Bicentenário da Imigração - 39

A Igreja dos imigrantes

Introdução
A decisão tomada pelo governo imperial de convidar imigrantes da Europa Central e do Norte para colaborar  na ocupação dos territórios devolutos do País, foi de um alcance  incalculável. Costuma-se destacar normalmente o modelo inovador de ocupação do território. Em vez das imensas propriedades características dos grandes ciclos econômicos do açúcar, do algodão, do café e do gado, foi implantada a pequena propriedade  rural de natureza familiar. Em poucas décadas regiões inteiras nos estados do sul iriam exibir uma nova paisagem. Os pequenos proprietários foram-se agrupado, formaram comunidades e organizaram a vida comunal em torno da igreja, da escola, da casa de comércio, dos artesanatos, do hospital e das instituições de lazer. Até aquele momento não existira nada similar no Pais no que se refere à organização de base dos seus habitantes. A comunidade substituiu o patriarcado do usineiro, do fazendeiro, do barão do café ou da cana. A economia firmara a sua base na unidade familiar e a educação passou a ser uma tarefa da comunidade. 

Nesse contexto destacou-se um outro elemento cuja importância no raro passou despercebido ou até intencionalmente ignorado. Os imigrantes alemães, italianos, poloneses e outros destacavam-se pela grande religiosidade. As convicções doutrinarias  e os princípios éticos e morais, desempenhavam um papel fundamental na moldagem da fisionomia sócio-cultural da população imigratória no Brasil. A questão que se coloca é esta: como foi a igreja que os imigrantes encontraram em como foi a igreja que trouxeram e terminaram por implantar, não só nas regiões  onde somavam maioria, como também em  outras em todo o território nacional. Quais as características da Igreja de tradição luso-brasileira que os imigrantes encontraram? Como foi a Igreja dos imigrantes alemães, italianos e poloneses católicos? Como foi a Igreja dos imigrantes alemães protestantes? 

A Igreja que os imigrantes encontraram.
O modelo predominante de Igreja que os imigrantes  encontraram no Brasil, de modo especial nos estados do sul, ostentava as marcas peculiares das circunstâncias históricas em que se desenvolveu. Em primeiro lugar é preciso lembrar que no Brasil vigorava o padroado. O Imperador  investido também da prerrogativa de chefe da Igreja e a religião oficial do Estado era a católica decida a criação de dioceses, paróquias e capelanias, requeria a chancela  da autoridade civil. A nomeação de bispos, párocos, capelães e demais postos da hierarquia, dependia da aprovação oficial. A união  entre a Igreja e o Estado transformara o catolicismo em religião oficial, fazendo com que as demais não fossem reconhecidas e seus atos considerados nulos ou ilegais. Aos protestantes, por ex.,  estava interditado o sepultamento nos cemitérios oficiais, casamentos considerados como concubinato, o batismo sem valor legal e seus lugares de culto na podiam ostentar a aparência de templo. Como é óbvio essa realidade, condenou à marginalidade especialmente os imigrantes alemães protestantes. Alguma brechas e alguns arranjos introduzidos na legislação fizeram com que nas décadas  finais do Império a situação dos protestantes se tornasse menos desconfortável. Permaneceram, contudo, em última análise, como clandestinos até a proclamação  da República. Em poucas palavras, imigrantes católicos encontraram uma Igreja  sujeita, submissa  e dependente dos caprichos dos governantes e administradores civis, na qual a doutrina e os bons costumes pouco ou nada decidiam. O imperador era, na verdade, a autoridade maior enquanto que Roma se limitava a ratificar os atos dos detentores do poder tanto civil como religioso.

O tipo de clero que respondia pela cura das almas, deve ter causado, no mínimo, surpresa para os imigrantes vindos da Europa Central ou do Norte. A disciplina clerical de modo algum era o seu forte. Um número considerável de sacerdotes era filiado à Maçonaria. Outros tantos dedicavam-se à política, eram fazendeiros ou centravam a atenção em qualquer outra ocupação menos a cura de almas. No seu quotidiano o clero dependia da vontade e dos caprichos das lideranças políticas e econômicas, que ditavam as normas nas freguesias, nas capelanias, nas irmandades e nas confrarias. As centenas ou milhares de quilômetros que os separava dos bispos, impediam a estes dar um mínimo de assistência ou conforto. Encontramos assim um clero entregue à própria sorte. Não é de se admirar que se deixasse influenciar e, na maioria dos casos, arrastar pelo clima secular que o envolvia. A atividade pastoral sob sua  responsabilidade não ultrapassava  em muito os limites do cumprimento da rotina burocrática de batizar, legitimar  matrimônios e encomendar os defuntos. Mesmo nessas funções viam-se coagidos pelas lideranças leigas da freguesia e  que, na maioria dos casos, pouco ou nada tinha a ver com um autêntico catolicismo. 

Nessa situação de abandono entende-se com facilidade que a disciplina clerical sofresse arranhões profundos. O predomínio de uma mentalidade laica e secular, o abandono e a solidão, fizeram com que a não observância do celibato se transformasse quase em regra. A situação do padre com sua companheira e via de regra filhos, já não causava surpresa. Os fieis não só o toleravam, como o aceitavam e aprovavam. Além disso o clero costumava  envolver-se ativamente nos negócios profanos, amealhado consideráveis fortunas por meio dos mais diversos negócios.

Nessas circunstâncias a própria Igreja assumira um papel todo peculiar. Como se apontou mais acima, quem de fato mandava na vida da freguesia, eram as lideranças locais, os chefes políticos, os detentores do poder econômico, os comandantes das guarnições militares, os provedores das irmandades, etc. Generalizou-se dessa forma uma Igreja em que a liturgia, as práticas de culto,  os cerimoniais e os rituais, atendiam mais aos caprichos dos patrocinadores, do que às exigências do culto divino. Padres pouco recomendáveis pela conduta pessoal celebravam a missa de acordo com as normas ditadas pelos mandatários locais. E suas prédicas falavam sobre aquilo que os presentes esperavam ouvir e com esse espírito batizavam as crianças, abençoavam os matrimônios e encomendavam os defuntos. Não havia espaço para freqüência dos sacramentos. Predominavam festas e procissões ruidosas, nas quais o profano costumava mascarar o religioso. 

Em resumo os imigrantes encontraram uma Igreja que mostrava os defeitos, os vícios e as distorções que o regime do Padroado terminou por imprimir nela. Estava confiada a um clero distante e avesso aos princípios doutrinários e às regras disciplinares ditadas por Roma. Os imigrantes encontraram uma Igreja sufocada por uma mentalidade, que se esgotava  em rituais e manifestações  em que o profano costumava encobrir o religioso. Os imigrantes defrontaram-se, enfim, com uma Igreja sem vida sacramental. A essa Igreja os imigrantes católicos iriam contrapor a Igreja da Restauração e os protestantes a Igreja da Reforma.

A Igreja da Restauração Católica 
A Igreja da tradição Luso-brasileira e suas práticas deve ter causado um grande impacto sobre os imigrantes alemães católicos que se estabeleceram nos estados do sul do Brasil. Procediam de uma caminhada religiosa oposta daquela que encontraram aqui. Após o Período Napoleônico, a Prússia impusera a sua hegemonia sobre os estados alemães. Sua influência mostrou-se especialmente draconiana no Palatinado, província fronteiriça com a França. Seus habitantes foram castigados com pesados impostos pagos em parte com a madeira das suas florestas de carvalhos.

Com a hegemonia prussiana o protestantismo impôs-se como religião oficial. Na condição de minoria religiosa e considerados como um perigo para o Estado por causa da sua fidelidade a Roma, de modo especial durante o período do Kulturkampf, trataram de fortalecer-se da melhor  forma possível. Para garantirem o seu espaço no seio da nacionalidade alemã em formação, organizaram o Partido Católico do Centro. A influência e a força  desse partido foi capaz de atenuar sensivelmente a política e a ação do Kulturkampf sobre os católicos, na medida em que se transformou numa força política de oposição que não podia ser ignorada. Bismarck acusou os jesuítas de serem os principais mentores do Partido Católico do Centro e, por isso mesmo, agentes  serviço de Roma e por isso expulsou-os da Alemanha. Com isso não poucos dos melhores quadros da Ordem foram destacados, durante as décadas de 1870 e 1880, para trabalharem entre os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul.

A situação peculiar na Alemanha de maioria protestante, em que o iluminismo e racionalismo dominavam as elites intelectuais e seus projetos políticos e culturais, obrigou os católicos e suas lideranças  a se firmarem em bases doutrinárias e disciplinares sólidas. Aderiram ao movimento conhecido como Restauração Católica. Em poucas palavras esse movimento tinha como pontos centrais: a retomada da doutrina formulada pelo Concílio de Trento; a obediência incondicional ao romano pontífice e dos bispos; a distância para com as autoridades civis e a rejeição da ingerência do Estado na vida e nos assuntos da Igreja.

