O após guerra – 1946-1949
Em linhas gerais aqueles três últimos anos do ginásio foram decisivos e definitivos para a minha jornada acadêmica. Com 16 anos a repetição da segunda série do ginásio colocou-me por assim dizer na rota do reencontro comigo mesmo e o que pretendia fazer da minha vida. Por isso o ano de 1946 significou para mim uma travessia do “Rubicão” ou uma “Queima dos Navios”. Depois do susto decidi mergulhar fundo em todas as disciplinas que o currículo oferecia e deixar de lado tudo que me pudesse desviar da formação e abraçar tudo que me enfunasse as velas para navegar em frente. A Segunda Guerra Mundial ficara definitivamente para trás em agosto do ano anterior com a rendição do Japão. A ditadura de Vargas com todas as suas leis e decretos de exceção e instrumentos de repressão não passava de um pesadelo de uma noite mal dormida. Com o presidente Dutra eleito democraticamente o País voltava à normalidade. Os “pracinhas” que haviam lutado na Itália estavam de volta, infelizmente deixando para trás no cemitério de Pistoia 450 dos seus camaradas. Uma nova constituição foi promulgada em 20 de setembro. Naquela tarde de primavera o reitor do colégio reuniu alunos e professores para comunicar o grande acontecimento e informar sobre alguns parágrafos da nova Carta Magna que interessavam diretamente aos religiosos. Entre eles o Art. 143 isentava os eclesiásticos e as mulheres do serviço militar obrigatório. Essa disposição constitucional incluía os seminaristas e religiosos em estágio de formação. Não dispensava, entretanto, o alistamento aos 16 anos, ritual ao que me submeti comandado por um oficial do exército destacado para Salvador do Sul. Guardo até hoje entre meus documentos o certificado de alistamento no qual consta a guarnição, o regimento de cavalaria de Alegrete, onde deveria servir caso abandonasse a carreira religiosa, com a observação “isento”. O reitor encerrou as informações com uma notícia que ninguém esperava. Para comemorar a nova Constituição decretou feriado para o dia seguinte, com direito a piquenique, almoço ao ar livre, passeios pelas redondezas, leituras amenas, jogos nos campos do colégio. Para todos nós essa surpresa fez do dia seguinte uma comemoração cívica, de um lado festejando a superação dos 8 anos de ditadura e 7 de guerra mundial e, do outro, o mundo e de modo especial o Brasil, entrando numa nova era de liberdade, prosperidade e modernização. De resto o ano de 1946 transcorreu normal na sua rotina. Encarei com dedicação a rotina dos estudos regulamentares e terminei o ano com resultados que, em parte pelo menos, compensaram o tropeço do ano anterior.
O ano de 1947 começou com uma novidade no currículo que seria decisiva para uma boa parcela da minha formação acadêmica e minha atividade como professor mais tarde. Refiro-me à disciplina de Ciências Naturais. Desde criança essa área de conhecimento sempre me fascinou. As razões foram várias. Em primeiro lugar destaco o que acima ao descrever a minha infância já ficou claro. Nasci, por assim dizer, na sombra da floresta e na sombra das grandes árvores em volta da casa. Até os 12 anos foi esse o cenário onde buscava os brinquedos, alimentava a imaginação e aos poucos foram-se formulando perguntas do tipo: como surgiu esse mundo maravilhoso, como funciona, qual o seu significado, qual a parte que cabe ao homem inserido nele. Evidentemente esses questionamentos não foram formulados tecnicamente naquela fase da vida mas, intuídos e, quase como que “farejados”, na convivência diária com aquele mundo belo e misterioso com as criaturas que nele se movimentavam. Naquela primeira fase da vida aconteceu uma simbiose silenciosa, porém, definitiva entre minha alma e a natureza. Em segundo lugar, três dos meus irmãos escolheram dedicar-se a áreas das Ciências Naturais. O mais velho, o Balduino especializou-se em botânica sistemática e conquistou fama internacional nessa especialidade. O Roberto dedicou-se à matemática, química e física e lecionou essas disciplinas no colégio Santo Inácio onde foi meu professor em 1948 e 