[ Reflexões ]

A riqueza, a consistência e a abrangência do Conhecimento, é, diretamente proporcional à quantidade, à diversidade, e principalmente, à qualidade dos estímulos que influíram na sua construção. O conhecimento construído por um físico que não dispõe de outras ferramentas conceituais, teóricas e metodológicas além das específicas do seu objeto de pesquisa, necessariamente será limitado e unilateral. A mesma afirmação vale para o historiador que ignora os dados das áreas complementares como, por ex., a geografia, o filósofo e o teólogo que desconsideram as conquistas das Ciências Naturais. Um grande número de especialistas, tanto no âmbito das Ciências Humanas quanto das Ciências Naturais, isolaram-se entre as quatro paredes dos seus laboratórios ou enclausuraram-se nos seus gabinetes herméticos e estagnaram a um nível deplorável de indigência na sua visão do mundo. Correm o risco real e iminente, cada qual à sua maneira, de engrossar as fileiras dos fundamentalistas e dogmáticos. São os donos da verdade que atormentam com suas posições inegociáveis os participantes de congressos, simpósios e seminários de estudo. Emitem juízos de valor sobre questões da competência de outros campos do conhecimento. Pior. Fecham as portas para um diálogo sem preconceitos, desarmado e humilde. Num clima desses não há condições mínimas para o “Conhecimento” em maiúsculo e, consequentemente, não há lugar para “Sábios” – “Weise”. O máximo que pode acontecer é o surgimento de “conhecedores” – “Kenner”, talvez de tamanho enciclopédico, que impressionam os menos avisados, mas não convencem as pessoas munidas de uma relativa capacidade crítica. 

Na Inglaterra as instituições de ensino fundamental, médio e superior, tiveram o mesmo cuidado com a formação. Empenhavam-se e municiar os alunos com um lastro de conhecimentos capazes de lhes franquear as portas para uma compreensão global do universo, da natureza e, principalmente, moldar um cidadão culto e cultivador dos valores humanos, sociais e cívicos. Como já foi destacado mais acima, neste tirocínio o elemento “pedagógico”, o elemento “educação”, fazia a diferença entre a escola inglesa e os ginásios alemães. A combinação feliz da preocupação pelo conhecimento como conhecimento das instituições alemãs e o compromisso com a formação do cidadão das escolas inglesas, resultou na marca registrada da formação no ensino fundamental, médio e superior norte americano. 

A consolidação do padrão de educação inglesa aconteceu principalmente com a reforma comandada por Newman nas universidades de Oxford e Cambridge. O modelo veio chamar-se “Oxbridge”. O conceito sugere a combinação da proposta mais humanística de Oxford com a mais voltada para Ciências Naturais de Cambridge. O perfil do cidadão modelado nesse figurino vem a ser um “gentelman”. Em princípio não tem muito a ver com o imaginário corrente, quando se caracteriza o inglês, diferenciando-o do alemão, do francês ou do italiano. O modelo “Oxbridge” forma o cidadão do qual se espera que seja, segundo o ideal romano, “vir bonus, peritus dicendi”, o que vem a significar um cidadão “bom, virtuoso, correto, educado, dotado de  conhecimentos sólidos e princípios éticos inegociáveis                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            “Essas virtudes aliadas ao “peritus dicendi”, isto é, dono de um saber sólido e abrangente aliado ao dom de se comunicar com maestria, resultam no autêntico “gentelman”. 

É um fato histórico que os fundadores e/ou refundadores das universidades americanas, foram inspirar-se em grande número na universidade alemã. Acontece que a universidade americana da primeira metade do século XIX tinha sido o resultado paradoxal do valor maior daquela nação: a liberdade. A criação e a condução das universidades entregue à iniciativa, à formação e à criatividade de quem estivesse disposto a bancar um projeto nessa área, terminou em anarquia. Ninguém se entendia. Falar em sistema universitário americano na época, não passava da enumeração de instituições, cada qual com sua proposta, não aro conflitante com as demais. O que menos interessava era a produção do conhecimento e a prática da pesquisa científica e a reflexão séria sobre os temas mais diversos. O estado puro resultante dessa situação, foi caracterizado em 1829, pelo estudante americano em Göttingen, Henry Wadsworth Longfellow. Conforme sua avaliação a universidade em seu país limitava-se a três grandes edifícios de tijolo, uma capela e um reitor rezando nela. O mesmo estudante contrapôs a esse cenário desanimador, o que acontecia em Göttingen. Os professores unidos no mesmo espírito, atraíam os estudantes capazes de os ensinar no regime de Seminário. Nele o professor estava em condições de aprender o que não sabia. Um outro estudante deslumbrado com a universidade que encontrou na Alemanha, descreveu os professores como “indescritíveis instrumentos aptos para todos os tipos de utilidades, dispostos a ensinar topografia e oratória latina”. O posterior fundador da universidade de Cornell estudou em Berlim e lá encontrou o ideal do seu sonho de universidade, não poupando louvores aos seus mestres. Ele mesmo confessou que foi na Alemanha que tomou a decisão de fazer algo em favor da educação na América.

De estudantes isolados na primeira metade do século XIX que buscavam a formação nas universidades alemãs, o número foi-se multiplicando a partir de 1850. Entre 1860 e 1870 cerca de 1000 estudantes partiram para a Alemanha. Na década seguinte foram 2000 e ao logo da segunda metade do século, nada menos do que 10000 americanos formaram-se naquele país. O crescimento do número foi ainda maior entre 1900 e 1914, quando pelas razões conhecidas, cessou por completo durante a Primeira Grande Guerra. Henry T. Tappan, autor do livro “University Education”, falando dos resultados benéficos dessa peregrinação em busca das universidades alemãs, resumiu assim a sua conclusão. A pesquisa científica começou a tomar fôlego e aos poucos a universidade foi-se assumindo como uma instituição na qual o professor, o investigador e o estudante, selavam uma aliança em busca do mesmo objetivo.  (cf. Um Sonho e uma Realidade, 2009, p. 95-96). 

Os resultados concretos não se fizeram esperar. Em todo o território dos Estados Unidos foram surgindo dezenas de instituições de ensino fundamental, médio e superior alimentadas pelo mesmo ideal de excelência, com um acento forte na educação. O MIT – Instituto de Tecnologia de Massachussets, representa um dos exemplos emblemáticos do transplante do modelo da universidade alemã, ajustado às circunstâncias americanas. Voltaremos a esse instituto mais abaixo. 