Uma outra característica  da Igreja da Restauração foi  a grande importância que emprestou às práticas religiosas. De modo especial insistia na freqüência regular da missa dominical e nos dias santificados e na prática religiosa centrada numa intensa vida sacramental. O batismo deixou de ser um mero ritual exigido pela legitimação social, para assumir o seu verdadeiro significado de sacramento. Os sacramentos da penitência e eucaristia, quase ausentes na Igreja de tradição luso-brasileira, transformaram-se no verdadeiro termômetro da prática religiosa. O fervor dos fiéis era medido pela assiduidade da confissão e da eucaristia. Não era considerado um bom cristão católico que não cumprisse pelo menos a desobriga pascal, isto é, que não se confessasse  e comungasse pelo menos uma vez ao ano por ocasião do período pascal.

O fervor religioso, a vida sacramental e a fidelidade à ortodoxia, eram estimulados. Neste particular sobressaíam como meios as Congregações Marianas que reuniam as diversas categorias profissionais,  em torno à devoção a Nossa senhora; as associações que se reuniam para venerar o Sagrado Coração de Jesus; as associações de crianças tendo como objeto a devoção ao Menino Jesus; as organizações das mães católicas: as organizações dos operários católicos que no Rio Grande do Sul teve a sua expressão maior nos Círculos Operários; Ação Católica, preferencialmente praticada pela juventude nas suas diversas categorias: Juventude Agrária Católica – JAC, Juventude Operária Católica – JOC, Juventude Estudantil Católica – JEC, Juventude Universitária Católica – JUC e Juventude Independente Católica – JIC. 

A Igreja dos imigrantes alemães empenhou-se  em favor da educação em todos os níveis. Foi por essa razão que em todas as paróquias e capelas funcionavam  escolas cujos mestres  e cujos currículos, estavam em perfeita sintonia com a doutrina e a disciplina da Igreja. Para garantir o autêntico espírito da Igreja da Restauração nos diferentes níveis de ensino, instalaram-se na colônia e nos centros urbanos ordens e congregações  religiosas dedicadas  ao ensino. Destacaram-se entre elas os irmãos lassalistas e maristas, as irmãs franciscanas, de Santa Catarina, de São José, da Divina Providência, e muitas outras. Além das agremiações religiosas fundadas para se dedicarem ao ensino e à educação, militavam pela mesma causa os melhores quadros dos jesuítas, franciscanos, palotinos, redentoristas, salesianos, capuchinhos e outros 

A Igreja interessava-se também pelo bem-estar material do povo pois, o considerava como pressuposto duma sadia vida espiritual. Concentrou a atenção em duas frentes: a assistência social  e a implantação de projetos de desenvolvimento e promoção humana. Movida por esse espírito liderou a construção de hospitais, asilos, sanatórios e orfanatos e liderou projetos de promoção humana que visavam  a educação, a assistência social, o desenvolvimento econômico, a promoção da vida religiosa, a solução dos problemas da terra, a modernização e a diversificação da produção agrícola, a coordenação e a abertura de novas fronteiras de colonização e a ascensão no cenário político. Para implementar toda essa gama de iniciativas foi fundada em 1900 a Associação Riograndense de Agricultores e em 1912 a Sociedade União Popular. Depois da implantação da República houve a tentativa de por em marcha um partido político, o Partido Católico do centro, inspirado no similar na Alemanha. Além dessas organizações de ampla abrangência, havia ainda aquelas  destinadas a objetivos específicos, como por ex., a Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul e, para garantir que a dinâmica católica não esmorecesse, realizaram-se de dois em dois anos, a partir de 1898 os Congressos Católicos, os “Katholikentage”. Serviam de fórum no qual os grandes problemas, os grandes projetos e a condução do catolicismo regional eram debatidos, onde se analisavam questões de interesse geral, onde se propunham soluções e se traçavam novos rumos. 

Em meio a toda essa efervescência religiosa impunha-se uma tarefa que envolvia em primeiro lugar a hierarquia eclesiástica, a  de garantir para o futuro o perfil da Igreja. Refiro-me ao clero da Igreja da imigração. O modelo da Igreja da Restauração trazido pelos imigrantes, alicerçava-se  sobre dois pressupostos: a ortodoxia  doutrinaria e a disciplina eclesiástica do Concílio de Trento e um clero de todo afinado com essa orientação  e ao mesmo tempo submisso à hierarquia, detentora exclusiva  do magistério oficial da Igreja.

Os imigrantes que foram chegando ao sul do Brasil depois da Guerra dos Farrapos, encontraram  em implantação  uma Igreja oficial nos moldes do Projeto da Restauração Católica. Pio IX, o papa da Restauração Católica, ao criar a diocese de Porto Alegre, com jurisdição sobre o  Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nomeou em 1860, como segundo bispo diocesano, D. Sebastião Dias Laranjeira. Formado em Roma fora escolhido a dedo pelo papa, com a missão  de implantar o Projeto da Restauração nos territórios sob sua jurisdição. Em 1849 haviam desembarcado na colônia alemã de São Leopoldo os primeiros jesuítas alemães, com a tarefa de dar assistência pastoral aos imigrantes. Estava assim posta a base  para a nova Igreja: a autoridade eclesiástica empenhada em implanta-la, os jesuítas temperados nos embates religiosos na Alemanha e os imigrantes educados no espírito da Restauração.

A expulsão dos jesuítas da Alemanha resultou proveitosa para a Igreja que estava sendo implantada aqui. Um número apreciável dos seus melhores quadros transferiu-se  para o Sul do Brasil nas décadas de 1870 a 1890. Organizaram paróquias, iniciaram e consolidaram o ensino médio, tornaram-se os mentores de uma imprensa católica vigorosa,  comprometida e combativa, inspiraram e lideraram os grandes projetos de promoção humana de que falamos acima, reconquistaram para a Igreja um espaço definido e respeitado no cenário social e político. O velho paradigma da Igreja de tradição lusa foi sendo substituído sistematicamente com novos reforços de clero vindos da Europa, incluindo, além dos jesuítas, um número apreciável de padres diocesanos, um grande número de ordens e congregações religiosas masculinas, clericais ou não e uma dezena de congregações femininas. Todo esse exército afinado com o Projeto da Restauração, foi assumindo a pastoral nas paróquias e nas capelanias, o ensino e a orientação nas escolas do ensino fundamental e médio. O atendimento nos hospitais, asilos e orfanatos e liderou os projetos de promoção humana. 

Não demorou e um número crescente de filhos  e filhas, netos e netas dos imigrantes, engrossaram as fileiras desse exército  a serviço da Igreja. Também fora da região da imigração propriamente dita, na Campanha e nos Campos de cima da Serra, o clero renovado assumiu progressivamente as paróquias e as congregações religiosas, principalmente as femininas, fundaram colégios assumiram hospitais e asilos. 

Em 1912 D. João Becker, nascido na Alemanha  e imigrado para o Brasil ainda criança, assumiu a arquidiocese de Porto Alegre. Permaneceu no posto até a sua morte em 1946. Educado na Igreja da Restauração, não perdeu tempo para começar a formar  um clero afinado com o Projeto. Confiou a formação do mesmo aos jesuítas dos quais ele próprio tinha sido aluno. Assim o Seminário Central Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, durante 40 anos, formou o clero que imprimiria  o perfil definitivo à Igreja nos estados do sul do Brasil. Nele  formou-se uma geração inteira de bispos que foram administrar dioceses em todo o Pais, incluindo a arquidiocese do Rio de Janeiro na pessoa do cardeal D. Jaime de Barros Câmara. O Seminário Central de São Leopoldo formou um clero com sólida formação teológica e pastoral, fiel à orientação de Roma e dos bispos e observante da disciplina clerical. 

Não há necessidade de dedicar um espaço especial para caracterizar o catolicismo dos imigrantes italianos, poloneses e outro. Coincide em linhas gerais com o dos imigrantes alemães. Algumas particularidades contudo os distinguem. Uma delas é devido ao fato de que na Itália e na Polônia a presença do protestantismo ter sido quase nula. Tratou-se, portanto, de um catolicismo sem as marcas deixadas pelo  conflito religioso  várias vezes secular na Alemanha. Outro traço peculiar do catolicismo dos italianos resultou dos métodos pastorais, da ascese e da própria formação teológica dos capuchinhos franceses que os assistiram. 

Essas diferenças foram-se apagando na medida em que, já no século XX, o clero nativo tanto de origem alemã como italiana e polonesa, na sua quase totalidade foi egresso do Seminário Central de São Leopoldo, dirigido pelos jesuítas, orientados pelas diretrizes da arquidiocese de Porto Alegre.