1949. Chegou a ministrar semestres de química e bioquímica no curso de História Natural na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo, embrião da futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O Bertoldo escolheu a Ótica como especialidade de preferência. Ainda como ginasiano construiu um telescópio artesanal com tubos de papelão. As lentes foram bancadas por meu pai e nas férias, depois de escurecer, todos reunidos em frente à casa tomando chimarrão, nos revezávamos observando as estrelas, a lua e os planetas. Até minha mãe resolveu matar a curiosidade. Ficou gravado indelevelmente na minha memória a imagem de Júpiter refletida no espelho daquele telescópio, por assim dizer, “enxambrado” por esse meu saudoso irmão que por razões que não vem ao caso, só concluiu o ensino médio e depois foi ser professor na escola primária da comunidade de Harmonia e paralelamente fotógrafo. A esses meus três irmãos envolvidos formalmente em especialidades das Ciências Naturais vem somar-se meu segundo irmão, 20 anos mais velho que eu, o Raimundo. Simples agricultor como meu pai foi o mais próximo a mim dos meus irmãos. Sempre que fosse possível ele pedia para acompanhá-lo quando se embrenhava na mata virgem para localizar árvores, cangeranas, louros, angicos, batingas, cabriúvas, etc. quando faltavam tábuas, madeira de canto, tabuinhas para telhado e outras utilidades. Foi com ele que entrei em contato íntimo com a “alma” da Natureza. Esse meu irmão aos 44 anos vítima de um câncer linfático foi meu instrutor de campo nessa “universidade ao ar livre”.
Depois dessa nota explicativa continuo minhas considerações sobre a disciplina de Ciências Naturais que constava no currículo. O significado mais importante não foram os conteúdos em si mas o Pe. Fridrichs, professor da disciplina. Ele fazia parte dum grupo de jesuítas que tinha como projeto de vida dedicar-se às Ciências Naturais como instrumento de aproximação das Ciências Naturais com a Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. Pertenceram a essa categoria de jesuítas o astrônomo Matteo Ricci e o matemático e astrônomo Adam Schall na China, os dois no século XVII e XVIII, além de muitos outros missionários atuando nas inúmeras missões mantidas pela ordem antes da supressão em 1773. Depois da restauração da Ordem em 1814 a tradição de fazer da Ciência um instrumento missionário foi retomada. Cito aqui alguns nomes diretamente relacionados com os jesuítas alemães, suíços, austríacos e tiroleses vindos para o sul do Brasil partir de 1849. Um dos pioneiros mais conhecidos e mais importantes pela sua obra foi Erich Wassmann, nascido em Moran (Morano) no Tirol do Sul, especialista em formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos e famoso pelos seus embates diretos com Ernst Haeckel, o papa do evolucionismo materialista. Aqui na Missão do sul do Brasil merecem destaque o historiador Pe. Ambros Schupp com seus artigos sobre a fauna e flora da região, os especialistas em fungos Johannes Rick e Ferdinand Theissen. Estes três inspiraram e entusiasmaram toda uma geração de jesuítas nativos para se dedicarem a algum dos ramos das Ciências Naturais para exercer um apostolado indireto. Enumero os que se destacaram de alguma forma na suas pesquisas: Balduino Rambo, Aloísio Sehnem, Maximiliano Krause, Godofredo Schrader, Jacó Racke, José B, Weckering, Nepomuceno Haas, Mathias Schmitz, Pedro C. Beltrão, Pio Buck, Ernesto Maurmann Canísio Orth, Antônio Binsfeld, Pedro I. Schmitz, Joseph Hauser, Pedro Haeser, Clemente Steffen, Guido Wenzel e outros menos conhecidos. Para quem interessar recomendo o livro do prof. Luiz Oswaldo Leite, publicado pela Editora da Unisinos com o título: “Jesuítas Cientistas no sul do Brasil”. Entre eles começava a destacar-se como grande promessa na botânica o Pe. Friederichs. Só para adiantar. Já no ano de 1948 os superiores lhe confiaram a capelania da Comunidade São José em Porto Alegre e, mais tarde, ocupou por duas vezes o cargo de Superior Provincial. Neste meio tempo aprofundou seus conhecimentos sobre o Espiritismo.