O Pe. Alfonso Borrero, um dos maiores conhecedores da história da Universidade, resumiu a influência da universidade alemã sobre a americana: “Ainda não foi escrita a verdadeira história dos contatos havidos entre a universidade norte-americana e a universidade alemã, durante o século XIX, afirma Walter P. Metzger. Olhado o fato mais de perto, este fluxo é de uma via só, da Alemanha em direção aos Estados Unidos. (Ascun, 1992,  p. 46)

E o que os norte-americanos procuravam nas universidades alemãs? A resposta também é do Pe. Borrero: Aprender a arte da investigação atuava como um poderoso ímã. Os estudantes dirigiam-se às faculdades de Filosofia, depositárias do saber puro, atraídos pelas disciplinas científicas, para aprender a ensiná-las de forma diferente como se costumava fazer nas faculdades profissionais de Direito, Medicina e Teologia. Procuravam com avidez e de preferência a psicologia, a economia, a física, a química, biologia e as matemáticas. A universidade mais procurada foi a de Berlim (Cf. Ascun – p. 46-47)

E a história da formação superior norte-americana provou o acerto da peregrinação, durante mais de meio século, dos estudantes daquele país para a Alemanha. Contam-se hoje, sem exagerar, às dúzias nos Estados Unidos as universidades com seus centros de produção de conhecimento e institutos de pesquisa de alto nível e desenvolvimento de tecnologias de ponta. Na sua concepção, implantação e consolidação tiveram papel decisivo professores e pesquisadores formados em universidades alemãs. Evidentemente não se tratou de um transplante puro e simples do modelo alemão para a América do Norte. Com a transferência   aconteceu uma inevitável adaptação às novas circunstâncias. Aqui não é nem o lugar nem a ocasião para uma análise mais aprofundada dessa questão. Como exemplo bem-sucedido e representativo merece destaque o famoso “M.I.T – Massachussets Institute of Tecnology”. Trata-se na verdade de um complexo universitário que produz conhecimento de alto nível em todas as áreas, realiza pesquisas científicas pioneiras e desenvolve tecnologias de ponta. Dos seus gabinetes de investigação, laboratórios de pesquisa saíram dezenas de prêmios Nobel. E o segredo? Encontra-se na concepção institucional e acadêmica, materializado inclusive no projeto arquitetônico e localização espacial dos prédios. Tudo começou há mais cem anos, em 1916, com a construção do complexo de prédios, que não sofreu nenhuma alteração até hoje   que afetasse a sua essência. Tanto assim que o “State Center” inaugurado em 2004, reforçou a ideia da colaboração, da interdependência e da interdisciplinariedade das diversas áreas do conhecimento. Numa ponta abriga um laboratório de Inteligência artificial e na outra um departamento de Linguística e Filosofia. O Instituto, embora seja conhecido como de “Tecnologia”, realiza uma proposta curricular interdisciplinar tal que os alunos de todas as áreas e diversas especialidades, são estimulados e de fato têm condições, de apropriar-se de uma formação básica generalista. Preocupado em oferecer aos estudantes uma sólida formação científica, humana e técnica, o Instituto exige que todos absolvam um mínimo de disciplinas de cada uma das grandes áreas. Aliás o próprio projeto arquitetônico de 1916, foi desenhado e executado de tal forma que permite e estimula a circulação e o contato entre as cinco escolas centrais: Arquitetura e Urbanismo, Engenharia, Humanidades, Artes e Ciências Sociais, Administração e Ciência e o complexo da Saúde e Tecnologia.

O modelo da formação a nível médio nos “Gymnasia” e o superior nas “Universidades” alemãs no começo do século XIX, privilegiou dois elementos. Primeiro a apropriação de um conhecimento amplo e genérico no qual as Artes, Letras, Humanidades e Ciências Naturais, participavam numa dosagem equilibrada. Todas gozavam de igual importância e de igual necessidade para a vida. Numa perspectiva interdisciplinar oferecia-se ao estudante ocasião para apropriar-se de uma formação que o preparava, em primeiro lugar, para uma compreensão abrangente e integrada do saber. Em segundo lugar, e principalmente pelo sistema de Seminário, familiarizava-se com as ferramentas teóricas e o aparato crítico indispensável, para aventurar-se na construção de um conhecimento próprio e autônomo. Esse modelo alimentava-se implicitamente na ideia de que o tirocínio na universidade não visa a utilidade prática imediata do conhecimento. Nos Seminários predominava a convicção de que o saber, o conhecimento em si, sem um direcionamento prático, preparava melhor os egressos para a atividade   profissional. Essa mesma convicção aparece no modelo das universidades clássicas inglesas, especialmente de Oxford e Cambridge, que acima tivemos ocasião de conhecer com o modelo “Oxbridge”. Tinham como ideal formar o “gentelman”, o “vir bonus peritus dicendi” do ideal romano.

[ Reflexões ]

Os pressupostos

A lógica da reflexão em curso leva-nos um passo adiante e perguntar pelos pressupostos dos quais alguém precisa dispor para se aventurar com alguma chance para construir o Conhecimento sem adjetivos. Sem pretender estabelecer uma prioridade hierárquica rigorosa, entre outros não podem ser ignorados os que seguem. 

Primeiro. A amplitude e solidez do Conhecimento costuma ser diretamente proporcional à amplitude e solidez da formação e a capacidade de síntese daquele que o produz. Uma formação com essas características somente é possível para aquele que se apropria dela num crescendo harmônico que começa no ensino fundamental, passa pelo médio e culmina no superior. Supõe-se, portanto, uma proposta pedagógica na qual, passo a passo, o aluno encontra condições de apropriar-se dos conceitos, conteúdos e conhecimentos teóricos e das ferramentas metodológicas indispensáveis, para produzir um conhecimento digno desse nome. 

No final do século XVIII a Europa formava as suas elites intelectuais em estabelecimentos de ensino em que vigorava o império da teologia como referência. A primeira geração de universidades, fundadas ainda na Idade Média como Bolonha, Paris e as demais até a Renascença, contavam com a constante vigilância e até tutela da Igreja. Muitos religiosos como Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Tomas de Aquino ocuparam cátedras nessas universidades. Foi especialmente na Teologia que ficou clara a orientação dada pela Igreja àquela área do conhecimento. O Tomismo e a Escolástica tornaram-se a base reitora maior do ensino da Teologia. A Revolução do Pensamento do século XVIII não podia deixar de mexer   profundamente no próprio conceito de universidade. Foi preciso repensar seu papel, e com ele, os objetivos e os métodos.  Em meio a esse processo esboçaram-se três modelos, que em parte continuam até hoje: a universidade latina, a universidade inglesa e a universidade alemã, com as marcas inevitáveis de acomodação aos tempos e circunstâncias históricas.

A Universidade Latina predominou na França, na Bélgica, na Suíça não alemã e nos países latinos: Itália, Espanha e Portugal. Esse modelo tem como marca a profissionalização. A universidade espanhola não passa de uma cópia da francesa. Segundo Alfonso Borrero “mãe e filhos bebemos todos da mesma fonte contaminada da legislação imperial napoleônica de 1806-1808”. Institucionalmente esse modelo universitário sofre de uma forte influência, ingerência, e pior, tutela do Estado. Não há necessidade de provas para perceber claramente esse modelo nas universidades brasileiras. Tanto as públicas quanto as privadas estão pagando um preço cada mais alto, com a perda progressiva da autonomia. A autonomia prevista na Constituição na realidade não passa de uma ficção constitucional. A universidade tornou-se refém das leis, regras e diretrizes impostas pelas autoridades educacionais e seus aparelhos burocráticos.

A Universidade Inglesa exibe como marca definidora a Educação, a formação do cidadão, o “gentelman”. Esse diferencial foi compreensivelmente incorporado nas universidades norte-americanas, inspiradas na sua essência na Universidade Alemã. 

A Universidade Alemã concentra todo o peso na pesquisa científica e produção do conhecimento, a ponto de se constituírem na sua própria razão de ser. O prestígio de uma universidade é diretamente proporcional ao valor atribuído à investigação científica e à produção do conhecimento. Interessa em primeiro lugar, a produção do saber e a pesquisa científica em si. Sua repercussão prática e sua aplicabilidade concreta seguem como consequência lógica num segundo momento. Esse modelo de universidade exige como pressuposto, total autonomia administrativa e acadêmica e um corpo docente altamente qualificado. 

