No Noviciado
Tento explicar em poucas linhas o significado do conceito de Noviciado que faz parte obrigatória da formação de qualquer ordem ou congregação religiosa. Com uma duração que vai na média de um a dois anos o noviço ou noviça submete-se a uma série de “rituais” que têm como finalidade a imersão existencial de um rapaz ou moça no espírito e nos instrumentos adotados pela respetiva ordem ou congregação, masculina ou feminina, para colaborar com a missão universal da Igreja na implantação do Reino de Deus. O objetivo central é o mesmo. As modalidades para concretizá- lo são múltiplas, tantas quantas são as ordens, congregações, institutos religiosos e outras modalidades. Santo Inácio e seus companheiros Francisco Xavier, Nicolau Bobadilha, Pedro Fabro, Simão Rodrigues, Alfonso Salmeron e Diego Laynez, estudantes de humanidades na universidade de Paris, conceberam a forma, métodos e estratégias que traem nitidamente o passado militar de Inácio de Loiola. Como comandante da fortaleza de Pamplona onde foi seriamente ferido no joelho por um disparo de canhão inimigo, passou semanas se recuperando num leito de hospital. Aproveitou o tempo lendo as biografias dos santos. O resultado foi que, naquele período de retiro compulsório, o capitão comandante da fortaleza de Pamplona, concebeu o projeto de uma organização missionária de alcance universal. Esse projeto foi formulado mais tarde em pareceria com seus companheiros de estudo de Humanidades em Paris. Resumia-se na sua essência em arregimentar, por assim dizer, uma “brigada de assalto de vanguarda” a serviço da Igreja, para a conquista espiritual dos povos nas mais distantes e diversas regiões do mundo. Com o lema “diversa loca peragrare”, isto é, “percorrer as mais diversas regiões mundo”, colocar- se-iam à disposição do Papa para cumprir a missão da “conquista espiritual”, inclusive dos povos em terras “pagãs” como o Japão, a China, Alasca, África e nas ilhas perdidas nos confins dos oceanos.
A aceitação definitiva como membro da Companhia de Jesus previa dois anos de noviciado. No primeiro ano os noviços eram submetidos a um confinamento praticamente total. A rotina diária ficava a cargo de um jesuíta de comprovado conhecimento do espírito da Ordem, no jargão da Ordem conhecido como “Mestre dos Noviços”. Costumava ter como auxiliar um assistente. Meumestre foi o Pe. Leo Kohler, um jesuíta da velha cepa dos que a província alemã costumava destinar para o sul do Brasil. Ao saudá-lo na entrada do noviciado, levei um susto. Aquela figura ereta, postura de oficial, cabelo escovinha, de seus 60 anos, prenunciava um comando de rédea curta. Com o andamento do convívio, porém, fui descobrindo que debaixo daquela armadura de cavaleiro medieval pulsava um coração do tamanho do mundo. Terminei sendo um dos seus pupilos de confiança ao ponto de confiar-me a chave do “inferno” da biblioteca. Só para matar a curiosidade. O “inferno” resumia-se num armário no qual estavam guardas obras que só com autorização especial dos superiores podiam ser lidas. Mais abaixo volto ao assunto. Encaminhou- nos diretamente para a capela onde toda a comunidade se encontrava reunida para as “Ladainhas”, antes do jantar. Adianto que o “assistente” do mestre de noviços era o jovem padreFrancisco Fonseca, o “Fonsequinha”, originário de uma família de classe média e antigo aluno do Colégio Anchieta. No primeiro encontro simpatizei com aquele padre franzino, de baixa estatura, um tanto corcunda por causa de uma deformação da coluna. Uma alma de ouro esse padre Fonsequinha! Mais tarde foi ser mestre de noviços na ilha de Itapirica na Baía, onde passou restante da sua vida e onde foi sepultado.
Depois dessa contextualização passo a detalhar como foi a rotina do primeiro ano do noviciado. Para começar todos os pertences não absolutamente necessários para o quotidiano eram recolhidos e guardados e, terminado o período de provação devolvidos. Só para exemplificar. Eu levei comigo o microscópio presente do Cirne Lima. Esperei dois anos para recuperá-lo no término do noviciado. A imersão na vida religiosa começou com um retiro espiritual de três dias logo nos primeiros dias de março. Vestíamos ainda o traje civil “de gafanhoto”, na gíria dos jesuítas da época. O retiro terminou com a “vestição”, isto é, substituição do traje civil pela batina clerical de religioso obrigatória antes do Concílio Vaticano II. Para distinguir dos demais jesuítas os noviços cingiam uma faixa estreita na cintura e enrolada nela um enorme rosário. Esse rosário costumava ser guardado como relíquia e, em muitos casos, acabava entrelaçado nas mãos quando um desses velhos guerreiros baixava à sepultura. Na mesma ocasião o noviço recebia um crucifixo que costumava acompanhá-lo também até a sepultura junto com o rosário. Lamento que aquele meu terço e crucifixo tenham-se perdido em alguma curva da estrada da minha peregrinação. Mais uma peculiaridade. Daquele dia em diante eramos tratados e nos relacionávamos entre nós como “Caríssimos”. O comum consistia em acompanhar o sobrenome do noviço com “Caríssimo”. Assim por ex. “Caríssimo Fischer”, “Caríssimo Rodrigues da Fonsesca”. Quando havia dois noviços comomesmo sobrenome, que foi o meu caso e um primo, chamavam-nos pelo nome de batismo, precedido por “Caríssimo”. Meu nome de batismo vinha ser Blasio ou Braz, fiquei identificado como “Caríssimo Braz”. Cá para mim teria preferido meu primeiro nome de batismo “Arthur”, pelo qual aliás sou hoje conhecido.
