até porta afora, num silêncio em que se podia ouvir o bater de asas de uma mosca. O almoço festivo consistiu num churrasco, maionese, vinho, cerveja e refrigerantes. Aquela festividade ficou na minha memória com o ressaibo doloroso de duas perdas que sofreria no ano seguinte, 1954. Antes de nos dispersarmos o Pe. Balduino chamou-me de lado junto com meu sobrinho Silvino, minha mãe, minha irmã Anna e alertou-nos que o câncer do Raimundo encontrava-se em estágio terminal. Que nos mantivéssemos atentos que ele não passaria mais do que de um mês. E, de fato, como lembrei mais acima, ele faleceu no dia 11 de janeiro de 1954. Ao me despedir, sem suspeitar, apertei a última vez a mão da minha amada irmã Anna. Deixo para mais abaixo os detalhes de como a carta comunicando a sua partida em 17 de dezembro, também em 1954, me fulminou quando passava férias no Rincão dos Groeff em São Francisco de Paula.