[ Reflexões ]

Os pressupostos

A lógica da reflexão em curso leva-nos um passo adiante e perguntar pelos pressupostos dos quais alguém precisa dispor para se aventurar com alguma chance para construir o Conhecimento sem adjetivos. Sem pretender estabelecer uma prioridade hierárquica rigorosa, entre outros não podem ser ignorados os que seguem. 

Primeiro. A amplitude e solidez do Conhecimento costuma ser diretamente proporcional à amplitude e solidez da formação e a capacidade de síntese daquele que o produz. Uma formação com essas características somente é possível para aquele que se apropria dela num crescendo harmônico que começa no ensino fundamental, passa pelo médio e culmina no superior. Supõe-se, portanto, uma proposta pedagógica na qual, passo a passo, o aluno encontra condições de apropriar-se dos conceitos, conteúdos e conhecimentos teóricos e das ferramentas metodológicas indispensáveis, para produzir um conhecimento digno desse nome. 

No final do século XVIII a Europa formava as suas elites intelectuais em estabelecimentos de ensino em que vigorava o império da teologia como referência. A primeira geração de universidades, fundadas ainda na Idade Média como Bolonha, Paris e as demais até a Renascença, contavam com a constante vigilância e até tutela da Igreja. Muitos religiosos como Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Tomas de Aquino ocuparam cátedras nessas universidades. Foi especialmente na Teologia que ficou clara a orientação dada pela Igreja àquela área do conhecimento. O Tomismo e a Escolástica tornaram-se a base reitora maior do ensino da Teologia. A Revolução do Pensamento do século XVIII não podia deixar de mexer   profundamente no próprio conceito de universidade. Foi preciso repensar seu papel, e com ele, os objetivos e os métodos.  Em meio a esse processo esboçaram-se três modelos, que em parte continuam até hoje: a universidade latina, a universidade inglesa e a universidade alemã, com as marcas inevitáveis de acomodação aos tempos e circunstâncias históricas.

A Universidade Latina predominou na França, na Bélgica, na Suíça não alemã e nos países latinos: Itália, Espanha e Portugal. Esse modelo tem como marca a profissionalização. A universidade espanhola não passa de uma cópia da francesa. Segundo Alfonso Borrero “mãe e filhos bebemos todos da mesma fonte contaminada da legislação imperial napoleônica de 1806-1808”. Institucionalmente esse modelo universitário sofre de uma forte influência, ingerência, e pior, tutela do Estado. Não há necessidade de provas para perceber claramente esse modelo nas universidades brasileiras. Tanto as públicas quanto as privadas estão pagando um preço cada mais alto, com a perda progressiva da autonomia. A autonomia prevista na Constituição na realidade não passa de uma ficção constitucional. A universidade tornou-se refém das leis, regras e diretrizes impostas pelas autoridades educacionais e seus aparelhos burocráticos.

A Universidade Inglesa exibe como marca definidora a Educação, a formação do cidadão, o “gentelman”. Esse diferencial foi compreensivelmente incorporado nas universidades norte-americanas, inspiradas na sua essência na Universidade Alemã. 

A Universidade Alemã concentra todo o peso na pesquisa científica e produção do conhecimento, a ponto de se constituírem na sua própria razão de ser. O prestígio de uma universidade é diretamente proporcional ao valor atribuído à investigação científica e à produção do conhecimento. Interessa em primeiro lugar, a produção do saber e a pesquisa científica em si. Sua repercussão prática e sua aplicabilidade concreta seguem como consequência lógica num segundo momento. Esse modelo de universidade exige como pressuposto, total autonomia administrativa e acadêmica e um corpo docente altamente qualificado. 

Até o final do século XVIII a universidade era formada por três faculdades: Teologia, Medicina e Direito. Eram hierarquicamente superiores à faculdade de Filosofia que ocupava um lugar   secundário. As três faculdades principais ofereciam os conhecimentos de interesse direto do governo com destaque para a fazenda pública e o bem-estar do corpo com a preservação da saúde. A Filosofia, que se ocupava com a ciência pura tratada com rigor e profundidade, servia apenas de reforço às demais. A partir do começo do século XIX foi-se impondo cada vez mais a convicção de que a missão maior da universidade consistia em impulsionar a produção do conhecimento e promover a investigação científica em todos os campos do saber. O grande aliado e patrocinador dessa maneira de conceber a universidade foi Frederico Guilherme III da Prússia. Para ele a investigação científica e a produção do conhecimento eram valores em si. Em princípio não importava sua aplicação prática. Desinteressado pelos utilitarismos imediatos tornou-se o grande incentivador do trabalho científico criativo e de alto nível. Em outras palavras: antes de mais nada, alto nível e excelência; em segundo lugar utilidade prática. O movimento em favor da nova concepção universitária veio aliada ao ideário romântico e idealista do nacionalismo alemão e fez com que a filosofia, a política, o idealismo, o nacionalismo e o romantismo esculpissem o modelo universitário em gestação. Nas cátedras de Filosofia de Jena, Halle e Erlangen pregava-se a totalidade e indivisibilidade dos conhecimentos. 

