Da Enxada à Cátedra [ 36 ]

O retiro de 30 dias me pôs em contato com uma outra realidade de natureza ascética que hoje causa arrepios a quem estuda o quotidiano da vida religiosa tendo como referência a era que termina com as conclusões do Concílio Vaticano II e as diretrizes emanadas do Congregação Geral da Companhia de Jesus de 1965. À rotina do retiro incluíam-se também encontros individuais e privativos regulares com o Mestre no seu gabinete de atendimento duas ou três vezes por semana, de acordo com a necessidade. Numa dessas visitas o no meio dos 30 dias do retiro, o Pe. Kohler me surpreendeu com a entrega de um silício feito de um trançado de arame dimensionado para ser usado no braço com pontas viradas para dentro. Além do silício apresentou-me também uma flagelo de três ou quatro cordas cheias de nós. Ensinou-me como manusear esses instrumentos de penitência e recomendou que fizesse uso deles duas ou três vezes por semana. Como os noviços dormiam num grande dormitório com seus espaços privativos (cama e um bidê) delimitados por biombos fixos, percebia-se perfeitamente quando os vizinhos se valiam do flagelo antes de dormir ou de manhã ao levantar. A maioria , como eu, costumava usar o silício no braço duas ou três vezes por semana. Seguíamos rigorosamente as recomendações do Mestre de não exagerar, nem no uso do silício, nem na aplicação do flagelo. Não tenho informação se ainda hoje esse tipo de penitência faz parte do cotidiano dos noviços jesuítas e muito menos dos da geração em atividade nos diversos empreendimentos que lhes são confiados. Não posso deixar de confessar que devo ao uso desses instrumentos de penitência uma boa parcela do adestramento no engajamento à “Missão” a que sonhava servir, isto é, cumprir a tarefa que me cabia em alguma “brigada de assalto” para que fosse convocado. Aquele confinamento de 30 dias, aquela imersão nos arcanos da razão de ser do “porque” existimos como indivíduos fazendo parte da comunidade humana, do “porque” da missão que nos foi confiada e, finalmente, “o para o onde”, a “parusia, o “desfecho, o apocalipse”, a “consumação dos tempos” profetizado por São João. Naqueles 30 dias de retiro convenci-me que a razão da jornada por este mundo consiste em cumprir uma missão. Toda e qualquer tarefa por mais humilde que seja deve ser cumprida tendo a missão como pano de fundo, como motivação, como motor para evitarmos a sensação de passarmos por escravos. Parece que essa foi a intenção do Criador ao criar o mundo com suas criaturas e colocou o homem no “Jardim” não só para “usufruí-lo” e/ou “explora-lo” mas com a missão de cultiva-lo” fazendo dele a nossa “casa”, isto é, humanizar os espaços, os lugares, os caminhos que moldam a nossa identidade. Avaliado nessa perspetiva o trabalhar significa cumprir a missão de cultivar o Jardim, a Natureza, executando uma das milhões de modalidades de tarefas necessárias para que se torne realidade. Sobre esse pano de fundo não há como classificar o trabalho em categorias de importância. Por mais corriqueiro e por e mais humilde que possa parecer uma determinada tarefa ou função, se não for cumprida como uma missão, deixará no mínimo uma lacuna ou uma arranhadura, mesmo impercetível, na perfeição do cumprimento de uma missão. Portanto, o trabalho de uma faxineira, de uma lavadeira, de um agricultor, de um operário de fábrica, de um engenheiro, de um médico, de um funcionário público, de um professor, de um pesquisador, de um político, de um administrador público, inclusive de um presidente da república e o que mais se possa imaginar, caso não conduzido tendo em vista a missão de, de alguma forma, cultivar o “nosso jardim” ou, se preferimos, a “nossa casa”, não passará de um trabalho escravo, interesseiro, egoísta, busca de poder ou outro qualificativo que se prefira.

Terminados os 30 dias de retiro espiritual voltamos à rotina diária já descrita mais acima. Naquele primeiro ano de noviciado não havia espaço para alguma atividade científica que merecesse esse nome como coleta de plantas, insetos, musgos e por aí vai. Isso, porém, não impediu que “farejasse” todos ângulos, recantos e esconderijos daquele magnífico pedaço de mata virgem comsuas araucárias. Todo esse mapeamento, melhor talvez inventário não registrado como mandam os métodos da pesquisa propriamente dita, me seria de grande utilidade quando dois anos mais tarde comecei a capturar, principalmente aranhas, para enviar para o Instituo Butantã. A seu tempo voltarei para detalhar essas coletas.

Na segunda metade daquele primeiro ano o Pe. Kohler, meu Mestre, encarregou-me da organização da biblioteca do noviciado. Tratava-se de uma biblioteca selecionada de livros e publicações avulsas destinada, antes de tudo, para a imersão dos noviços no espírito religioso e na ascese da Ordem. Perdidas no meio de biografias de personagens e santos de jesuítas de referência e de outras ordens e congregações, de obras de ascese, teologia, exegese, etc., encontravam-se algumas publicações científicas. Lembro-me de um livrinho de menos de 100 páginas com a descrição de plantas medicinais do Rio Grande do Sul, da autoria do Pe. Canísio Orth ao que tudo indica, quando ainda estudante de Teologia. Esse jesuíta foi mais tarde direcionado para a administração das instalações de colégios, paróquias e outras instituições.

