Da Enxada à Cátedra [ 31 ]

Depois desse inciso volto às aulas de Ciências Naturais na terceira série do ginásio no colégio Santo Inácio. Não posso afirmar se foi um amor à primeira vista pois, como ficou claro nas páginas acima, eu carregava essa relação atávica existencial com a Natureza lá de longe desde o meu berço. O que aconteceu foi tomar consciência definitiva que era esse o caminho a seguir para o futuro. Não demorou e o Pe. Friedrichs percebeu o meu entusiasmo pelas Ciências Naturais, somado ao detalhe que ele coletava fanerógamos e os mandava para o Pe. Balduino para classifica-los e incorporá-los no Herbário Anchieta. Falou da ideia de programar semanalmente, nas quartas feiras, incursões nas redondezas do colégio para coletar plantas. Convidou-me para acompanhá-lo e meu colega Carlos Roberto Cirne Lima, cursando o 5o ano do ginásio. Aceitei na hora. E assim saíamos todas as quartas feiras do ano de 1947, de manhã cedo para voltar no fim da tarde, sempre com uma bela presa de exemplares de fanerógamos que, secos e devidamente embalados seguiam para Porto Alegre. Hoje devem integrar o Herbário Anchieta guardado no Instituto Anchietano na Unisinos. Mais acima já me referi àquelas andanças pela natureza nas quartas feiras. O Pe. Fridrichs um mestre talhado para esse tipo “aula”, sem jaleco, sem quadro negro, sem bancos, sem quatro paredes, sem retórica professoral. O Cenário para esse aprendizado foi a mata virgem cobrindo a borda do planalto de Salvador do Sul e São Pedro da Serra, escondendo rochas a prumo, formando abrigos e até pequenas cavernas. Das aulas de Ciências propriamente ditas gravei pouco na memória. Mas, aquele contato semanal durante todo aquele ano valeram como um estágio de nível superior naquela universidade sui generis que só a Natureza é capaz de oferecer.

Foi naquele ano também e, novamente por iniciativa do Pe. Friedrichs, meu colega Cirne Lima e eu montamos o esqueleto de cavalo, de cachorro e de gato selvagem aos quais me referi mais acima. Na condição de responsável pelo museu, passava todos os momentos disponíveis naquele recinto acomodando serpentes em recipientes de vidro, empalhando gambás, lebres, micos, etc. Ainda não me definira, com de fato nunca me iria definir por uma área específica das Ciências Naturais para especializar-me. Interessava-me por tudo que vinha pela frente nesse inesgotável mundo de surpresas. As razões objetivas que levaram a não me tornar um cientista no rigoroso sentido do conceito, serão reveladas ao longo das páginas que seguem.

Em começos de julho de 1947 fui surpreendido com a entrega de um fonograma comunicando-me que meu pai fora internado em estado grave no hospital de Tupandi. O reitor do colégio liberou- me o tempo que fosse necessário para ficar junto com a família e acompanhar a evolução do estado de saúde do pai. Aprontei a mochila e percorri a pé os 10 quilômetros até o hospital. Encontrei o pai acometido de pneumonia preocupante mas não desesperadora acompanhado da mãe. Havia, porém, um agravante que preocupava. Meu pai, com 67 anos foi um desses colonos que desde adolescentes enfrentaram qualquer tipo de trabalho, por mais pesado que fosse. Não havia intempérie, nem tormenta nem granizo que os assustasse. As consequências inevitáveis iriam começar a manifestar-se a partir dos 45 ou 50 anos. Aos poucos com mais de 50 anos meu pai era um homem acabado. A inflamação do nervo ciático por vezes o impedia de andar a cavalo. Certo domingo encontrei-o voltando da missa subindo pela trilha do mato na encosta do Morro da Manteiga, levando o cavalo pela rédea, porque o montar lhe rendia dores muito fortes. Aquele encontro foi para mim uma lição de vida que jamais esquecerei. Naquele estado ele certamente não tinha mais nenhuma obrigação de assistir a missa, nem naquele tempo em que obrigatoriedade era levada ao extremo. As irmãs franciscanas que cuidavam do hospital permitiram que eu passasse a noite num quartinho de um anexo do hospital. No dia seguinte, como o quadro de saúde do pai encontrava-se estável e aparentemente sob controle subi para o Morro da Manteiga e pernoitei em casa. Nos dias seguintes a situação parecia sinalizar para uma melhora gradativa. Depois de uma semana voltei para o colégio em Salvador do Sul, sempre à espera de alguma novidade. No dia 19 ou 20 de julho fui chamado à portaria onde um primo meu me esperava com um cavalo encilhado e informou-me que descesse com ele até Tupandi pois o quadro de saúde de meu pai piorara muito e o médico praticamente o tinha desenganado. Ao entrar no quarto estava lá minha mãe, meus dois irmãos padres, o Balduino e o Roberto. O pai quando me viu me fez seu último pedido. Chamou-me pelo nome e pediu: “Nunca me esquece”. Essas três palavras ecoaram mais do que uma vez todos os dias na minha memória, durante os mais de setenta anos que se passaram desde então. Passei a tarde no hospital e ao entardecer subi o morro e fui passar a noite em casa. No dia 23 de julho fiquei em casa aguardando notícias. 