Vivíamos num confinamento muito próximo ao dos monges nos seus mosteiros. Sair para dar uma volta pela vila de Pareci Novo e redondezas só com autorização especial e no mínimo em dupla. Uma ou mais vezes ao mês o mestre ou seu assistente organizavam uma saída coletiva que costumava terminar num piquenique no potreiro de alguma família amiga ou num dos morros das redondezas. Os destinos mais procurados costumavam ser o morro dos “Zimmer”, a meio caminho de Portão, o morro dos “Teixeira” em Pareci Velho na margem esquerda do rio Caí, o morro de “Montenegro” e o morro de “Sto. Estanislau”, poucos quilômetros do Noviciado em Pareci Novo. De mais a mais o “confinamento” era relativo pois, a propriedade dos jesuítas em Pareci Novo cobria uma área de seus 70 hectares acompanhando a margem direita do rio além de todo o morro nos fundos dos prédios e instalações complementares. Uma mata virgem original cobria praticamente todo aquele morro. Nela destacavam-se várias dúzias de belos exemplares de araucárias plantadas há cerca de 40 anos antes pelo Pe. Brentano. Várias trilhas e caminhos cruzavam aquela floresta e no topo, rodeado de angicos, cangeranas, cabriúvas e outras espécies de árvores, um cancha de bolão. Tínhamos toda a liberdade de circular naquelas trilhas e caminhos nos intervalos dos exercícios obrigatórios. Nos feriados, domingos e nas quartas feiras, em vez de fazer as meditações na sala comum ou na capela eramos autorizados cumprir essas práticas em meio daquela natureza inspiradora. Dispondo de um pouco mais de tempo percorri de ponta a ponta aquele pedaço de paraíso e, em companhia de um ou dois coirmãos treinávamos bolão na cancha no topo do morro. Mais abaixo volto a me ocupar com aquele morro ao descrever as coletas de aranhas encomendadas pelo Instituto Butantã de São Paulo.
A rotina do noviciado, principalmente do primeiro ano, seguia um ritual nada folgado. No grande dormitório do terceiro andar os noviços dormiam cada qual num biombo individualizado com uma cama e um bidê e nada mais. A roupa, os sapatos e mais pertences eram guardados num grande roupeiro com repartições individualizadas para cada um. As segundas, terças, quintas e sextas feiras seguiam a mesma rotina. Começavam com a hora de levantar pelas 5,30h. Em seguida reunião na sala comum para uma hora de meditação, seguida da missa diária e o café da manhã. Tarefas domésticas ocupavam uma parte do restante da manhã. Entre outras varrer e passar pano nos corredores, no dormitório, nos quartos dos padres, no refeitório, preparar as mesas para o almoço, cuidar da limpeza nos pátios e calçadas e por aí vai. Lembro que a instituição não contratava serviço pago para a sua manutenção. Tudo ficava a cargo dos noviços e irmãos coadjutores. Depois de executadas as tarefas domésticas seguia meia hora de leitura piedosa da obra de Afonso Rodrigues e a Imitação de Cristo. Nos últimos 15 ou 20 minutos antes do almoço os noviços encontravam-se, geralmente de dois em dois para se darem “esmolas espirituais” (“elimosinae spirituales”). Em outras palavras trocarem conselhos, advertências e vivências de natureza espiritual, enfim emulações para progredir no aperfeiçoamento da formação espiritual. O almoço servido ao meio dia reunia toda a comunidade do Instituto São José no grande refeitório com as mesas armadas em forma de U. Na cabeceira sentavam-se os padres e professores com o reitor no centro. As laterais de um lado estavam reservadas para os “juniores”, estudantes de Letras e Literaturas clássicas e portuguesa além de Retórica. No outro lado almoçavam os noviços. O cardápio preparado na cozinha sob o comando do Ir. Fröhlich costumava ser simples frugal e de ótima qualidade. A todos, sem exceção, esperava uma garrafinha contendo um copo de vinho tinto de boa qualidade adquirido na cantina dos irmãos maristas em Garibaldi. Num púlpito estrategicamente colocado num ângulo do refeitório os noviços revezavam-se semanalmente na leitura de um livro instrutivo, normalmente profano, para cumprir a finalidade a que já me referi mais acima de “enquanto o corpo se alimenta, o espírito tenha a sua alimentação também”. Os alunos de retórica exercitavam-se na prática o que aprendiam nas aulas “pregando” para o “povo” reunido para o almoço. Nos domingos e feriados e comemorações especiais, feita a oração antes da refeição o superior se sentava e dispensava a leitura com um sonoro “Deo Gratias” – “Graças a Deus”, liberando para uma conversa livre durante a refeição. Terminado o almoço os noviços, na minha época os dois anos somavam 42 ao todo, reuniam-se nos bancos acomodados na sombra de um enorme bambusal ou de dois em dois ou três em três iam e vinham pelos caminhos que separavam os canteiros da horta. No recreio depois do almoço e da janta e durante as refeições falávamos português. Nos demais intervalos e comunicações o latim vinha a ser obrigatório. Uma ou duas vezes por semana o Mestre aparecia no recreio para fazer um resumo das notícias e acontecimentos regionais, nacionais e internacionais importantes, extraídas dos jornais assinados pelo colégio.