Até o final do século XVIII a universidade era formada por três faculdades: Teologia, Medicina e Direito. Eram hierarquicamente superiores à faculdade de Filosofia que ocupava um lugar   secundário. As três faculdades principais ofereciam os conhecimentos de interesse direto do governo com destaque para a fazenda pública e o bem-estar do corpo com a preservação da saúde. A Filosofia, que se ocupava com a ciência pura tratada com rigor e profundidade, servia apenas de reforço às demais. A partir do começo do século XIX foi-se impondo cada vez mais a convicção de que a missão maior da universidade consistia em impulsionar a produção do conhecimento e promover a investigação científica em todos os campos do saber. O grande aliado e patrocinador dessa maneira de conceber a universidade foi Frederico Guilherme III da Prússia. Para ele a investigação científica e a produção do conhecimento eram valores em si. Em princípio não importava sua aplicação prática. Desinteressado pelos utilitarismos imediatos tornou-se o grande incentivador do trabalho científico criativo e de alto nível. Em outras palavras: antes de mais nada, alto nível e excelência; em segundo lugar utilidade prática. O movimento em favor da nova concepção universitária veio aliada ao ideário romântico e idealista do nacionalismo alemão e fez com que a filosofia, a política, o idealismo, o nacionalismo e o romantismo esculpissem o modelo universitário em gestação. Nas cátedras de Filosofia de Jena, Halle e Erlangen pregava-se a totalidade e indivisibilidade dos conhecimentos. 

Entende-se assim que Bayme, encarregado da reforma da universidade alemã, ao começar a fazer parte do Ministério em 1802, se empenhasse de corpo e alma na montagem efetiva da nova universidade. E para começar o trabalho convidou os intelectuais de maior prestígio da época. Embora Kant não tivesse participado pessoalmente da formulação do projeto, deve-se a ele a exigência de que o centro polarizador e irradiador da universidade até então ocupado pela Teologia, fosse transferido para Filosofia. Compreende-se assim que Bayme convidasse filósofos de primeira linha para a montagem da proposta da nova universidade. Os nomes escolhidos foram os de Friedrich Schleiermacher, Johannes T. Fichte, enriquecidos com as contribuições, dos pedagogos Pestalozzi, Commenius e outros. Na sua concepção teórica a nova universidade alemã teve a sua maior inspiração na proposta de Fichte. Em resumo é a seguinte. A educação prevista na nova universidade consiste na formação destinada, em última análise, ao desenvolvimento da capacidade intelectual do educando, não na formação histórica dessa capacidade, pois esta limita-se à análise das características estáticas dos objetos. Preocupa-se com a capacidade superior filosófica que leva o conhecimento das leis que fazem com que as coisas tenham necessariamente as características que de fato têm. É desta maneira que o educando “aprende”. Uma vez formada essa “genuína tendência para aprender”, sem demora estimula o educando, convertendo-a na base de todo o conhecimento.  Desse pressuposto origina-se, como consequência natural, um conhecimento geral de todo necessário, transcendental e, com certeza superior a toda a experiência e reúne em si, de antemão, todas as potencialidades das experiências posteriores.  A nova educação preocupa-se com a compreensão do que descobre e une. O aluno percebe-se estimulado pelo amor à ciência, pelo fato de compreender toda uma coerência vinculada com a ação e a prática. Nessa perspectiva a universidade oferece o ambiente na qual o conceito da verdade é realizado como exigência        institucional. A estrutura da universidade deve refletir unidade orgânica do conhecimento. Deve superar a mera erudição e especialização e confiar à Filosofia o papel de regente de uma orquestra interdisciplinar.

A lógica da reflexão em curso leva-nos a dar mais um passo adiante e perguntar pelos pressupostos, que oferecem as condições para que alguém seja capaz de se apropriar do conhecimento que mereça esse nome. Sem pretender estabelecer prioridades hierárquicas rigorosas, entre outros não podem ser ignorados os seguintes. 

Primeiro. A amplitude e consistência do conhecimento costuma ser diretamente proporcional à amplitude e à solidez da formação e da capacidade de síntese daquele que o produz. Encontramos essa pré-condição no modelo de formação institucionalizado, tanto no ensino fundamental, como no médio e superior, na Europa Central, com destaque para a Alemanha, a Inglaterra e as universidades do Estados Unidos da América do Norte. 

Na Alemanha os famosos “Gymnasia” municiavam os jovens estudantes com uma ampla base de formação filosófica, clássica, literária e científica, capaz de lhes abrir as janelas para o vasto universo do conhecimento. E não eram poucos os exemplos em que os egressos dos Gymnasia  levavam, como primeiro titulo de nível superior o de Filosofia, História, Línguas e Literatura Clássica ou Moderna, para depois se dedicarem a uma especialidade  no complexo campo das Ciências Naturais. A confirmação encontra-se nos currículos de não poucos portadores do prêmio Nobel nas diversas áreas científicas ou nos currículos de muitos outros nomes referência, nas respectivas especialidades. Representantes emblemáticos desse perfil de cientista são Erich Wassmann, o homem das “Formigas e Térmitas”, Teilhard de Chardin, o homem do “Fenômeno Humano”, Ludwig von Bertalanffy, autor da “Teoria Geral dos Sistemas”, Adolf Portmann, com seus estudos sobre “Intercomunicação entre Animais”, o próprio Darwin que exibe em seu currículo estudos de “Teologia”, Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, Edward Wilson com sua obra “A Criação – um apelo par salvar a vida na terra”  Seria longo demais listar os muitos outros com seus nomes consagrados pelos estudos e pesquisas especializadas a que se dedicaram. 

[ Reflexões ]

Reflexões sobre o
Conhecimento como síntese

Considerações introdutórias

Falar em conhecimento importa em arriscar-se a lidar com um desses conceitos, passíveis de tantos e tamanhos entendimentos ou definições, que a pretensão de dar uma formulação compreensiva mínima, não é nem fácil nem simples. A primeira questão que se coloca é a pergunta por onde começar, ou a pergunta: de que conhecimento estamos falando? Conhecimento científico, conhecimento filosófico, conhecimento teológico, conhecimento popular, conhecimento instintivo, conhecimento racional, conhecimento intuitivo, conhecimento primitivo, conhecimento moderno, etc. Como se pode ver, todas essas formas de conhecimento e outras que lhe possam ser acrescentadas, partem de objetos, níveis, ângulos e métodos de aproximação diferentes. Se, portanto, optarmos por um deles como ponto de partida do nosso raciocínio, as conclusões a que chegarmos serão inevitavelmente unilaterais, parciais e fragmentadas. Em qualquer uma das situações a escolhida sinalizará o caminho pelo qual o conhecimento deverá andar e, ao mesmo tempo, determinará o seu próprio perfil teórico e metodológico. Assim o conhecimento teológico sempre será essencialmente teológico embora incorpore na sua estrutura mais ou menos subsídios buscados em outras áreas como a filosofia, as ciências naturais, a tradição. O mesmo pode-se afirmar de todas as demais áreas de conhecimento específico. Assim quando se fala em Teologia Natural, Filosofia Natural, História Natural, Física Atômica, Economia de Mercado, Matemática Financeira, Sociologia Urbana, História Medieval, Antropologia Social, etc., etc., o objeto especificado no adjetivo terá o seu conteúdo tratado com as ferramentas teóricas e metodológicas sugeridas pelo substantivo. Em outras palavras. O caminho da aproximação para a investigação e a compreensão de algum objeto, é aquele previsto no arsenal de instrumentos próprios da área definida pelo substantivo. Assim a aproximação da Natureza é possível pela via filosófica, pela via matemática, pela via química, pela via biogenética, pela via teológica, pela via econômica, pela via histórica e assim por diante. Essa constatação leva sem mais a uma série de conclusões. A via de aproximação de algum objeto tem o seu traçado definido pelo olhar e as ferramentas próprias de cada ponto de vista a partir do qual se começa a investigação. Assim a abordagem pelo viés de um matemático com seus cálculos e fórmulas, trairá sempre o olhar do matemático que orienta e empresta significado aos resultados. Da mesma forma a análise da composição química, a observação microscópica, a evolução histórica, a inserção no contexto natural, etc., deixarão transparecer como pano de fundo e razão de ser o olhar do químico, do biólogo, do historiador, do ecologista ou de outros especialistas e especialidades. Sendo verdadeiros os passos da reflexão que viemos fazendo, abre-se um leque de novas reflexões importantes para avançar um pouco mais sobre a natureza do conhecimento. 