Pela meia tarde o Bertoldo veio a cavalo do hospital, apeou e disse: o pai está morto” e começou a chorar. Preparamos a sala da casa para o velório. Naquele época os velórios aconteciam na casa dos falecidos. No fim da tarde trouxeram meu pai em cima dum colchão acomodado numa carroça. Não demorou para os vizinhos se reunirem na sala da casa, na cozinha, e ao ar livre pois, a noite amena colaborou para acomodar as pessoas. Minha mãe, meus irmãos, parentes e vizinhos e vizinhas passaram a noite em vigília. Na manhã do dia seguinte um vizinho trouxe o caixão aprontado pelo marceneiro da comunidade. Lembro que naquela época os vizinhos se encarregavam de todos os procedimentos funerários. Encomendavam o caixão, cavavam a sepultura, levavam o defunto até igreja para a encomendação, depois o carregavam até o cemitério e o sepultavam. Nessas ocasiões qualquer desentendimento que por acaso tivesse havido com o falecido e seus familiares, cedia lugar ao dever de solidariedade. Um detalhe que merece atenção. De acordo com os costumes de então, as vizinhas prepararam uma galinhada para as pessoas que tinham ficado no velório durante a noite e a manhã. Em muitas ocasiões de falecimento as vizinhas além de prepararem um almoço faziam uma ou mais fornadas de cuca para as pessoas que tinham vindo de mais longe. Depois do almoço com a família reunida, inclusive meus dois irmãos padres, vizinhos colocaram o pai no caixão, enquanto o povo reunido na sala e no pátio rezava o terço. Em seguida acomodado numa carroça de bois começou a última descida do Morro da Manteiga desse homem, que como meu avô e tios abriram as primeiras clareiras naquele pedaço de chão e pelo qual deram o que tinham de melhor de suas energias físicas e, principalmente, o que de humano e espiritual pulsava no seus grandes corações e na suas almas que não conheciam nem malícia nem rancor. Ainda no alto do morro veio ao encontro do féretro minha irmã Tecla (irmã Antônia). Nas condições de transporte de então não conseguira participar do velório. O cortejo fúnebre foi interrompido, o caixão foi aberto por uns minutos para que ela pudesse dar seu adeus ao pai. A descida naquele remoto ano de 1947 não passava de uma dessas estradas de chão batida pela qual só passavam pedestres, cavalos e carroças de bois. Minha mãe, minha irmã Ana e alguns vizinhos e vizinhas de mais idade acompanharam a cavalo. Todos os demais desceram a pé e em procissão o morro rezando um terço depois do outro no trajeto de mais ou menos uma hora. Aquela descida do Morro da Manteiga, logo atrás da carroça que carregava meu pai para sua derradeira morada, rezando o terço em coro com os demais acompanhantes, está gravada na minha memória numa nitidez tal como se estivesse acontecendo no momento em que escrevo. Seguiu-se a encomendação na igreja matriz de Tupandi presidida pelo Pe. Karl Schoebendach, auxiliar do pároco, lotada como em dias de festa. O sepultamento aconteceu no final da tarde. Seis vizinhos carregaram o caixão até a sepultura. Depois dos últimos atos e orações litúrgicas o povo presente rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria enquanto a sepultura estava sendo fechada e sobre ela depositados dezenas de ramalhetes de flores. Plantada a cruz na cabeceira todos se persignaram e foram-se dispersando. Acabara de sofrer a primeira grande baixa na minha família. No dia seguinte meus dois irmãos padres, o Raimundo, o Bertoldo e eu passamos com minha mãe e minha irmã Ana em nossa casa lá no Morro da Manteiga, relembrando os bons e maus momentos, os períodos de calmaria e os intervalos de mau tempo que marcaram a caminhada da nossa família. Depois de ficar por uma semana com minha mãe, minha irmã, o Bertoldo e sua esposa Erica em casa, voltei para o Colégio Santo Inácio para retomar a rotina do internato.

Da Enxada à Cátedra [ 30 ]

O após guerra – 1946-1949

Em linhas gerais aqueles três últimos anos do ginásio foram decisivos e definitivos para a minha jornada acadêmica. Com 16 anos a repetição da segunda série do ginásio colocou-me por assim dizer na rota do reencontro comigo mesmo e o que pretendia fazer da minha vida. Por isso o ano de 1946 significou para mim uma travessia do “Rubicão” ou uma “Queima dos Navios”. Depois do susto decidi mergulhar fundo em todas as disciplinas que o currículo oferecia e deixar de lado tudo que me pudesse desviar da formação e abraçar tudo que me enfunasse as velas para navegar em frente. A Segunda Guerra Mundial ficara definitivamente para trás em agosto do ano anterior com a rendição do Japão. A ditadura de Vargas com todas as suas leis e decretos de exceção e instrumentos de repressão não passava de um pesadelo de uma noite mal dormida. Com o presidente Dutra eleito democraticamente o País voltava à normalidade. Os “pracinhas” que haviam lutado na Itália estavam de volta, infelizmente deixando para trás no cemitério de Pistoia 450 dos seus camaradas. Uma nova constituição foi promulgada em 20 de setembro. Naquela tarde de primavera o reitor do colégio reuniu alunos e professores para comunicar o grande acontecimento e informar sobre alguns parágrafos da nova Carta Magna que interessavam diretamente aos religiosos. Entre eles o Art. 143 isentava os eclesiásticos e as mulheres do serviço militar obrigatório. Essa disposição constitucional incluía os seminaristas e religiosos em estágio de formação. Não dispensava, entretanto, o alistamento aos 16 anos, ritual ao que me submeti comandado por um oficial do exército destacado para Salvador do Sul. Guardo até hoje entre meus documentos o certificado de alistamento no qual consta a guarnição, o regimento de cavalaria de Alegrete, onde deveria servir caso abandonasse a carreira religiosa, com a observação “isento”. O reitor encerrou as informações com uma notícia que ninguém esperava. Para comemorar a nova Constituição decretou feriado para o dia seguinte, com direito a piquenique, almoço ao ar livre, passeios pelas redondezas, leituras amenas, jogos nos campos do colégio. Para todos nós essa surpresa fez do dia seguinte uma comemoração cívica, de um lado festejando a superação dos 8 anos de ditadura e 7 de guerra mundial e, do outro, o mundo e de modo especial o Brasil, entrando numa nova era de liberdade, prosperidade e modernização. De resto o ano de 1946 transcorreu normal na sua rotina. Encarei com dedicação a rotina dos estudos regulamentares e terminei o ano com resultados que, em parte pelo menos, compensaram o tropeço do ano anterior.