As diferenças entre a Igreja de tradição luso-brasileira e a Igreja dos imigrantes foi assim resumida por Riolando Azzi: 

Daí surge uma diferença bem significativa entre a cristandade luso-brasileira e essa nova cristandade clerical em formação. Na cristandade colonial predominava a idéia de que a instituição eclesiástica fazia parte integrante do próprio Estado lusitano católico. A fé,  portanto, permeava as próprias instituições políticas. Já nas áreas de imigração existe a separação muito nítida, entre as manifestações religiosas e a esfera política do Estado brasileiro, geralmente minimizada ou ignorada. Na medida em que padres seculares e regulares se instalam na região dos imigrantes, as vinculações mais expressivas serão feitas com a Santa Sé. Por isso, ao analisar o catolicismo de imigração no Rio Grande do Sul, Luis de Boni chega a indicar  a formação de um verdadeiro “Estado papal”. Assim sendo, em termos eclesiológicos, pode-se afirmar que predomina nas áreas de imigração europeia uma teologia da cristandade clerical. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 74-75)

Bicentenário da Imigração - 38

Os Riscos da Profissão

Aos obstáculos e riscos normais como intempéries, enchentes, estradas e trilhas quase intransitáveis, a travessia de arroios e rios sem pontes, etc., somavam-se outros tantos oriundos das circunstâncias históricas peculiares da época. Entre elas destaca-se em primeiro lugar o fato de os caixeiros viajantes, além de venderem produtos e mercadorias das respectivas casas sediadas em Porto Alegre, na falta de uma rede bancaria, arrecadavam os pagamentos e levavam o dinheiro vivo para os patrões  em Porto Alegre. Em muitos casos significava somas respeitáveis, de modo especial nas décadas de maior dinamismo econômico na região colonial. As décadas finais do século dezenove foram denominadas de “os anos das onças de ouro”. Foram os anos em que praticamente todo o feijão consumido no centro do Pais procedia das colônias do sul. São freqüentes os relatos que falam de roubos e assaltos a caixeiros viajantes. Aconteceram também assassinatos e mortes de caixeiros por outras razões. 

Um dos casos mais brutais aconteceu em Garibaldi em que o viajante Hugo Fichtner  foi aliciado para uma tocaia e assassinado por um tal de Conti, que soubera da grande soma de dinheiro que a vítima carregava. Conti sumiu depois  do crime e não foi mais encontrado. O companheiro de Fichtner  deixou o seguinte registro do episódio.

A minha primeira viagem levou-me em 1885 até a colônia italiana de Conde d’Deu, atual vila Garibaldi. Partindo de Neustadt (hoje Rio dos Sinos em São Leopoldo), cruzando o campo em Portão, passando por São João do Montenegro e subindo pela região montanhosa do Maratá, alcancei as colônias italianas. Na entrada da cidadezinha de Conde d’Eu, mais ou menos a 100 metros do hotel de Luiz Faraon, por todos conhecido e estimado, topei com um grupo de colonos.  Acabavam de entrar na estrada vindos do mato. (...) Contaram-me em poucas palavras que acabavam de encontrar o corpo do caixeiro Hugo Flichtner, desaparecido há dois dias mais ou menos, a 50 passos daí, numa trilha de pedestres, que levava até algumas choupanas mais adiante.
Depositaram por um momento a maca no chão. Apeei da mula, levantei o poncho de  listras marrons que cobria o corpo deitado sobre a maca. Deparei-me então com um quado assustador. O corpo do meu infeliz colega estava horrivelmente mutilado. Levara um tiro no pescoço e outro no peito além de vigoroso faconaço na mão direita que segurava uma pistola carregada. Vivenciei um triste “momento mori”, logo na primeira viagem. (Riograndenser Musterreiter, p. 23)

Num outro episódio dois caixeiros viajantes perderam a vida nos arredores e Lages. Curiosamente não foram alemães. Um, Ernesto Canoza, era italiano e o outro, Olympio Centeno, de origem lusa. Foram emboscados, mortos e o dinheiro roubado por dois indivíduos que lhes haviam conquistado a confiança e que para a populaçãoo da cidade passavam por amigos dos viajantes. 

Uma terceira vítima de roubo com morte foi o jovem viajante de 30 anos, Bruno Gans. No regresso de uma viagem a Uruguaiana  pernoitou num hotel em Alegrete em companhia de outros colegas. Carregava consigo apenas algumas dezenas de milréis, pois na época, 1912, já funcionavam agências bancárias nas cidades mais importantes, onde depositara o grosso  das arrecadações que havia feito. Dois ladrões entraram nos quartos  dos viajantes subtraindo-lhes, sem que acordassem, o dinheiro que guardavam debaixo do travesseiro. Ao entrarem no quarto de Gans, este acordou e, ao erguer-se da cama levou uma pancada na cabeça com uma barra de ferro. Apesar da violência do golpe tentou defender-se quando o segundo agressor acertou-lhe um tiro certeiro no coração.

Para encerrar os exemplos de caixeiros viajantes  vitimados em meio às características das circunstâncias do final do século XIX e do início do século XX, não pode faltar o episódio em que pereceu Eduard Sattler. Os anteriores foram  mortos e roubados. Sattler foi vítima de uma outra anomalia social da época. Um ancião de imensas barbas brancas liderava um bando de fanáticos na região de Soledade. Apresentava-se como o próprio Deus encarregado de livrar a humanidade oprimida e conduzi-la para a bem-aventurança terrena. Segundo algumas versões ele era irmão do falecido Antônio Conselheiro, morto em Canudos. O referido profeta reunira um grupo de seguidores fanáticos e acampara na altura de Encantado na margem esquerda do rio Taquari. Quirino Lucca, subdelegado de Encantado, Seu irmão João lucca, cervejeiro do lugar, o ferreiro  Pedro Mosin, o negociante João Ferri, o escrivão Ernesto Gregoir e mais alguns rapazes reuniram-se para dar apoio à autoridade policial, que pretendia inteirar-se das reais intenções dos integrantes da seita. Eduard Sattler reuniu-se ao grupo por entender  ser da sua obrigação colaborar com a tranquilidade da praça que lhe cabia atender como viajante da firma Pedro Schmitt Filho. O subdelegado, Satler e mais alguns homens cruzaram o rio de madrugada. Aproximaram-se do acampamento e o subdelegado fez saber que se encontrava aí a mando das autoridades, para certificar-se das reais intenções do grupo acampado. Convidou-os a acompanharem-no  espontaneamente. O porta-voz dos fanáticos, de nome Enea, respondeu que não se entregariam a um canalha como o subdelegado e concluiu: ”Até agora não fizemos mal a ninguém. Não roubamos e não cometemos assassinatos. Mas daqui para frente iremos assassinar e roubar e vamos começar imediatamente”. Sacou de um pistola e começou a atirar. Seguiu-se uma verdadeira batalha com tiros, faconaços e facadas. Terminada a refrega que durou poucos minutos, Sattler e o cervejeiro João de Lucca, horrivelmente  mutilados, estava, mortos. Na modesta sepultura do caixeiro viajante Lê-se: “Mori per defender os amigos” (sic). 4 de maio de 1902”.

A Revolução  Federalista na primeira metade dos anos noventa do século XIX, atingiu em cheio a atividade dos caixeiros viajantes. Seu campo de trabalho encolheu drasticamente. No interior colonial e na Campanha inúmeras casas de comércio haviam sido saqueadas, destruídas, incendiadas e abandonadas pelos proprietários. Muitos importadores e exportadores de Porto Alegre optaram por não mais exporem seus viajantes e aguardar dias mais tranquilos para retomar os negócios e arrecadar o dinheiro em haver pelas mercadorias vendidas no interior. Apesar de tudo alguns caixeiros arriscaram-se e tentaram  salvar o fruto dos negócios fechados importando em somas maiores. É evidente que eles se expuseram a todos os riscos que o dia a dia da revolução costumava oferecer. Expunham-se a serem roubados, maltratados, degolados ou sumariamente fuzilados. 

O caixeiro viajante  e poeta Alfred Wiedemann dexou um dos relatos mais dramáticos sobre a revolução federalista, ao descrever uma viagem pelo interior colonial, realizada no começo de 1894. Partiu de Porto Alegre, dirigindo-se a Teutônia e de lá subiu a serra até Bento Gonçalves e Veranópolis, onde ficava o quartel general  do mal afamado general Palmeira. Nada melhor do que reproduzir algumas passagens do seu relato.

Nesse período a atividade dos caixeiros viajantes sofreu uma interrupção total. Uma alta porcentagem das casas de comércio do interior haviam sido saqueadas e incendiadas. o comércio e o intercâmbio estagnara por toda a parte. Os caixeiros viajantes costumavam carregar consigo muito dinheiro, resultado de  de suas vendas. Nessas circunstâncias desaconselhava-se por inteiro correr o risco de uma viagem. As casas de importação de Porto Alegre preferiram que as somas a eles devidas permanecessem onde estavam até o advento de dias melhores.

Eu cavalgara a partir de Teutônia ate Bento Gonçalves, passando por Garibaldi, nas colônias italianas onde me demorei provisoriamente. A revolução fizera grandes estragos  no vale da Boa Vista em Teutônia. A muitos colonos decentes e pobres diabos  quaisquer cortara-se o pescoço, baseado em acusações sem importância.

