Depois desse inciso volto às aulas de Ciências Naturais na terceira série do ginásio no colégio Santo Inácio. Não posso afirmar se foi um amor à primeira vista pois, como ficou claro nas páginas acima, eu carregava essa relação atávica existencial com a Natureza lá de longe desde o meu berço. O que aconteceu foi tomar consciência definitiva que era esse o caminho a seguir para o futuro. Não demorou e o Pe. Friedrichs percebeu o meu entusiasmo pelas Ciências Naturais, somado ao detalhe que ele coletava fanerógamos e os mandava para o Pe. Balduino para classifica-los e incorporá-los no Herbário Anchieta. Falou da ideia de programar semanalmente, nas quartas feiras, incursões nas redondezas do colégio para coletar plantas. Convidou-me para acompanhá-lo e meu colega Carlos Roberto Cirne Lima, cursando o 5o ano do ginásio. Aceitei na hora. E assim saíamos todas as quartas feiras do ano de 1947, de manhã cedo para voltar no fim da tarde, sempre com uma bela presa de exemplares de fanerógamos que, secos e devidamente embalados seguiam para Porto Alegre. Hoje devem integrar o Herbário Anchieta guardado no Instituto Anchietano na Unisinos. Mais acima já me referi àquelas andanças pela natureza nas quartas feiras. O Pe. Fridrichs um mestre talhado para esse tipo “aula”, sem jaleco, sem quadro negro, sem bancos, sem quatro paredes, sem retórica professoral. O Cenário para esse aprendizado foi a mata virgem cobrindo a borda do planalto de Salvador do Sul e São Pedro da Serra, escondendo rochas a prumo, formando abrigos e até pequenas cavernas. Das aulas de Ciências propriamente ditas gravei pouco na memória. Mas, aquele contato semanal durante todo aquele ano valeram como um estágio de nível superior naquela universidade sui generis que só a Natureza é capaz de oferecer.
Foi naquele ano também e, novamente por iniciativa do Pe. Friedrichs, meu colega Cirne Lima e eu montamos o esqueleto de cavalo, de cachorro e de gato selvagem aos quais me referi mais acima. Na condição de responsável pelo museu, passava todos os momentos disponíveis naquele recinto acomodando serpentes em recipientes de vidro, empalhando gambás, lebres, micos, etc. Ainda não me definira, com de fato nunca me iria definir por uma área específica das Ciências Naturais para especializar-me. Interessava-me por tudo que vinha pela frente nesse inesgotável mundo de surpresas. As razões objetivas que levaram a não me tornar um cientista no rigoroso sentido do conceito, serão reveladas ao longo das páginas que seguem.
Em começos de julho de 1947 fui surpreendido com a entrega de um fonograma comunicando-me que meu pai fora internado em estado grave no hospital de Tupandi. O reitor do colégio liberou- me o tempo que fosse necessário para ficar junto com a família e acompanhar a evolução do estado de saúde do pai. Aprontei a mochila e percorri a pé os 10 quilômetros até o hospital. Encontrei o pai acometido de pneumonia preocupante mas não desesperadora acompanhado da mãe. Havia, porém, um agravante que preocupava. Meu pai, com 67 anos foi um desses colonos que desde adolescentes enfrentaram qualquer tipo de trabalho, por mais pesado que fosse. Não havia intempérie, nem tormenta nem granizo que os assustasse. As consequências inevitáveis iriam começar a manifestar-se a partir dos 45 ou 50 anos. Aos poucos com mais de 50 anos meu pai era um homem acabado. A inflamação do nervo ciático por vezes o impedia de andar a cavalo. Certo domingo encontrei-o voltando da missa subindo pela trilha do mato na encosta do Morro da Manteiga, levando o cavalo pela rédea, porque o montar lhe rendia dores muito fortes. Aquele encontro foi para mim uma lição de vida que jamais esquecerei. Naquele estado ele certamente não tinha mais nenhuma obrigação de assistir a missa, nem naquele tempo em que obrigatoriedade era levada ao extremo. As irmãs franciscanas que cuidavam do hospital permitiram que eu passasse a noite num quartinho de um anexo do hospital. No dia seguinte, como o quadro de saúde do pai encontrava-se estável e aparentemente sob controle subi para o Morro da Manteiga e pernoitei em casa. Nos dias seguintes a situação parecia sinalizar para uma melhora gradativa. Depois de uma semana voltei para o colégio em Salvador do Sul, sempre à espera de alguma novidade. No dia 19 ou 20 de julho fui chamado à portaria onde um primo meu me esperava com um cavalo encilhado e informou-me que descesse com ele até Tupandi pois o quadro de saúde de meu pai piorara muito e o médico praticamente o tinha desenganado. Ao entrar no quarto estava lá minha mãe, meus dois irmãos padres, o Balduino e o Roberto. O pai quando me viu me fez seu último pedido. Chamou-me pelo nome e pediu: “Nunca me esquece”. Essas três palavras ecoaram mais do que uma vez todos os dias na minha memória, durante os mais de setenta anos que se passaram desde então. Passei a tarde no hospital e ao entardecer subi o morro e fui passar a noite em casa. No dia 23 de julho fiquei em casa aguardando notícias.