O ano de 1947 começou com uma novidade no currículo que seria decisiva para uma boa parcela da minha formação acadêmica e minha atividade como professor mais tarde. Refiro-me à disciplina de Ciências Naturais. Desde criança essa área de conhecimento sempre me fascinou. As razões foram várias. Em primeiro lugar destaco o que acima ao descrever a minha infância já ficou claro. Nasci, por assim dizer, na sombra da floresta e na sombra das grandes árvores em volta da casa. Até os 12 anos foi esse o cenário onde buscava os brinquedos, alimentava a imaginação e aos poucos foram-se formulando perguntas do tipo: como surgiu esse mundo maravilhoso, como funciona, qual o seu significado, qual a parte que cabe ao homem inserido nele. Evidentemente esses questionamentos não foram formulados tecnicamente naquela fase da vida mas, intuídos e, quase como que farejados, na convivência diária com aquele mundo belo e misterioso com as criaturas que nele se movimentavam. Naquela primeira fase da vida aconteceu uma simbiose silenciosa, porém, definitiva entre minha alma e a natureza. Em segundo lugar, três dos meus irmãos escolheram dedicar-se a áreas das Ciências Naturais. O mais velho, o Balduino especializou-se em botânica sistemática e conquistou fama internacional nessa especialidade. O Roberto dedicou-se à matemática, química e física e lecionou essas disciplinas no colégio Santo Inácio onde foi meu professor em 1948 e 1949. Chegou a ministrar semestres de química e bioquímica no curso de História Natural na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo, embrião da futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O Bertoldo escolheu a Ótica como especialidade de preferência. Ainda como ginasiano construiu um telescópio artesanal com tubos de papelão. As lentes foram bancadas por meu pai e nas férias, depois de escurecer, todos reunidos em frente à casa tomando chimarrão, nos revezávamos observando as estrelas, a lua e os planetas. Até minha mãe resolveu matar a curiosidade. Ficou gravado indelevelmente na minha memória a imagem de Júpiter refletida no espelho daquele telescópio, por assim dizer, enxambrado” por esse meu saudoso irmão que por razões que não vem ao caso, só concluiu o ensino médio e depois foi ser professor na escola primária da comunidade de Harmonia e paralelamente fotógrafo. A esses meus três irmãos envolvidos formalmente em especialidades das Ciências Naturais vem somar-se meu segundo irmão, 20 anos mais velho que eu, o Raimundo. Simples agricultor como meu pai foi o mais próximo a mim dos meus irmãos. Sempre que fosse possível ele pedia para acompanhá-lo quando se embrenhava na mata virgem para localizar árvores, cangeranas, louros, angicos, batingas, cabriúvas, etc. quando faltavam tábuas, madeira de canto, tabuinhas para telhado e outras utilidades. Foi com ele que entrei em contato íntimo com a “alma” da Natureza. Esse meu irmão aos 44 anos vítima de um câncer linfático foi meu instrutor de campo nessa “universidade ao ar livre”.

Depois dessa nota explicativa continuo minhas considerações sobre a disciplina de Ciências Naturais que constava no currículo. O significado mais importante não foram os conteúdos em si mas o Pe. Fridrichs, professor da disciplina. Ele fazia parte dum grupo de jesuítas que tinha como projeto de vida dedicar-se às Ciências Naturais como instrumento de aproximação das Ciências Naturais com a Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. Pertenceram a essa categoria de jesuítas o astrônomo Matteo Ricci e o matemático e astrônomo Adam Schall na China, os dois no século XVII e XVIII, além de muitos outros missionários atuando nas inúmeras missões mantidas pela ordem antes da supressão em 1773. Depois da restauração da Ordem em 1814 a tradição de fazer da Ciência um instrumento missionário foi retomada. Cito aqui alguns nomes diretamente relacionados com os jesuítas alemães, suíços, austríacos e tiroleses vindos para o sul do Brasil partir de 1849. Um dos pioneiros mais conhecidos e mais importantes pela sua obra foi Erich Wassmann, nascido em Moran (Morano) no Tirol do Sul, especialista em formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos e famoso pelos seus embates diretos com Ernst Haeckel, o papa do evolucionismo materialista. Aqui na Missão do sul do Brasil merecem destaque o historiador Pe. Ambros Schupp com seus artigos sobre a fauna e flora da região, os especialistas em fungos Johannes Rick e Ferdinand Theissen. Estes três inspiraram e entusiasmaram toda uma geração de jesuítas nativos para se dedicarem a algum dos ramos das Ciências Naturais para exercer um apostolado indireto. Enumero os que se destacaram de alguma forma na suas pesquisas: Balduino Rambo, Aloísio Sehnem, Maximiliano Krause, Godofredo Schrader, Jacó Racke, José B, Weckering, Nepomuceno Haas, Mathias Schmitz, Pedro C. Beltrão, Pio Buck, Ernesto Maurmann Canísio Orth, Antônio Binsfeld, Pedro I. Schmitz, Joseph Hauser, Pedro Haeser, Clemente Steffen, Guido Wenzel e outros menos conhecidos. Para quem interessar recomendo o livro do prof. Luiz Oswaldo Leite, publicado pela Editora da Unisinos com o título: “Jesuítas Cientistas no sul do Brasil”. Entre eles começava a destacar-se como grande promessa na botânica o Pe. Friederichs. Só para adiantar. Já no ano de 1948 os superiores lhe confiaram a capelania da Comunidade São José em Porto Alegre e, mais tarde, ocupou por duas vezes o cargo de Superior Provincial. Neste meio tempo aprofundou seus conhecimentos sobre o Espiritismo.