A multiplicidade do conhecimento. 
Tanto pela sua natureza quanto pelo nível, certeza e profundidade, o conhecimento é múltiplo. Falar em natureza do conhecimento significa sem mais nem menos aventurar-se num território, não digo minado, mas sem dúvida motivo de não pouca polêmica.  O conhecimento pode ser dividido em científico, filosófico, teológico, popular, intuitivo, condensado, subliminar, instintivo. Não há necessidade de chamar a atenção de que essa afirmação nos expõe a uma saraivada de discussões. Com que credenciais, o biólogo encastelado em seu laboratório questiona o historiador, ou o filósofo e o teólogo atrevem-se a opinar sobre questões de biogenética, quando a ciência está a demonstrar que as incógnitas que esse campo ainda oferece, em princípio são passíveis de resposta pelos métodos e técnicas disponíveis. Segundo os cientistas, as questões relacionadas com a estrutura, a composição, a dinâmica e as potencialidades da matéria, esgotam-se e resolvem-se perfeitamente por meio das diversas vias de aproximação que a física, a química a biologia e suas ramificações, põem à disposição do pesquisador. Para eles a presença do filósofo só vem tumultuar o cenário quando coloca reparos e pior ainda, quando põe em dúvida a consistência das conclusões que emanam dos laboratórios. De qualquer forma suas eventuais contribuições complicam e embaralham mais do que contribuem. No momento em que um cientista chega à conclusão de que a solução de questões realmente de fundo  desafiam seriamente os potenciais do arsenal das tecnologias de investigação e sinalizam para outras vias de aproximação do problema, seu esforço científico e seus resultados, correm o risco de serem desqualificados ou postos em dúvida pelos seus pares. Os exemplos contam-se às dúzias. Os rótulos de “visionário”, “romântico alienado”, ou a provocação para formular “a verdadeira pergunta”, o que pode ser entendido como algo de que “o homem não é sério”, não são aros. Esse tipo de observação teve endereços como Teilhard de Chardin, Erich Wassmann, Balduino Rambo, Francis Collins e uma série de outros. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Não é aqui o lugar nem a ocasião. O mesmo problema percebe-se quando um cientista com os dados objetivos observados na natureza, comprovados com seus cálculos ou demonstrados em seus experimentos em laboratório, aproxima-se do filósofo ou teólogo e lhe sugere a revisão de alguma conclusão ou a reformulação de algum conceito que discorda dos fatos objetivos. 

Se no plano do conhecimento científico e filosófico, que afinal se valem de métodos consagrados, aceitos e respeitados, manifestam-se em larga escala problemas de mútua legitimação dos resultados, o que esperar dos outros níveis. O conhecimento popular é elaborado à margem de teorias e métodos “científicos” e que não resulta de hipóteses comprovadas pela lógica e pelo raciocínio. Nem por isso deixa de ser um verdadeiro conhecimento. Aliás se procurarmos pela fonte, pela raiz do conhecimento científico e filosófico, iremos encontrá-la entre os caçadores, coletores, pastores e agricultores da pré-história. Valendo-se das ferramentas de que dispunham foram consolidando os corpos de conhecimentos que lhes foram vitais para a sobrevivência. Observando, comparando, distinguindo, selecionando, descartando, experimentando, os homens de então criaram   condições cada vez mais sólidas, para continuarem com êxito a sua ascensão histórica. 

A gênese e a dinâmica que deu forma às incontáveis modalidades de conhecimento que podem ser identificados no decurso da história, tem como ponto de partida, raiz ou fonte, a natureza humana com sua capacidade de dar respostas reflexivas e ou reflexas e, ao mesmo tempo, instintivas e intuitivas, aos estímulos vindos do meio físico-geográfico em que aconteceu a respectiva trajetória. Estamos obviamente diante de um desafio de razoáveis proporções. A afirmação de que o homem adquiriu e ainda adquire um conhecimento digno desse nome, com os elementos que a sua capacidade instintiva e reflexa lhe oferece, desperta no mínimo desconfiança e incredulidade em cientistas acostumados a lidar com instrumentos de precisão. Não menos reticente se mostrará o filósofo que só confia na lógica dos seus raciocínios e nas conclusões indiscutíveis dos seus silogismos. Para ambos as certezas de que os instintos, as intuições, os sentimentos, as sensações, são capazes de oferecer, não têm as condições de   segurança e confiabilidade, exigida por um conhecimento digno desse nome.

Cabem aqui algumas considerações. Primeiro. A Renascença mexeu fundo nos conceitos filosóficos, teológicos, artísticos e científicos do mundo medieval. E dessa forma preparou o terreno para que os fundamentos conceituais e metodológicos das assim chamadas “Ciências Modernas”, começassem a tomar forma e consolidar-se no decorrer da segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX. Definiram-se nesse período, os grandes campos das Ciências Naturais: da Matemática, da Química, da Física, da Geologia, da Paleontologia, da Biologia, da Astronomia, da Botânica, da Zoologia e dos seus subcampos. Ao mesmo tempo   operou-se no nível das ideias, uma autêntica revolução do pensamento, que terminou na cosmovisão do homem moderno. Paralelamente sucederam-se num ritmo cada mais acelerado as conquistas a nível de tecnologia. Assim estava sendo armado o cenário sobre o qual a modernidade se imporia com toda a sua pujança. Numa dinâmica em que, de um lado a tecnologia oferecendo aparatos cada vez mais potentes e precisos, proporcionava à Ciência resultados também cada vez mais diversificados e mais exatos e do outro lado a Ciência exigia sempre mais da tecnologia. Foi assim que Ciência e Tecnologia numa dinâmica de mútua aceleração, moldaram o fundamento material da Modernidade. Mas não se pode ignorar que a Ciência e a Tecnologia contaram com um parceiro não menos poderoso na Filosofia, responsável pela cosmovisão moderna. 

