Da Enxada à Cátedra [ 39 ]

Nas segundas, terças, quintas e sextas-feiras a programação do intervalo da 16 às 17,30h ficava reservado à livre escolha de cada um. Na quarta-feira não havia atividade acadêmica programada. No jargão da instituição era o “dia de xácara”. Na parte da manhã os juniores costumavam dispersar-se pelas redondezas para dar catequese. Fui destacado para a escola da comunidade de Matiel, a meio caminho entre Pareci Novo e São Sebastião do Caí, onde a catequese era ministrada ainda em alemão. Percorria aquele trajeto de uma hora e pouco, de batina e chapéu clerical, patinando na areia solta quando seca ou atolando nela depois da chuva ou mesmo na chuva. Nas quartas-feiras de tarde e nas demais horas disponíveis nas tardes dos outros dias e nos fins de semana meu colega Alcides Giehl e eu começamos uma criação de abelhas nos fundos da propriedade da instituição. Construímos um telheiro de cerca de 30 metros de comprimento para abrigar as colmeias e em anexo um quarto fechado para guardar as ferramentas e os instrumentos usados no manejo das abelhas. O local escolhido não podia ser melhor. O apiário ficava na meia encosta leste do morro do colégio, as colmeias viradas para o sol nascente e na frente a planície do rio Caí coberta de laranjais e bosques de eucaliptos, alternando com manchas de vegetação nativa. No melhor momento o número de colmeias chegou a 40. Normalmente fazíamos 4 colheitas por ano. Uma em agosto para colher o mel que tinha sobrado do inverno, uma em outubro para o mel quase puro da floração das laranjeiras e outros cítricos, uma em fins de novembro com o mel da floração do eucalipto e a última em fins de abril com um mel misto de flores nativas e do eucalipto robusto de casca grossa. No segundo ano do bacharelado fui dispensado da catequese para dedicar-me o dia todo da quarta-feira ao apiário.

Entretanto, havia entrado em contato com o prof. Wolfgang Bücherl do Instituto Butantã em São Paulo, especialista em Aracnídeos. Preenchi os intervalos livres após o almoço e as aulas coletando aranhas no mato que cobria o morro do colégio. A mata virgem desenvolvida sobre os escombros de rochas de arenito oferecia inúmeros esconderijos de caranguejeiras e outras espécies de aranhas, enquanto outras tantas armavam suas redes-armadilha entre árvores e arbustos ou ficavam de tocaia nos ocos de árvores e debaixo das cascas soltas. Meu alvo principal foram as caranguejeiras, viúvas negras e outras espécies de porte um pouco maior. Não me lembro exatamente de quantos exemplares mandei para o prof. Bücherl, não vivas mas preservadas em álcool. Calculo que só de caranguejeiras o número deve ter passado dos 100. O administrador do colégio cedera um quarto desocupado no último andar logo abaixo do telhado. Nele acomodei um bom número de caixas de sapato e, na medida que capturava as aranhas as largava naquele recinto e depois de um certo número as mandava para o Butantã. A remessa a meu ver mais preciosa que mandei para o prof. Bücherl, foi um frasco contendo cerca de um decímetro cúbico de veneno extraído de caranguejeiras. Para a obtenção do veneno empreguei a mesma técnica que se usa na extração do veneno de serpentes, isto é, enganchando as presas na borda de um pequeno frasco de vidro e forçando-as levemente para trás.

Aquelas horas e mais horas esgueirando-me entre as árvores e blocos de arenito renderam, além das aranhas, preciosas horas de reflexão e meditação sobre a natureza, o lugar que nela cabe ao homem e de modo especial o divino que exalava da floresta na sua unidade manifestada na pluralidade sem conta de formas e criaturas. Tenho certeza de que aqueles momentos sozinho comigo mesmo, perambulando por aquele magnífico pedaço do mundo de Deus, contribuíram infinitamente mais para consolidar a minha cosmovisão humana e espiritual, do que as meditações formais de uma hora cada manhã, ajoelhado numa sala fechada, refletindo sobre “pontos” propostos na noite anterior por algum asceta ou diretor espiritual com ares de dono da verdade.

As “férias maiores” no final do segundo ano do noviciado e no final dos dois anos do Juniorado compõem um capítulo especial naquela fase da minha formação. Começa por aí que foram desfrutadas em Caravaggio no interior de Farroupilha. Naquela altura dos acontecimentos – 1951- 1952-1953, o santuário de Nossa Senhora do Caravaggio estava em fase de construção. Acontece que o pároco daquela paróquia o Pe. Bortolan tinha sido aluno do Seminário Central de São Leopoldo dirigido pelos jesuítas e levou para o resta da vida uma grande admiração e afeição pelos seus antigos mestres e pelo espírito inaciano de compromisso com a missão de servir à Igreja. Pois, ele ofereceu o Santuário em construção para o nosso alojamento por duas semanas, isto é, no período das festividades de fim de ano. Em meados de dezembro embarcamos no trem até Farroupilha. Na estação nos esperava o Sr. Verona com seu caminhão de carga “Internacional” e levou-nos até Caravaggio. Instalamo-nos nas dependências do Santuário em construção. Foram três temporadas memoráveis por várias razões. Assistíamos a missa na velha igreja matriz e fazíamos as refeições no salão paroquial. Durante o dia cada qual escolhia a maneira preferida de passar utilmente o tempo. Havia um campo de futebol para quem preferia esse tipo de exporte. Outros preferiam a sombra de um pequeno bosque para jogar cartas, ler ou simplesmente bater um bom papo. O meu interesse e o de mais dois ou três colegas resumia-se em percorrer as redondezas e vasculhar uma bela relíquia de mata virgem à margem de um arroio de montanha com centenas de magníficos exemplares de xaxim de até 4 ou 5 metros de altura e algumas araucárias que tinham escapado do machado dos colonos. Na época o xaxim não constava entre as espécies protegidas por lei, o que permitiu que cortássemos meia dúzia deles para cultivar orquídeas na volta para casa. Pelo fato de sempre me ter interessado por insetos aproveitava o começo da noite para capturar espécies noturnas armando um lençol branco no bosque ao que me referi há pouco e projetando nele o feixe de luz de uma lanterna. Não me lembro onde foi parar a coleta noturna desses insetos. De qualquer maneira destaco esse fato para relembrar que a natureza e suas criaturas atraíram sempre a minha admiração e o meu interesse.

Memoráveis foram as 5 ou 6 excursões no caminhão do sr. Verona. Uma delas teve como destino o seminário dos frades capuchinos em Vila Flores, entre Veranópolis e Nova Prata. Foi a primeira vez que percorri e tive o prazer de admirar aquela magnífica paisagem da descida de Bento Gonçalves até a ponte do Rio das Antas e subindo no outro lado até Veranópolis e Vila Flores. Se bem me recordo a estrada era de chão batido. A acolhida no seminário dos capuchinhos, bem ao estilo alegre e descontraído dos italianos, não podia ter sido mais cordial. Acampamos num bosque natural nos fundos da grande propriedade pertencente ao seminário. Pela meia tarde a comunidade dos frades nos esperava com uma surpresa. Levaram-nos para uma enorme adega fazendo parte das instalações do seminário. Pipas de vinho grandes, médias e pequenas alinhavam-se na penumbra do recinto. Mas, o que mais chamou a atenção foi a quantidade e variedade de salames, copas, salamitos e outros embutidos pendurados nos barrotes de madeira. Evidentemente não podia faltar um espaço convenientemente grande para uma infinidade queijos exalando aquele perfume característico além da aparência convidativa para uma degustação. Todos reunidos o superior do seminário mandou pendurar um bom número de salames numa trave bem no alto com o desafio: “quem pulando consegue agarrar um salame pode ficar com ele”. Foi aquela festa. Nem todos lograram alcançar a presa, entre eles eu. No final da tarde retornamos a Caravaggio, paramos na ponte e tomamos um maravilhoso banho nas corredeiras do rio das Antas e cansados mas felizes da vida voltamos ao nosso acampamento no Santuário de Caravaggio ainda em construção. Só para a curiosidade. Jamais imaginaria naquele dia passado em Vila Flores, que lá perto morava uma menina de seus 9 anos que, 20 anos mais tarde, me faria percorrer inúmeras vezes aquele trajeto descendo e subindo o vale do Rio das Antas. Mas, essa história deixo para mais adiante.

Uma segunda viagem, também no caminhão do Verona, nos levou a Santa Lúcia do Piaí para acampar junto à fonte da “Água Azul”. Para os conhecedores da história das missões dos jesuítas no Rio Grande do Sul nos séculos XVII e XVIII, naquele local, na beira dos campos de Cima da Serra, o missionário jesuíta Cristóvão de Mendonça foi morto pelos índios em 1635. Para os menos familiares com a história das missões dos jesuítas daquele século e meio no Rio Grande do Sul, cabem algumas informações importantes sobre esse missionário. Todas elas podem ser reunidas numa só: Porque o missionário jesuíta Cristóvão de Mendonça terminou sendo morto pelos índios naquele fim de mundo, centenas de quilômetros longe de qualquer vestígio de civilização? É conhecido de todo e qualquer pessoa razoavelmente informada que a introdução do gado vacum no Rio Grande do Sul deve-se à iniciativa do missionário Cristóvão de Mendonça na década de 1630 nas Reduções do noroeste do Rio Grande do Sul. Os rebanhos de gado multiplicaram-se pelos campos do sul do Estado, dando origem a “Vacaria do Mar”. A partir desse estoque foram transferidas matrizes e reprodutores para os campos de Cima da Serra. Multiplicaram-se e povoaram os campos do planalto que ficou conhecido como “Vacaria dos Pinhais”. Missionários jesuítas procedentes das Sete Missões entre eles Cristóvão de Mendonça assumiram a catequese dos guaranis da região. Num embate com eles o missionário foi morto em 1635 na localidade conhecida com “Agua Azul”. Para nós jovens jesuítas esse local onde um missionário paradigmático cumpridor de uma missão e dando a vida enquanto e porque a estava cumprindo, foi de um significado histórico importante. Para nós essa visita significou, antes de mais nada, uma peregrinação a um lugar onde as cascatas e florestas do Alto Caí e a água azul” daquela fonte ecoavam ainda as reminiscências dos lances da epopeia que terminou na morte de Cristóvão de Mendonça em cumprimento da missão que lhe fora confiada dois séculos antes.