O evento mais marcante do primeiro ano de noviciado foi, sem dúvida, o “Retiro Grande” de 30 dias. Só para não esquecer. Todo jesuíta era obrigado a passar por um retiro desses em duas ocasiões: a primeira ao entrar no noviciado e a outra ao concluir sua formação a “Terceira Provação”, isto é, um ano de nova imersão para valer na espiritualidade inaciana, depois de concluir toda a formação acadêmica e ordenado sacerdote. Nos demais anos e pelo resto da vida o jesuíta tinha como obrigação fazer anualmente um retiro espiritual de 8 dias. O Retiro Grande de 30 dias começou logo depois da Páscoa de 1950. Como já anotei mais acima, a reclusão vinha a ser total de segunda-feira a sábado, com uma interrupção no domingo. A comunicação entre os retirantes só era permitida em situações especiais e em latim. A rotina diária dos dias de retiro resumia-se na meditação matutina, seguida da missa, desjejum, uma palestra ou “instrução” do Mestre versando sobre as constituições da Ordem, ascese, espiritualidade, enfim, a imersão no espírito inaciano e/ou jesuítico. A primeira parte do período da tarde estava reservado para cuidar da manutenção da casa e seus arredores. A segunda metade começava com uma meditação de uma hora, um período livre dedicado a alguma leitura piedosa, seguida das “Ladainhas” na capela, o jantar e um período livre. Encerrando as atividades do dia o Mestre propunha os “pontos”, isto é, o tema sobre o qual deveríamos meditar na manhã seguinte. Uma visita à capela fechava a rotina do dia. Nos intervalos entre as muitas atividades obrigatórias havia liberdade de fazer uma boa leitura, geralmente a obra ascética de Afonso Rodrigues. Eu da minha parte não sentia maior afinidade com esse autor, especialmente pelo tipo de ascese que orientava sua obra. Entre os meus autores prediletos constavam Hugo Rahner –“Inácio de Loiola homem da Igreja” e outros títulos, Filöp Miller – “Os jesuítas seus segredos e seu poder”, além de outras obras e autores do gênero. Mais ou menos no meio do retiro fui surpreendido por uma visita de todo inesperada da minha mãe. Acontece que em Pareci Novo morava uma prima dela casada cum um Stoffel. Combinou a visita à prima com um passada no Colégio São José onde me encontrava em retiro. Por um descuido meu não informara a mãe dos 30 dias de retiro. O Pe. Kohler teve o bom senso de não despedir minha mãe sem me ver, atitude que na época teria sido considerada quase como que normal. Permitiu que almoçasse com ela e liberou-me até às 16h dos compromissos com o retiro. Fiquei trocando novidades com a mãe sentado num banco à esquerda da portaria e antes mesmo de espirar o prazo de eu voltar para a clausura, a mãe foi pernoitar na casa da prima que ficava em torno de 10 minutos de caminhada distante do colégio. Aquele encontro inesperado e naquelas circunstâncias mexeu com os meus sentimentos mais profundos. Subi por uma trilha que terminava no meio do mato no alto do morro. Quase no topo sentei-me não chão entre as raízes de uma araucária, encostei as costas no tronco o chorei como uma criança. Aquelas menos de três horas que passei junto com mãe trouxeram à tona uma história e um mundo maravilhoso que deixara para trás para entrar na Ordem Religiosa. Nesse panorama destacava-se a figura já um tanto envelhecida da minha mãe viúva, mas com os traços do rosto e a postura do corpo sugerindo uma mulher que não conheceu desafios e obstáculos intransponíveis e ainda decidida a encarar e dar conta de outras tantas eventualidades que a surpreenderiam na sua caminhada que se prolongaria por mais 21 anos. Poucas vezes na minha vida fui acometido por uma saudade tão profunda e tão doída como naquela tarde de outono de 1950, eu um pouco mais que um adolescente de 20 anos. Porém, em vez de me abalar na decisão tomada, aquele anjo que foi minha mãe apareceu num momento crucial como a fiadora com quem podia contar sempre e, principalmente, com suas orações. As orações de uma mãe movem montanhas, não se resumem em fórmulas moldadas por “peritos” em espiritualidade mas, pela relação, porque não pela cumplicidade existencial que tece a relação de uma mãe com seus filhos.