Quem intuiu e formulou com rara felicidade a complementariedade entre os dados oferecidos pelas Ciências Naturais e pelas Ciências do Espírito, foi Erich Wassmann. Ele foi um desses representantes emblemáticos de especialista que contou em seu currículo com uma sólida formação clássica, filosófica, teológica e científica. Munido com esse cabedal de conhecimentos mergulhou, como nenhum outro, nem antes nem depois dele, nos complexos mecanismos que regem o bom funcionamento das colônias de formigas e térmitas. Não se limitou a fazer um inventário do que observava, dar-lhe um tratamento estatístico, desdobrar em seus elementos estruturais essas colônias, identificar as classes de indivíduos e sua mútua interdependência e a relação simbiótica com determinados fungos. As descobertas que se foram acumulando, na medida em que os métodos científicos se aperfeiçoavam, assumiram contornos mais amplos, iluminados pelo olhar próprio das Ciências do Espírito. E por esse duplo caminho Wassmann definiu, com o andar do tempo, sua síntese do universo e da natureza. Ela permite vislumbrar a possibilidade de uma harmonia entre as duas aproximações teóricas e metodológicas, por não poucos tidas como impossível. Erich Wassmann valeu-se de dois conceitos que facilitaram e facilitam ainda hoje a harmonização entre os resultados das Ciências Naturais e as Ciências do Espírito: “Weltbild” e “Weltauffassung” ou a “imagem visível, o retrato do mundo” e “a cosmovisão, o significado” do mundo. 

Cabe às Ciências Naturais fornecer os dados objetivos, materiais e concretos para retratar a natureza e dar forma ao “Weltbild”. As Ciências do Espírito encarregam-se de compor esses dados numa unidade que expressa um significado ou significados que   vão além da simples soma, agregação e incorporação dos dados objetivos. É a “Weltauffassung”, a “Cosmovisão”. A metáfora de um quadro pintado talvez esclareça melhor. Na pintura de um quadro as tintas, as cores, a tela, os pinceis, etc. são os elementos que compõem o “Weltbild”, isto é, a imagem desenhada num determinado momento do estado da arte, ou se quisermos a imagem real e possível com os dados científicos disponíveis num determinado momento. O artista combinando cores, tonalidades, luzes e sombras, contornos, panos de fundo, etc., etc., confere sentido, significado ao quadro, de acordo com sua “cosmovisão” – “Weltaufassung”. Pela sua própria natureza, tanto o “Weltbild” quanto a “Weltauffassung”, encontram-se em permanente transformação, reformulação e resignificação. O “Weltbild” muda de figura na mesma cadência em que as Ciências Naturais revelam novos dados, tornam os existentes ultrapassados e assim se obrigam a redesenhar sem parar a realidade – o “Weltbild”. Os responsáveis pela “Cosmovisão” – a “Weltaufassung”, atentos à dinâmica das Ciências Naturais, abandonam significados, reformulam outros e imprimem novos rumos à compreensão do universo e da natureza. 

O redesenhar do “Weltbild” estimulado pelas  novas descobertas científicas e o repensar da “Weltaufassung” por elas estimulado, garantem o clima propício no qual a produção do conhecimento encontra condições para prosperar. E para que essa emulação possa acontecer requer-se, tanto das Ciências Naturais quanto das Ciências do Espírito, uma boa dose de humildade e espírito desarmado. O cientista dedica-se ao seu trabalho com a consciência prévia de que seus métodos e seus instrumentos são de alcance limitado. O filósofo põe-se a formular e a reformular a sua cosmovisão, valendo-se dos dados que a Ciência vai acumulando. Convenhamos não é tarefa para qualquer um. É fundamental o pressuposto de que na construção do conhecimento entram em proporções variáveis conhecimentos parciais oriundos de diversas fontes. Em outras palavras e retomando o que sinalizamos mais acima, o verdadeiro Conhecimento com letra maiúscula é aquele que não vem acompanhado de adjetivos. É o Conhecimento puro e simples “das Wissen schlechthin” diriam os alemães. O sábio, portanto, é aquele que se apropriou de alguma forma do “Conhecimento simplesmente” do “Wissen schlechthin”. Há uma enorme diferença entre um “Sábio”, um “Weise” e um conhecedor, um “Kenner” ou um especialista, um eclético, um dono de memória e conhecimento enciclopédico. O “conhecedor”, o “Kenner”, domina uma área específica do conhecimento, uma fatia expressa pelo adjetivo: conhecimento científico, conhecimento botânico, conhecimento genético, conhecimento histórico, conhecimento religioso, conhecimento popular etc., etc. O “Conhecimento” sem adjetivo e com letra maiúscula que confere a seu portador “Sabedoria” – “Weisheit”, consiste na síntese, na amálgama, entre os dados fornecidos por conhecimentos parciais e adjetivados. A síntese sugere o encontro dos conhecimentos parciais, adjetivados, que num processo dinâmico de complementariedade, levam a uma compreensão nova que vai além da soma das partes. A síntese não anula a natureza dos elementos que entram na sua composição, mas os ressignifica em função de um todo que resulta na interação e composição complementar. O cobre e o estanho continuam sendo cobre e estanho ao se combinarem numa proporção que varia de acordo com a finalidade do bronze que é a amálgama entre os dois. Aparentemente a amálgama não se parece com os dois metais que a compõem. Não brilha nem como cobre nem como estanho. Sua dureza e ductilidade nada tem em comum, nem com o cobre nem com o estanho. Salvaguardadas as diferenças e as peculiaridades, a amálgama parece um recurso adequado, para entender melhor o que seja o Conhecimento. A participação dos conhecimentos parciais ou setoriais no processo de síntese, resultam à maneira de uma amálgama na produção do Conhecimento. O resultado é uma realidade qualitativamente diferente de cada componente individual, sem, contudo, alterar ou anular a natureza e as características das partes. A cor, a ductilidade, a maleabilidade e a dureza do bronze, não alteram a natureza química e física do cobre e do estanho. Integram-se, isso sim, numa nova realidade. Um fenômeno análogo acontece com a produção do Conhecimento. O único Conhecimento digno de ser chamado de Síntese é aquele que resultou da confluência, seguida de uma “amálgama”, da maior quantidade, diversidade e qualidade de conhecimentos parciais. A densidade e a consistência do Conhecimento, portanto, é diretamente proporcional à quantidade e à qualidade dos elementos que entraram na sua construção.

[ Reflexões ]

Apresentação

As páginas que seguem oferecem aos interessados uma coletânea de reflexões que me acompanharam no dia a dia da minha trajetória acadêmica de quase 70 anos. Como professor titular emérito de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a referência das reflexões foi centrada no desvelar e tentar compreender o homem e a humanidade nas suas diversas dimensões. A minha formação acadêmica explica de alguma maneira o objeto das reflexões que seguem e, principalmente, a abordagem interdisciplinar pela qual são apresentadas. Possuo bacharelado em Línguas e Literatura clássicas, bacharelado em Filosofia, Bacharelado em História Natural e Geologia e licenciatura em Teologia. Além disso sou Livre docente em Antropologia e Doutor em Filosofia pela PUCRS e com pós-doutoramento em Antropologia pela Universidade V - René Descartes de Paris.  Pode até parecer exibicionismo da minha parte enumerando todos os meus títulos acadêmicos, por isso dou a mão à palmatória. Tenho a impressão, porém, que, a lembrança é importante para justificar tanto os temas escolhidos para as reflexões, quanto a sua forma de apresentação. O “objeto” da Antropologia ocupa-se com estudo do homem. Qualquer pessoa minimamente instruída, inclusive os não letrados intuem que nos deparamos com uma realidade de extrema complexidade. Embora as Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e Artes, tenham penetrado fundo em todas dimensões, a natureza humana continua sendo um mistério a desafiar os métodos científicos e os esforços dos especialistas, assim como biólogos, filósofos, teólogos, historiadores, sociólogos, psicólogos, médicos e demais especialidades  direta ou indiretamente interessadas em procurar respostas para a natureza ontológica do homem.  