Uma terceira saída, sempre na carroceria do caminhão do sr. Verona foi a Caxias do Sul. Desembarcamos na praça na frente da catedral. Depois de visitar o interior da catedral passamos pelo antigo parque da Festa da Uva e depois visitamos a Metalúrgica Eberle. O maior interesse, entretanto, foi pela Metalúrgica Triches, especializada na criação e fabricação de peças sacras indispensáveis nos rituais litúrgicos: cálices, patenas, castiçais, custódias e por aí vai. Observamos a criação dos diversos modelos de cálices de ouro e prata por estilistas de extraordinária habilidade executando os desenhos com tinta nanquim pois, na época os recursos eletrônicos de hoje nem em sonho. A diretora da metalúrgica na época, a viúva do fundador e mãe do futuro governador Euclides Triches, muito religiosa, nos recebeu com a maior simpatia. A essa visita a Caxias do Sul seguiu uma outra ao Lanifíco em Galópolis da propriedade da família Chaves Barcelos, também relacionada tradicionalmente com os jesuítas. Tivemos a oportunidade de acompanhar todo o processo de preparação da lã desde a lavagem até a transformação em fios próprios para a tecelagem. Vale chamar à atenção que todas essas saídas eram programadas para, de alguma forma, servirem para ampliar e enriquecer os conhecimentos e experiências úteis para um futuro jesuíta, destinado à missão que lhe fosse confiada na pastoral direta, na docência em qualquer nível e/ou pesquisa científica. Depois da visita ao lanifício de Galópolis seguiu outra a Antônio Prado considerada quase como que um museu ao vivo da organização comunal e da arquitetura dos imigrantes italianos ao se instalarem nessa região.

O ano de 1953, o terceiro e último do bacharelado em Letras Clássicas e Retórica surpreendeu- me com uma perda que me afetou profundamente. Ainda no primeiro semestre, em abril ou maio o Pe. Balduino comunicou-me que o Raimundo, aquele meu irmão com quem eu tinha mais afinidade, como já lembrei mais acima, estava internado na Santa Casa em Porto Alegre. Fora diagnosticado com câncer em estágio avançado nos vasos linfáticos e estava passando por um tratamento intensivo de radioterapia. Com a autorização do meu superior viajei a Porto Alegre para lhe fazer uma visita. Encontrei-o deitado na cama isolado dos demais internados por um biombo. Levei um susto. Aquele homem de 44 anos não passava de uma sombra daquele gigante que enfrentava chuvas, tempestades, granizo, calor e frio para sustentar a numerosa família com apenas a filha mais velha casada morando em Itapiranga. Durante a visita chamaram o Raimundo para uma sessão de terapia. Nunca esquecerei aquela cena. Meu irmão predileto destruído pelo câncer, um cobertor nos ombros protegendo-o do frio, caminhando para a sala de terapia. Depois da sessão de terapia continuamos conversando até o meio dia quando serviram o almoço para ele acompanhado de uma garrafa de Malzbier bancada pela família. Naquele dia não almocei. Foi o último encontro em vida com o Raimundo. Pela meia tarde viajei de ônibus até o Cristo Rei em São Leopoldo onde pernoitei e no dia seguinte retornei à minha base em Pareci Novo. Tudo preparado para viajar no dia 11 de janeiro de 1954 ao Morro da Manteiga para uma visita ao Raimundo, desenganado e com previsão de poucos dias de vida, fui surpreendido com um telegrama de que ele falecera na tarde do dia anterior. Não deu tempo para participar do sepultamento por não ter como me deslocar a tempo para Tupandi, local do sepultamento pois, não havia ainda cemitério no Morro da Manteiga. Embrenhei-me no mato no morro do colégio de Pareci, acomodei-me entre as raízes de uma araucária e deixei correr livre os sentimentos pela segunda grande perda na minha família, a primeira foi a de meu pai 7 anos antes. No Paulusblatt, no de fevereiro de 1954 o necrológio do Raimundo veio com o título: “Der starke Mann vom Butterberg ist tot” – “Faleceu o Homem forte do Morro da Manteiga”.

Num sábado no meio das férias em Caravaggio apareceu o Pe. Balduino no seu Jeep para me levar até a Alto Feliz. A família do meu primo irmão Pe. Oswaldo morava naquela localidade. No dia 7 de dezembro ele fora ordenado sacerdote e no dia seguinte celebraria a primeira missa solene na paróquia Santo Inácio da Alto Feliz. Fiquei hospedado na casa do Albino Bergmann, colega dos tempos idos no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Lá se encontrava também minha mãe, minha irmã Ana e meu sobrinho Silvino. Para missa solene no domingo de manhã toda comunidade se fez presente para prestigiar a família e, especialmente, um dos seus membros que lograra chegar ao sacerdócio, uma honra para qualquer comunidade católica da época. Ao Pe. Balduino coube obviamente proferir o sermão festivo na igreja lotada até porta afora, num silêncio em que se podia ouvir o bater de asas de uma mosca. O almoço festivo consistiu num churrasco, maionese, vinho, cerveja e refrigerantes. Aquela festividade ficou na minha memória com o ressaibo doloroso de duas perdas que sofreria no ano seguinte, 1954. Antes de nos dispersarmos o Pe. Balduino chamou-me de lado junto com meu sobrinho Silvino, minha mãe, minha irmã Anna e alertou-nos que o câncer do Raimundo encontrava-se em estágio terminal. Que nos mantivéssemos atentos que ele não passaria mais do que de um mês. E, de fato, como lembrei mais acima, ele faleceu no dia 11 de janeiro de 1954. Ao me despedir, sem suspeitar, apertei a última vez a mão da minha amada irmã Anna. Deixo para mais abaixo os detalhes de como a carta comunicando a sua partida em 17 de dezembro, também em 1954, me fulminou quando passava férias no Rincão dos Groeff em São Francisco de Paula.

Da Enxada à Cátedra [ 38 ]

“Juniorado” - Bacharelado em Línguas Clássicas e curso de Retórica.

Mais acima já lembrei a inserção das Línguas Clássicas na programação do segundo ano do noviciado. Na verdade, em termos acadêmicos contou como o primeiro ano ou dois primeiros semestres do bacharelado nessa área. Do último ano do ginásio, como também já referi mais acima, os egressos como eu, levavam o conhecimento do latim ao nível de entender as obras dos clássicos e falar e nos comunicarmos fluentemente nessa língua. Tanto assim que a língua do quotidiano no noviciado era o latim. O grego aprendido no ginásio não foi tão aprofundado. De qualquer maneira fomos munidos com o domínio dos elementos básicos da gramática: fonética, conjugação, sintaxe, etc. permitindo assim avançar sem tropeços para a familiarização com a literatura, o pensamento e a cultura grega e sua importância para o mundo ocidental. Em termos acadêmicos nos dois anos de “juniorado” aperfeiçoei o conhecimento e traquejo da língua latina pois, ela seria a língua oficial nas preleções futuras sobre os diversos conteúdos filosóficos e teológicos. Não só os conteúdos seriam apresentados em latim, como também as interlocuções com os professores e alunos, como os exames que costumavam ser orais e presididos por uma banca dos titulares das disciplinas tronco da Filosofia e Teologia. Li as obras clássicas latinas que ainda não conhecia do tempo do ginásio, entre elas a Eneida de Virgílio e, principalmente reli e aprofundei o valor literário, o significado histórico cultural dessas obras na gênese e consolidação da Cultura Ocidental, de modo especial no que diz respeito ao ordenamento jurídico e a parte que coube à “cristianização da helenidade” ou vista sob outra perspetiva a helenização do cristianismo”, “a cristianização da romanidade ou a romanização do cristianismo”, acrescentando mais tarde, entre 350 e 800 DC, com a “migração dos povos germânicos”, “germanização”, tanto da “helenidade”, quanto da “romanidade” e da cristandade.” Evidentemente, como pano de fundo de toda essa dinâmica, o panorama histórico cultural, as raízes tanto da “helenidade” quanto da “romanidade” da “cristandade” encontram-se nos filósofos e literatos da antiga Grécia. E do encontro e da amálgama da “Helenidade, da Romanidade, da Cristandade e da Germanidade”, consolidou-se o que costumamos chamar de “Cultura Ocidental”. O resto não passa de detalhes. Parece-me que todos os mega acontecimentos históricos posteriores, a Renascença, a Modernidade e a Pós Modernidade, não tem como serem entendidos, compreendidos e interpretados corretamente a não ser tendo como panorama de fundo esse passado histórico. Parece importante identificar a contribuição específica que cada uma das quatro vertentes que se fundiram na “amálgama” da qual resultou a Cultura Ocidental. Da cultura grega ou da “helenidade” a cultura ocidental herdou em primeiro lugar a cosmovisão artística e literária que começa a se esboçar e alcançar o climax da exuberância já no primeiro milênio antes de Cristo. Entre as figuras centrais e suas obras destacam-se Homero com as monumentais, imortais e sempre atuais epopeias, a Ilíada e a Odisseia, a poética lírica tendo em Píndaro o nome mais eminente. Paralelamente à literatura épica, lírica, o teatro e outras modalidades, floresceu a arte plástica com uma pujança e diversidade que se aproxima da perfeição tanto da forma quanto do simbolismo. Tanto os gêneros quanto os estilos e conteúdos da literatura e da arte helênica serviram de inspiração e fundamento para a literatura e arte romanas, obviamente moldadas de acordo com as especificidades da cosmovisão e cultura romana. Mas, a contribuição helênica mais decisiva na gênese da cultura ocidental vamos encontrar nos filósofos e nas respetivas visões do mundo, vivas e válidas como nunca, mesmo em meio à confusão e guerra de ideias e cosmovisões deste começo do terceiro milênio. E, para não estagnar no nível de reflexões abstratas, somado ao papel decisivo que lhes coube nos três milênios posteriores, parece oportuno apontar os nomes dos mais significativos e sua influência histórica no mundo ocidental, os Pré-Socráticos que exploraram como foco das suas preocupações a “origem do universo e o princípio de todas as coisas”. Destaco entre eles o nome de Tales de Mileto cujo pensamento filosófico pode ser resumido na seguinte frase: “O todo é uno, o uno é plural e a água é o princípio de tudo”. Depois do período Pré-Socrático entram em cena os gigantes da filosofia grega clássica: Sócrates, Aristóteles e Platão que perpassam de alguma forma até hoje o pensamento ocidental. Da cultura romana ou da “romanidade” a cultura ocidental herdou a necessidade de um ordenamento jurídico sólido definidor dos direitos e deveres tanto dos cidadãos comuns, quanto dos administradores em todos os escalões de importância e decisão, como pressuposto para que um Estado, um Império ou uma República disponham de instrumentos seguros para garantir a coesão e a solidez entre os cidadãos e seu pertencimento à uma comunidade nacional. O cristianismo, melhor a “cristandade” entrou nessa “amálgama” que, por assim dizer, conferiu a alma, a razão de ser, o norte ontológico e deontológico à cultura em gestação. No fundo no fundo, todos os seres humanos são iguais nos seus direitos e deveres como indivíduos livres de um lado, porém, comprometidos com a preservação da liberdade dos outros no convívio solidário numa comunidade. Essa visão da individualidade ontológica bidimensional da liberdade limitada pelos direitos mútuos, fundamenta-se na Ética, na Moral que, em última análise, confere legitimidade à estrutura e funcionamento de uma sociedade. Com a migração e invasão dos povos germânicos desmantelando o que ainda restava do Império Romano, acresceu o quarto ingrediente na amálgama da qual resultou a cultura ocidental. A essência da “germanidade” foi a solidez da sua organização vertical e horizontal. Como base encontramos o matrimônio monogâmico, a família, a comunidade formada por famílias, tribos, parentelas, povos e federações de povos. A lógica da complexificação estrutural pressupunha a família solidamente constituída, a comunidade também sólida porque organizada sobre o fundamento da família e, por sua vez uma organização mais ampla pelas comunidades ou parentelas mutuamente comprometidas. Resumindo. O encontro da Helenidade, da Romanidade, da Cristandade e da Germanidade resultou numa“amálgama” conhecida pelos historiadores, filósofos e demais pensadores e especialistas como “Cultura Ocidental” como já lembrado mais acima. Só para concluir essa reflexão. Chamo a atenção que, observando o cenário local, regional, nacional e mundial de hoje, presenciamos a tentativa da demolição dos quatro pilares que por dois milênios resistiram aos embates que as revoluções do pensamento e da tecnologia dos últimos 500 anos. Aqui não é o lugar para entrar em detalhes no que está acontecendo. A helenidade com sua literatura, arte e filosofia passou para o arquivo morto dos museus. A língua da romanidade foi declarada língua morta, sem serventia prática e eliminada dos currículos do ensino médio e o direito romano expurgado dos currículos das faculdades de direito, a ética e moral da cristandade substituída por um relativismo errático do vale tudo e o compromisso e comprometimento familiar e social rebaixado ao nível de um rebanho de ovelhas ou uma alcateia de lobos à espreita de se devorarem mutuamente. Os grandes responsáveis por essa demolição sistemática podem ser encontrados em todos as áreas do conhecimento: na Teologia, na Filosofia, nas Ciências humanas, nas Letras e Artes, nas Ciências Naturais, nas Ciências Tecnológicas, etc., etc. A grande pergunta que nos desafia a essa altura é esta: Aonde vamos parar e o que se pode esperar para a humanidade que emergirá desse tsunami?