Da Enxada à Cátedra [ 29 ]

Como nem tudo é um mar de rosas, melhor talvez de sucessos, não posso omitir nessa minha trajetória um tropeço que me atalhou o caminho no último ano da guerra, 1945, que, porém, não tinha nada a ver com a guerra. Com 15 anos, como muitos adolescentes, fui envolvido numa turbulência perfeitamente explicável para a idade. Acometeu-me uma autêntica aversão para com determinadas disciplinas, agravada um tanto pelo desempenho dos respetivos professores. Nosso currículo previa duas categorias de disciplinas: as fundamentais e as complementares. Entre as fundamentais constavam o português, o latim e a matemática, complementadas pelas outras línguas, geografia, história, ciências naturais e outras. Quem não alcançasse a média 5 no final do ano numa das disciplinas fundamentais tinha que repetir o ano. Nas disciplinas complementares bastava uma média de 3. Acontece que naquele ano figurava a álgebra como foco da matemática uma das disciplinas fundamentais. Saí-me muito bem no latim, português e de modo especial em história e geografia. Mas, a álgebra foi um tropeço durante todo o ano e completei-o com média 3 ou quatro e a sentença estava dada: repetir a segunda série do ginásio. Havia nessa história um agravante. O professor de álgebra era também o reitor do colégio além de didaticamente falando nada brilhante. Soube no ano seguinte que ele tinha decidido mandar- me uma correspondência nas férias no sentido de que não voltasse mais em 1946. Não tenho as mínimas condições de imaginar que rumo a minha vida teria tomado. Em princípio teria voltado à enxada e provavelmente “cavado” a trilha para o resto da vida na roça. Quem salvou-me dessa encrenca foi o meu professor de português o padre Silvino Arnhold. Na época ele era um jovem jesuíta de menos de 30 anos cumprindo o estágio do magistério no colégio Santo Inácio. Ele nunca me contou essa história. Soube-a por terceiros. Depois de 20 anos nos reencontramos e lembro- me com saudades dos acampamentos e pescarias na época em que ainda se pescavam dourados no Sinos e no Caí. Hoje o Sinos virou uma cloaca a céu aberto e o Caí contaminado com produtos químicos e dejetos de toda a ordem. Considerando bem se não fosse a intervenção do Pe. Silvino naquele momento, não estaria escrevendo hoje essas recordações. Até perto dos 100 anos ele podia ser visto todos os fins de semana disponível para quem precisasse de conforto espiritual no Santuário do Coração de Jesus junto ao túmulo do Pe. Reus. E hoje descansa no cemitério dos jesuítas a poucos metros distante da sala em que atendia e socorria espiritualmente a quem o procurava. O nome desse homem que, sem alarde, cumpriu uma jornada de 100 anos dedicada inteiramente à prática da caridade e zelo pelo próximo brilhará, conforme a promessa da Sagrada Escritura, como uma estrela no firmamento por perpétuas eternidades.

O final do ano de 1945 foi marcado por um evento familiar muito especial. No dia 7 de dezembro meu irmão Roberto foi ordenado sacerdote jesuíta no Colégio Cristo Rei, pelo bispo de Vacaria, D. Cândido Maria Bampi. Meu pai alugou para a ocasião o ônibus que fazia diariamente o percurso Tupandi – Porto Alegre. Partimos de Tupandi às 5h. da manhã. Naquela época as estradas da região eram todas de chão batido. Passamos por Caí, Pareci Novo, Montenegro, onde cruzamos o rio de barca e pela estrada antiga pelos fundos de Portão terminamos no pátio do Colégio Cristo Rei bem no começo das cerimônias da ordenação na capela da instituição. Terminada a cerimônia religiosa nos encontramos com o Roberto recém ordenado, ocasião em que deu sua primeira bênção para a família e parentes próximos. Seguiu-se depois o almoço oferecido pelo Colégio aos pais e parentes próximos dos recém ordenados. Pela meia tarde o mesmo ônibus levou-nos de volta para casa. No fim da semana seguinte aconteceu a grande solenidade e festa da primeira missa solene do Pe. Roberto na igreja matriz de Tupandi. O ritual foi, em grandes linhas, idêntico àquele que descrevi por ocasião da primeira missa solene do Pe. Balduino, ocorrido em 1o de novembro de 1936. Um piquete de cavaleiros foi receber o homenageado nos limites da paróquia, levando um cavalo encilhado. Era sábado de tarde. Toda a comunidade encontrava-se novamente reunida na frente do sobrado do dentista Balduino Weber, repetindo a cena de 9 anos passados. O piquete passou a galope pelo público e foi apear num pequeno bosque onde hoje se encontra o centro de eventos. O Pe. Roberto foi recebido na entrada do caramanchão em frente ao sobrado, pelos pais, irmãos, tios, pároco e demais padres presentes. Os sacerdotes paramentaram-se na sala de visitas da família Weber e, em seguida encaminharam-se em procissão acompanhados de toda a comunidade para a igreja matriz. Na época ainda não se celebravam missas aos sábados à tarde e, por isso, a cerimônia litúrgica resumiu-se numa bênção solene do Santíssimo. Pelo final da tarde subi com meus pais o Morro da Manteiga para passar a noite e no dia seguinte descer novamente para a primeira missa solene – as “primícias” do meu irmão Roberto. Uma missa solene naquele remoto 1945, costumava ser uma acontecimento que envolvia a comunidade inteira. Todos os moradores que formavam a comunidade de Tupandi eram católicos e de origem alemã. Ninguém faltava numa solenidade dessas. A igreja não comportava nem a metade das pessoas. Quem não conseguia lugar dentro assistia à cerimônia do lado de fora pelas portas abertas. O coral masculino dirigido pelo escrivão José Weber deu o melhor de si. Os quatro sinos tocados em conjunto ecoavam o grande acontecimento pelos vales e encostas dos morros. O estrondo de uma bateria de morteiros disparados num potreiro vizinho anunciaram para longe e perto o momento da consagração, enquanto o badalar dos quatro sinos perfeitamente afinados rebatia a sua sinfonia nos vales e morros em torno. Sem dúvida o momento mais esperado daquela manhã foi sermão festivo a cargo do Pe. Balduino. Aquele sermão de 45 minutos, além do brilhantismo e da eloquência conhecida por todos, veio acompanhado por um ingrediente adicional que levou às lágrimas velhos e moços, colonos e colonas todos temperados no cabo da enxada e do machado, nos arados de boi, no gadanho e foice do mato. Acontece que os decretos que proibiam as pregações em alemão, acabavam de ser revogados. Na igreja lotada até portas afora podia-se escutar o zumbido de uma abelha. Escutar na língua dos seus ancestrais aquele sermão, do alto daquele púlpito emblemático esculpido em cedro vermelho pelo artesão Flach, deve ter soado como uma melodia até os arcanos mais profundos da alma daquela gente simples e profundamente humana. Um dos filhos nascido na comunidade lhes falava de Deus e o significado da missão por Ele dada à Criação e ao Homem, na língua em que balbuciaram as primeiras palavras de amor e oração, fez chorar os colonos e colonas feitas de cerne de cabriúva.

