Da Enxada à Cátedra [ 37 ]

Mais acima já lembrei que o noviciado, no jargão dos jesuítas também chamada “primeira provação”, consistia numa imersão para valer em todos os sentidos no espírito da Ordem. É perfeitamente compreensível que funcionava como estágio probatório para os noviços, na maioria rapazes entre 18 e 22 anos, refletirem seriamente se, de fato, era esse o rumo de vida que pretendiam levar para o futuro. A desistência de um número significativo fazia parte, de modo especial, dos noviços do primeiro ano. Foi assim que dois dos meus amigos mais chegados resolveram seguir outro caminho: o Eloy Kunrath e o Bruno Fischer. Senti muita falta principalmente do segundo pois, costumávamos ler os mesmos livros e refletir sobre seus conteúdos. Numa determinada manhã encontrei o livro “Os Jesuítas, Seus Segredos e seu Poder” de Filöp Miller, que estávamos lendo em conjunto, sobre a minha mesinha com um bilhete de despedida. Ao meu grande amigo Bruno Fischer um abraço de agradecimento depois de 70 anos. O nome dos parceiros e amigos especiais não se apagam da memória. E assim terminou sem maiores novidades e contratempos o primeiro ano de noviciado, coroado com um período de dois meses e meio de férias. Naquele final de 1950 e começos de 1951 as férias dos noviços em fim de primeiro ano aconteciam ainda dentro período do confinamento rigoroso do primeiro ano, isto é, foram usufruídas no Instituto São José em Pareci Novo e nas suas redondezas.

Falando em férias. Para começar, naquela época mais de 70 anos passados, nãos sei como são hoje os costumes de férias nas casas de formação dos jesuítas, se é que ainda existe esse tipo de prática. Esse período costumava ser dividido em duas etapas: as “férias maiores” e as “férias menores”. No meu tempo de noviço e jesuíta mais tarde, isto é, em linhas gerais na década de1950 e começos de 1960, as férias maiores” cobriam as duas semanas, talvez uma pouco mais, da preparação e celebração do Natal, Ano Novo e Reis Magos no dia 6 de janeiro. Em linhas gerais, nas férias maiores, mantendo as práticas obrigatórias do dia a dia como a meditação da manhã, a missa diária e os serviços básicos da manutenção da casa, permitia-se a livre escolha do lazer circulando nas espaços, lugares e caminhos da propriedade da instituição que foram descritos mais acima. A meditação em vez de ser de joelhos na sala comum podia ser feita caminhando pelas trilhas do morro coberto de mata virgem ou sentado entre as raízes de uma das majestosas araucárias dispersas pela mata que cobria o morro, ou no topo, rodeado de uma plantação de milho e como cenário de fundo os contornos das montanhas da Serra Geral confundindo-se com a linha do horizonte, lá longe além de São Leopoldo e Novo Hamburgo. As refeições costumavam ser mais caprichadas acompanhadas por uma taça de vinho tinto. Não havia leitura durante as refeições. O mais apreciado, entretanto, consistiu na modificação do horário de dormir. Em vez das 21 horas a comunidade ficava reunida até a meia noite, enquanto eram servidas guloseimas: bolos, sorvetes, conservas e, naturalmente, vinho e para os abstêmios refrigerante. Esses encontros costumavam ser mais animados e ruidosos na véspera do Natal, após a missa do galo, no dia dos “Inocentes”, 28 de dezembro, na véspera do Ano Novo e no dia dos Reis Magos, 6 de janeiro. A partir de 6 de janeiro as “pequenas férias” prolongavam-se até fins de fevereiro. A rotina diária não se distinguia em muito daquela dos meses normais do ano anterior.

O segundo ano do noviciado – 1951 – começou com um retiro de 8 dias. Depois do isolamento praticamente completo do primeiro ano do noviciado, no segundo entraram na programação rotineira algumas novidades. Dar catequese nas quartas-feiras em alguma comunidade das redondezas foi uma delas. Em algumas delas a catequese tinha que ser dada em língua alemã. Apresentei-me para assumir uma delas e fui destacado para a comunidade de Coqueiral. A capela estava sendo construída e, por isso, a catequese era ministrada na sala espaçosa da casa de um dos moradores, local onde era celebrada uma missa mensalmente também na quarta-feira. Depois do café da manhã enfrentava a pé, de batina e chapéu clerical, o trajeto de uma hora e pouco até o Coqueiral. Pelo caminho as crianças dos colonos vinham correndo e me acompanhavam até o local da catequese. Foi uma experiência que me marcou de tal maneira que até hoje me lembro de detalhes como curvas da estrada de chão de areia solta, cercas de potreiro, moradias rodeadas com belos exemplares de araucárias e até do nome algumas das crianças que frequentavam a catequese. Na primeira parte da caminhada fazia a meditação diária naquela linda paisagem plana de potreiros, pequenas manchas de mato, árvores isoladas, respirando o ar puro e fresco do começo da manhã. Uma vez por mês acompanhava o pároco de Pareci Novo na sua charrete por ocasião da visita à comunidade de Coqueiral. A catequese ocupava em torno de uma hora e, perto do meio dia, estava de volta para almoçar em casa.