Parece que a complexidade  do desafio já foi definido pela filosofia antiga ao resumi-lo na conhecida formulação: a espécie humana existe como os minerais, existe e vegeta como os vegetais, existe e vegeta e sente como os animais, existe, vegeta e sente, tem consciência, sabe e conhece  como os animais, porém,  distancia-se e coloca-se num patamar acima e além dos demais, pela Inteligência Reflexa ou, em outras palavras pela capacidade de Refletir. Ainda em outras palavras. A espécie humana está inserida existencialmente na litosfera, na biosfera, na atmosfera, mas, pela inteligência reflexa distancia-se das demais espécies dando origem à Noosfera. O nível de conhecimento que hoje temos do mundo animal, mais especificamente das categorias taxonômicas mais evoluídas, autoriza atribuir a elas alguma forma de consciência e inteligência. Por isso mesmo que os animais embora tenham inteligência e consciência do que está acontecendo em sua volta, falta-lhes um atributo exclusivamente humano que, resumido, pode ser conceituado da seguinte forma: O animal sabe e tem consciência do que está acontecendo em seu derredor, o homem além de saber e ter consciência, pela capacidade reflexiva, é capaz de entender o “porque” do  seu saber.

Sobre esse panorama como fundo, decidi-me a colocar no papel uma série de reflexões que ocuparam não poucos momentos, para não dizer incontáveis horas dos 60 anos dedicados ao fascinante campo da Antropologia, a ciência que tem como objeto formal o Homem nas suas diversas dimensões como espécie biológica, isto é, “nascido  da terra” e que lhe confere as características de uma espécie taxonômica como todas demais e lhe oferece os meios de sobrevivência e perpetuação biológica. Em sendo assim, consolida-se uma autêntica simbiose entre a alma humana e o meio geográfico em que constrói suas culturas e dimensiona e direciona as peculiaridades da história de cada povo. 

Os textos que seguem não são apresentados no formato de um livro convencional com os   capítulos organicamente alinhados. Vem no formato de “Reflexões avulsas”, mas, com o objetivo subliminar de chamar a atenção que a plenitude do conhecimento do homem envolve uma complexidade e uma multiplicidade de abordagens que se complementam em busca da verdade:  donde vem, porque está aqui e qual o sentido, qual a razão da sua existência e qual é seu destino final. As respostas para essas interrogações são possíveis sob a condição de todas as áreas do conhecimento se darem as mãos, intercambiarem resultados e, num esforço interdisciplinar sincero e isento, avaliarem os resultados produzidos pelas Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. Uma das reflexões que seguem leva o título que resume em quatro palavras o tamanho do desafio: “Doctrina multiplex, Veritas una” ou “As Doutrinas são muitas, a Verdade uma só”.

O Brasil como Império Independente

Georg Anton von Schäfer
Tradução, apresentação, notas e edição de Arthur Bl. Rambo
 
Editora UFSM

 

A versão em português do livro do major Georg Anton von Schäfer vem ao público 183  depois da sua edição em alemão, em Altona, Alemanha, em 1824. Trata-se provavelmente de uma obra desconhecida pela grande maioria dos historiadores. Entre outras razões permito-me apontar as seguintes. A obra foi publicada em alemão e holandês e sua circulação não parece ter sido de grande abrangência. Na apresentação da obra não consta o número de exemplares impressos e, de mais a mais, só se conhece uma única edição. Um segundo fator de não pouca importância é de que foi escrita por um autor que não consta no rol dos obrigatoriamente citados como referência para os anos que antecederam imediatamente a independência, a própria independência e os começos do Império do Brasil. Um terceiro motivo relaciona-se com o reduzido número de exemplares localizados pelo mundo afora. Da edição alemã, salvo melhores informações, um encontra-se no Instituto Ibero-americano de Berlim, um segundo no Institut für Auslandsbeziehungen (IFA) de Stuttgart,  um na British Library, um em Berna, um na Dinamarca, um em Hessen, um na BSW da Alemanha, um na USP, um na Biblioteca Nacional e um na Biblioteca  da Unisinos. Uma edição em holandês encontra-se na  universidade de Lovaina. Outros exemplares que, por ventura, existam pelo mundo afora não foram localizados numa pesquisa pela internet.

A obra de Schäfer tem como pano de fundo um período relativamente curto da História do Brasil. Se, porém, de um lado cobre poucos anos, 1818-1823, de outro retrata  um Brasil que supera a condição de colônia de Portugal para tornar-se um império independente. Não se  requerem grandes provas que uma transformação de tamanho alcance viesse acompanhado de tensões de todos os tipos oriundos de todos os planos, tanto públicos quanto privados. Na medida em que o desfecho da independência se avizinhava e se tornava  inevitável, os ressentimentos, os descontentamentos, as manifestações de revolta contra os colonizadores assumiam proporções de rebelião. Do lado de Portugal e dos portugueses, recorria-se a todos os meios, também à violência, para impedir o inevitável. E, pode-se afirmar que a tutela se deu no mais autêntico estilo colonial. Valendo-se de leis, dispositivos e regulamentos específicos, Portugal submeteu a colônia a um regime de exploração predatória dos seus recursos naturais. As riquezas minerais como ouro, prata, diamantes, principalmente, alimentavam o erário. Madeiras e outras essências vegetais abasteciam os mercados de Portugal que, por sua vez, os negociava com exclusividade com os demais mercados da Europa. Paralelamente à falta de autonomia política e os entraves interpostos ao livre comércio, bloqueavam qualquer veleidade de usufruir as próprias riquezas. Embora a situação tivesse melhorado sensivelmente após a vinda da família real, a abertura dos portos e a elevação do Brasil colônia à condição de Reino  Unido, ao começar a década de 1820, as cortes de Lisboa tramavam uma autêntica recolonização do Brasil, com todas características anteriores a 1808.

A obra que ora apresentamos mostra um Georg Schäfer bastante diferente daquele que é normalmente pintado pelos relatos  sobre a imigração alemã no Brasil. O Schäfer agenciador de imigrantes, pouco escrupuloso nos métodos e por vezes rotulado como “mercador de almas”, aventureiro e aproveitador de situações favoráveis, aparece aqui numa perspectiva bastante diferente e bem mais favorável. Não que as acusações que lhe são feitas não tenham fundamento. O que acontece que nas linhas e entrelinhas de “O Brasil como Império independente, ele se  revela como um homem viajado, culto, dotado de grande interesse pelas coisas que observa, tanto nas suas viagens internacionais como naquelas realizadas para o Brasil. E a atenção não fica restrita a um ou outro aspecto. Ao seu agudo  espírito de observação não escapa nada, tudo merece a sua atenção, seus comentários e suas apreciações. Viajou pelo mundo e pelo Brasil de olhos abertos tanto para a história, quanto para a política, as características  sociais, culturais e religiosas e, de modo especial, para a geografia, para as riquezas minerais, recursos vegetais, animais, vias  e modalidades de transporte, potencialidades econômicas, sem deixar de lado considerações sobre possibilidades de imigração não lusa  para  as regiões pouco ou nada povoados do país. Na sua obra Schäfer dedicou o capítulo 13 relativamente curto à questão da imigração. Resume-se em apontar condições prévias para uma imigração bem-sucedida além de pontos importantes a que os candidatos à imigração deveriam prestar atenção. Entende-se pois, o livro foi escrito antes de começar o fluxo migratório para o sul do país. As tentativas até então feitas resumiam-se a três assentamentos de alemães na Bahia: A Colônia Leopoldina, A Colônia de São Jorge de Ilhéus e Frankental.

