[ Reflexões ]

Reflexões sobre o
Conhecimento como síntese

Considerações introdutórias

Falar em conhecimento importa em arriscar-se a lidar com um desses conceitos, passíveis de tantos e tamanhos entendimentos ou definições, que a pretensão de dar uma formulação compreensiva mínima, não é nem fácil nem simples. A primeira questão que se coloca é a pergunta por onde começar, ou a pergunta: de que conhecimento estamos falando? Conhecimento científico, conhecimento filosófico, conhecimento teológico, conhecimento popular, conhecimento instintivo, conhecimento racional, conhecimento intuitivo, conhecimento primitivo, conhecimento moderno, etc. Como se pode ver, todas essas formas de conhecimento e outras que lhe possam ser acrescentadas, partem de objetos, níveis, ângulos e métodos de aproximação diferentes. Se, portanto, optarmos por um deles como ponto de partida do nosso raciocínio, as conclusões a que chegarmos serão inevitavelmente unilaterais, parciais e fragmentadas. Em qualquer uma das situações a escolhida sinalizará o caminho pelo qual o conhecimento deverá andar e, ao mesmo tempo, determinará o seu próprio perfil teórico e metodológico. Assim o conhecimento teológico sempre será essencialmente teológico embora incorpore na sua estrutura mais ou menos subsídios buscados em outras áreas como a filosofia, as ciências naturais, a tradição. O mesmo pode-se afirmar de todas as demais áreas de conhecimento específico. Assim quando se fala em Teologia Natural, Filosofia Natural, História Natural, Física Atômica, Economia de Mercado, Matemática Financeira, Sociologia Urbana, História Medieval, Antropologia Social, etc., etc., o objeto especificado no adjetivo terá o seu conteúdo tratado com as ferramentas teóricas e metodológicas sugeridas pelo substantivo. Em outras palavras. O caminho da aproximação para a investigação e a compreensão de algum objeto, é aquele previsto no arsenal de instrumentos próprios da área definida pelo substantivo. Assim a aproximação da Natureza é possível pela via filosófica, pela via matemática, pela via química, pela via biogenética, pela via teológica, pela via econômica, pela via histórica e assim por diante. Essa constatação leva sem mais a uma série de conclusões. A via de aproximação de algum objeto tem o seu traçado definido pelo olhar e as ferramentas próprias de cada ponto de vista a partir do qual se começa a investigação. Assim a abordagem pelo viés de um matemático com seus cálculos e fórmulas, trairá sempre o olhar do matemático que orienta e empresta significado aos resultados. Da mesma forma a análise da composição química, a observação microscópica, a evolução histórica, a inserção no contexto natural, etc., deixarão transparecer como pano de fundo e razão de ser o olhar do químico, do biólogo, do historiador, do ecologista ou de outros especialistas e especialidades. Sendo verdadeiros os passos da reflexão que viemos fazendo, abre-se um leque de novas reflexões importantes para avançar um pouco mais sobre a natureza do conhecimento. 

A multiplicidade do conhecimento. 
Tanto pela sua natureza quanto pelo nível, certeza e profundidade, o conhecimento é múltiplo. Falar em natureza do conhecimento significa sem mais nem menos aventurar-se num território, não digo minado, mas sem dúvida motivo de não pouca polêmica.  O conhecimento pode ser dividido em científico, filosófico, teológico, popular, intuitivo, condensado, subliminar, instintivo. Não há necessidade de chamar a atenção de que essa afirmação nos expõe a uma saraivada de discussões. Com que credenciais, o biólogo encastelado em seu laboratório questiona o historiador, ou o filósofo e o teólogo atrevem-se a opinar sobre questões de biogenética, quando a ciência está a demonstrar que as incógnitas que esse campo ainda oferece, em princípio são passíveis de resposta pelos métodos e técnicas disponíveis. Segundo os cientistas, as questões relacionadas com a estrutura, a composição, a dinâmica e as potencialidades da matéria, esgotam-se e resolvem-se perfeitamente por meio das diversas vias de aproximação que a física, a química a biologia e suas ramificações, põem à disposição do pesquisador. Para eles a presença do filósofo só vem tumultuar o cenário quando coloca reparos e pior ainda, quando põe em dúvida a consistência das conclusões que emanam dos laboratórios. De qualquer forma suas eventuais contribuições complicam e embaralham mais do que contribuem. No momento em que um cientista chega à conclusão de que a solução de questões realmente de fundo  desafiam seriamente os potenciais do arsenal das tecnologias de investigação e sinalizam para outras vias de aproximação do problema, seu esforço científico e seus resultados, correm o risco de serem desqualificados ou postos em dúvida pelos seus pares. Os exemplos contam-se às dúzias. Os rótulos de “visionário”, “romântico alienado”, ou a provocação para formular “a verdadeira pergunta”, o que pode ser entendido como algo de que “o homem não é sério”, não são aros. Esse tipo de observação teve endereços como Teilhard de Chardin, Erich Wassmann, Balduino Rambo, Francis Collins e uma série de outros. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Não é aqui o lugar nem a ocasião. O mesmo problema percebe-se quando um cientista com os dados objetivos observados na natureza, comprovados com seus cálculos ou demonstrados em seus experimentos em laboratório, aproxima-se do filósofo ou teólogo e lhe sugere a revisão de alguma conclusão ou a reformulação de algum conceito que discorda dos fatos objetivos. 