Pela meia tarde o Bertoldo veio a cavalo do hospital, apeou e disse: “o pai está morto” e começou a chorar. Preparamos a sala da casa para o velório. Naquele época os velórios aconteciam na casa dos falecidos. No fim da tarde trouxeram meu pai em cima dum colchão acomodado numa carroça. Não demorou para os vizinhos se reunirem na sala da casa, na cozinha, e ao ar livre pois, a noite amena colaborou para acomodar as pessoas. Minha mãe, meus irmãos, parentes e vizinhos e vizinhas passaram a noite em vigília. Na manhã do dia seguinte um vizinho trouxe o caixão aprontado pelo marceneiro da comunidade. Lembro que naquela época os vizinhos se encarregavam de todos os procedimentos funerários. Encomendavam o caixão, cavavam a sepultura, levavam o defunto até igreja para a encomendação, depois o carregavam até o cemitério e o sepultavam. Nessas ocasiões qualquer desentendimento que por acaso tivesse havido com o falecido e seus familiares, cedia lugar ao dever de solidariedade. Um detalhe que merece atenção. De acordo com os costumes de então, as vizinhas prepararam uma galinhada para as pessoas que tinham ficado no velório durante a noite e a manhã. Em muitas ocasiões de falecimento as vizinhas além de prepararem um almoço faziam uma ou mais fornadas de cuca para as pessoas que tinham vindo de mais longe. Depois do almoço com a família reunida, inclusive meus dois irmãos padres, vizinhos colocaram o pai no caixão, enquanto o povo reunido na sala e no pátio rezava o terço. Em seguida acomodado numa carroça de bois começou a última descida do Morro da Manteiga desse homem, que como meu avô e tios abriram as primeiras clareiras naquele pedaço de chão e pelo qual deram o que tinham de melhor de suas energias físicas e, principalmente, o que de humano e espiritual pulsava no seus grandes corações e na suas almas que não conheciam nem malícia nem rancor. Ainda no alto do morro veio ao encontro do féretro minha irmã Tecla (irmã Antônia). Nas condições de transporte de então não conseguira participar do velório. O cortejo fúnebre foi interrompido, o caixão foi aberto por uns minutos para que ela pudesse dar seu adeus ao pai. A descida naquele remoto ano de 1947 não passava de uma dessas estradas de chão batida pela qual só passavam pedestres, cavalos e carroças de bois. Minha mãe, minha irmã Ana e alguns vizinhos e vizinhas de mais idade acompanharam a cavalo. Todos os demais desceram a pé e em procissão o morro rezando um terço depois do outro no trajeto de mais ou menos uma hora. Aquela descida do Morro da Manteiga, logo atrás da carroça que carregava meu pai para sua derradeira morada, rezando o terço em coro com os demais acompanhantes, está gravada na minha memória numa nitidez tal como se estivesse acontecendo no momento em que escrevo. Seguiu-se a encomendação na igreja matriz de Tupandi presidida pelo Pe. Karl Schoebendach, auxiliar do pároco, lotada como em dias de festa. O sepultamento aconteceu no final da tarde. Seis vizinhos carregaram o caixão até a sepultura. Depois dos últimos atos e orações litúrgicas o povo presente rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria enquanto a sepultura estava sendo fechada e sobre ela depositados dezenas de ramalhetes de flores. Plantada a cruz na cabeceira todos se persignaram e foram-se dispersando. Acabara de sofrer a primeira grande baixa na minha família. No dia seguinte meus dois irmãos padres, o Raimundo, o Bertoldo e eu passamos com minha mãe e minha irmã Ana em nossa casa lá no Morro da Manteiga, relembrando os bons e maus momentos, os períodos de calmaria e os intervalos de mau tempo que marcaram a caminhada da nossa família. Depois de ficar por uma semana com minha mãe, minha irmã, o Bertoldo e sua esposa Erica em casa, voltei para o Colégio Santo Inácio para retomar a rotina do internato.