Terminada a missa solene e depois de uma bênção do novo sacerdote para toda a comunidade presente, os convidados encaminharam-se para o almoço no salão de baile do Sr. Afonso Konzen, enquanto os demais recolheram-se às suas casas. O almoço nada tinha ver com um banquete no sentido corrente o termo. Meu pai tinha engordado um novilho que forneceu o carne assada no forno, massa feita em casa, arroz, salada e uma sobremesa de sagu, vinho e framboesa. Um cardápio que se repetia em casamentos, kerbs, festas de igreja. Guardo com carinho uma fotografia daquele “banquete” pois, lá está uma das últimas fotos do meu pai.

Da Enxada à Cátedra [ 28 ]

Voltando à rotina do internato no período da guerra, destaco que os primeiros meses de 1943, além de todas as restrições e dificuldades decorrentes da campanha de Nacionalização e da própria guerra, foram marcados por uma estiagem devastadora de 3 meses. A direção do colégio chegou a pensar na suspensão das atividades escolares e que os internos, pelo menos os que moravam menos longe, fossem para casa. O abastecimento de água foi comprometido e o arroio Salvador que alimentava o reservatório que movimentava a usina de geração elétrica do colégio quase sem água. As fontes responsáveis pela água potável e da limpeza da casa encontravam- se com a vasão em nível crítico. Foi preciso levar com carretas de bois os toneis da água buscada na piscina que ficava uns 100 metros distante. Vejo ainda hoje a figura esbelta e alta do prefeito geral, Pe. Oscar Müller, carregando baldes e mais baldes de água das carroças até os banheiros e os limpava nos fins de tarde enquanto nós nos ocupávamos na sala de estudo com os temas e demais obrigações das aulas. Registro aqui a minha homenagem especial a esse jesuíta suíço de coração de ouro que cuidou de nós seminaristas, diria quase como que uma mãe entre 1942 e 1945. Depois passou ocupar importantes cargos na formação do clero: reitor do Seminário Central de São Leopoldo de 1946-1948, quando foi nomeado reitor do Colégio Cristo Rei entre 1949-1951. De 1951-1955 foi reitor do Pio Brasileiro em Roma e de 1955-1967 foi orientador espiritual da mesma instituição. Voltando ao Brasil em 1967 foi diretor espiritual dos estudantes de teologia no colégio Cristo Rei e professor de Teologia. Dedicou os últimos anos a uma intensa atividade de retiros, cursos e, principalmente, de apoio psicológico-espiritual a sacerdotes, religiosos e religiosas. Numa dessas jornadas ao Ceará, faleceu em Fortaleza em consequência de um edema pulmonar e no dia seguinte foi sepultado no cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Devo a esse suíço uma enorme dívida de gratidão pelo apoio e compreensão quando da minha saída da Ordem em 1971.

Em 20 de agosto de 1942 o Brasil declarou guerra à Alemanha. Antes de falar sobre os reflexos desse ato extremo de demonstração de hostilidade contra a Alemanha, sobre a rotina do seminário em Salvador do Sul, creio ser útil mostrar os fatos imediatos que levaram o Brasil a tomar essa decisão extrema. Durante décadas discutiu-se mais tarde sobre o que na verdade estava atrás do afundamento dos navios brasileiros em águas territoriais na costa do nordeste naquele 15 de agosto e 1942. Acontece que o Brasil rompera as relações diplomáticas e comerciais com o Eixo já em janeiro de 1942, mas manteve-se neutro em relação ao conflito bélico propriamente dito. Nesse meio tempo o Comando da Guerra Naval alemão, montara a operação de guerra no 53 endereçada ao Brasil como retaliação ao rompimento das relações diplomáticas e comerciais. Essa operação previa um ataque de uma flotilha de submarinos a navios brasileiros. Conforme consta nos relatórios do Comando de Guerra Naval a operação no 53 foi cancelada por razões políticas. Supõe-se que o ministro das relações exteriores da Alemanha, Joachim von Ribbentropp teria convencido Hitler da inoportunidade da ação pois, poderia provocar uma reação em cascata na América do Sul, arrastando principalmente o Chile e a Argentina abandonar a neutralidade e passar para o lado dos Aliados. A Alemanha alertara o Chile e a Argentina que identificassem seus navios para não serem atacados pelos submarinos. Pelo que informou o tenente-coronel Durval Pereira o alerta da identificação dos navios não foi comunicado ao Brasil tornando-os alvos dos submarinos. Documentos do Arquivo Federal alemão informam que o submarino U53 sob o comando do capitão Harro Schacht recebeu a missão de interceptar navios isolados, navegando para a África do Sul, longe da costa do Brasil. Passou semanas sem encontra uma presa sequer e convencido que navios americanos navegavam por águas territoriais brasileiras, aproximou-se da costa e localizou um navio sem identificação no casco. Disparou dois torpedos que não acertaram o alvo. Aproximou-se até 100 metros mandou disparar mais dois torpedos que afundaram o Baependy, um barco misto de carga e passageiros. Naquela noite de 15 de agosto, um por um, cinco navios mistos foram afundados pelos torpedos de Harro Schacht. Como se pode deduzir o afundamento dos navios brasileiros foi na verdade o resultado da iniciativa do capitão de submarino Harro Schacht. Deixando de lado a discussão mais aprofundada sobre a verdadeira responsabilidade sobre o torpedeamento dos navios brasileiros e consequente declaração de guerra do Brasil ao Eixo em 20 de agosto, volto as atenções sobre a repercussão desses fatos sobre a rotina do meu internato.