Penso que a reflexão que acabo de fazer é importante para compreender as razões do porque desse feitio do “juniorado”, etapa na época obrigatória na formação dos jesuítas, desgraçadamente expurgada no momento em que também as ordens religiosas foram levadas de roldão pelo tsunami da Escola de Frankurt, da doutrina da hegemonia do pensamento de Gramsci, da infiltração do Marxismo nas organizações cristãs, resultando na Teologia da Libertação que pretende harmonizar o marxismo na sua essência ateu, com o Deus da cristandade. O importante não foi tanto o aperfeiçoamento da língua latina e grega e respetivas literaturas mas, a tomada de consciência do tesouro cultural e o potencial para conferir consistência e solidez a um paradigma de civilização que, apesar dos pesares, sobrevive aos percalços de 2 milênios.

Entre as diversas programações acadêmicas, além das aulas e estudos diários, destaco uma no formato de um Seminário focado no protótipo do “homem” no mundo grego e latino. Coube-me apresentar o perfil dos guerreiros gregos descritos por Homero na Ilíada. Foi a minha primeira “palestra ou conferência” academicamente elaborada e proferida para os meus colegas de “juniorado”.

Paralelamente ao currículo do bacharelado em línguas e literaturas clássicas e língua e literatura portuguesa, fomos familiarizados com a teoria e a prática da retórica com destaque para a oratória sacra. A finalidade dessa especialidade acadêmica é óbvia. Futuramente como sacerdotes, a atividade pastoral fazia parte da “missão” de vida a ser cumprida. Embora como professores emcolégios ou universidades, como foi o meu caso, costumávamos ser convocados para, em fins de semana, nas datas litúrgicas maiores e, de modo especial, nas festas do Natal, Ano Novo, Semana Santa e Páscoa, para auxiliar e aliviar os compromissos dos párocos nas mais diversas paróquias. Obviamente constavam entre as tarefas obrigatórias normais nessas ocasiões, rezar missas com pregações. Apesar de lecionar em duas universidades não deixei de dar uma mão ao pároco de Poço das Antes na Semana Santa, ao pároco de Harmonia na semana do Natal, ao pároco de Tupandi também numa semana de Natal. Numa outra semana do Natal passei na paróquia de Dois Irmãos e uma Semana Santa em Estância Velha. Além disso rezei missa e preguei na igreja matriz de São Leopoldo e em outras igrejas e capelas em fins de semana comuns. Esse tirocínio de teoria e prática de oratória interessava, de modo especial, aqueles jesuítas que futuramente seriam destacados como párocos e/ou auxiliares em paróquias, capelanias, missões populares, pregação de retiros etc. A teoria vinha complementada com a prática. Esta resumia-se num sermão proferido para toda a comunidade da instituição: reitor, mestre de noviços, professores, irmãos leigos, noviços e juniores, durante o almoço num determinado dia da semana. Num encontro posterior com o professor de retórica seguia uma avaliação do conteúdo, da qualidade literária e dos recursos retóricos utilizados. Falando em qualidade literária o Pe. Bender, professor de língua e literatura portuguesa costumava aconselhar aos alunos que o nível da linguagem e do estilo de um sermão deveriam ser tais que “aquele senhor de chapéu grande no fundo da igreja” entendesse o conteúdo que estava sendo apresentado pelo pregador. Em outras palavras. “O homem de chapéu grande” representava o cristão comum, na época com formação primária ou quem sabe até menos.

Da Enxada à Cátedra [ 37 ]

Mais acima já lembrei que o noviciado, no jargão dos jesuítas também chamada “primeira provação”, consistia numa imersão para valer em todos os sentidos no espírito da Ordem. É perfeitamente compreensível que funcionava como estágio probatório para os noviços, na maioria rapazes entre 18 e 22 anos, refletirem seriamente se, de fato, era esse o rumo de vida que pretendiam levar para o futuro. A desistência de um número significativo fazia parte, de modo especial, dos noviços do primeiro ano. Foi assim que dois dos meus amigos mais chegados resolveram seguir outro caminho: o Eloy Kunrath e o Bruno Fischer. Senti muita falta principalmente do segundo pois, costumávamos ler os mesmos livros e refletir sobre seus conteúdos. Numa determinada manhã encontrei o livro “Os Jesuítas, Seus Segredos e seu Poder” de Filöp Miller, que estávamos lendo em conjunto, sobre a minha mesinha com um bilhete de despedida. Ao meu grande amigo Bruno Fischer um abraço de agradecimento depois de 70 anos. O nome dos parceiros e amigos especiais não se apagam da memória. E assim terminou sem maiores novidades e contratempos o primeiro ano de noviciado, coroado com um período de dois meses e meio de férias. Naquele final de 1950 e começos de 1951 as férias dos noviços em fim de primeiro ano aconteciam ainda dentro período do confinamento rigoroso do primeiro ano, isto é, foram usufruídas no Instituto São José em Pareci Novo e nas suas redondezas.

Falando em férias. Para começar, naquela época mais de 70 anos passados, nãos sei como são hoje os costumes de férias nas casas de formação dos jesuítas, se é que ainda existe esse tipo de prática. Esse período costumava ser dividido em duas etapas: as “férias maiores” e as “férias menores”. No meu tempo de noviço e jesuíta mais tarde, isto é, em linhas gerais na década de1950 e começos de 1960, as férias maiores” cobriam as duas semanas, talvez uma pouco mais, da preparação e celebração do Natal, Ano Novo e Reis Magos no dia 6 de janeiro. Em linhas gerais, nas férias maiores, mantendo as práticas obrigatórias do dia a dia como a meditação da manhã, a missa diária e os serviços básicos da manutenção da casa, permitia-se a livre escolha do lazer circulando nas espaços, lugares e caminhos da propriedade da instituição que foram descritos mais acima. A meditação em vez de ser de joelhos na sala comum podia ser feita caminhando pelas trilhas do morro coberto de mata virgem ou sentado entre as raízes de uma das majestosas araucárias dispersas pela mata que cobria o morro, ou no topo, rodeado de uma plantação de milho e como cenário de fundo os contornos das montanhas da Serra Geral confundindo-se com a linha do horizonte, lá longe além de São Leopoldo e Novo Hamburgo. As refeições costumavam ser mais caprichadas acompanhadas por uma taça de vinho tinto. Não havia leitura durante as refeições. O mais apreciado, entretanto, consistiu na modificação do horário de dormir. Em vez das 21 horas a comunidade ficava reunida até a meia noite, enquanto eram servidas guloseimas: bolos, sorvetes, conservas e, naturalmente, vinho e para os abstêmios refrigerante. Esses encontros costumavam ser mais animados e ruidosos na véspera do Natal, após a missa do galo, no dia dos “Inocentes”, 28 de dezembro, na véspera do Ano Novo e no dia dos Reis Magos, 6 de janeiro. A partir de 6 de janeiro as “pequenas férias” prolongavam-se até fins de fevereiro. A rotina diária não se distinguia em muito daquela dos meses normais do ano anterior.