A  casa de comércio de May que a qualquer hora oferecia hospedagem, sempre apreciada pelos caixeiros viajantes  por causa da hospitalidade dos seus proprietários, estava abandonada e saqueada. Como muitas outras vendas oferecia um triste espetáculo com as portas e tampões arrombados, os móveis queimados  e as mercadorias destruídas. Bem perto daí, junto à ponte do Boa Vista, acontecera três dias antes,  uma escaramuça muito séria entre os rebeldes e as forças do governo, os primeiros entrincheirados atrás de grossos troncos de timbaúba na margem direita do Boa Vista. De lá atiravam nos inimigos que  tinham montado seu posto numa elevação na margem esquerda, atarás da casa de comércio de Dryer. Havia ainda grandes poças de sangue na frente da venda, indicando a perda de vidas humanas. No lado das timbaúbas os mortos tinham sido precariamente enterrados. (Riograndenser Musterreiter, 1913, p. 30-40)

A experiência vivida em Boa Vista levou o viajante a adotar algumas medidas de precaução para passar com relativa segurança, tanto pelos bandos revolucionários, quanto pelas tropas legalistas.

Frente a essa situação eu formara uma imagem muito carregada da maneira como a revolução se desenrolava. Só decidi continuar a viagem depois de tomar sérias medidas preventivas. Devido às características do momento, impunha-se evitar que o viajante fosse identificado como tal. Em hipótese alguma  podia permitir-se levar bruacas. Para as tropas com que cruzava era preciso aparentar um pobre professor das redondezas ou algo parecido. Os  arreios tinham que estar no estado mais miserável possível, na medida do possível rasgados. Para não despertar a cobiça sugeria-se a mesma estratégia também com a roupa. 

Na época encontravam-se no estado muito poucos viajantes comerciais que se arriscavam a ir atrás dos seus negócios. Arriscavam-se apenas aqueles que tinham suficiente conhecimento dos lugares e das pessoas para enfrentar com sucesso as complicadas situações. Via de regra éramos vistos com desconfiança devido a suspeitas mal intencionadas  que haviam sido espalhadas. Alguns nos atribuíam o papel de espiões. A verdade é que, ao cruzarmos por contingentes maiores de qualquer uma das facções, estes nos causavam relativamente poucas dificuldades. Esperavam que dessa maneira que o abastecimento a partir de Porto Alegre não fosse interrompido por completo. (Riograndenser Musterreiter, 1913,  p. 39-40)

O autor continua contando sua viagem a Veranópolis com detalhes das vivências em meio dos bandos dos serranos do general Palmeira, acantonado naquela cidade. Ele implantara um autêntico regime de terror entre os italianos da região, obrigando a população masculina, desde adolescentes até homens velhos  usar uma fita vermelha no chapéu. Wiedemann, ele próprio, muniu o chapéu  om uma fita vermelha para poder circular livremente entre os revolucionários. Numa ida de Veranópolis a Bento Gonçalves caiu nas mãos de uma patrulha das tropas legalistas. Com muito custo conseguiu convencer o comandante que não tinha nada a ver com os revolucionários, evitando que fosse degolado  Em seguida foi obrigado a retornar com a patrulha até Veranópolis. Perto do rio das Antas presenciou a degola de dois italianos, que levavam fitas vermelhas nos chapéus, presos pela patrulha e um terceiro, montado numa mula, foi sumariamente abatido a tiros. Depois a tropa legalista entrou em Veranópolis e após sangrentas escaramuças expulsou o general Palmeira com seus maragatos. 

Pela riqueza de detalhes e a precisão dos registros, o relato de Wiedemann representa um documento sem paralelo sobre uma faceta pouco conhecida  da revolução federalista na ramificação para as colônias italianas, que na época contavam menos de 25 anos de existência. 




Bicentenário da Imigração - 37

A Velha Guarda dos Caixeiros Viajantes.

Na  raiz de uma história, seja ela de um povo, de uma instituição ou de uma atividade, encontram-se, invariavelmente os fundadores, aquelas personalidades que colocaram as bases sobre as quais  os seus continuadores puderam desenvolver o seu trabalho.Também os caixeiros viajantes contaram  no nascer e desenvolver da sua história com o seus “heróis fundadores”, personagens com características individuais  marcantes, personagens com traços épicos e românticos, empreendedores, honestos e de bem com a vida. No “Riograndenser Musterreiter” foram assim retratados. 

Um dos caixeiros viajantes mais antigos foi Hugo Emmermann. Nasceu em Dorneken e no ano de 1870 veio a Porto Alegre. A firma de ferragens  de Guilherme Bier ofereceu-lhe o primeiro emprego. Mais tarde fundou a Firma Ernesto Bemke & Cia, tendo como sócios Ernesto Bemke e  Hugo Lau. Em 1883 desligou-se desse empreendimento e começou a viajar para F. J. Friedrichs, dedicada ao mesmo ramo. Faleceu prematuramente no ano seguinte. Todos que o conheceram e com ele trabalharam guardam dele, mesmo depois do seu falecimento, a lembrança de um fiel cumpridor do dever e de um colaborador dedicado. 

Um dos representantes mais bem quistos dentre os caixeiros viajantes foi Allbrecht Lorenz. Nascido em Berlim, em 1847, emigrou, em 1871, primeiramente para Montevidéu e Buenos Aires. Passou aí por não poucas peripécias e sem sucesso empenhou-se de corpo e alma em construir alguma coisa de sólido. Quem escutasse seus relatos sobre aquele período ficava pasmo sobre as muitas maneiras com que Lorenz tentou conquistar a sorte para si, mas sem êxito. Em 1872 veio para Porto Alegre e encontrou colocação na Firma  F. A. Engel. Mais tarde empregou-se no estabelecimento de N. Lammers no ramo de tecidos. Não demorou para desligar-se por falta de rentabilidade do negocio e empregou-se como viajante na Firma de Bernhard Wahrlich. Alguns anos mais tarde abriu mão do posto de viajante para, durante algum tempo, tornar-se proprietário de terras no Caminho Novo. Depois tentou a sorte com um hotel. Tudo deu errado. Retornou então à profissão de caixeiro viajante. Por muitos anos percorreu a colônia a serviço de C. J. Schilling. Quando esa firma abriu uma filial em São Sebastião do Caí em 1891, com o nome de Otto Schilling & Cia, Lorenz assumiu a direção até o seu falecimento em 1893. 

Lorenz foi o primeiro presidente do Clube dos Caixeiros Viajantes em 26 de dezembro de 1885. Foi estimado como poucos pela população da colônia. Seu falecimento abriu uma dolorosa lacuna na pequena família dos seus companheiros de profissão. Eles ainda hoje se recordam com prazer  do seu inesgotável repertório de histórias e piadas, com as quais sabia temperar com muito bom humor qualquer encontro. Lembram seu nome também como um autêntico representantes dos bravos caixeiros viajantes alemães. 

Um outro veterano da velha guarda temos na pessoa de Heinrich Fuhrmeister. Faleceu em Wiesbaden em 1898, para onde se refugiara para descansar depois de longos anos de trabalho e de uma vida bem sucedida. Nasceu em Stöterlingen, perto de Osterwieck no Harz. Desembarcou em 1873 em Porto Alegre e empregou-se na Firma de Fazendas Hoffmann & Cia, localizada na Esquina  Caminho Novo e Doca. Mais tarde entrou em sociedade com Carl Pohlmann tocando o negócio sob a razão social de Firma Pohlmann & Cia. Em 1898 retirou-se da atividade comercial. Passou a firma a seus sucessores F. G. Bier e Emil Ullmann, atual presidente do clube dos Caixeiros Viajantes. Uma extraordinária consciência do dever e uma exatidão à toda a prova, marcaram todas as ações desse homem inteiramente dedicado ao trabalho. Infelizmente não lhe foi dado usufruir no final da vida os frutos dos seus esforços. Na cidade ou na colônia quem não conhecia o velho Fuhrmeister, um dos mais conhecidos dentre os caixeiros viajantes? Merece ser lembrado aqui. 

Não menos popular foi Albert Deistel, nascido em 12 de dezembro de 1852 em Klostermannsfeld. Imigrou para o Brasil em 1877 encontrando sua primeira colocação na firma Carlos Daudt. Nos longos anos que viajou pela colônia a serviço deste estabelecimento, conquistou muitas simpatias com sua jovialidade. Mais tarde estabeleceu-se por conta própria no ramo do comércio de ferro bruto. Também ele tinha chegado ao ponto de, após o sacrificado período de caixeiro viajante, permitir-se uma vida mais sossegada. Um mal latente, entretanto, manifestou-se de repente e de forma aguda, levando-o ao leito do qual não se ergueu mais. Seus numerosos  colegas e amigos, que, ou viajaram em sua companhia, ou mais tarde privaram sob seu telhado e em companhia da sua família, nunca esquecerão o velho e jovial camarada, a quem devem não poucas e agradáveis  iniciativas. 

A esta altura queremos lembrar o nome de outros que a morte  subtraiu do nosso meio. Infelizmente não dispomos de maiores informações sobre as suas vidas e suas atividades. São eles Jacob Sehl, Paul Meinhardt e Johann Ostmann. 