Evidentemente quando esses acontecimentos se tornaram públicos a comoção tomou conta do País, ainda mais quando os corpos dos passageiros dos navios foram levados pelo oceano até as praias do Sergipe. O novo panorama desenhado por essa decisão tão relevante acirrou ainda mais as tensões motivadas pela Campanha de nacionalização. O cerco aos possíveis aliados e defensores do Eixo foi reforçado e a vigilância redobrada. É oportuno relembrar que a maioria dos padres meus professores eram alemães, austríacos e suíços natos. Na prática todos eles eram rotulados como alemães e tratados como estrangeiros. Como já anotei mais acima, não ocorreram devassas da parte da polícia, muito menos constrangimentos e prisões. Como qualquer outro estrangeiro eram obrigados a se munir de um salvo-conduto para viajar de um município a outro ou de um estado a outro. Mas, o torpedeamento dos navios na costa do nordeste teve um efeito colateral que afetou por meses toda a comunidade do Colégio Santo Inácio, tanto os internos quanto os professores e a direção. Na época mercadorias e produtos como sal e açúcar vinham via navegação costeira ou de cabotagem do nordeste para abastecer os mercados do sul. O ataque aos navios de passageiros e de carga em águas territoriais levou a interrupção da navegação de cabotagem. Para encurtar a história o colégio não tinha como conseguir sal e açúcar vindos do nordeste. Como consequência as refeições e o pão eram preparadas sem sal. Essa situação prolongou-se por aproximadamente meio ano. A falta de abastecimento de açúcar não foi tão dramático. De um lado porque seu uso era mais seletivo e do outro sempre havia a possibilidade de conseguir açúcar mascavo artesanal dos colonos da redondeza. Lembro-me como se tivesse sido ontem no dia em que o Reitor do Colégio entrou no refeitório durante a janta e nos deu a boa nova: “Voltou o sal e amanhã vamos comemorar com um “passeio grande”. Já instrui o padeiro para deixar pronto uma fornada de pão com sal par amanhã. Foi uma festa. No dia seguinte fomos acampar no Campestre. Antes de sair para o piquenique cada interno recebeu um quarto de pão de farinha integral e, felizes, caminhamos pela estrada de terra que terminava perto das cascatas no Campestre onde armamos o acampamento para passar o dia. Ao chegar no local o pão tinha sumido. Durante a caminhada tinha sido “devorado” como uma guloseima.

No mais a rotina do colégio seguiu seu curso normal enquanto possível nas circunstâncias anômalas criadas pela guerra. Não me lembro que se tenham formado grupos definidos a favor ou contra o “Eixo” ou os “Aliados”. Os responsáveis pela instituição foram suficientemente hábeis para evitar esse tipo de radicalização. Presenciei um ou outro caso de discussões pontuais entre os alunos mas, nada que perturbasse o bom andamento do todo ou desandasse em quebra de amizades muito menos na formação de grupos fechados entre os seminaristas defendendo um ou outro lado do conflito. A situação assumiu contornos mais preocupantes no decorrer do ano de 1944 com a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) arregimentada para lutar, junto com os aliados, na frente de combate na Itália. Depois do primeiro escalão que partiu para a Itália, composto por tropas do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo, o recrutamento foi se ampliando para as guarnições dos estados do Sul. Parentes próximos de não poucos alunos do colégio foram incorporados em sucessivos escalões com destino para a Itália. Um primo irmão meu e outros parentes de segundo e terceiro grau foram convocados. A maioria deles não chegou a embarcar porque a guerra terminou enquanto aguardavam no Rio de Janeiro ordens para partir para a frente de combate. O fato de três jovens padres jesuítas, mais acima já me referi a eles, se terem apresentado como voluntários para acompanhar as tropas como capelães militares aumentou os interesse em acompanhar mais de perto todos os lances do final do conflito. Suas vidas corriam os mesmos riscos da dos soldados envolvidos no fogo dos combates na linha de frente. Felizmente terminado o conflito os três voltaram sem terem sofrido nenhum ferimento. Passaram para a reserva como oficiais das forças armadas. O Pe. capelão Wendelino Junges trabalhou na pastoral e o Urbano Rausch e Emílio Schneider como assistentes nos Círculos Operários. Querendo ou não o fato de soldados brasileiros em frentes de combate, 450 dos 24.000 que foram para a Itália morreram em ação, despertou em nós seminaristas um sentimento de solidariedade com a tropa. Cantávamos nos encontros informais e formais a “Canção do Expedicionário” e o coral do colégioencerrava encontros culturais e outras programações do nosso calendário com a versão em português do “Coro dos Prisioneiros” da ópera Nabuco de Verdi, com a letra tendo como pano de fundo o drama dos expedicionários e seus familiares. Finalmente em começos de maio de 1945 terminou a guerra na Europa e em agosto também no Pacífico contra o Japão. O término da guerra forçou também a deposição de Getúlio Vargas e com isso o encerramento da ditadura do Estado Novo (1937-1945), numa ação conjunta da UDN (União Democrática Nacional) e as Forças Armadas. Em 1946 o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito democraticamente pelo voto popular presidente da República.