O segundo ano do noviciado – 1951 – começou com um retiro de 8 dias. Depois do isolamento praticamente completo do primeiro ano do noviciado, no segundo entraram na programação rotineira algumas novidades. Dar catequese nas quartas-feiras em alguma comunidade das redondezas foi uma delas. Em algumas delas a catequese tinha que ser dada em língua alemã. Apresentei-me para assumir uma delas e fui destacado para a comunidade de Coqueiral. A capela estava sendo construída e, por isso, a catequese era ministrada na sala espaçosa da casa de um dos moradores, local onde era celebrada uma missa mensalmente também na quarta-feira. Depois do café da manhã enfrentava a pé, de batina e chapéu clerical, o trajeto de uma hora e pouco até o Coqueiral. Pelo caminho as crianças dos colonos vinham correndo e me acompanhavam até o local da catequese. Foi uma experiência que me marcou de tal maneira que até hoje me lembro de detalhes como curvas da estrada de chão de areia solta, cercas de potreiro, moradias rodeadas com belos exemplares de araucárias e até do nome algumas das crianças que frequentavam a catequese. Na primeira parte da caminhada fazia a meditação diária naquela linda paisagem plana de potreiros, pequenas manchas de mato, árvores isoladas, respirando o ar puro e fresco do começo da manhã. Uma vez por mês acompanhava o pároco de Pareci Novo na sua charrete por ocasião da visita à comunidade de Coqueiral. A catequese ocupava em torno de uma hora e, perto do meio dia, estava de volta para almoçar em casa.

A programação do segundo ano do noviciado previa uma série de atividades conhecidas na Ordem como “experimentos”. Incluíam, além das tarefas rotineiras da manutenção, limpeza e organização da instituição e seus arredores, outras modalidades especiais de provação para testar os jovens noviços. Para não me alongar demais limito-me a três delas. Não raro acontecia que em alguma paróquia ou mesmo em colégios e seminários algum padre ou irmão leigo gravemente doente exigia a presença permanente de alguém, ou na residência ou num hospital. Os noviços podiam ser convocados para essa missão sempre que fosse preciso. Eu pessoalmente nunca fui destacado para esse tipo de “experimento”. A experiência que me marcou de modo especial foi o mês que passei em parceria com o Benno Brod, também no segundo ano do noviciado, cuidando das enfermarias dos indigentes do hospital Centenário em São Leopoldo. Cabiam-nos atender a todas exigências da enfermaria e dos enfermos, que não fossem privativos de profissionais como médicos e enfermeiras. Mantínhamos a limpeza dos recintos, ajudávamos quando preciso trocar a roupa de cama, inclusive levar os falecidos para o necrotério nos fundos do hospital. Na época a administração do hospital encontrava-se sob a responsabilidade das Irmãs Franciscanas que mantinham sob rédea curta médicos, enfermeiras e funcionários e, ao mesmo tempo, exigiam uma limpeza, asseio e assepsia rigorosa. O outro experimento, o maior de todos, consistia numa peregrinação de um mês seguindo um itinerário traçado pelo Mestre e entregue num envelope fechado a uma dupla de noviços o qual indicava dia por dia, o roteiro a cumprir e o local para pernoitar. Na bagagem os peregrinos levavam o absolutamente indispensável e sem dinheiro.

Alimentação, pernoite e tudo o mais tinha que ser esmolado”. Por razões práticas a “peregrinação” não acontecia no meu período de noviciado na Província dos jesuítas do sul do Brasil. Para matar a curiosidade dos que por acaso lerem essas “memórias” as razões práticas a que me acabo de me referir faziam todo o sentido. O cenário óbvio em que o roteiro da “peregrinação” poderia ser traçado eram as colônias alemãs, italianas e polonesas, conhecidas pela profunda religiosidade e, portanto, a hospedagem de algum religioso era encarada com uma honra toda especial. E não se pode deixar de lembrar o detalhe que os religiosos, também nós noviços, éramos identificados delongepois,circulávamosdebatinapretaechapéuclerical,mesmonumsolde40o. Todasas portas esperavam abertas para um almoço especial, uma galinhada e até um churrasquinho de final de tarde. Conclusão. Em vez de uma “provação” a peregrinação transformar-se-ia num passeio, senão numa aventura recreativa. Alguns anos mais tarde foi incluída na programação. Pelo que estou informado hoje a prática da peregrinação e de outros “experimentos” já não fazem mais parte da formação dos jovens jesuítas.

Com o término do mês de fevereiro de 1952 completaram-se os dois anos de noviciado e com isso o momento decisivo de, ou desistir sem compromisso da vida religiosa e optar por uma carreira na vida civil ou emitir os votos religiosos e comprometer-se definitivamente com a Missão a ser cumprida na Igreja na modalidade imaginada por Santo Inácio e regulamentada pelos Estatutos da Ordem. Um retiro de 8 dias serviu de preparação imediata para a emissão dos votos religiosos. Foram dias de reflexão sobre o significado e os compromissos decorrentes dessa decisão além de uma avaliação profundamente pensada e consciente de seguir em frente ou tomar outro rumo. No primeiro ou segundo domingo de março, concluído o retiro no sábado da véspera, os 20 ou 21 noviços da minha turma e eu emitimos os votos e com isso passamos oficialmente integrando a Ordem. Em princípio os votos tinham o caráter de perpétuos. No caso de alguém decidir desligar- se mais tarde da Ordem a dispensa dos votos exigia uma avaliação dos superiores maiores. Precedia-a normalmente um exame criterioso de cada caso do interessado com o diretor espiritual e o superior. De qualquer forma o desligamento não tinha como ser negado nos casos em que o interessado persistia na sua intenção.

Os votos vinham acompanhados também de algumas novidades no visual externo dos jovens jesuítas. O uso da batina preta e o chapéu clerical continuaram a ser obrigatórios na década de 1950. A faixa da cintura estreita e com o enorme terço enrolado, deu lugar a uma faixa larga e sem o terço. O solidéu usado pelos noviços dava lugar ao clássico barrete clerical, o tratamento de“Caríssimo” substituído por “Frater”, isto é, irmão em latim e os jesuítas no bacharelado de Línguas e Literaturas Clássicas e Retórica formavam a categoria dos “Juniores”.

Já no segundo ano do noviciado foram retomados os estudos acadêmicos. Não me lembro exatamente do número de horas por semana no período da manhã e da tarde foram destinadas a aprofundar o conhecimento da língua latina e grega e suas respetivas literaturas. Além de retomar esses temas que ficaram de molho desde o final do último ano do ginásio, isto é, final de 1949, o ano de 1951 significou para mim o marco de partida para a formação no nível superior. Seguiriam 4 bacharelados, um a licenciatura, uma livre docência, um doutorado e um pós doutorado. A essas etapas que ocuparam os 14 anos seguintes dedico as reflexões que seguem.

Da Enxada à Cátedra [ 36 ]

O retiro de 30 dias me pôs em contato com uma outra realidade de natureza ascética que hoje causa arrepios a quem estuda o quotidiano da vida religiosa tendo como referência a era que termina com as conclusões do Concílio Vaticano II e as diretrizes emanadas do Congregação Geral da Companhia de Jesus de 1965. À rotina do retiro incluíam-se também encontros individuais e privativos regulares com o Mestre no seu gabinete de atendimento duas ou três vezes por semana, de acordo com a necessidade. Numa dessas visitas o no meio dos 30 dias do retiro, o Pe. Kohler me surpreendeu com a entrega de um silício feito de um trançado de arame dimensionado para ser usado no braço com pontas viradas para dentro. Além do silício apresentou-me também uma flagelo de três ou quatro cordas cheias de nós. Ensinou-me como manusear esses instrumentos de penitência e recomendou que fizesse uso deles duas ou três vezes por semana. Como os noviços dormiam num grande dormitório com seus espaços privativos (cama e um bidê) delimitados por biombos fixos, percebia-se perfeitamente quando os vizinhos se valiam do flagelo antes de dormir ou de manhã ao levantar. A maioria , como eu, costumava usar o silício no braço duas ou três vezes por semana. Seguíamos rigorosamente as recomendações do Mestre de não exagerar, nem no uso do silício, nem na aplicação do flagelo. Não tenho informação se ainda hoje esse tipo de penitência faz parte do cotidiano dos noviços jesuítas e muito menos dos da geração em atividade nos diversos empreendimentos que lhes são confiados. Não posso deixar de confessar que devo ao uso desses instrumentos de penitência uma boa parcela do adestramento no engajamento à “Missão” a que sonhava servir, isto é, cumprir a tarefa que me cabia em alguma “brigada de assalto” para que fosse convocado. Aquele confinamento de 30 dias, aquela imersão nos arcanos da razão de ser do “porque” existimos como indivíduos fazendo parte da comunidade humana, do “porque” da missão que nos foi confiada e, finalmente, “o para o onde”, a “parusia, o “desfecho, o apocalipse”, a “consumação dos tempos” profetizado por São João. Naqueles 30 dias de retiro convenci-me que a razão da jornada por este mundo consiste em cumprir uma missão. Toda e qualquer tarefa por mais humilde que seja deve ser cumprida tendo a missão como pano de fundo, como motivação, como motor para evitarmos a sensação de passarmos por escravos. Parece que essa foi a intenção do Criador ao criar o mundo com suas criaturas e colocou o homem no “Jardim” não só para “usufruí-lo” e/ou “explora-lo” mas com a missão de cultiva-lo” fazendo dele a nossa “casa”, isto é, humanizar os espaços, os lugares, os caminhos que moldam a nossa identidade. Avaliado nessa perspetiva o trabalhar significa cumprir a missão de cultivar o Jardim, a Natureza, executando uma das milhões de modalidades de tarefas necessárias para que se torne realidade. Sobre esse pano de fundo não há como classificar o trabalho em categorias de importância. Por mais corriqueiro e por e mais humilde que possa parecer uma determinada tarefa ou função, se não for cumprida como uma missão, deixará no mínimo uma lacuna ou uma arranhadura, mesmo impercetível, na perfeição do cumprimento de uma missão. Portanto, o trabalho de uma faxineira, de uma lavadeira, de um agricultor, de um operário de fábrica, de um engenheiro, de um médico, de um funcionário público, de um professor, de um pesquisador, de um político, de um administrador público, inclusive de um presidente da república e o que mais se possa imaginar, caso não conduzido tendo em vista a missão de, de alguma forma, cultivar o “nosso jardim” ou, se preferimos, a “nossa casa”, não passará de um trabalho escravo, interesseiro, egoísta, busca de poder ou outro qualificativo que se prefira.