É sabido por todos que também Carl von Kosertiz há tempo cerrou os olhos. Ele que foi um homem corajoso, de visão clara e coração aberto, desapareceu prematuramente  deixando uma lacuna para o todo da germanidade no Rio Grande do Sul. Com espírito perspicaz acompanhou todos os grandes movimentos da germanidade em nosso Estado confiados à sua vigilância. Realizou muito, tanto no campo social como no político. Não se furtou em empenhar a sua liderança marcadamente germânica, mesmo que fossem iniciativas de pequeno porte. Procurava imprimir um espírito, uma forma de conduzir as coisas com objetivo de preserva-las. Um exemplo do seu empenho foi por ex., o Clube dos Caixeiros Viajantes de Porto Alegre. Como pessoa foi uma personalidade  cativante, uma figura que se impunha pela inteligência e pela bondade, sabendo influenciar no bom sentido e sabendo exercer sua liderança sem se fazer notar, sobre todas as camadas e todas as classes  da população. Os caixeiros viajantes o consideravam como um modelo em tudo, a tal ponto  que ainda hoje guardam um alto conceito deste grande batalhador. Todos sem exceção passariam pelo fogo por ele. A proa da cordialidade recíproca foi o apreço entre o tribuno popular e a “velha guarda”. 

Otto Drügg nasceu em Porto Alegre em 1853. Sua primeira atividade como viajante foi para a Casa C. J. Schilling. Depois da morte do cunhado W. Hamann, liquidou o negocio de porcelanas deste pois, sua personalidade de ferro sentia mais afinidade com ferragens. Entrou então para a Firma B. Wahrlich, percorrendo para ela a colônia durante longos anos. Mais tarde trabalhou na mesma condição pra F. O. Friedrichs. Além disso desenvolveu como sócio  a sua  atividade na Firma A. Ribeiro & Cia Sucessores e quando a firma passou para as mãos do seu irmão C. A. Drügg ou Carlos Daudt & Cia, associou-se a elas. Acreditamos não estarmos errando ao afirmar que esse veterano caixeiro viajante, ainda hoje, após longos anos, olha com orgulho para essa classe por todos respeitada e cujos quadros integra. E não são apenas seus numerosos amigos na mata virgem, como também seus colegas que demonstram a mais espontânea das alegrias quando cruzam com a figura por todos conhecida, vestindo suas roupas coloridas e montado numa soberba mula. 

Alfred Schrunk é outro desses caixeiros viajantes típicos da velha guarda. Neste meio tempo preferiu aposentar a vida de caixeiro viajante da ativa para mandar outros viajar a seu serviço. Tanto então como agora o Clube dos Caixeiros Viajantes o considera, com muita satisfação, como um dos seus associados. Também ele preservou a fidelidade e a dedicação à profissão que lhe foi tão cara. Nasceu em 1860 em Rivera no Uruguai. Teve a sua formação na Alemanha, transferindo-se em 1876 para o Rio de Janeiro e  em 1877 para Porto Alegre. Começou como funcionário da diretoria dos transportes de imigrantes para a recém começada  colonização de Garibaldi e Bento Gonçalves. Conquistou o apreço de todos os imigrantes a ele confiados, numa época em que nem  sempre recebiam tratamento humano por parte dos funcionários do governo. Prova é o fato de que quando muitos anos depois o autor dessas linhas viajou para aquela região, em especial no alto Forromeco, muitos colonos perguntavam por notícias e num tom de indisfarçável amizade  recordavam-se do seu “gordo Schrunk” e nunca se esqueciam de mandar-lhe saudações. 

Nosso velho amigo Emil Both  é do grupo daqueles que há muito descobriram que é mais cômodo deixar  que o caixeiro desbrave o caminho do que ele próprio se encarregar  da tarefa. Há anos trocou a vida de caixeiro viajante pela de um comerciante-modelo e como tal cultiva com seus ex-colegas o antigo e bom relacionamento que lhe ficou tão caro desde que, em 1870, começou a carreira na condição de empregado de Friedrichs e Birnfeld. Nasceu em Hamburgo em 1844. Em 1870 deixou Waterkant para trás e procurou a sorte em Porto Alegre. Em 1880 abriu uma loja de “delicadezas” no Caminho Novo. Não passava, na verdade, de uma máscara  da verdadeira identidade de todas as tavernas. Nas suas dependências encontravam-se constantemente, nas horas convenientes e não convenientes, os corifeus da vizinhança. Discutiam, como manda o figurino, sob o efeito de “substâncias” nobres, os males e as boas coisas da pátria e deles próprios, sem se importar com o crescente nervosismo do dono da taberna com a sua eterna conversa  fiada. Não poucas  idéias excelentes  vieram à luz sob a vigilância do tranqüilo senhor. Os companheiros de mesa assistiram com pesar a sua retirada para a sossegada contemplação de uma casa de comércio da colônia. Se hoje alguém passar por São Sebastião do Caí e não tiver idéia do que fazer com a noite, certamente não perde nada em bater na aconchegante salinha dos fundos do “tio-viajante”, onde se reúne constantemente uma alegre companhia. 

Não é a qualquer um que é reservado viajar como caixeiro durante vinte anos. Heinrich Techner realizou essa façanha. Nascido em 1852, em Wagestadt na Silésia austríaca , desembarcou em Porto Alegre em 1874. Empregou-se na casa de  comércio de fazendas de C. J. Schilling, Viajou para a firma até transferir-se para Bastian & Meyer e mais tarde para Bastian & Cia. Faleceu em 1901 depois de ter-se tornado sócio  e trabalhado 21 anos na mesma casa. 

Leopold Bastian trabalhou com Teschner na Firma Bastian &  Neyer. Nasceu em São Leopoldo em 1854 e em 1871 transferiu-se para Porto Alegre  e começou a percorrer a colônia como caixeiro viajante a serviço de H. Born. Em 1874 passou para Barbedo & Bastian e em seguida  tornou-se sócio de B & M. Muitos anos se passaram desde que encilhou pela última vez a sua mula para, de botas e esporas, apresentar aos filhos da mata virgem as maravilhas da sua firma. Seria conhecê-lo pouco se achássemos que ele não se recorda com prazer das suas atividades como jovem, que lhe serviram como escola preparatória completa para a sua condição de comerciante estabelecido por conta própria. 

J. G, Magnus foi o colega de Bastian  na Firma Barbedo Bastian. Nasceu em Torres e com 24  anos veio a Porto Alegre, em 1875. Na condição de  caixeiro viajante a serviço da citada firma, percorreu a região do mato e do campo. Passou depois para a Firma Chaves & Almeida onde exerceu a mesma função. Já em 1883 estava em condições de estabelecer-se  com firma própria. 

Philipp Becker dedicou-se durante vinte anos à profissão de  caixeiro viajante para no fim trabalhar como procurador no mesmo estabelecimento. Conhecido na praça 15 de novembro como homem de ferro, foi o único que ousou deixar-se fotografar com um chapéu pouco condizente com um caixeiro viajante. Nasceu aqui em 1853 e iniciou sua carreira no ramo das ferragens na Firma Böhmer & Dörken.

O homem que  de forma alguma conseguiu, ou melhor, não quis deixar de viajar, foi o moselano Ernst Schneiders, nascido em Cron em 1851. Desembarcou nas nossas praias  em 1871 e encontrou colocação na casa de ferragens de Th. Friedrichs & Birnfeld. Mais tarde administrou um negocio em comissão, estabelecendo-se em 1880 por conta própria em com uma firma de porcelanas, ferragens e miudezas, com ênfase especial às últimas. Costumava-se dizer: O que não se encontra em lugar nenhum em Porto Alegre, acha-se em algum lugar no Schneiders. 

Grande é o nùmero daqueles que aprenderam com mais ou menos proveito a cartilha de caixeiro viajante, na escola do Schneiders. Quem lidou durante anos com a diversidade de sortimentos, a começar pelas imensas torradeiras para preparar farinha, até as pulseiras para senhoras, podia ter certeza que aprendeu alguma coisa e encontrava colocação em algum lugar. 

Bicentenário da Imigração - 36

O Caixeiro Viajante e sua Mula

O deslocamento desde as casas matrizes de Porto Alegre em busca dos comerciantes do interior, implicava  numa série de desafios a serem enfrentados e vencidos. Para começar era preciso escolher o melhor e mais seguro meio de locomoção. Numa época em que as primeiras ferrovias estavam sendo construídas e a navegação fluvial estreava nos rios da região, a locomoção terrestre constituía-se  na forma mais rápida e mais segura para alcançar todas as picadas, também as mais afastadas, sem falar da própria Campanha, cavalgando nas condições mais precárias que se podem imaginar.

Nessas circunstâncias a mula foi a montaria mais aconselhada por ser um animal  pouco exigente, rústico, robusto, versátil, de considerável longevidade, bem maior do que a dos cavalos, embora lenta, embora despida da aura e da fama dos lances épicos do cavalo do gaúcho. Aliás a mula já se imortalizara na História do Rio Grande do Sul por ter sido um dos esteios da pujança econômica no período do charque. Caravanas e mais caravanas de mulas seguiram para o centro do Pais, umas após as outras carregadas de charque, percorrendo a lendária  estrada das mulas, partindo do interior do Estado, passando por Porto Alegre, Viamão, Glorinha, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Vacaria, Lages, atravessando todo o estado de Santa Catarina, Paraná, até São Paulo e Minas Gerais. E no momento em que no Rio Grande do Sul entrava  na nova fase de vitalidade e progresso econômico, a mesma mula foi reconvocada para participar no processo como peça fundamental.  Desta vez não mais como mera besta de carga, mas como portadora dos intermediadores do comércio, que carregavam em sua bagagem algo a mais do que amostras, faturas, encomendas e pagamentos. No seu lombo viajavam  também as novidades e as notícias, vindas da capital do Estado, do Pais inteiro e do grande mundo, para repercutirem  nos povoados e moradores mais distantes do interior colonial e da Campanha.