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Como em muitos outros níveis, também entre o clero secular e regular a Campanha de Nacionalização teve sequelas no mínimo discutíveis. Vou-me limitar ao caso dos jesuítas que me é mais familiar e conhecido. A partir do período que é nosso foco aqui começou-se a falar com sempre maior frequência na “Velha Guarda”. Pergunta-se: quem pertencia à “Velha Guarda”, quais seus protagonistas e qual foi o legado que deixaram para as futuras gerações de jesuítas e para a história da consolidação religiosa e sócio econômica do sul do Brasil como um todo. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes pois, esses podem ser encontrados nos meus três livros que publiquei sobre a temática, todos pela Ed. da Universidade do Vale do Rio dos Sinos: “Um sonho e uma Realidade – 0 Projeto Educacional dos Jesuítas; Somando Forças – O Projeto Social dos Jesuítas; Os Jesuítas no sul do Brasil – O Projeto Pastoral. A justiça manda creditar esses três projetos à “Velha guarda”. Em termos históricos os últimos personagens e protagonistas dessa “Velha Guarda” saíram do cenário no decorrer da década de 1950, quando foram substituídos pelos irmãos de Ordem nativos. O período de transição e transferência do bastão de comando da Velha Guarda” para seus herdeiros nascidos no Brasil, não foi de todo tranquila. Como eu fui jesuíta dos 20 aos 41 anos, isto é, entre 1950 e 1971, suponho que tenha credenciais para opinar com conhecimento de causa. Olhando para trás mas, sempre com a precaução de que “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos” (Caldera , 2004, p. 14), fica claro que a “Velha Guarda” incarnou o que poderíamos chamar de brigada de assalto na missão de conquista e consolidação das novas fronteiras para o Reino de Deus no sul do Brasil. Seus nomes, suas façanhas e sus obras estão registradas nos livros que citei mais acima. Tive a felicidade de conhecer e conviver entre 1942 e 1946 com o Pe. Johannes Rick, um dos personagens mais emblemáticos dessa brigada da velha guarda. Desgastado pelos 40 anos como pregador de missões populares, catequese aos ferroviários, consolidação da fronteira de colonização do oeste de Santa Catarina, secretário itinerante da Sociedade União Popular, além de especialista de renome internacional na pesquisa de fungos, passou os últimos anos no Colégio Santo Inácio. Por algum tempo ainda ministrou aulas de Ciências Naturais. Os últimos anos dedicou-se inteiramente à coleta e classificação de fungos que seriam enviados para especialistas principalmente nos Estados Unidos. Inúmeras vezes observei aquele homem de perto de 2 metros de altura, um tanto curvado pela idade, saindo do mato do colégio carregando a coleta do dia e recolher-se ao seu quarto no primeiro andar da ala onde moravam os padres professores. Já lembrei em outro lugar mais acima que o Pe. Rick foi meu confessor por um par de anos. Ele próprio definiu em poucas palavras o perfil da sua personalidade: “Se eu tivesse nascido na Renascença não me teria feito jesuíta mas, um Condottieri Italiano”, ou ainda “A minha vida se parece com uma tabuleiro de xadrez, sobre o qual cada lance deve ser atentamente calculado para chegar ao Xeque Mate”. Suas últimas palavras revelam o cerne de sua personalidade: “Nemo Pater nisi Deus” – “Ninguém é Pai senão Deus!E como o Pe. Rick todos da “velha guarda”, cada qual à sua maneira, arregimentados no Tirol do Sul e do Norte, nos cantões da Suíça alemã, na Baviera, na Renânia, no Palatinado, na Vestfália, na Áustria, na Boêmia, na Pomerânia e demais territórios de fala alemã, cumpriram bem ao estilo inaciano a grande missão de fazer do sul do Brasil uma terra economicamente próspera, social, cultural e religiosamente de um nível invejável. Cabe aqui um inciso de natureza pessoal. Ao decidir fazer-me jesuíta meus modelos, meus inspiradores, meus “ídolos”, foram representantes dessas “velha guarda” que me foram familiares desde que me conheci como gente. Na medida em que os últimos sobreviventes saíram de cena e em seu lugar entrou a nova geração de jesuítas que foi tomando um rumo divergente tácito, muitas vezes nem tanto, de questionamento e até de condenação da obra dos pais fundadores, comecei a perder o chão sob os pés e terminei me desligando da ordem depois de 21 anos. Mas, não é aqui o lugar para entrar em detalhes dessa transição penosa e sofrida da minha vida.

Da Enxada à Cátedra [ 26 ]

O Período da Segunda Guerra Mundial

Os quatros primeiros anos que passei no Colégio Santo Inácio, 1942-1945, coincidiram com a vigência do Estado Novo, da Campanha de Nacionalização e da Segunda Guerra Mundial. Mais acima já lembrei os reflexos negativos sobre minha formação primária decorrentes do Estado Novo e da Campanha de Nacionalização. Entrei no Colégio Santo Inácio um pouco mais do que alfabetizado o que me levou a ser matriculado no terceiro ano do primário, o que na verdade significou que era preciso começar tudo pelo começo. Lia, escrevia e falava sem dificuldade alemão. Dominava a aritmética e os cálculos básicos que tinha aprendido na escolinha do Morro da Manteiga. O meu português não passava dos rudimentos tanto para me fazer entender e, consequentemente, para entender os colegas falando. Redação e gramática algumas noções. Essa situação rendeu-me não poucos contratempos no convívio, com destaque para um tal ou qual isolamento pois, estava terminantemente proibido falarmos uns com os outros em alemão, por imposição dos decretos da nacionalização. Bastava chegar ao conhecimento da polícia a mínima suspeita que no Colégio se falava ou alemão, ou italiano, ou polonês, ou outra qualquer língua que não fosse o português, para sumariamente proceder uma vistoria e sem a menor cerimônia prender o reitor ou qualquer outro responsável pelos internos. Os responsáveis pelo estabelecimento não tinham outra alternativa senão impor com severidade o português. Essa situação agravou-se, no meu caso pelo menos, nos dois ou três primeiros meses pela saudade da minha casa, dos meus pais e irmãos. Num dos cantos do campo de futebol cercado com tela enxergava-se ao longe aquele morro triangular coberto de mata virgem e na encosta uma roça que fazia parte da propriedade da família. Naquele canto, agarrado às malhas da cerca, passei não poucos momentos, olhando aquele cenário lá ao longe, deixando correr livremente, sem me importar com os colegas por perto, lágrimas doídas, brotadas do fundo coração. Ainda bem que ninguém dos meus superiores teve a ideia de sugerir que alguém da família me buscasse. O responsável imediato pela “divisão dos pequenos”, o “Fr. Urbano Müller”, teve a sensibilidade e a compreensão de, naqueles momentos me socorrer e tratar-me como que um irmão menor. Deixo aqui o meu registro de gratidão pois, se estou escrevendo essas recordações 80 anos depois, devo-o, em grande parte, à sua compreensão pelo drama pelo qual eu estava passando naqueles momentos. O Ir. Vicente Slany, já me referi a ele mais acima, o regente da terceira série e responsável por todas as disciplinas do currículo, foi outro a quem devo não ter abandonado o colégio e voltado para a enxada. Esse irmão leigo jesuíta nascido na Áustria, um homem alto e atlético, passando um pouco dos 40 anos, invariavelmente bem-disposto e empolgado pelo que fazia, fez com que em pouco tempo tomasse um enorme gosto pelo estudo e superasse aquele começo tão desfavorável. Mais tarde, já no nível de ginásio, foi meu professor de desenho. No dia 19 de julho, aniversário do Ir. Slany, sempre havia uma comemoração em sua homenagem. O Pe. Oscar Müller, originário da Suíça, como “prefeito geral”, foi outro jesuíta daquela estirpe sonhada por Santo Inácio, que contribuiu decisivamente para que eu não desanimasse e desistisse.