Terminados os 30 dias de retiro espiritual voltamos à rotina diária já descrita mais acima. Naquele primeiro ano de noviciado não havia espaço para alguma atividade científica que merecesse esse nome como coleta de plantas, insetos, musgos e por aí vai. Isso, porém, não impediu que “farejasse” todos ângulos, recantos e esconderijos daquele magnífico pedaço de mata virgem comsuas araucárias. Todo esse mapeamento, melhor talvez inventário não registrado como mandam os métodos da pesquisa propriamente dita, me seria de grande utilidade quando dois anos mais tarde comecei a capturar, principalmente aranhas, para enviar para o Instituo Butantã. A seu tempo voltarei para detalhar essas coletas.

Na segunda metade daquele primeiro ano o Pe. Kohler, meu Mestre, encarregou-me da organização da biblioteca do noviciado. Tratava-se de uma biblioteca selecionada de livros e publicações avulsas destinada, antes de tudo, para a imersão dos noviços no espírito religioso e na ascese da Ordem. Perdidas no meio de biografias de personagens e santos de jesuítas de referência e de outras ordens e congregações, de obras de ascese, teologia, exegese, etc., encontravam-se algumas publicações científicas. Lembro-me de um livrinho de menos de 100 páginas com a descrição de plantas medicinais do Rio Grande do Sul, da autoria do Pe. Canísio Orth ao que tudo indica, quando ainda estudante de Teologia. Esse jesuíta foi mais tarde direcionado para a administração das instalações de colégios, paróquias e outras instituições.

Encontrei-o como administrador e professor do Colégio Anchieta entre 1957 e 1959, quando fui professor naquela instituição ainda na rua Duque de Caxias. Entre os alunos era conhecido com o apelido de “ratão”. Terminada a organização da biblioteca do noviciado, inclusive acomodada em armários novos com portas de vidro, o Pe. Kohler entregou-me a chave da biblioteca central de toda a instituição e confiou-me a sua guarda na condição de bibliotecário. Junto com a chave principal veio uma outra. Essa outra só costumava ser entregue a pessoas que gozavam da total confiança dos superiores. Nas bibliotecas das instituições maiores dos jesuítas não podia faltar um armário fechado a sete chaves, apelidado no jargão da Ordem o “inferno”. O acesso a essemisterioso armário só com licença expressa do superior. Nele guardavam-se obras consideradas perigosas para a formação religiosa, moral, ascética e intelectual. Aquela chave que me foi entregue junto com a da biblioteca como um todo, autorizava-me o acesso livre ao “inferno”. “inferno” da biblioteca do Instituto de Formação São José de Pareci novo, não passava de umpequeno armário de uma porta sem vidro acomodado ao lado de uma estante de livros. Não há necessidade de confessar, que sentia uma curiosidade enorme em saber que obras mereciam “a condenação ao inferno”. Na primeira oportunidade logo depois de assumir a biblioteca, abri aquele pequeno armário. E qual não foi a minha surpresa, para não dizer frustração. Deparei-me com apenas duas obras: uma “Bíblia protestante” e o “Mein Kampf” de Hitler. Com isso o “inferno” perdeu completamente o interesse para mim. Chaveei a portinha e nunca mais a abri. Examinar a Bíblia Protestante para catar desvios e reinterpretações em confronto com a versão oficial católica para servir de pasto para polêmica, passava muito longe dos meus interesses. Poucos anos passados da Segunda Guerra Mundial e ainda quentes na memória os horrores que o povo alemão sofreu com a loucura e o fanatismo que resultaram da aplicação prática das ideias formuladas naquele livro saído do cérebro perverso do Führer, me provocavam uma profunda aversão. Soma- se a tudo isso o fato de que dois jovens jesuítas Alfred Delp e Alois Grimm foram executados pelos agentes do regime nacional-socialista em fevereiro de 1945 e meu grande modelo de jesuíta o Pe. Rupert Meier, capelão e herói da primeira guerra mundial quando perdeu uma das pernas, confinado no mosteiro de Ettal perto de Munique. Além disso meus símbolos por excelência da Alemanha católica o cardeal Michael Faulhaber, arcebispo de Munique e o “Leão de Münster”, cardeal Clemens von Gallen, foram dois personagens em que a GESTAPO não ousou por a mão, muito menos confina-los num campo de concentração. Só para registrar. Por essa minha postura em favor da germanidade, especialmente católica, porque nela encontro minhas raízes remotas, e não no fenômeno nacional socialista transitório, fui injustamente rotulado de nazista em não poucos momentos posteriores da minha trajetória acadêmica e isso inclusive dentro da Ordem. Só um exemplo. Em março de 1960 comecei a minha licenciatura em teologia no então Colégio Cristo Rei em São Leopoldo. Na época era costume receber os novos teólogos com uma comemoração que incluía um painel com fotografias e dizeres para dar o perfil dos novatos. Naquele painel fui contemplado com uma suástica acompanhando minha fotografia. Na hora não dei maior importância ao fato. Depois percebi que não foi apenas uma brincadeira de mau gosto mas um estigma que perturbou meu relacionamento com colegas principalmente vindos do centro, do nordeste do País e de outros países como a Espanha, o Canadá francês, Argentina, Uruguai, Venezuela, etc. que vinham estudar teologia em São Leopoldo.

Mas voltemos à biblioteca. Naquela segunda metade do primeiro ano do noviciado refugiava-me na biblioteca nos intervalos maiores da programação rotineira do dia a dia. O acervo como um todo não passava de modesto. Em compensação rico em obras selecionadas para atender as exigências dos professores e mestres com destaque para conteúdos de natureza ascética, teológica, História da Igreja, hagiografia, homilética, espiritualidade, catequética e outras obras nessa linha. Além dos professores e mestres essa biblioteca dava suporte para a formação dos jovens padres jesuítas no seu último estágio exigido pela Ordem, isto é, a chamada então “Terceira Provação”, logo depois de concluída a formação teológica. Nos idos da década de 1950 a Terceira Provação reunia em Pareci Novo jovens padres jesuítas vindos de todo o Brasil, do Uruguai, da Argentina e esporadicamente de outros países. Como já lembrei mais acima o noviciado dispunha de uma biblioteca especializada para aquela etapa de formação.

O Instituto São José de Pareci Novo, além do Noviciado e da Terceira Provação, sediava também o bacharelado em Línguas e Literaturas Clássicas focado no Grego, Latim e Português além de um tirocínio teórico e prático de oratória. Deixo para mais abaixo os comentários pertinentes a esse estágio de formação do jesuíta conhecido então como “Juniorado” e respetiva biblioteca selecionada. As tarefas do bibliotecário na biblioteca central de que estava falando, resumia-se em manter os livros arrumados nas estantes, de períodos em períodos tirar o pó, passar um inseticida para eliminar aranhas, traças e outros insetos e catalogar e inserir no acervo aquisições novas. A aquisição mais importante foi a monumental obra conhecida como “Coleção Migne”. Emresumo compreende os primeiros 400 anos da história da Igreja com os escritos dos chamados “Padres da Igreja” praticamente toda em grego e latim. A coleção veio na forma de brochuras e foi posteriormente encadernada. Essa coleção de um valor histórico difícil de avaliar encontra-se hoje entre as “joias da coroa” do acervo de obras antigas e raras da biblioteca central da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Da Enxada à Cátedra [ 35 ]

No Noviciado

Tento explicar em poucas linhas o significado do conceito de Noviciado que faz parte obrigatória da formação de qualquer ordem ou congregação religiosa. Com uma duração que vai na média de um a dois anos o noviço ou noviça submete-se a uma série de “rituais” que têm como finalidade a imersão existencial de um rapaz ou moça no espírito e nos instrumentos adotados pela respetiva ordem ou congregação, masculina ou feminina, para colaborar com a missão universal da Igreja na implantação do Reino de Deus. O objetivo central é o mesmo. As modalidades para concretizá- lo são múltiplas, tantas quantas são as ordens, congregações, institutos religiosos e outras modalidades. Santo Inácio e seus companheiros Francisco Xavier, Nicolau Bobadilha, Pedro Fabro, Simão Rodrigues, Alfonso Salmeron e Diego Laynez, estudantes de humanidades na universidade de Paris, conceberam a forma, métodos e estratégias que traem nitidamente o passado militar de Inácio de Loiola. Como comandante da fortaleza de Pamplona onde foi seriamente ferido no joelho por um disparo de canhão inimigo, passou semanas se recuperando num leito de hospital. Aproveitou o tempo lendo as biografias dos santos. O resultado foi que, naquele período de retiro compulsório, o capitão comandante da fortaleza de Pamplona, concebeu o projeto de uma organização missionária de alcance universal. Esse projeto foi formulado mais tarde em pareceria com seus companheiros de estudo de Humanidades em Paris. Resumia-se na sua essência em arregimentar, por assim dizer, uma “brigada de assalto de vanguarda” a serviço da Igreja, para a conquista espiritual dos povos nas mais distantes e diversas regiões do mundo. Com o lema “diversa loca peragrare”, isto é, “percorrer as mais diversas regiões mundo”, colocar- se-iam à disposição do Papa para cumprir a missão da “conquista espiritual”, inclusive dos povos em terras “pagãs” como o Japão, a China, Alasca, África e nas ilhas perdidas nos confins dos oceanos.

A aceitação definitiva como membro da Companhia de Jesus previa dois anos de noviciado. No primeiro ano os noviços eram submetidos a um confinamento praticamente total. A rotina diária ficava a cargo de um jesuíta de comprovado conhecimento do espírito da Ordem, no jargão da Ordem conhecido como “Mestre dos Noviços”. Costumava ter como auxiliar um assistente. Meumestre foi o Pe. Leo Kohler, um jesuíta da velha cepa dos que a província alemã costumava destinar para o sul do Brasil. Ao saudá-lo na entrada do noviciado, levei um susto. Aquela figura ereta, postura de oficial, cabelo escovinha, de seus 60 anos, prenunciava um comando de rédea curta. Com o andamento do convívio, porém, fui descobrindo que debaixo daquela armadura de cavaleiro medieval pulsava um coração do tamanho do mundo. Terminei sendo um dos seus pupilos de confiança ao ponto de confiar-me a chave do “inferno” da biblioteca. Só para matar a curiosidade. O “inferno” resumia-se num armário no qual estavam guardas obras que só com autorização especial dos superiores podiam ser lidas. Mais abaixo volto ao assunto. Encaminhou- nos diretamente para a capela onde toda a comunidade se encontrava reunida para as “Ladainhas”, antes do jantar. Adianto que o “assistente” do mestre de noviços era o jovem padreFrancisco Fonseca, o “Fonsequinha”, originário de uma família de classe média e antigo aluno do Colégio Anchieta. No primeiro encontro simpatizei com aquele padre franzino, de baixa estatura, um tanto corcunda por causa de uma deformação da coluna. Uma alma de ouro esse padre Fonsequinha! Mais tarde foi ser mestre de noviços na ilha de Itapirica na Baía, onde passou restante da sua vida e onde foi sepultado.