Dessa forma o caixeiro viajante e sua mula compunham uma simbiose quase perfeita capaz de desincumbir-se  a contento da tarefa que lhes cabia: garantir o pulsar da economia regional veicular a cultura, fazer circular informações de toda a ordem entre a capital, os centros urbanos e as picadas mais remotas. Por seu intermédio chegavam as notícias dos acontecimentos nacionais e internacionais. Desempenhavam, portanto,  o papel do jornal, do rádio e do correio. Atuavam, enfim, como poderoso antídoto contra o isolamento, a estagnação, a involução e o empobrecimento econômico, social, cultural e físico das comunidades do interior.

Em momento algum da história a mula, esse animal tão útil em inúmeros países e, ao mesmo tempo considerado o escravo entre os animais, desprezado, símbolo da falta de inteligência, da teimosia irracional e de uma estupidez primigênia e insanável, experimentou um reconhecimento de sua utilidade tão explícita e tão sincera como lhe foi dedicada pelo caixeiro viajante. Nos versos com o titulo “Mula Morta”, Cyclop (pseudônimo do caixeiro viajante Alfred Wiedemann) cantou em versos o que a mula significou para esses agentes comerciais. 

Era uma vez um caixeiro viajante que há muitos anos cavalgava a sua mula. Onde quer que se encontrasse, irradiava o seu alto astral, porque a profissão de caixeiro viajante lhe dava prazer. Tinha uma velha mula que não venderia nem  por cinco contos. Cavalgava-a  conforme as regras da velha escola, enfrentando sem medo, as pequenas e as grandes dificuldades. Em muitas ocasiões pelearam duras escaramuças juntos. (Riograndenser Musterreiter, p. 157)

Arthur Spindler, outro caixeiro viajante caracterizou, também em versos e na forma de diálogo a relação entre o caixeiro e sua mula.

Tens quase trinta anos. Passaste por inúmeras borrascas. Sempre me carregaste em segurança nas horas negras e nos momentos agradáveis. Nunca vacilaste ou renegaste a caminhada. Passamos juntos, apenas nós dois, incontáveis e inesquecíveis noites no meio do mato. Inteiramente a sós cruzamos o campo, tendo como companhia apenas as cobras, as rãs e as corujas. Apesar de não conversares comigo, eu te entendia. Sem errar e para a minha sorte interpretava o teu relinchar ao longe. É verdade, não poucas vezes te evadiste do potreiro durante a noite. Mas a tua magnífica voz indicava ao dono irritado onde te encontravas. Não demorava e ouvia-se: “peguei!” E  quantas não foram as memoráveis  ocasiões em que nós dois atolamos no lodo. Foi preciso abandonar a  sela e os estribos para depois continuar. Teu apetite foi sempre grande e sadio. Mostravas-te  satisfeito quando te serviam tanto milho, quanto raízes ásperas, pasto picado ou palha seca. E quando os outros zombavam de mim, tu me demonstravas simpatia. Na condição de uma autêntica mula não me abandonaste diante da ameaça de um acidente iminente. Agora nunca mais passarás necessidade. No dia em que eu próprio assumir a chefia, até o dia da tua morte tranqüila, irás privar comigo pois, só te montarei para passear. 

E na poesia “O velho Caixeiro Viajante”, novamente de Alfred Wiedemann, encontramos os versos carregados de nostalgia. “Já não tenho mais mula para encilhar e, como nos velhos tempos, cavalgar por aí, pelo mundo afora. Meu velho amigo “Hans” continua em paz o  teu caminho. Nós dois nos entendíamos tão bem, nós dois, tu e eu” (Cyclopiade, p. 88)

E numa outra poesia Wiedemann volta a homenagear a mula.

Nós próprios estamos curtidos como nunca e entendemos de todo o tipo de negócios. E contudo a estimada mula nos é tão familiar como se fosse  um parente nosso. Nas viagens cuidamos de nós por último, como o manda o dever de cavaleiro. Trata o “Hans” primeiro, depois senta na mesa. (Cyclopiade, p. 158)

E um pouco mais adiante.

O orelhudo nos é muito útil na viagens. Onde quer que nos demoramos em sua companhia, na casa do Jacó Rick ou de Matias Lütz, a conta é religiosamente dividida. Em não poucas colônias ouve-se dizer no momento em que se pretende regatear o pernoite: O pasto para o senhor e sua mula importa em vinte e cinco mil réis. (Riograndenser Musterreieter, p. 64)

O viajante Wiedemann dedicou a seu colega uma poesia  intitulada: “O caixeiro viajante”, por ocasião da Fahnenweihe em 1886, com os seguintes versos, que reproduzimos em prosa. 

Bem cedo às cinco da madrugada encilha e com o pôr do sol encerra a caminhada, caso a mula não se tenha esquecido de andar neste meio tempo, ou assustada o tenha atirado no barro. Por horas, sem parar, conversa com sua companheira, a mula. (Riograndenser Musterreiter, p. 108)

Para encerrar os comentários sobre o relacionamento entre o caixeiro viajante e a sua mula, apenas mais uma amostra extraída da poesia “Mula Morta” de Alfred Wiedemann. Depois de descrever a morte da mula estaqueada nas ripas de um alambrado ao saltar do cercado para a roça.

O que seria capaz de causar-te tristeza maior? As lágrimas escorriam como a resina. Meu bom e estimado Emil Barz, a tua dor é compreensível para qualquer um. Depois que levamos até o local definitivo aquela que por tanto tempo te serviu com fidelidade, entre lamentos escreveste, em meio às faturas, no teu livro de viagem: Aí jazes sobre a relva verde, tu que foste o maior prazer para os meus olhos. Estás livre agora, para gramar descansada, ó mais estimado e mais elegante entre os animais. Quem daqui em diante carregar as bruacas pela picada, já feitas sob medida para ti? Quem trotará pela noite levando a sua carga com tanta segurança? (Riograndenser Musterreiter,  p.157)

Bicentenário da Imigração - 35

Enquanto no verão o sol castiga o viajante, no inverno os lodaçais, os arroios e os rios transbordados, dão-lhe muito trabalho. O animal só avança passo a passo pelos caminhos enlameados que cruzam o mato. Transpor os vaus impetuosos ou os rios numa canoa, segurando no cabresto o animal que nada ao lado, transforma-se numa verdadeira batalha. A mula resfolega ruidosamente, assusta-se e é preciso muito cuidado para que não termine debaixo da canoa e a vire. Nesse tipo de   viagens e travessias alguns viajantes e muitos colonos já perderam a vida. Nas  estradas do campo formam-se no inverno extensos atoleiros, na maioria das vezes de pouca profundidade. Passá-los montado não significa propriamente uma diversão. Além de tudo o caixeiro é obrigado a viajar sob muita chuva. Caso resolvesse aguardar tempo bom, estaria condenado a mofar, por semanas, numa casa de comércio qualquer, retido pela chuva, inconveniente que de qualquer forma lhe acontece nas ocasiões em que os arroios sobem repentinamente, tornando a travessia impossível por alguns dias. O poncho de pano azul forrado com flanela vermelha ou o poncho de borracha protegem-no da chuva que cai por dias seguidos. É inevitável  que os pés se molhem e às vezes a água entra nas botas. O viajante toma aqui e acolá um copinho de cachaça de cana ou de conhaque para prevenir-se contra as más conseqüências que mais adiante sobrevêm na forma de reumatismo. 

Viajar pela Campanha é coisa  bem diferente. Em primeiro lugar muitos que viajam por lá o fazem somente de trem. A maioria deles são brasileiros. Não se trata de caixeiros viajantes no rigoroso sentido do termo. Nas cidades da Campanha as coisas se apresentam muito mais civilizadas do que nas colônias alemãs e italianas. Não é costume que o viajante coma ou beba algo nas casas de comércio com o objetivo de receber encomendas. É obrigatório, porém, que no dia da chegada faça uma visita aos fregueses, os saúde sem falar em negócios, a não ser, no máximo de passagem. Esse procedimento chama-se “passar pomada”.  Passar pomada ou um certo cerimonial é indispensável no relacionamento comercial com os brasileiros. Se eventualmente algum comerciante for até o hotel, o viajante costuma jogar bilhar ou cartas com ele  o convida para tomar uma cerveja, vinho chartreuse ou conhaque. Pode acontecer também que o viajante faça uma visita na casa de comércio. No verão senta-se na frente da casa com o comerciante e conversa com ele de preferência sobre política. Todo o brasileiro com alguma formação é um político apaixonado. É óbvio que a última guerra civil com  seus horrores amorteceu de alguma forma o fanatismo partidário e reduziu drasticamente as manifestações de natureza política.