Depois de sua terceira viagem ao Brasil Schäfer decidiu radicar-se definitivamente no país. Foi incorporado  na guarda pessoal do Príncipe Regente e, depois da independência do Imperador D. Pedro I. Dessa posição privilegiada, acompanhou de perto todos os acontecimentos que antecederam, envolveram e seguiram imediatamente o decisivo momento histórico para o Brasil. Compreende-se que, devido à sua posição na guarda palaciana, aproveitasse todas as oportunidades e facilidades proporcionadas pela proximidade com  a Imperatriz Leopoldina e D. Pedro e não se referir aos deslizes aventuras extraconjugais  do monarca. É indiscutível também que tal testemunho ocular e o envolvimento direto no cotidiano da família imperial, comprometem de alguma forma a objetividade. É inevitável que  não se tome partido e paixões do momento se imponham, aparecendo mais nas entrelinhas do que propriamente nas linhas do autor. No caso do major Schäfer, esse lado da questão assume proporções e características peculiares. Na condição de oficial da guarda da Corte Imperial, passava as 24  do dia na proximidade imediata da vida palaciana, para não dizer da intimidade da família imperial. Entende-se, assim, a preocupação do  autor em mostrar aos leitores uma imagem idealizada do casal imperial, dos filhos e da rotina diária da Corte e silenciar sobre as sombras que obviamente havia.

Para concluir. O que importa é que “O Brasil como Império “Independente” retrata as impressões de uma testemunha presencial dos acontecimentos que envolveram o Brasil no momento do nascedouro como um país  independente. As informações nele contidas saíram da pena de um homem, dono de conhecimentos gerais de alto nível para a época, além de muitos dados e informações dificilmente encontráveis em outra parte. Suas avaliações e seus juízos de valor devem ser vistos, tomando como pano de fundo, o seu envolvimento pessoal nos acontecimentos dos quais trata a obra.

Bicentenário da Imigração - 80

Depois dessas colocações de caráter mais teórico vem a pergunta se, consideradas as circunstâncias concretas, a realização do sonho de paisagens humanizadas inspiradas na combinação dos dois trinômios que formulamos acima, é exequível? Fiquei horas empacado procurando uma resposta para esse questionamento. A proposta feita há 50 anos pelos técnicos alemães para a valorização do vale do rio dos Sinos prova a sua validade em dezenas de pequenos municípios emancipados de então para cá em todos os vales dos rios que confluem para formar o Guaíba. Embora não se tenha feito um planejamento  técnico como o descrito acima a maioria desses municípios desenvolveu-se de forma muito parecida com o modelo desenhado tecnicamente para o vale do Sinos. Têm em comum que sua população na média não chega aos 10.000 habitantes. As sedes urbanas contam com uma infraestrutura administrativa enxuta e eficiente confiada a prefeitos, vereadores, funcionários e técnicos, que têm como prioridade o progresso e o bem-estar da população. Os desvios desse objetivo e a prática de atos de corrupção, se ocorrem, são exceções e de proporções até toleráveis. A população conta com postos de saúde bem equipados, a cargo de profissionais treinados e, em casos de cirurgias e situações de maior gravidade, as prefeituras dispõem de ambulâncias para levar os pacientes aos hospitais  regionais e a Porto Alegre quando o caso o requer. A educação costuma ser, a par da saúde, a preocupação maior das administrações municipais e da população em geral. Para tanto dispõem de uma rede de escolas que vão do maternal até o ensino médio. O transporte escolar  eficiente atende os alunos, as professoras e professores são relativamente bem pagos e os prédios e instalações adequadas a um ensino de qualidade. Ha exemplos em que municípios investem  até 30% dos seus recursos na educação. Não podem faltar salões de festa, para casamentos bailes e comemorações de datas importantes como os aniversários das emancipações. Há municípios que dispõem de museus e centros de eventos. Os Kerbs fazem parte do calendários onde predominam os descendentes de imigrantes alemães. As estradas municipais em muitos casos costumam ser asfaltadas até os limites dos municípios, facilitando a circulação  das mercadorias e pessoas. Mas, o que mais se destaca é o complexo da atividade econômica. Nas sedes, as antigas casas de comércio, as lendárias “vendas”, foram substituídas por lojas especializadas bem ao estilo urbano. Pequenas, médias e até indústrias de porte maior oferecem um número significativo de postos de trabalho. No interior desses municípios a típica policultura familiar de subsistência deu lugar a atividades mais seletivas, tornando obsoleto todo o complexo de instrumentos e ferramentas tradicionais. Arados de bois, moendas de cana, carroças de bois, machados, serras manuais e até enxadas e machados, máquinas de costura manuais ou com pedais, são hoje, em grande parte, artigos de museu. Com a chegada da eletricidade tudo foi substituído por ferramentas que tornaram a produção rural muito mais produtiva e muito menos penosa do que das gerações passadas. Motosserras dispensaram o machado e o traçador, roçadeiras, micro-tratores e  tratores de maior porte dispensaram os arados e as juntas de bois, carros, motos e caminhões tomaram o lugar das  carroças  puxadas por bois, cavalos ou mulas. Em vez de montarias as pessoas deslocam-se em automóveis que já não são mais motivo de ostentação e riqueza mas, fazem parte das utilidades normais da imensa maioria das pessoas, também do meio rural. Como já afirmamos mais acima, a produção rural tornou-se mais seletiva e especializada para atender ao mercado regional, estadual, nacional e até internacional.   Dezenas de aviários  alinham-se nas encostas dos morros acomodados no meio de árvores nativas  e em não poucos casos rodeados pela mata secundária em constante avanço. Abastecem o mercado estadual, nacional e internacional. Famílias inteiras, filhos ou netos de antigos agricultores encontram trabalho rentável  e, ao mesmo tempo, saudável nesse ramo de atividade amparados por tecnologias de última geração no manejo de frangos de corte e galinhas e/ou perdizes de postura. A suinocultura intensiva valendo-se também de tecnologias de ponta como a seleção genética de raças mais apuradas, inseminação artificial, alimentação balanceada,  assistência veterinária, higiene e destino dos dejetos, substituíram a criação suínos destinados  a suprir as necessidades das famílias. Como no caso da avicultura a suinocultura destina-se ao atendimento das demandas regionais, nacionais e do mercado internacional em constante crescimento quantitativo e com exigências qualitativas  cada vez mais rigorosas. Esse setor de atividade oferece um mercado de trabalho difícil de dimensionar além de perspectivas para evitar que muitos jovens nascidos no meio rural se deixem iludir com os encantos das oportunidades oferecidos pela vida urbana. Um ensino fundamental e médio que inclua em suas programações o alerta pelas oportunidades e a realização de uma vida sadia e digna no meio rural de hoje, pode evitar que muitos jovens traídos pela fantasia de uma vida fácil e cômoda nas cidades, terminem subempregados, mal empregados e desempregados, expostos a todos os riscos que infestam os bairros periféricos. Os administradores dos municípios, os conselhos comunitários, as autoridades e agremiações religiosas e outras tantas, têm condições de prestar um serviço de valor incalculável para as futuras gerações, conscientizando, propondo iniciativas e propondo soluções concretas. As escolas agrícolas de nível médio podem ser multiplicadas formando técnicos na produção de hortigranjeiros orgânicos, fruticultura, suinocultura, avicultura, floricultura, silvicultura e por aí vai. E já que o público consumidor e legislação e controle sanitário e o manejo dos reflorestamentos e a proteção da mata nativa, exigem conhecimentos especializados, abre-se espaço para egressos das escolas superiores de agronomia, veterinária, engenharia florestal e similares. 