Depois dessa contextualização passo a detalhar como foi a rotina do primeiro ano do noviciado. Para começar todos os pertences não absolutamente necessários para o quotidiano eram recolhidos e guardados e, terminado o período de provação devolvidos. Só para exemplificar. Eu levei comigo o microscópio presente do Cirne Lima. Esperei dois anos para recuperá-lo no término do noviciado. A imersão na vida religiosa começou com um retiro espiritual de três dias logo nos primeiros dias de março. Vestíamos ainda o traje civil “de gafanhoto”, na gíria dos jesuítas da época. O retiro terminou com a “vestição”, isto é, substituição do traje civil pela batina clerical de religioso obrigatória antes do Concílio Vaticano II. Para distinguir dos demais jesuítas os noviços cingiam uma faixa estreita na cintura e enrolada nela um enorme rosário. Esse rosário costumava ser guardado como relíquia e, em muitos casos, acabava entrelaçado nas mãos quando um desses velhos guerreiros baixava à sepultura. Na mesma ocasião o noviço recebia um crucifixo que costumava acompanhá-lo também até a sepultura junto com o rosário. Lamento que aquele meu terço e crucifixo tenham-se perdido em alguma curva da estrada da minha peregrinação. Mais uma peculiaridade. Daquele dia em diante eramos tratados e nos relacionávamos entre nós como “Caríssimos”. O comum consistia em acompanhar o sobrenome do noviço com “Caríssimo”. Assim por ex. “Caríssimo Fischer”, “Caríssimo Rodrigues da Fonsesca”. Quando havia dois noviços comomesmo sobrenome, que foi o meu caso e um primo, chamavam-nos pelo nome de batismo, precedido por “Caríssimo”. Meu nome de batismo vinha ser Blasio ou Braz, fiquei identificado como “Caríssimo Braz”. Cá para mim teria preferido meu primeiro nome de batismo “Arthur”, pelo qual aliás sou hoje conhecido.

Vivíamos num confinamento muito próximo ao dos monges nos seus mosteiros. Sair para dar uma volta pela vila de Pareci Novo e redondezas só com autorização especial e no mínimo em dupla. Uma ou mais vezes ao mês o mestre ou seu assistente organizavam uma saída coletiva que costumava terminar num piquenique no potreiro de alguma família amiga ou num dos morros das redondezas. Os destinos mais procurados costumavam ser o morro dos “Zimmer”, a meio caminho de Portão, o morro dos “Teixeira” em Pareci Velho na margem esquerda do rio Caí, o morro de “Montenegro” e o morro de “Sto. Estanislau”, poucos quilômetros do Noviciado em Pareci Novo. De mais a mais o “confinamento” era relativo pois, a propriedade dos jesuítas em Pareci Novo cobria uma área de seus 70 hectares acompanhando a margem direita do rio além de todo o morro nos fundos dos prédios e instalações complementares. Uma mata virgem original cobria praticamente todo aquele morro. Nela destacavam-se várias dúzias de belos exemplares de araucárias plantadas há cerca de 40 anos antes pelo Pe. Brentano. Várias trilhas e caminhos cruzavam aquela floresta e no topo, rodeado de angicos, cangeranas, cabriúvas e outras espécies de árvores, um cancha de bolão. Tínhamos toda a liberdade de circular naquelas trilhas e caminhos nos intervalos dos exercícios obrigatórios. Nos feriados, domingos e nas quartas feiras, em vez de fazer as meditações na sala comum ou na capela eramos autorizados cumprir essas práticas em meio daquela natureza inspiradora. Dispondo de um pouco mais de tempo percorri de ponta a ponta aquele pedaço de paraíso e, em companhia de um ou dois coirmãos treinávamos bolão na cancha no topo do morro. Mais abaixo volto a me ocupar com aquele morro ao descrever as coletas de aranhas encomendadas pelo Instituto Butantã de São Paulo.

A rotina do noviciado, principalmente do primeiro ano, seguia um ritual nada folgado. No grande dormitório do terceiro andar os noviços dormiam cada qual num biombo individualizado com uma cama e um bidê e nada mais. A roupa, os sapatos e mais pertences eram guardados num grande roupeiro com repartições individualizadas para cada um. As segundas, terças, quintas e sextas feiras seguiam a mesma rotina. Começavam com a hora de levantar pelas 5,30h. Em seguida reunião na sala comum para uma hora de meditação, seguida da missa diária e o café da manhã. Tarefas domésticas ocupavam uma parte do restante da manhã. Entre outras varrer e passar pano nos corredores, no dormitório, nos quartos dos padres, no refeitório, preparar as mesas para o almoço, cuidar da limpeza nos pátios e calçadas e por aí vai. Lembro que a instituição não contratava serviço pago para a sua manutenção. Tudo ficava a cargo dos noviços e irmãos coadjutores. Depois de executadas as tarefas domésticas seguia meia hora de leitura piedosa da obra de Afonso Rodrigues e a Imitação de Cristo. Nos últimos 15 ou 20 minutos antes do almoço os noviços encontravam-se, geralmente de dois em dois para se darem “esmolas espirituais” (“elimosinae spirituales”). Em outras palavras trocarem conselhos, advertências e vivências de natureza espiritual, enfim emulações para progredir no aperfeiçoamento da formação espiritual. O almoço servido ao meio dia reunia toda a comunidade do Instituto São José no grande refeitório com as mesas armadas em forma de U. Na cabeceira sentavam-se os padres e professores com o reitor no centro. As laterais de um lado estavam reservadas para os “juniores”, estudantes de Letras e Literaturas clássicas e portuguesa além de Retórica. No outro lado almoçavam os noviços. O cardápio preparado na cozinha sob o comando do Ir. Fröhlich costumava ser simples frugal e de ótima qualidade. A todos, sem exceção, esperava uma garrafinha contendo um copo de vinho tinto de boa qualidade adquirido na cantina dos irmãos maristas em Garibaldi. Num púlpito estrategicamente colocado num ângulo do refeitório os noviços revezavam-se semanalmente na leitura de um livro instrutivo, normalmente profano, para cumprir a finalidade a que já me referi mais acima de “enquanto o corpo se alimenta, o espírito tenha a sua alimentação também”. Os alunos de retórica exercitavam-se na prática o que aprendiam nas aulas “pregando” para o “povo” reunido para o almoço. Nos domingos e feriados e comemorações especiais, feita a oração antes da refeição o superior se sentava e dispensava a leitura com um sonoro “Deo Gratias” – “Graças a Deus”, liberando para uma conversa livre durante a refeição. Terminado o almoço os noviços, na minha época os dois anos somavam 42 ao todo, reuniam-se nos bancos acomodados na sombra de um enorme bambusal ou de dois em dois ou três em três iam e vinham pelos caminhos que separavam os canteiros da horta. No recreio depois do almoço e da janta e durante as refeições falávamos português. Nos demais intervalos e comunicações o latim vinha a ser obrigatório. Uma ou duas vezes por semana o Mestre aparecia no recreio para fazer um resumo das notícias e acontecimentos regionais, nacionais e internacionais importantes, extraídas dos jornais assinados pelo colégio.

O evento mais marcante do primeiro ano de noviciado foi, sem dúvida, o “Retiro Grande” de 30 dias. Só para não esquecer. Todo jesuíta era obrigado a passar por um retiro desses em duas ocasiões: a primeira ao entrar no noviciado e a outra ao concluir sua formação a “Terceira Provação”, isto é, um ano de nova imersão para valer na espiritualidade inaciana, depois de concluir toda a formação acadêmica e ordenado sacerdote. Nos demais anos e pelo resto da vida o jesuíta tinha como obrigação fazer anualmente um retiro espiritual de 8 dias. O Retiro Grande de 30 dias começou logo depois da Páscoa de 1950. Como já anotei mais acima, a reclusão vinha a ser total de segunda-feira a sábado, com uma interrupção no domingo. A comunicação entre os retirantes só era permitida em situações especiais e em latim. A rotina diária dos dias de retiro resumia-se na meditação matutina, seguida da missa, desjejum, uma palestra ou “instrução” do Mestre versando sobre as constituições da Ordem, ascese, espiritualidade, enfim, a imersão no espírito inaciano e/ou jesuítico. A primeira parte do período da tarde estava reservado para cuidar da manutenção da casa e seus arredores. A segunda metade começava com uma meditação de uma hora, um período livre dedicado a alguma leitura piedosa, seguida das “Ladainhas” na capela, o jantar e um período livre. Encerrando as atividades do dia o Mestre propunha os “pontos”, isto é, o tema sobre o qual deveríamos meditar na manhã seguinte. Uma visita à capela fechava a rotina do dia. Nos intervalos entre as muitas atividades obrigatórias havia liberdade de fazer uma boa leitura, geralmente a obra ascética de Afonso Rodrigues. Eu da minha parte não sentia maior afinidade com esse autor, especialmente pelo tipo de ascese que orientava sua obra. Entre os meus autores prediletos constavam Hugo Rahner –“Inácio de Loiola homem da Igreja” e outros títulos, Filöp Miller – “Os jesuítas seus segredos e seu poder”, além de outras obras e autores do gênero. Mais ou menos no meio do retiro fui surpreendido por uma visita de todo inesperada da minha mãe. Acontece que em Pareci Novo morava uma prima dela casada cum um Stoffel. Combinou a visita à prima com um passada no Colégio São José onde me encontrava em retiro. Por um descuido meu não informara a mãe dos 30 dias de retiro. O Pe. Kohler teve o bom senso de não despedir minha mãe sem me ver, atitude que na época teria sido considerada quase como que normal. Permitiu que almoçasse com ela e liberou-me até às 16h dos compromissos com o retiro. Fiquei trocando novidades com a mãe sentado num banco à esquerda da portaria e antes mesmo de espirar o prazo de eu voltar para a clausura, a mãe foi pernoitar na casa da prima que ficava em torno de 10 minutos de caminhada distante do colégio. Aquele encontro inesperado e naquelas circunstâncias mexeu com os meus sentimentos mais profundos. Subi por uma trilha que terminava no meio do mato no alto do morro. Quase no topo sentei-me não chão entre as raízes de uma araucária, encostei as costas no tronco o chorei como uma criança. Aquelas menos de três horas que passei junto com mãe trouxeram à tona uma história e um mundo maravilhoso que deixara para trás para entrar na Ordem Religiosa. Nesse panorama destacava-se a figura já um tanto envelhecida da minha mãe viúva, mas com os traços do rosto e a postura do corpo sugerindo uma mulher que não conheceu desafios e obstáculos intransponíveis e ainda decidida a encarar e dar conta de outras tantas eventualidades que a surpreenderiam na sua caminhada que se prolongaria por mais 21 anos. Poucas vezes na minha vida fui acometido por uma saudade tão profunda e tão doída como naquela tarde de outono de 1950, eu um pouco mais que um adolescente de 20 anos. Porém, em vez de me abalar na decisão tomada, aquele anjo que foi minha mãe apareceu num momento crucial como a fiadora com quem podia contar sempre e, principalmente, com suas orações. As orações de uma mãe movem montanhas, não se resumem em fórmulas moldadas por “peritos” em espiritualidade mas, pela relação, porque não pela cumplicidade existencial que tece a relação de uma mãe com seus filhos.

