“Juniorado” - Bacharelado em Línguas Clássicas e curso de Retórica.
Mais acima já lembrei a inserção das Línguas Clássicas na programação do segundo ano do noviciado. Na verdade, em termos acadêmicos contou como o primeiro ano ou dois primeiros semestres do bacharelado nessa área. Do último ano do ginásio, como também já referi mais acima, os egressos como eu, levavam o conhecimento do latim ao nível de entender as obras dos clássicos e falar e nos comunicarmos fluentemente nessa língua. Tanto assim que a língua do quotidiano no noviciado era o latim. O grego aprendido no ginásio não foi tão aprofundado. De qualquer maneira fomos munidos com o domínio dos elementos básicos da gramática: fonética, conjugação, sintaxe, etc. permitindo assim avançar sem tropeços para a familiarização com a literatura, o pensamento e a cultura grega e sua importância para o mundo ocidental. Em termos acadêmicos nos dois anos de “juniorado” aperfeiçoei o conhecimento e traquejo da língua latina pois, ela seria a língua oficial nas preleções futuras sobre os diversos conteúdos filosóficos e teológicos. Não só os conteúdos seriam apresentados em latim, como também as interlocuções com os professores e alunos, como os exames que costumavam ser orais e presididos por uma banca dos titulares das disciplinas tronco da Filosofia e Teologia. Li as obras clássicas latinas que ainda não conhecia do tempo do ginásio, entre elas a Eneida de Virgílio e, principalmente reli e aprofundei o valor literário, o significado histórico cultural dessas obras na gênese e consolidação da Cultura Ocidental, de modo especial no que diz respeito ao ordenamento jurídico e a parte que coube à “cristianização da helenidade” ou vista sob outra perspetiva a “helenização do cristianismo”, “a cristianização da romanidade ou a romanização do cristianismo”, acrescentando mais tarde, entre 350 e 800 DC, com a “migração dos povos germânicos”, “a germanização”, tanto da “helenidade”, quanto da “romanidade” e da “cristandade.” Evidentemente, como pano de fundo de toda essa dinâmica, o panorama histórico cultural, as raízes tanto da “helenidade” quanto da “romanidade” e da “cristandade” encontram-se nos filósofos e literatos da antiga Grécia. E do encontro e da amálgama da “Helenidade, da Romanidade, da Cristandade e da Germanidade”, consolidou-se o que costumamos chamar de “Cultura Ocidental”. O resto não passa de detalhes. Parece-me que todos os mega acontecimentos históricos posteriores, a Renascença, a Modernidade e a Pós Modernidade, não tem como serem entendidos, compreendidos e interpretados corretamente a não ser tendo como panorama de fundo esse passado histórico. Parece importante identificar a contribuição específica que cada uma das quatro vertentes que se fundiram na “amálgama” da qual resultou a Cultura Ocidental. Da cultura grega ou da “helenidade” a cultura ocidental herdou em primeiro lugar a cosmovisão artística e literária que começa a se esboçar e alcançar o climax da exuberância já no primeiro milênio antes de Cristo. Entre as figuras centrais e suas obras destacam-se Homero com as monumentais, imortais e sempre atuais epopeias, a Ilíada e a Odisseia, a poética lírica tendo em Píndaro o nome mais eminente. Paralelamente à literatura épica, lírica, o teatro e outras modalidades, floresceu a arte plástica com uma pujança e diversidade que se aproxima da perfeição tanto da forma quanto do simbolismo. Tanto os gêneros quanto os estilos e conteúdos da literatura e da arte helênica serviram de inspiração e fundamento para a literatura e arte romanas, obviamente moldadas de acordo com as especificidades da cosmovisão e cultura romana. Mas, a contribuição helênica mais decisiva na gênese da cultura ocidental vamos encontrar nos filósofos e nas respetivas visões do mundo, vivas e válidas como nunca, mesmo em meio à confusão e guerra de ideias e cosmovisões deste começo do terceiro milênio. E, para não estagnar no nível de reflexões abstratas, somado ao papel decisivo que lhes coube nos três milênios posteriores, parece oportuno apontar os nomes dos mais significativos e sua influência histórica no mundo ocidental, os Pré-Socráticos que exploraram como foco das suas preocupações a “origem do universo e o princípio de todas as coisas”. Destaco entre eles o nome de Tales de Mileto cujo pensamento filosófico pode ser resumido na seguinte frase: “O todo é uno, o uno é plural e a água é o princípio de tudo”. Depois do período Pré-Socrático entram em cena os gigantes da filosofia grega clássica: Sócrates, Aristóteles e Platão que perpassam de alguma forma até hoje o pensamento ocidental. Da cultura romana ou da “romanidade” a cultura ocidental herdou a necessidade de um ordenamento jurídico sólido definidor dos direitos e deveres tanto dos cidadãos comuns, quanto dos administradores em todos os escalões de importância e decisão, como pressuposto para que um Estado, um Império ou uma República disponham de instrumentos seguros para garantir a coesão e a solidez entre os cidadãos e seu pertencimento à uma comunidade nacional. O cristianismo, melhor a “cristandade” entrou nessa “amálgama” que, por assim dizer, conferiu a alma, a razão de ser, o norte ontológico e deontológico à cultura em gestação. No fundo no fundo, todos os seres humanos são iguais nos seus direitos e deveres como indivíduos livres de um lado, porém, comprometidos com a preservação da liberdade dos outros no convívio solidário numa comunidade. Essa visão da individualidade ontológica bidimensional da liberdade limitada pelos direitos mútuos, fundamenta-se na Ética, na Moral que, em última análise, confere legitimidade à estrutura e