Depois de passar a indispensável pomada, o viajante precisa certificar os fregueses que, sem falta, no dia seguinte terá que viajar. Desta forma, na maioria dos casos, confiam-lhe encomendas de considerável volume. O relacionamento entre o viajante e o comerciante  costuma ser de total cordialidade. O comportamento usual adotado pelos viajantes seria interpretado como pura barbárie entre os polidos brasileiros. 

As viagens mais  perigosas e mais difíceis são aquelas que adentram fundo na Campanha, ou avançam, quem sabe, até a região da fronteira, território dos bugres, dos índios mansos, que foram os primitivos donos das terras. Partindo da última estação do trem, o viajante embrenha-se no campo sem fim. Cavalga em companhia de dois peões, quase sempre  descendentes de bugres. Na sua frente tange de 20 a 30 mulas de reserva. Parte delas carrega a indispensável bagagem  para a viagem, utensílios de cozinha e gêneros alimentícios. Muitos viajam em diligências de sua propriedade pois, na Campanha as estradas são largas e transitáveis. Mesmo assim, não pode dispensar os animais de reserva e os peões que são também os vaqueanos ou os conhecedores do caminho. Assim cavalga-se ou roda-se dias a fio por estradas empoeiradas  no verão e cobertas de lama no inverno, em busca de uma localidade, de uma cidadezinha e de  fregueses. Durante a viagem surge aqui e acolá uma fazenda que, em caso de emergência, oferece um pernoite hospitaleiro. Encontram-se também vendas isoladas que cobram preços fabulosos por qualquer produto. Costumam homiziar tipos rudes tomando cachaça. Trata-se dos assim chamados gaúchos, tropeiros e criadores de gado, a serviço de fazendeiros das proximidades. São indivíduos selvagens, dispostos a matar. É preciso responder-lhes cordialmente e com a palavra certa, ao convite de tomar com eles um copo de cachaça, sob pena de correr risco de vida. É preciso evitar que percebam que o viajante carrega muito dinheiro. Naquelas ermos, naquelas regiões vazias de gente, onde o braço da lei não chega, em meio a essa gente rude e meio selvagem, meio índios, os mais pavorosos assassinatos, motivados ou pela política, ou por mulheres, ou por cavalos, ou por dinheiro estão na ordem do dia. Por causa dessa situação os  viajantes não poucas vezes preferem acampar ao relento e não raro não lhes resta outra alternativa. Os peões e o próprio viajante revezam-se montando guarda, para precaver-se contra assaltos de ladrões. Uma viagem dessas pela Campanha costuma durar três meses, no final dos quais o viajante  carrega somas muito grandes. Os meios para enviar o dinheiro diretamente aos centros de comércio estão pouco desenvolvidos pois, no interior antigamente não havia bancos. Até há pouco os pagamentos eram feitos aos próprios viajantes. É uma vantagem que o nosso dinheiro é de papel facilitando com isso o seu transporte.  No tempo em que circulava ouro e prata, o viajante se via obrigado a aceita-lo e carrega-lo em mulas. (cf. Riograndenser Musterreiter).

O “Riograndenser Musterreiter”  resumiu da seguinte forma a relação que se estabeleceu entre os caixeiros viajantes, os seus patrões em Porto Alegre e os comerciantes do interior colonial.

Quanto maior o tamanho dos sacrifícios que cada comerciante individualmente seria obrigado a fazer para resolver seus problemas, deslocando-se a Porto Alegre, tanto mais bem vinda era a intermediação do viajante comercial, livrando-o de tamanho incômodo e transtorno. Tanto maior costumava ser também o reconhecimento para com aquele que providenciava para a visita do seu caixeiro ocorresse de acordo com uma programação prévia, permitindo que o dinheiro e a encomendas estivessem pontualmente providenciadas.

A consequência direta dessa reciprocidade no atendimento dos interesses mútuos, foi o estabelecimento de uma grande cordialidade entre os comerciantes e os viajantes. Pressionada pelas circunstâncias dos anos de maus negócios que seguiram mais tarde, em poucos casos, essa feliz relação não logrou resistir. Mesmo assim, para felicidade nossa, sobreviveu até hoje ao menos na sua essência. Por essas mesmas razões o papel do caixeiro viajante assumiu importância e influência maior do que poderia ter sido em circunstâncias menos adversas. 

Exigia-se dele, em primeiro lugar, um físico sadio, capaz de suportar sem problemas, durante meses, as oscilações do clima, os temporais, as chuvas, o calor, o frio. Longas e cansativas eram as cavalgadas pela mata úmida, cruzando vales, enfrentando as corredeiras dos rios e os leitos pedregosos dos arroios que descem das encostas. Não poucas vezes foi preciso pernoitar em meio  da mãe-natureza. As próprias moradias dos amigos comerciantes que lhes serviam de hospedaria, ofereciam acomodações deveras modestas. Quem não fosse um cavaleiro experimentado ou quem não suportasse cavalgadas ininterruptas, por dias seguidos, não tinha estofo para a tarefa. Não se tratava apenas de suportar os riscos da viagem. Impunha-se também manter uma perene boa disposição. Naquele tempo como hoje era proibido apresentar-se aos fregueses de cara amarrada, apesar de torrado pelo sol ou depois de a cavalgadura afundar até a barriga no lodaçal e a bombacha, o poncho e as botas exibirem as marcas inconfundíveis do acontecido. 

Além de um bom relacionamento pessoal  havia outros predicados que não podiam faltar. A condução e o fechamento correto dos negócios durante as viagens, exigia dele, antes de mais nada, um espírito sadio e jovial, visto que as circunstâncias permitiam apenas três ou quatro visitas anuais aos fregueses, urgia aproveitar a ocasião e valorizar o curto espaço de tempo disponível e resolver, sem deixar dúvidas, questões de alguma forma relacionadas com o comércio. 

Em todas as eventualidades o vendeiro encontrava no caixeiro viajante um conselheiro oportuno e leal. Pelo fato de os jornais não chegarem a tempo, cabia-lhe informar sobre tudo o que se passava no mundo. Veiculava em primeira mão tanto as notícias relativas ao grande mundo, cujos altos e baixos repercutiam, por seu intermédio, nas picadas mais distantes, quanto os preços da banha e do feijão, tão importantes no interior colonial. Os caixeiros viajantes tinham obrigação de estar a par da política do Pais pois, já naquela época, oscilações neste particular interferiam nos interesses comerciais. Em muitos casos cabia a ele assumir as tarefas de correio que funcionava mal, devido às precárias condições das comunicações. Pelo fato de circular por toda a parte e devido à sua lendária disposição para servir, eram-lhe confiadas as mais diversas encomendas. 

As circunstâncias naquele tempo eram evidentemente patriarcais. O tratamento familiar por “tu” que costumava predominar no relacionamento entre fregueses e caixeiros, sugere bem a atmosfera de cordialidade e de transparência em que se processava a valorização recíproca. Observando que hoje muita coisa mudou para pior no que se refere à transparência, fazemos votos para que  esse “tu” tão simpático, torne a significar o símbolo universal de uma confiança que reboa do fundo da alma. 

É óbvio que todos os acertos feitos pelo viajante tinham a força de um compromisso, inclusive naqueles casos em que não se exarava nenhum documento escrito. Acontecia que o vendeiro se acostumava a enxergar no viajante o seu “patrão”, no lugar do chefe deste, a quem, na maioria dos casos, costumava conhecer apenas pelo nome impresso em negrito nas faturas. Resultava daí uma certa facilidade quando mais tarde o viajante resolvia estabelecer-se por conta própria. Seu relacionamento com a população da colônia e da Campanha facilitava-lhe a vida no momento em que era preciso um bom volume de capital vivo, quantia que em outras circunstâncias teria sido indispensável para montar uma firma própria. 

Explica-se assim que a maioria das casas de comércio alemãs na Porto Alegre de hoje, têm como proprietários, antigos caixeiros viajantes. Em alguns casos foram admitidos depois de pouco tempo como sócios das casas para as quais tinham viajado. Em outros casos as casas foram novamente postas a funcionar pelos antigos viajantes. Pois, na época havia no âmbito do grande comércio espaço e campo de ação suficientes para os que dispunham de uma boa dose de coragem. Todos ganhavam bem, o agricultor, o vendeiro, o pequeno e o grande comerciante. Quem na época não era vítima de algum infortúnio todo especial em seus negócios, conquistava, quase sempre, uma situação sólida.

E com que boa disposição o caixeiro viajante  partia para o seu campo de trabalho pois, a vida na colônia era tranqüila, sossegada, ao ponto de ser quase mais bonita do que a da cidade. E que satisfação quando se espalhava a notícia: o viajante X estará com certeza no Kerb! Sem dúvida haveria muitas novidades e algo para rir. Das imensas bruacas de couro o seu dono costumava desempacotar, além das amostras de mercadorias, muita outra coisa, da qual nunca se tinha ouvido falar e que fornecia assunto para as conversas de velhos e jovens, até a próxima vista.