Da Enxada à Cátedra [ 34 ]

Viagem a Porto Novo (São João do Oeste).

Antes de entrar no noviciado, o que significaria um confinamento de dois anos em Pareci Novo, planejei visitar meu irmão Fridolino que, em 1944, se mudara com a família para a então fronteira de colonização de São João do Oeste. Consultei a opinião da minha mãe e ela apoiou sem restrições a ideia. Um detalhe. Da venda do porco para custear as estátuas da gruta de Nossa Senhora de Lourdes sobrara uma soma razoável de dinheiro. O reitor do colégio autorizou-me a usá-la para os gastos da viagem. Naqueles anos os seminaristas naturais de Porto Novo somavam um número tão expressivo que alugaram um ônibus para levá-los até em casa. Integrei-me no grupo e em meados de dezembro o ônibus buscou-nos na portaria do colégio. Na época as estradas para o norte em direção a Santa Catarina eram de chão batido. A Br 386 – estrada da produção não existia. O roteiro que percorremos foi pela estrada que passava por Corvo (hoje Colinas), Roca Sales e, atravessando o Taquari de balsa, até Encantado. A partir dessa cidade a subida do planalto se dava pela antiga estrada cheia de curvas, passando por Anta Gorda, Arvorezinha até Soledade. Na tarde do primeiro dia chegamos em Arvorezinha, onde pernoitamos. No dia seguinte continuamos a viagem passando por Soledade, Espumoso, Selbach, Ibirubá e no meio da tarde paramos em Tapera onde iríamos pernoitar. Ficamos alojados na casa e dependências do nosso colega Alcino Bervian. Naquele remoto ano de 1949 Tapera não passava de uma daquelas cidadezinhas típicas das áreas há pouco colonizadas. A comunidade católica local nos esperava com uma janta, cantos, poesias, temperados com bons papos com o pároco e os membros da comunidade. Retribuímos com cantos e, por fim, com uma fala de agradecimento que coube a mim pronunciar. Pela meia noite nos recolhemos para dormir. Com mais um ou dois colegas passei a noite num pequeno depósito adaptado para a ocasião. Depois de uma noite bem dormida seguimos viagem por Cruz Alta, Ijui, Palmeira das Missões, Barril (hoje Frederico Westphalen) Seberi, para descermos até o rio Uruguai. Gravei na memória o panorama na nossa frente ao começarmos a descida. Lá em baixo, meio encoberto pela mata virgem o grande rio parecia uma lâmina de prata refletindo os raios do sol da meia tarde. Em ambas as margens dezenas de clareiras na floresta com destaque para as características casas de madeira desde os fundamentos inclusive o telhado de madeira dos pioneiros da mata virgem. Um pouco mais à esquerda o povoado de Itapiranga destacava-se na paisagem. O ônibus desceu a encosta e terminou no “Passo do Schöler”. Descemos todos do ônibus, ele subiu na barca e atravessamos o Uruguai que naquela altura mede em torno de 800 metros. Na outra margem em Santa Catarina, desembarquei na casa de comércio e hotel dos Schöler pois, tinha informações que lá perto morava a família do alfaiate Fridolino Juchem conhecida minha, emigrada do Morro da Manteiga em 1941. O filho mais velho, o Telmo, fora meu parceiro de caçada com bodoque nos domingos de tarde. Uma das filhas, a Lourdes, nessa altura com 18 anos, tinham sido minha amiguinha além da Célia Kirch naquela inesquecível escolinha do Morro da Manteiga. Pernoitei na casa daquela família e o Telmo me mostrou a propriedade da família e redondezas nas encostas do rio Uruguai na Sede Capela. Posso até estar fazer um julgamento injusto mas, percebi que o pai da Lourdes evitou que conversasse com as filhas. O Telmo e eu dormimos num quarto num anexo da casa. Depois do café da manhã ele foi comigo até o estabelecimento dos Schöler pois, ele sabia que naquele dia um caminhão da empresa levaria uma carga de tijolos até São João. Aceitaram dar- me carona mas, acomodado em cima dos tijolos porque na cabine, além do motorista viajariam mais duas pessoas. Foi uma viagem e tanta por aqueles 15 quilômetros em grande parte costeando o arroio Fortaleza. A estrada não passava muito de um caminho para carroças e cavalos. Uma curva depois da outra, um desnível depois do outro, pedras de bom tamanho soltas, valos cavados pela chuva, faziam gemer o caminhão. Sentado em cima dos tijolos escorregando para todos os lados não deixaram esquecer os efeitos cada vez que me sentava num banco ou cadeira nos dois ou três dias seguintes. Paramos na filial dos Schöler em São João. Fui obrigado a fazer a pé os quatro ou cinco quilômetros adiante onde morava meu irmão. Devo ter levado uma hora e pouco por uma estrada acompanhando a margem esquerda do arroio São João. Aquela caminhada na meia manhã iria acompanhar-me o resto da minha vida. As casas de madeira dos colonos alinhadas perto da estrada nas clareiras recém abertas na floresta virgem, as exuberantes plantações de milho, feijão, mandioca, abóbora, enchiam os olhos. Encontrei a casa do Fridolino à esquerda da estrada com um potreiro nos fundos descendo até a margem do arroio escondido numa faixa de mata preservada. Meu irmão reconheceu-me de longe e foi receber-me na estrada e atrás dele os filhos, o mais velho, o Afonso, de 15 anos, o Roque, o João, os gêmeos Cláudio e Canísio, o Anselmo, o Inácio e a Blasia. A cunhada, a Maria, esperava na porta da casa, igual a todas as outras, toda de madeira inclusive o telhado de tabuinhas. Só para lembrar. Uma viagem que hoje se vence tranquilamente em 8 ou 9 horas, por estradas asfaltadas, naquele remoto 1949 levou três dias e meio. Meu sonho de participar e vivenciar, pelo menos por duas semanas a realidade numa fronteira de colonização que contava com apenas 5 anos, estava para começar. Pela meia tarde subimos por uma trilha pela mata virgem, calculo uns 150 metros, até um plano com uma grande clareira aberta rodeada pela floresta. O Fridolino mostrou-me orgulhoso uma belíssima plantação de milho em ponto de florescimento e no meio dezenas de abóboras com as ramas protegendo o chão. No fundo da clareira uma trilha entrava fundo mata adentro. Por essa trilha os madeireiros arrastaram os troncos de madeira nobre, principalmente cedro, depois os transportavam até o barranco do rio Uruguai e, reunidos em enormes balsas desciam o Uruguai para, finalmente serem vendidas na Argentina. Para quem se interessar por mais detalhes relativos a história dos balseiros e do comércio de madeira na Colônia de Porto Novo, recomendo o meu livro Somando Forças – O Projeto Social das Jesuítas” -Edit. Unisinos – 2011.

As duas semanas passadas com a família do meu irmão foram bem movimentadas. Para começar fiz um reconhecimento da propriedade. A área toda media 42 hectares dos quais calculo que uns cinco estavam desmatados. O restante era uma floresta praticamente intata. Apenas meia dúzia de cedros e timbaúvas haviam sido derrubadas e vendidas para os balseiros. O Fridolino emprestou-me a espingarda e levou-me até a entrada da trilha que entrava uns duzentos metros mata a dentro. Devido a compromissos assumidos ele próprio não iria acompanhar-me naquela manhã. Recomendou-me que se escutasse estalos no interior do mato tomasse cuidado e subisse em alguma árvore porque naquela época ainda vagavam porcos selvagens, “queixadas”, nos matos daquela região. Andavam em varas de 20 ou mais animais e atacavam tudo que vinha pela frente. De fato, não demorou e escutei um estalar estranho não muito longe. Subi numa árvore inclinada e fiquei esperando. Percebi logo que aquele estalar não saía do lugar e não foi possível observar movimentação no chão do mato. Observando melhor me dei conta de que se tratava de meia dúzia de pica-paus martelando no tronco de uma árvore seca lá perto. Avancei até o fim da picada na floresta e sentei-me num tronco caído e por um bom tempo observei aquele cenário telúrico. Poucos metros adiante erguia-se um enorme cedro que escapara da sanha dos madeireiros, seguramente duas vezes secular, uma dúzia de enormes grápias e aninhadas nos galhos e troncos magníficos exemplares de guaimbés com as raízes descendo pelos troncos ou diretamente pendendo até o chão. Canafístulas, louros, pau marfim, angicos, cabriúvas, canelas, copa encostando em copa, imitavam uma gigantesca catedral filtrando os raios do sol de um dia de dezembro sem nuvens. E na penumbra daquela catedral dezenas de espécies de arbustos, pequenas árvores, ervas rasteiras, samambaias, musgos e nos troncos das árvores as manchas multicoloridas de líquenes, ofereciam abrigo e refúgio a veados, roedores, cachorros do mato, catetos, queixadas, tatus, pacas, cutias, jararacas e serpentes não venenosas. Meu irmão informou-me que perto de uma cascata rodeada de floresta virgem nos fundos da sua propriedade, ficava um refúgio de antas e capivaras. Infelizmente não houve tempo para assar um churrasquinho ao pé daquela cascata em plena mata virgem. Embora carregasse comigo uma espingarda de dois canos calibre 28 não disparei um único tiro naquela manhã. Levei a espingarda mais por uma razão romântica imaginando parecer um daqueles caçadores que povoavam a minha imaginação pelas leituras de livros de aventureiros e viajantes. Uma espectativa não se concretizou e nunca concretizaria, isto é, observar em plena natureza uma bando de coatis andando nos galhos de algum gigante da floresta. Mas, não faltaram bandos e mais bandos de papagaios divertindo-se com suas algazarras nas copas das árvores e, de preferência, nos galhos de alguma grápia destacando-se do verde das copas. Em galhos secos sobressaindo da floresta ecoava o inconfundível martelar do ferreiro.