Entende-se assim que Bayme, encarregado da reforma da universidade alemã, ao começar a fazer parte do Ministério em 1802, se empenhasse de corpo e alma na montagem efetiva da nova universidade. E para começar o trabalho convidou os intelectuais de maior prestígio da época. Embora Kant não tivesse participado pessoalmente da formulação do projeto, deve-se a ele a exigência de que o centro polarizador e irradiador da universidade até então ocupado pela Teologia, fosse transferido para Filosofia. Compreende-se assim que Bayme convidasse filósofos de primeira linha para a montagem da proposta da nova universidade. Os nomes escolhidos foram os de Friedrich Schleiermacher, Johannes T. Fichte, enriquecidos com as contribuições, dos pedagogos Pestalozzi, Commenius e outros. Na sua concepção teórica a nova universidade alemã teve a sua maior inspiração na proposta de Fichte. Em resumo é a seguinte. A educação prevista na nova universidade consiste na formação destinada, em última análise, ao desenvolvimento da capacidade intelectual do educando, não na formação histórica dessa capacidade, pois esta limita-se à análise das características estáticas dos objetos. Preocupa-se com a capacidade superior filosófica que leva o conhecimento das leis que fazem com que as coisas tenham necessariamente as características que de fato têm. É desta maneira que o educando “aprende”. Uma vez formada essa “genuína tendência para aprender”, sem demora estimula o educando, convertendo-a na base de todo o conhecimento.  Desse pressuposto origina-se, como consequência natural, um conhecimento geral de todo necessário, transcendental e, com certeza superior a toda a experiência e reúne em si, de antemão, todas as potencialidades das experiências posteriores.  A nova educação preocupa-se com a compreensão do que descobre e une. O aluno percebe-se estimulado pelo amor à ciência, pelo fato de compreender toda uma coerência vinculada com a ação e a prática. Nessa perspectiva a universidade oferece o ambiente na qual o conceito da verdade é realizado como exigência        institucional. A estrutura da universidade deve refletir unidade orgânica do conhecimento. Deve superar a mera erudição e especialização e confiar à Filosofia o papel de regente de uma orquestra interdisciplinar.

A lógica da reflexão em curso leva-nos a dar mais um passo adiante e perguntar pelos pressupostos, que oferecem as condições para que alguém seja capaz de se apropriar do conhecimento que mereça esse nome. Sem pretender estabelecer prioridades hierárquicas rigorosas, entre outros não podem ser ignorados os seguintes. 

Primeiro. A amplitude e consistência do conhecimento costuma ser diretamente proporcional à amplitude e à solidez da formação e da capacidade de síntese daquele que o produz. Encontramos essa pré-condição no modelo de formação institucionalizado, tanto no ensino fundamental, como no médio e superior, na Europa Central, com destaque para a Alemanha, a Inglaterra e as universidades do Estados Unidos da América do Norte. 

Na Alemanha os famosos “Gymnasia” municiavam os jovens estudantes com uma ampla base de formação filosófica, clássica, literária e científica, capaz de lhes abrir as janelas para o vasto universo do conhecimento. E não eram poucos os exemplos em que os egressos dos Gymnasia  levavam, como primeiro titulo de nível superior o de Filosofia, História, Línguas e Literatura Clássica ou Moderna, para depois se dedicarem a uma especialidade  no complexo campo das Ciências Naturais. A confirmação encontra-se nos currículos de não poucos portadores do prêmio Nobel nas diversas áreas científicas ou nos currículos de muitos outros nomes referência, nas respectivas especialidades. Representantes emblemáticos desse perfil de cientista são Erich Wassmann, o homem das “Formigas e Térmitas”, Teilhard de Chardin, o homem do “Fenômeno Humano”, Ludwig von Bertalanffy, autor da “Teoria Geral dos Sistemas”, Adolf Portmann, com seus estudos sobre “Intercomunicação entre Animais”, o próprio Darwin que exibe em seu currículo estudos de “Teologia”, Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, Edward Wilson com sua obra “A Criação – um apelo par salvar a vida na terra”  Seria longo demais listar os muitos outros com seus nomes consagrados pelos estudos e pesquisas especializadas a que se dedicaram. 

This entry was posted on terça-feira, 13 de setembro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.