funcionamento de uma sociedade. Com a migração e invasão dos povos germânicos desmantelando o que ainda restava do Império Romano, acresceu o quarto ingrediente na amálgama da qual resultou a cultura ocidental. A essência da “germanidade” foi a solidez da sua organização vertical e horizontal. Como base encontramos o matrimônio monogâmico, a família, a comunidade formada por famílias, tribos, parentelas, povos e federações de povos. A lógica da complexificação estrutural pressupunha a família solidamente constituída, a comunidade também sólida porque organizada sobre o fundamento da família e, por sua vez uma organização mais ampla pelas comunidades ou parentelas mutuamente comprometidas. Resumindo. O encontro da Helenidade, da Romanidade, da Cristandade e da Germanidade resultou numa“amálgama” conhecida pelos historiadores, filósofos e demais pensadores e especialistas como “Cultura Ocidental” como já lembrado mais acima. Só para concluir essa reflexão. Chamo a atenção que, observando o cenário local, regional, nacional e mundial de hoje, presenciamos a tentativa da demolição dos quatro pilares que por dois milênios resistiram aos embates que as revoluções do pensamento e da tecnologia dos últimos 500 anos. Aqui não é o lugar para entrar em detalhes no que está acontecendo. A helenidade com sua literatura, arte e filosofia passou para o arquivo morto dos museus. A língua da romanidade foi declarada língua morta, sem serventia prática e eliminada dos currículos do ensino médio e o direito romano expurgado dos currículos das faculdades de direito, a ética e moral da cristandade substituída por um relativismo errático do vale tudo e o compromisso e comprometimento familiar e social rebaixado ao nível de um rebanho de ovelhas ou uma alcateia de lobos à espreita de se devorarem mutuamente. Os grandes responsáveis por essa demolição sistemática podem ser encontrados em todos as áreas do conhecimento: na Teologia, na Filosofia, nas Ciências humanas, nas Letras e Artes, nas Ciências Naturais, nas Ciências Tecnológicas, etc., etc. A grande pergunta que nos desafia a essa altura é esta: Aonde vamos parar e o que se pode esperar para a humanidade que emergirá desse tsunami?
Penso que a reflexão que acabo de fazer é importante para compreender as razões do porque desse feitio do “juniorado”, etapa na época obrigatória na formação dos jesuítas, desgraçadamente expurgada no momento em que também as ordens religiosas foram levadas de roldão pelo tsunami da Escola de Frankurt, da doutrina da hegemonia do pensamento de Gramsci, da infiltração do Marxismo nas organizações cristãs, resultando na Teologia da Libertação que pretende harmonizar o marxismo na sua essência ateu, com o Deus da cristandade. O importante não foi tanto o aperfeiçoamento da língua latina e grega e respetivas literaturas mas, a tomada de consciência do tesouro cultural e o potencial para conferir consistência e solidez a um paradigma de civilização que, apesar dos pesares, sobrevive aos percalços de 2 milênios.
Entre as diversas programações acadêmicas, além das aulas e estudos diários, destaco uma no formato de um Seminário focado no protótipo do “homem” no mundo grego e latino. Coube-me apresentar o perfil dos guerreiros gregos descritos por Homero na Ilíada. Foi a minha primeira “palestra ou conferência” academicamente elaborada e proferida para os meus colegas de “juniorado”.
Paralelamente ao currículo do bacharelado em línguas e literaturas clássicas e língua e literatura portuguesa, fomos familiarizados com a teoria e a prática da retórica com destaque para a oratória sacra. A finalidade dessa especialidade acadêmica é óbvia. Futuramente como sacerdotes, a atividade pastoral fazia parte da “missão” de vida a ser cumprida. Embora como professores emcolégios ou universidades, como foi o meu caso, costumávamos ser convocados para, em fins de semana, nas datas litúrgicas maiores e, de modo especial, nas festas do Natal, Ano Novo, Semana Santa e Páscoa, para auxiliar e aliviar os compromissos dos párocos nas mais diversas paróquias. Obviamente constavam entre as tarefas obrigatórias normais nessas ocasiões, rezar missas com pregações. Apesar de lecionar em duas universidades não deixei de dar uma mão ao pároco de Poço das Antes na Semana Santa, ao pároco de Harmonia na semana do Natal, ao pároco de Tupandi também numa semana de Natal. Numa outra semana do Natal passei na paróquia de Dois Irmãos e uma Semana Santa em Estância Velha. Além disso rezei missa e preguei na igreja matriz de São Leopoldo e em outras igrejas e capelas em fins de semana comuns. Esse tirocínio de teoria e prática de oratória interessava, de modo especial, aqueles jesuítas que futuramente seriam destacados como párocos e/ou auxiliares em paróquias, capelanias, missões populares, pregação de retiros etc. A teoria vinha complementada com a prática. Esta resumia-se num sermão proferido para toda a comunidade da instituição: reitor, mestre de noviços, professores, irmãos leigos, noviços e juniores, durante o almoço num determinado dia da semana. Num encontro posterior com o professor de retórica seguia uma avaliação do conteúdo, da qualidade literária e dos recursos retóricos utilizados. Falando em qualidade literária o Pe. Bender, professor de língua e literatura portuguesa costumava aconselhar aos alunos que o nível da linguagem e do estilo de um sermão deveriam ser tais que “aquele senhor de chapéu grande no fundo da igreja” entendesse o conteúdo que estava sendo apresentado pelo pregador. Em outras palavras. “O homem de chapéu grande” representava o cristão comum, na época com formação primária ou quem sabe até menos.