Nos finais da tarde, não em todos, descia com o Fridolino até o arroio São João para pescar jundiás. Esse arroio fazia parte desses cursos de água de pequeno porte, típicos das encostas, desde tempos imemoriais cobertas de mata virgem. Seus leitos pedregosos feitos por uma sequência de corredeiras alternando-se com remansos de água cristalina ofereciam o habitat perfeito para a procriação e proliferação de espécies de peixes como o cascudo, o jundiá e a traíra. As margens cobertas de mata virgem fechada abrigavam os predadores dos peixes dos arroios, com destaque para a cuica e a lontra. Munidos com um caniço de bambú, uma linha de pesca e um anzol comum e como isca uma minhoca, em questão de uma hora tínhamos fisgado vários quilos de jundiás. Lá pelas tantas as cuicas começaram a se manifestar com seu inconfundível cuicar, razão do seu nome. O Fridolino recolheu o caniço e sentenciou: vamos para casa. As cuicas terminaram com a nossa pesca. Em casa limpamos os jundiás à luz de um candeeiro pois, não havia luz elétrica. Minha cunhada, a Maria, aprontou a janta e fomos dormir. Naquela casa de pioneiros da mata virgem não havia muito espaço e somente dois quartos. Aprontaram para mim uma cama rústica na “sala”. Dormi o sono dos justos embalado pela sinfonia noturna de uma natureza recém “profanada” pela presença do homem. Lembro-me nos mínimos detalhes de um sonho daquela noite. O cenário foi o cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Eu iria entrar na Ordem em março do ano seguinte. Esse passo significava para mim, naquele momento, como que engajar-me como recruta numa missão tão ao gosto do autêntico jesuitismo imaginado por Santo Inácio e seus companheiros na capela de Mont Martre em Paris ao fundarem a Companhia de Jesus: cumprir uma missão, morrer no campo de batalha e ser sepultado num cemitério de guerra à sombra de uma cruz igual a milhares de outras com os nomes dos combatentes caídos, no cumprimento da missão que lhes fora confiada. Os cemitérios de guerra sempre foram para mim cenários de um significado histórico e existencial que vai muito além de um simples memorial. Lá encontram-se os milhares de “caídos” no cumprimento não de uma trefa rotineira, mas de uma missão. Lá naquele cemitério de São Leopoldo descansavam, exceto um ou outro sobrevivente, os heróis fundadores da velha guarda” dos jesuítas, procedentes da velha Germânia, que consolidaram a obra civilizatória que faz a diferença do sul do Brasil em relação com o restante do País. Naquela noite me assumi como recruta e decidi cumprir a tarefa que me caberia cumprir nessa Missão. As correções de rota de 22 anos mais tarde, para mim pelo menos, nada mais significaram do que a fidelidade a uma coerência de que jamais iria abrir mão. Voltarei mais abaixo e em outro momento ao assunto.

Nos dias que se seguiram visitei em primeiro lugar meu padrinho o Arthur Rambo do qual herdei o nome. Com mais um irmão, o Alfredo e uma irmã casada com um Tempass, viajaram na primavera de 1944, amontoados na mesma carroceria de caminhão para a então fronteira de colonização de São João do Oeste. Compraram colônias de terras vizinhas umas às outras na entrada dos complexos de floresta virgem do oeste de Santa Catarina. Meu padrinho, o Arhtur adquiriu 2 colônias e os outros, cada um, uma. Esse meu padrinho perdeu a esposa logo nos primeiros anos. Pelo que sei nunca superou essa perda embora tenha encontrada uma segunda esposa, também viúva jovem, que foi sua companheira fiel e dedicada para o resto da vida. Almocei na casa dele e ao tomarmos chimarrão antes do almoço, ele apontou para a segunda esposa ocupada no fogão e disse mais ou menos essas palavras: Ela é minha salvação. Depois desse encontro nunca mais me encontrei com esse homem, representante emblemático de todos os pioneiros nas fronteiras de colonização do século XIX e XX do sul do Brasil. Contaram-me que antes de morrer o Arthur pediu um gole de água. Depois de tomá-lo pronunciou as últimas palavras de um significado difícil de avaliar em toda a sua extensão: “Wen das gute kühle Wasser nicht wär” – “Se não fosse a água boa e fresca”, uma versão carregada de simbolismo do filósofo grego Tales de Mileto de 2.500 anos passados: “o todo é uno, o uno é plural e a água é o princípio de todasas coisas”.

O acontecimento mais importante dessa minha visita foi, sem dúvida, a missa da meia noite do Natal, conhecida como “a missa do galo”, oficiada pelo Pe. Schoebendach, o mesmo a quem me referi mais acima que presidiu a encomendação do meu pai. Relembrando que, naquela época, a comunidade de São João era 100% católica e de origem alemã ou alemães diretamente imigrados na década de 1930, o culto foi todo em alemão: as orações do povo, os cantos e o sermão, menos a liturgia da missa em si que foi em latim como em qualquer parte do mundo católico na época. Nunca vou esquecer aquele espetáculo de fé. Já na ida até a igreja paroquial pelas 10h da noite não havia caminho ou trilha saindo da mata virgem ou das clareias recém abertas que não trazia pessoas a cavalo, bandos de crianças e adolescentes, moças e moços, homens e mulheres dirigindo-se até a igreja. Todos aqueles que de alguma maneira tinham condições faziam questão de comparecer. E o resultado não podia ser outro. Nem a metade das pessoas coube no interior do magnífico templo todo construído com madeiras nobres doadas pelos paroquianos. Mais adiante volto para descrever aquela igreja única em todo sul do Brasil. As crianças acomodaram-se na frente e nos lados do altar não deixando um palmo livre. Os bancos e os corredores ficaram por conta dos adolescentes e adultos, mulheres e moças do lado esquerdo e homens e moços no direito, como era hábito naquele tempo. Quem não conseguiu lugar dentro da igreja assistiu a missa apinhado na porta principal e nas laterais além de um número grande de homens aglomerados nos gramados em volta do templo. Na hora da consagração ninguém se omitiu para ajoelhar-se na grama húmida pelo orvalho. O coral da comunidade deu o melhor de si e o Pe. Schoebendach caprichou com o sermão. A distribuição da comunhão levou no mínimo em torno de 20 minutos. A cerimônia toda estendeu-se até depois da uma hora com a comunidade inteira cantando “Grosser Gott wir loben Dich” – “Deus Eterno a Vós louvor”. O eco dessa vigorosa melodia em louvor ao poder e às obras do Criador, daquela madrugada de 25 de dezembro de 1949, rebatendo nas encostas dos morros, enchendo os vales e perpassando as florestas e plantações, gravou-se na minha memória nos mínimos detalhes. Quero apenas lembrar aos netos e bisnetos que hoje colhem os frutos do sangue e suor, das penúrias e sofrimentos, que não desmereçam o legado de valores humanos e religiosos daquela geração de homens e mulheres que empenharam o melhor de suas vidas e deram as próprias vidas, ao colocarem os fundamentos e pressupostos para a prosperidade do extremo oeste de Santa Catarina. Terminadas as celebrações litúrgicas o povo foi-se dispersando e as famílias se recolhendo nos seus modestos lares de madeira bruta acomodados nas clareiras rodeadas pelo clima da floresta carregado de mistério.

No dia 27 ou 28 de dezembro reuni meus pertences pois, chegara a hora de voltar para casa no Morro da Manteiga e passar os dois últimos meses de férias junto com minha mãe, minha irmã Ana, o Bertoldo e a Erica, o Raimundo e sua numerosa família. Depois do almoço despedi-me da família do Fridolino e em sua companhia fui esperar o ônibus na estrada que descia pela outra margem do Arroio São João. Com um aperto no coração despedi-me desse meu amado irmão. Na curva logo adiante olhei para trás, ele protegido pelo guarda-chuva abanava com a mão até a curva da estrada esconde-lo. A figura daquele homem de corpo franzino mas de uma alma e uma coragem de gigante plantado na beira da estrada abanando-me um adeus, faz parte de inúmeras cenas que povoam as muitas lembranças dos acontecimentos marcantes da minha vida.

Pela meia tarde o ônibus me deixou na Sede Capela no entroncamento da estrada para Itapiranga e o Porto Schöler. Caminhei os dois ou três quilômetros até a casa do meu amigo, o alfaiate Fridolino Juchem o mesmo onde pernoitei na vinda duas semanas antes. Na manhã seguinte o Telmo, também já conhecido, acompanhou-me até a casa de comércio dos Schöler. Não demorou e encostou o ônibus da “Serrana” que fazia o trajeto Porto Novo - Linha Imperial em Nova Petrópolis.

Pouca coisa guardei na memória desse retorno até em Casa no Morro da Manteiga. Só me lembro que cheguei lá na tarde da véspera do Ano Novo. No mais não ocorreram nos dois meses de férias eventos que mereçam um destaque especial. Ajudei o quanto me era possível nas lides diárias próprias na colônia como capinar, fazer pasto, cuidar dos animais e até peguei no arado de bois para lavrar uma área para plantar batata. No dia 27 de fevereiro despedi-me da minha mãe, da Ana, da Erika, da família do meu irmão Raimundo. O Bertoldo e eu montamos nos cavalos e cavalgamos até o Colégio Santo Inácio onde ocorreu o encontro dos candidatos ao noviciado. No dia seguinte a direção do Colégio ofereceu um almoço de confraternização. Às 4h embarcamos no trem que nos deixaria na estação em Montenegro. Lá esperava um caminhão que nos levou até o Colégio São José em Pareci Novo. O sol se punha enquanto passávamos pelo portal de entrada. Quando a porta se fechou fui tomado por uma sensação um tanto estranha. O mundo profano ficara para trás e começava uma nova e longa caminhada num ambiente inteiramente impregnado de espiritualidade: “O Noviciado”.