Se no plano do conhecimento científico e filosófico, que afinal se valem de métodos consagrados, aceitos e respeitados, manifestam-se em larga escala problemas de mútua legitimação dos resultados, o que esperar dos outros níveis. O conhecimento popular é elaborado à margem de teorias e métodos “científicos” e que não resulta de hipóteses comprovadas pela lógica e pelo raciocínio. Nem por isso deixa de ser um verdadeiro conhecimento. Aliás se procurarmos pela fonte, pela raiz do conhecimento científico e filosófico, iremos encontrá-la entre os caçadores, coletores, pastores e agricultores da pré-história. Valendo-se das ferramentas de que dispunham foram consolidando os corpos de conhecimentos que lhes foram vitais para a sobrevivência. Observando, comparando, distinguindo, selecionando, descartando, experimentando, os homens de então criaram   condições cada vez mais sólidas, para continuarem com êxito a sua ascensão histórica. 

A gênese e a dinâmica que deu forma às incontáveis modalidades de conhecimento que podem ser identificados no decurso da história, tem como ponto de partida, raiz ou fonte, a natureza humana com sua capacidade de dar respostas reflexivas e ou reflexas e, ao mesmo tempo, instintivas e intuitivas, aos estímulos vindos do meio físico-geográfico em que aconteceu a respectiva trajetória. Estamos obviamente diante de um desafio de razoáveis proporções. A afirmação de que o homem adquiriu e ainda adquire um conhecimento digno desse nome, com os elementos que a sua capacidade instintiva e reflexa lhe oferece, desperta no mínimo desconfiança e incredulidade em cientistas acostumados a lidar com instrumentos de precisão. Não menos reticente se mostrará o filósofo que só confia na lógica dos seus raciocínios e nas conclusões indiscutíveis dos seus silogismos. Para ambos as certezas de que os instintos, as intuições, os sentimentos, as sensações, são capazes de oferecer, não têm as condições de   segurança e confiabilidade, exigida por um conhecimento digno desse nome.

Cabem aqui algumas considerações. Primeiro. A Renascença mexeu fundo nos conceitos filosóficos, teológicos, artísticos e científicos do mundo medieval. E dessa forma preparou o terreno para que os fundamentos conceituais e metodológicos das assim chamadas “Ciências Modernas”, começassem a tomar forma e consolidar-se no decorrer da segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX. Definiram-se nesse período, os grandes campos das Ciências Naturais: da Matemática, da Química, da Física, da Geologia, da Paleontologia, da Biologia, da Astronomia, da Botânica, da Zoologia e dos seus subcampos. Ao mesmo tempo   operou-se no nível das ideias, uma autêntica revolução do pensamento, que terminou na cosmovisão do homem moderno. Paralelamente sucederam-se num ritmo cada mais acelerado as conquistas a nível de tecnologia. Assim estava sendo armado o cenário sobre o qual a modernidade se imporia com toda a sua pujança. Numa dinâmica em que, de um lado a tecnologia oferecendo aparatos cada vez mais potentes e precisos, proporcionava à Ciência resultados também cada vez mais diversificados e mais exatos e do outro lado a Ciência exigia sempre mais da tecnologia. Foi assim que Ciência e Tecnologia numa dinâmica de mútua aceleração, moldaram o fundamento material da Modernidade. Mas não se pode ignorar que a Ciência e a Tecnologia contaram com um parceiro não menos poderoso na Filosofia, responsável pela cosmovisão moderna. 

Quem intuiu e formulou com rara felicidade a complementariedade entre os dados oferecidos pelas Ciências Naturais e pelas Ciências do Espírito, foi Erich Wassmann. Ele foi um desses representantes emblemáticos de especialista que contou em seu currículo com uma sólida formação clássica, filosófica, teológica e científica. Munido com esse cabedal de conhecimentos mergulhou, como nenhum outro, nem antes nem depois dele, nos complexos mecanismos que regem o bom funcionamento das colônias de formigas e térmitas. Não se limitou a fazer um inventário do que observava, dar-lhe um tratamento estatístico, desdobrar em seus elementos estruturais essas colônias, identificar as classes de indivíduos e sua mútua interdependência e a relação simbiótica com determinados fungos. As descobertas que se foram acumulando, na medida em que os métodos científicos se aperfeiçoavam, assumiram contornos mais amplos, iluminados pelo olhar próprio das Ciências do Espírito. E por esse duplo caminho Wassmann definiu, com o andar do tempo, sua síntese do universo e da natureza. Ela permite vislumbrar a possibilidade de uma harmonia entre as duas aproximações teóricas e metodológicas, por não poucos tidas como impossível. Erich Wassmann valeu-se de dois conceitos que facilitaram e facilitam ainda hoje a harmonização entre os resultados das Ciências Naturais e as Ciências do Espírito: “Weltbild” e “Weltauffassung” ou a “imagem visível, o retrato do mundo” e “a cosmovisão, o significado” do mundo. 