Em 20 de agosto de 1942, portanto, no mesmo ano em que me internei no Colégio Santo Inácio, o Brasil declarou guerra ao “Eixo”, a aliança formada pela Alemanha, Itália e Japão. Com esse ato os decretos da Campanha de Nacionalização e a ação do seu braço e aparato policial, fecharam ainda mais o cerco a tudo que para as autoridades não correspondia ao figurino da “brasilidiade”. Acontece que entre os internos do Colégio Santo Inácio 90% ou mais eram descendentes de alemães, italianos e poloneses, com uma predominância numérica expressiva em favor dos primeiros. Além disso o reitor, o “prefeito geral”, e a maioria dos padres professores eram alemães, suíços de fala alemã e austríacos natos. Os demais jesuítas cumprindo o estágio de magistério vinham das colônias alemãs ou italianas. Para as autoridades civis e, de modo especial, para as policias estaduais, o colégio, situado longe de qualquer centro urbano maior, isolado nos morros nos confins do então município de Montenegro, concentrava uma população docente e discente no mínimo “pouco brasileira”. Mas, não me lembro de nenhuma ocorrência de devassa no estabelecimento ou intimação para se apresentar na subdelegacia de polícia, muito menos de alguma prisão. Com certeza os serviços de inteligência tinham em mãos informações de que no colégio não circulavam veículos de propaganda em favor da Alemanha muito menos a existência de algum grupo de resistência à nacionalização e apoio aos aliados do Eixo. Os internos não tinham acesso a jornais ou revistas, muito menos a noticiários de rádio ou a outras fontes de informação. Os ecos da guerra nos alcançavam dispersos e intermitentes de maneira que não foram consistentes ao ponto de estimular animosidades entre os alunos. Os padres e irmãos estrangeiros aos quais me referi mais acima abstinham-se de externar suas opiniões e muito menos polemizá-las em público. Em todo o caso, posso afirmar com toda a convicção que nenhum deles apoiava o regime nazista da Alemanha. Os austríacos detestavam esse regime porque incorporara à força a sua pátria ao “Terceiro Reich” e, evidentemente também pelo ódio que destilava contra o catolicismo e em especial contra os jesuítas. Pelos mesmos motivos religiosos também os suíços jamais contemporizariam com o nacional socialismo e seus métodos ainda mais que a Suíça se manteve neutra durante todo o período da segunda Guerra Mundial. Os padres e irmãos leigos cultivavam como qualquer filho de outro país, como é óbvio, uma profunda afeição pela pátria de origem, palco de uma guerra e devastação como nunca houve na história e, de modo especial, com o povo que nada tinha a ver com as razões da barbárie que os vitimava. Um bom número de irmãos de ordem foram confinados como criminosos em campos de concentração. O Pe. Rupert Maier, conhecido como o apóstolo de Munique, herói nacional condecorado com a “Cruz de Ferro” por atos de heroísmo como capelão militar na Primeira Guerra Mundial, quando perdeu uma perna, foi confinado no mosteiro de Ettal, ameaçado de prisão e morte. Aliás, lembro- me como se tivesse sido ontem quando em meados de fevereiro de 1945, o Pe. Oscar Müller, nosso “prefeito geral”, nos comunicou reunidos na sala de estudo, que acabara de receber a notícia que os jovens padres jesuítas, ambos com menos de 40 anos, Alfred Delp e Alois Grimm, tinham sido executados numa prisão em Berlim. Havia ainda uma série de outras razões pelas quais o Colégio Santo Inácio não oferecia risco algum para servir de abrigo a inimigos do Brasil infiltrados empenhados e fomentar nos seus pupilos qualquer tipo de simpatia pelo Nacional Socialismo e suas pretensões de conquista também fora da Europa. Nesse contexto chamo a atenção a uma autêntica guinada de 180o entre os jovens jesuítas alemães e italianos nascidos no Brasil. Não digo todos mas, a grande maioria aderiu à Campanha de Nacionalização ou, pelo menos, concordou com ela, obedecendo à orientação do arcebispo D. João Becker e seus sufragâneos no Rio Grande do Sul. Pelos menos 3 dos jovens jesuítas que cumpriam o estágio de magistério no Santo Inácio na época da guerra alinhavam-se com essa orientação. Mais um dado reforça adesão ao “abrasileiramento” entre os sacerdotes mais jovens dos jesuítas da Província Sul Brasileira. Por ocasião em que “Força Expedicionária a FEB” foi arregimentada para lutar na frente de guerra da Itália, ao lado dos aliados, o alto comando decidiu incorporar na tropa um número proporcional de capelães militares ao efetivo dos combatentes. O superior provincial do Sul solicitou que se apresentassem voluntários para a missão. Os 3 jesuítas que se apresentaram e partiram de fato com a FEB para a Itália e prestaram assistência nas frentes de combate, foram todos descendentes de imigrantes alemães: Emílio Schneider, Vendelino Junges, Urbano Rausch. A eles veio somar-se o padre diocesano Nilo Collet, também neto de imigrantes alemães.