A educação, a conscientização, a formação técnica em todos os níveis e o  acesso às tecnologias e métodos de última geração, não mudou apenas o rendimento e a qualidade dos produtos, como também uma  paisagem físico geográfica inimaginável há 80 anos passados. A policultura à base da enxada e do arado de bois nas  encostas pedregosas e muito íngremes foi  abandonada e entregue  ao avanço da vegetação nativa. Já nos referimos a esse fenômeno em outa ocasião mais acima. Vai se formando uma floresta secundária muito parecida na sua composição e formato àquela original e intocada que os imigrantes encontraram ao desembarcarem e se fixarem nessas paragens. Em não poucos casos, no fundo dos vales mais estreitos essa recuperação florestal já desceu até os arroios formados pelos muitos córregos que descem dos morros. Um outro efeito extremamente benéfico desse florestamento espontâneo consiste na retenção da água das chuvas aumentando a vasão das fontes e córregos e fazendo reaparecer fontes que haviam secado depois do desmatamento. Na medida que a nova floresta avança horizontalmente e se avoluma verticalmente vai-se confundindo com as manchas de floresta virgem original que sobreviveram nas coroas e nos topos dos morros. E, na medida em que a floresta secundária se espalha e avoluma, as espécies de aves, mamíferos, répteis, batráquios e insetos, que não foram  extintos, saem dos seus refúgios e voltam a povoar a nova “casa”, enchendo-a com a sinfonia dos seus cantos, assobios, gritos, pios, roncos e urros. A proibição da caça anima pássaros, mamíferos, répteis e outras espécies a se aproximarem das moradias e por assim dizer, conviver em harmonia e comunhão com o homem e seus animais domésticos. A grande maioria das espécies de aves originais e mamíferos, exceto a onça, o puma  e a anta, encontram tranquilidade nos terrenos acidentados de inúmeras áreas abandonadas, impraticáveis para a produção agrícola nos moldes da demanda de alimentos de hoje. A floresta reconquistando o seu espaço nos declives dos morros e montanhas, as pastagens, a fruticultura e o reflorestamento artificial, nas encostas menos íngremes, as áreas mais planas ocupadas com a produção de hortaliças e legumes, as moradias acomodadas na sombra de grandes árvores, o traçado das estradas e caminhos acompanhando as características topográficas, as cidades em franco progresso no centro ou na saída dos vales, compõem paisagens que provam que o “jardim” confiado por Deus ao homem, quando “cultivado” racional e afetivamente resulta em panoramas de uma beleza singular. 

Enquanto reflito sobre a realidade que acabo de pintar, circulam nas redes sociais  documentários que retratam pequenos municípios no interior do Rio Grande do Sul, todos contando com a mesma trajetória histórica. Derrubada a floresta virgem original,  a terra foi cultivada durante 100 ou mais anos no mesmo molde da agricultura familiar de enxada e arado de bois descrito mais acima. De meio século para cá moldaram os seus perfis de acordo com as demandas dos mercados de consumo. Substituíram os tradicionais instrumentos de trabalho pelas ferramentas oferecidas pela tecnologia moderna. Os meio de comunicação ao alcance de qualquer colono na mais remota extremidade  de um vale, mexeram fundo na maneira de ser dos produtores rurais, pondo-os em contato com o que há e acontece de novo, de bom, de discutível e/ou de deplorável no âmbito regional, nacional e internacional. Nesse cenário já não há mais lugar para as famílias numerosas de 10 ou mais filhos. Deram lugar a casais com um ou dois filhos e o próprio conceito do matrimônio tradicional indissolúvel convive tranquilamente com uniões consensuais, mães solteiras, separações e divórcios.  A prática rigorosa e controlada da religião cedeu o lugar a uma opção mais pessoal e livre do que há duas ou três gerações passadas. Ficou no passado o agricultor que costumava percorrer apenas dois caminhos: o diário de ida e volta da roça e o semanal de ida e volta à igreja. Mas, não é aqui o lugar para uma análise antropológica e sociológica mais aprofundada. Resumindo, parece lícito afirmar que os pequenos municípios que surgiram no interior colonial e ocupam uma significativa parcela dos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e outros estados, moldaram um paradigma, diria civilizatório que, descontados os senões e mesmo críticas mais severas e contundentes, apontam o caminho para “cultivar” o “jardim” em que o Criador colocou o homem para que tenha condições de realizar os seus anseios existenciais. Tendo sempre em vista que falo do modelo da pequena propriedade familiar dedicada à policultura de subsistência,  horticultura, fruticultura e tantas outras modalidades, atrevo-me concluir nas linhas e sugerir  nas entrelinhas, que o “agricultor” deu lugar ao “produtor rural”. Munido de um comportamento social e familiar urbano, cultivador de costumes e valores, hábitos religiosos, preocupações econômicas e políticas, pretensões de uma formação mais apurada, sem demora passará ser um personagem da história, como os artesãos e tantas outras ocupações. Os casamentos inter étnicos e inter confessionais tornaram-se rotineiros. Já não causam estranheza uniões entre pessoas louras e afro descendentes, entre católicos e outras confissões religiosas, entre alemães e italianos,  poloneses, luso-brasileiros e afrodescendentes. Essa miscigenação resultou  num cidadão brasileiro  cuja origem remota é traída pelo sobrenome, muitas vezes associado a sobrenomes lusos, italianos e outros; um cidadão brasileiro que já não se serve mais dos seus dialetos em família, muito menos no relacionamento social; um cidadão brasileiro que pode se encontrado em todos os níveis da hierarquia política, militar, econômica e social; um cidadão brasileiro  que, apesar de tudo, bem ou mal, não se esqueceu de suas raízes remotas relembrando e cultivando os dialetos falados por seus avós, seja a nível acadêmico, seja a nível de grupos como os que cultivam os dialetos originários do Reno-Palatinado, ou relembrando nos “Kerbs” e “Oktoberfest”, fragmentos de suas raízes ainda perceptíveis depois de 200 anos em terras brasileiras.

E, para concluir as reflexões que motivaram os “Flagrantes” que acabamos de apresentar nas páginas acima, sugiro como opção de lazer circular em domingos ou feriados pelos vales dos rios que formam o Guaíba e admirar e degustar a paisagem étnico-geográfica moldada nos 200 anos pela presença dos imigrantes alemães e seus descendentes no sul do Brasil: Santa Maria do Erval, Nova Petrópolis, Bom Princípio, São Vendelino, Tupandi, São Pedro da Serra, Salvador do Sul, Poço das Antas, Teutônia, Westfália, Imigrantes, Sinimbu, Sobradinho e tantos outros pequenos municípios na região das Missões, Alto Uruguai, Oeste, Centro e Leste de Santa Catarina e oeste do Paraná.