Cabe às Ciências Naturais fornecer os dados objetivos, materiais e concretos para retratar a natureza e dar forma ao “Weltbild”. As Ciências do Espírito encarregam-se de compor esses dados numa unidade que expressa um significado ou significados que   vão além da simples soma, agregação e incorporação dos dados objetivos. É a “Weltauffassung”, a “Cosmovisão”. A metáfora de um quadro pintado talvez esclareça melhor. Na pintura de um quadro as tintas, as cores, a tela, os pinceis, etc. são os elementos que compõem o “Weltbild”, isto é, a imagem desenhada num determinado momento do estado da arte, ou se quisermos a imagem real e possível com os dados científicos disponíveis num determinado momento. O artista combinando cores, tonalidades, luzes e sombras, contornos, panos de fundo, etc., etc., confere sentido, significado ao quadro, de acordo com sua “cosmovisão” – “Weltaufassung”. Pela sua própria natureza, tanto o “Weltbild” quanto a “Weltauffassung”, encontram-se em permanente transformação, reformulação e resignificação. O “Weltbild” muda de figura na mesma cadência em que as Ciências Naturais revelam novos dados, tornam os existentes ultrapassados e assim se obrigam a redesenhar sem parar a realidade – o “Weltbild”. Os responsáveis pela “Cosmovisão” – a “Weltaufassung”, atentos à dinâmica das Ciências Naturais, abandonam significados, reformulam outros e imprimem novos rumos à compreensão do universo e da natureza. 

O redesenhar do “Weltbild” estimulado pelas  novas descobertas científicas e o repensar da “Weltaufassung” por elas estimulado, garantem o clima propício no qual a produção do conhecimento encontra condições para prosperar. E para que essa emulação possa acontecer requer-se, tanto das Ciências Naturais quanto das Ciências do Espírito, uma boa dose de humildade e espírito desarmado. O cientista dedica-se ao seu trabalho com a consciência prévia de que seus métodos e seus instrumentos são de alcance limitado. O filósofo põe-se a formular e a reformular a sua cosmovisão, valendo-se dos dados que a Ciência vai acumulando. Convenhamos não é tarefa para qualquer um. É fundamental o pressuposto de que na construção do conhecimento entram em proporções variáveis conhecimentos parciais oriundos de diversas fontes. Em outras palavras e retomando o que sinalizamos mais acima, o verdadeiro Conhecimento com letra maiúscula é aquele que não vem acompanhado de adjetivos. É o Conhecimento puro e simples “das Wissen schlechthin” diriam os alemães. O sábio, portanto, é aquele que se apropriou de alguma forma do “Conhecimento simplesmente” do “Wissen schlechthin”. Há uma enorme diferença entre um “Sábio”, um “Weise” e um conhecedor, um “Kenner” ou um especialista, um eclético, um dono de memória e conhecimento enciclopédico. O “conhecedor”, o “Kenner”, domina uma área específica do conhecimento, uma fatia expressa pelo adjetivo: conhecimento científico, conhecimento botânico, conhecimento genético, conhecimento histórico, conhecimento religioso, conhecimento popular etc., etc. O “Conhecimento” sem adjetivo e com letra maiúscula que confere a seu portador “Sabedoria” – “Weisheit”, consiste na síntese, na amálgama, entre os dados fornecidos por conhecimentos parciais e adjetivados. A síntese sugere o encontro dos conhecimentos parciais, adjetivados, que num processo dinâmico de complementariedade, levam a uma compreensão nova que vai além da soma das partes. A síntese não anula a natureza dos elementos que entram na sua composição, mas os ressignifica em função de um todo que resulta na interação e composição complementar. O cobre e o estanho continuam sendo cobre e estanho ao se combinarem numa proporção que varia de acordo com a finalidade do bronze que é a amálgama entre os dois. Aparentemente a amálgama não se parece com os dois metais que a compõem. Não brilha nem como cobre nem como estanho. Sua dureza e ductilidade nada tem em comum, nem com o cobre nem com o estanho. Salvaguardadas as diferenças e as peculiaridades, a amálgama parece um recurso adequado, para entender melhor o que seja o Conhecimento. A participação dos conhecimentos parciais ou setoriais no processo de síntese, resultam à maneira de uma amálgama na produção do Conhecimento. O resultado é uma realidade qualitativamente diferente de cada componente individual, sem, contudo, alterar ou anular a natureza e as características das partes. A cor, a ductilidade, a maleabilidade e a dureza do bronze, não alteram a natureza química e física do cobre e do estanho. Integram-se, isso sim, numa nova realidade. Um fenômeno análogo acontece com a produção do Conhecimento. O único Conhecimento digno de ser chamado de Síntese é aquele que resultou da confluência, seguida de uma “amálgama”, da maior quantidade, diversidade e qualidade de conhecimentos parciais. A densidade e a consistência do Conhecimento, portanto, é diretamente proporcional à quantidade e à qualidade dos elementos que entraram na sua construção.

This entry was posted on domingo, 11 de setembro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.