Encontrei-o como administrador e professor do Colégio Anchieta entre 1957 e 1959, quando fui professor naquela instituição ainda na rua Duque de Caxias. Entre os alunos era conhecido com o apelido de “ratão”. Terminada a organização da biblioteca do noviciado, inclusive acomodada em armários novos com portas de vidro, o Pe. Kohler entregou-me a chave da biblioteca central de toda a instituição e confiou-me a sua guarda na condição de bibliotecário. Junto com a chave principal veio uma outra. Essa outra só costumava ser entregue a pessoas que gozavam da total confiança dos superiores. Nas bibliotecas das instituições maiores dos jesuítas não podia faltar um armário fechado a sete chaves, apelidado no jargão da Ordem o “inferno”. O acesso a essemisterioso armário só com licença expressa do superior. Nele guardavam-se obras consideradas perigosas para a formação religiosa, moral, ascética e intelectual. Aquela chave que me foi entregue junto com a da biblioteca como um todo, autorizava-me o acesso livre ao “inferno”. “inferno” da biblioteca do Instituto de Formação São José de Pareci novo, não passava de umpequeno armário de uma porta sem vidro acomodado ao lado de uma estante de livros. Não há necessidade de confessar, que sentia uma curiosidade enorme em saber que obras mereciam “a condenação ao inferno”. Na primeira oportunidade logo depois de assumir a biblioteca, abri aquele pequeno armário. E qual não foi a minha surpresa, para não dizer frustração. Deparei-me com apenas duas obras: uma “Bíblia protestante” e o “Mein Kampf” de Hitler. Com isso o “inferno” perdeu completamente o interesse para mim. Chaveei a portinha e nunca mais a abri. Examinar a Bíblia Protestante para catar desvios e reinterpretações em confronto com a versão oficial católica para servir de pasto para polêmica, passava muito longe dos meus interesses. Poucos anos passados da Segunda Guerra Mundial e ainda quentes na memória os horrores que o povo alemão sofreu com a loucura e o fanatismo que resultaram da aplicação prática das ideias formuladas naquele livro saído do cérebro perverso do Führer, me provocavam uma profunda aversão. Soma- se a tudo isso o fato de que dois jovens jesuítas Alfred Delp e Alois Grimm foram executados pelos agentes do regime nacional-socialista em fevereiro de 1945 e meu grande modelo de jesuíta o Pe. Rupert Meier, capelão e herói da primeira guerra mundial quando perdeu uma das pernas, confinado no mosteiro de Ettal perto de Munique. Além disso meus símbolos por excelência da Alemanha católica o cardeal Michael Faulhaber, arcebispo de Munique e o “Leão de Münster”, cardeal Clemens von Gallen, foram dois personagens em que a GESTAPO não ousou por a mão, muito menos confina-los num campo de concentração. Só para registrar. Por essa minha postura em favor da germanidade, especialmente católica, porque nela encontro minhas raízes remotas, e não no fenômeno nacional socialista transitório, fui injustamente rotulado de nazista em não poucos momentos posteriores da minha trajetória acadêmica e isso inclusive dentro da Ordem. Só um exemplo. Em março de 1960 comecei a minha licenciatura em teologia no então Colégio Cristo Rei em São Leopoldo. Na época era costume receber os novos teólogos com uma comemoração que incluía um painel com fotografias e dizeres para dar o perfil dos novatos. Naquele painel fui contemplado com uma suástica acompanhando minha fotografia. Na hora não dei maior importância ao fato. Depois percebi que não foi apenas uma brincadeira de mau gosto mas um estigma que perturbou meu relacionamento com colegas principalmente vindos do centro, do nordeste do País e de outros países como a Espanha, o Canadá francês, Argentina, Uruguai, Venezuela, etc. que vinham estudar teologia em São Leopoldo.

Mas voltemos à biblioteca. Naquela segunda metade do primeiro ano do noviciado refugiava-me na biblioteca nos intervalos maiores da programação rotineira do dia a dia. O acervo como um todo não passava de modesto. Em compensação rico em obras selecionadas para atender as exigências dos professores e mestres com destaque para conteúdos de natureza ascética, teológica, História da Igreja, hagiografia, homilética, espiritualidade, catequética e outras obras nessa linha. Além dos professores e mestres essa biblioteca dava suporte para a formação dos jovens padres jesuítas no seu último estágio exigido pela Ordem, isto é, a chamada então “Terceira Provação”, logo depois de concluída a formação teológica. Nos idos da década de 1950 a Terceira Provação reunia em Pareci Novo jovens padres jesuítas vindos de todo o Brasil, do Uruguai, da Argentina e esporadicamente de outros países. Como já lembrei mais acima o noviciado dispunha de uma biblioteca especializada para aquela etapa de formação.

O Instituto São José de Pareci Novo, além do Noviciado e da Terceira Provação, sediava também o bacharelado em Línguas e Literaturas Clássicas focado no Grego, Latim e Português além de um tirocínio teórico e prático de oratória. Deixo para mais abaixo os comentários pertinentes a esse estágio de formação do jesuíta conhecido então como “Juniorado” e respetiva biblioteca selecionada. As tarefas do bibliotecário na biblioteca central de que estava falando, resumia-se em manter os livros arrumados nas estantes, de períodos em períodos tirar o pó, passar um inseticida para eliminar aranhas, traças e outros insetos e catalogar e inserir no acervo aquisições novas. A aquisição mais importante foi a monumental obra conhecida como “Coleção Migne”. Emresumo compreende os primeiros 400 anos da história da Igreja com os escritos dos chamados “Padres da Igreja” praticamente toda em grego e latim. A coleção veio na forma de brochuras e foi posteriormente encadernada. Essa coleção de um valor histórico difícil de avaliar encontra-se hoje entre as “joias da coroa” do acervo de obras antigas e raras da biblioteca central da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

This entry was posted on quinta-feira, 10 de outubro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.