A programação do segundo ano do noviciado previa uma série de atividades conhecidas na Ordem como “experimentos”. Incluíam, além das tarefas rotineiras da manutenção, limpeza e organização da instituição e seus arredores, outras modalidades especiais de provação para testar os jovens noviços. Para não me alongar demais limito-me a três delas. Não raro acontecia que em alguma paróquia ou mesmo em colégios e seminários algum padre ou irmão leigo gravemente doente exigia a presença permanente de alguém, ou na residência ou num hospital. Os noviços podiam ser convocados para essa missão sempre que fosse preciso. Eu pessoalmente nunca fui destacado para esse tipo de “experimento”. A experiência que me marcou de modo especial foi o mês que passei em parceria com o Benno Brod, também no segundo ano do noviciado, cuidando das enfermarias dos indigentes do hospital Centenário em São Leopoldo. Cabiam-nos atender a todas exigências da enfermaria e dos enfermos, que não fossem privativos de profissionais como médicos e enfermeiras. Mantínhamos a limpeza dos recintos, ajudávamos quando preciso trocar a roupa de cama, inclusive levar os falecidos para o necrotério nos fundos do hospital. Na época a administração do hospital encontrava-se sob a responsabilidade das Irmãs Franciscanas que mantinham sob rédea curta médicos, enfermeiras e funcionários e, ao mesmo tempo, exigiam uma limpeza, asseio e assepsia rigorosa. O outro experimento, o maior de todos, consistia numa peregrinação de um mês seguindo um itinerário traçado pelo Mestre e entregue num envelope fechado a uma dupla de noviços o qual indicava dia por dia, o roteiro a cumprir e o local para pernoitar. Na bagagem os peregrinos levavam o absolutamente indispensável e sem dinheiro.

Alimentação, pernoite e tudo o mais tinha que ser esmolado”. Por razões práticas a “peregrinação” não acontecia no meu período de noviciado na Província dos jesuítas do sul do Brasil. Para matar a curiosidade dos que por acaso lerem essas “memórias” as razões práticas a que me acabo de me referir faziam todo o sentido. O cenário óbvio em que o roteiro da “peregrinação” poderia ser traçado eram as colônias alemãs, italianas e polonesas, conhecidas pela profunda religiosidade e, portanto, a hospedagem de algum religioso era encarada com uma honra toda especial. E não se pode deixar de lembrar o detalhe que os religiosos, também nós noviços, éramos identificados delongepois,circulávamosdebatinapretaechapéuclerical,mesmonumsolde40o. Todasas portas esperavam abertas para um almoço especial, uma galinhada e até um churrasquinho de final de tarde. Conclusão. Em vez de uma “provação” a peregrinação transformar-se-ia num passeio, senão numa aventura recreativa. Alguns anos mais tarde foi incluída na programação. Pelo que estou informado hoje a prática da peregrinação e de outros “experimentos” já não fazem mais parte da formação dos jovens jesuítas.

Com o término do mês de fevereiro de 1952 completaram-se os dois anos de noviciado e com isso o momento decisivo de, ou desistir sem compromisso da vida religiosa e optar por uma carreira na vida civil ou emitir os votos religiosos e comprometer-se definitivamente com a Missão a ser cumprida na Igreja na modalidade imaginada por Santo Inácio e regulamentada pelos Estatutos da Ordem. Um retiro de 8 dias serviu de preparação imediata para a emissão dos votos religiosos. Foram dias de reflexão sobre o significado e os compromissos decorrentes dessa decisão além de uma avaliação profundamente pensada e consciente de seguir em frente ou tomar outro rumo. No primeiro ou segundo domingo de março, concluído o retiro no sábado da véspera, os 20 ou 21 noviços da minha turma e eu emitimos os votos e com isso passamos oficialmente integrando a Ordem. Em princípio os votos tinham o caráter de perpétuos. No caso de alguém decidir desligar- se mais tarde da Ordem a dispensa dos votos exigia uma avaliação dos superiores maiores. Precedia-a normalmente um exame criterioso de cada caso do interessado com o diretor espiritual e o superior. De qualquer forma o desligamento não tinha como ser negado nos casos em que o interessado persistia na sua intenção.

Os votos vinham acompanhados também de algumas novidades no visual externo dos jovens jesuítas. O uso da batina preta e o chapéu clerical continuaram a ser obrigatórios na década de 1950. A faixa da cintura estreita e com o enorme terço enrolado, deu lugar a uma faixa larga e sem o terço. O solidéu usado pelos noviços dava lugar ao clássico barrete clerical, o tratamento de“Caríssimo” substituído por “Frater”, isto é, irmão em latim e os jesuítas no bacharelado de Línguas e Literaturas Clássicas e Retórica formavam a categoria dos “Juniores”.

Já no segundo ano do noviciado foram retomados os estudos acadêmicos. Não me lembro exatamente do número de horas por semana no período da manhã e da tarde foram destinadas a aprofundar o conhecimento da língua latina e grega e suas respetivas literaturas. Além de retomar esses temas que ficaram de molho desde o final do último ano do ginásio, isto é, final de 1949, o ano de 1951 significou para mim o marco de partida para a formação no nível superior. Seguiriam 4 bacharelados, um a licenciatura, uma livre docência, um doutorado e um pós doutorado. A essas etapas que ocuparam os 14 anos seguintes dedico as reflexões que seguem.

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