O texto que acabamos de citar reproduz com grande fidelidade o perfil do caixeiro viajante da primeira geração. Cronologicamente situa-se nas últimas décadas do século dezenove e na primeira do século vinte. Corresponde à fase  de pioneirismo desse tipo de profissão. O isolamento físico, social, cultural e econômico das comunidades do interior colonial, geograficamente delimitadas pelas bacias fluviais que têm o seu ponto de convergência  em Porto Alegre, capital do Estado. É nesse cenário  geográfico, em meio a essa realidade humana e nessa conjuntura histórica, que é preciso  inserir, compreender e explicar o singular personagem que foi o caixeiro viajante. Os representantes comerciais de hoje, herdeiros remotos da profissão, em muito pouco lembram o que foi e principalmente o que ele significou no final do século XIX e no começo do passado. 

Encontramos assim entre os caixeiros viajantes daquela época, figuras  sadias de corpo e espírito. Desenvolveram uma certa originalidade, conseqüência da vida livre e da consciência do cumprimento fiel do dever nem sempre fácil. Essa originalidade não era, com certeza, o lado pior da personalidade, visto que, aliada a uma postura de legítima auto estima, só tinha condições de surgir e desenvolver-se onde reinava uma concepção de vida natural, sem artificialismo, avessa à estreiteza tacanha. A maneira harmoniosa de comportar-se imprimia a marca de todo o seu modo de pensar e sentir. Despertava nos círculos que frequentava uma transparência sincera e de um caráter digno de admiração, apesar da aparente rudeza. (Riograndenser Musterreiter, p. VIII)

Os elementos, as características, as virtudes que compunham a personalidade do caixeiro viajante, cobrem um largo espectro. Vão desde um imperturbável bom humor, mesmo nos lances mais difíceis da vida profissional, passando pela cordialidade, pelo amor à vida de quase aventureiro, pela disposição de enfrentar qualquer tipo de situação, pela alma de poeta romântico, pela total transparência na maneira de ser e agir, pela honestidade à toda a prova, pela confiabilidade, pela lealdade. Todas essas virtudes foram de alguma forma imortalizadas em prosa e verso, pelos próprios caixeiros viajantes ou pelos seus admiradores.

Há, entretanto, mais uma característica que torna os caixeiros viajantes digno de nota. Na sua quase totalidade foram personalidades cultas que manuseavam  com maestria a língua, tanto em prosa como em verso. O exemplo mais acabado é a coletânea  de poesias do caixeiro Alfred Wiedemann, conhecido pelo pseudônimo “Cyclop”, uma alusão ao personagem mitológico “Cíclope” que tinha um olho só na testa (Wiedemann só tinha um olho). Seus versos retratam com rara felicidade e precisão as peculiaridades do  período histórico que vai de 1890 a 1920, apreciado de uma forma nada convencional pois, o autor era um representante comercial que escreveu poesia. A quase obsessão literária dos caixeiros viajantes fez com que uma série de relatos  das assembléias do Clube dos Caixeiros Viajantes da década de 1890, fossem redigidas em verso.

Alem dos versos de Alfred Wiedemann  encontram-se no Riograndenser Musterreiter  versos de Carl Naschold, Arthur Spindler, Ernst Niemayer, Traugott Bechler, Natas (pseudônimo de Arno Phillip), Wilhelm Wustrow, Wilhelm Süffert, Emil Schlabitz.

 As circunstâncias peculiares de tempo e espaço durante as décadas finais do século dezenove e as primeiras do século vinte, plasmaram o personagem inconfundível do caixeiro viajante, familiar em todo o Rio Grande do Sul. Assim como é impossível conceber um gaúcho sem o cavalo, o laço, a bombacha, o pala, as botas e as esporas, assim a mula, as botas, as esporas, o poncho, as bombachas e as bruacas de couro, compunham o perfil desse centauro peculiar que foi o caixeiro viajante.

Bicentenário da Imigração - 34

O Caixeiro Viajante

A partir dos anos cinquenta do século XIX, a colonização alemã no Rio Grande do Sul, entrou na fase definitiva de consolidação. Os primeiros vinte e cinco anos, 1824-1950, caracterizaram-se pela abertura  das primeiras picadas  na Colônia de São Leopoldo e arredores. Os imigrantes tomaram pé  na terra estranha e habituaram-se a lidar com as peculiaridades e os obstáculos que encontraram. Superadas as principais  dificuldades de  adaptação às novas e desconhecidas circunstâncias, tanto de natureza geográfico-ambiental, quanto do manejo da mata e dos solos, como dos sócio-culturais e políticas, chegara o momento de colher os primeiros frutos concretos. Também neste período inicial, a capacidade do imigrante de lidar com situações extremas de conflito começaram, gradativamente a forjar o perfil étnico do teuto-brasileiro. A Guerra dos Farrapos, 1835-1845, apesar de todos os seus lances deploráveis, teve também seus resultados positivos. Os imigrantes submetidos a um duro aprendizado demonstraram  que tinham estrutura e versatilidade para, não apenas sobreviver, mas prosperar, numa província marcada por constantes distúrbios  de natureza social e política.

Ao mesmo tempo em que a região colonial se consolidava e começava a dar sinais evidentes de prosperidade, estabeleceram-se nos centros urbanos como Rio Grande, Pelotas e, especialmente, Porto Alegre, casas de importação e exportação, especializadas nos mais diversos  ramos, ao lado de estabelecimentos comerciais de todos os tamanhos.  Rio Grande o único porto marítimo do Rio Grande do Sul, liderou o grande comércio ligado à importação e exportação. Em Pelotas localizaram-se  os grandes abatedouros, em torno dos quais nasceram indústrias alemãs que manufaturavam as sobras: sebo, vísceras, patas, ossos, etc., transformando-as em volumes apreciáveis de sabão, velas, cola, farinha de osso e adubo.

Dois fatores fizeram com que, a partir de 1850, Porto Alegre assumisse, gradativamente, o papel de pólo comercial e industrial maior do Estado, relegando Pelotas e Rio Grande para um segundo plano. 

O primeiro motivo foi avanço da colonização para fora do vale do Rio dos Sinos. A partir da década de 1850, a porção média das bacias do Caí, Taquari, Pardo, Jacuí até Santa Maria da Boca do Monte, foi sendo rapidamente desbravada. Em poucas décadas os excelentes solos daquelas bacias fluviais foram conquistadas à mata e transformadas em ricos celeiros de produtos agrícolas: feijão, milho, tabaco, batata, mandioca. Produziram grandes volumes de banha de porco, resultado do aproveitamento do milho e da mandioca como ração básica na criação de suínos. Quase todo o feijão consumido em São Paulo e no Rio de Janeiro procedia do Rio Grande do Sul, mais especificamente da  região colonial alemã. 

Em meio ao avanço sobre as novas fronteiras de colonização, definiu-se rapidamente uma eficiente rede de comunicação e circulação, via fluvial, com Porto Alegre. As cinco bacias fluviais principais, colonizadas por alemães e mais tarde pelos italianos e poloneses, integraram uma vasta região geo-econômica, que convergia para Porto Alegre, capital do Estado, sede do governo e da burocracia oficial, centro financeiro, comercial e industrial e principal porto de navegação interna, porta de saída  e de entrada, via porto Rio Grande, para a exportação e importação de mercadorias, produtos e manufaturados. 

Ao mesmo tempo cresceu o volume de excedentes de produção tanto nas áreas de colonização mais antiga como nas recentemente desbravadas. A boa cotação do feijão, da banha, do tabaco, da farinha de mandioca, no mercado nacional e internacional, aumentou cada vez mais a circulação de riqueza, elevou o nível de vida e tornou a população cada vez mais exigente. O resultado desse quadro fez-se visível numa exuberância crescente da atividade econômica. Cresceu a procura por produtos importados não só nos centros urbanos maiores, como nas picadas coloniais mais distantes. 

Neste contexto consolidou-se, a partir da década de 1850, uma complexa rede de comércio, cobrindo toda a região colonial, compreendendo as  bacias fluviais que formam o Guaíba, tendo como ponto de convergência Porto Alegre, capital do Estado. Simplificando o esquema, essa rede apresentava as seguintes características. Nas picadas do interior colonial estabeleceram-se   casas de comércio locais, as “vendas”. Elas compravam dos colonos os excedentes produzidos por eles: banha, feijão, batata, farinha de mandioca, galinhas, ovos e outros mais. Essas mercadorias eram transportadas e entregues a estabelecimentos intermediários de maior porte, localizados junto aos terminais de navegação fluvial de São Leopoldo no Rio dos Sinos, em Caí e Montenegro no rio Caí, em Estrela, Lajeado e Mariante no Taquari, Santa Cruz do Sul no rio Pardinho, Candelária no Rio Pardo,  Cachoeira do Sul no Rio Jacuí. O mesmo fenômeno verificou-se  nas estações que foram sendo implantadas ao longo da ferrovia, com seus ramais que cruzavam a região colonial. As mercadorias eram embarcadas no trem ou em barcos que os entregavam  nas grandes casas de  comércio sediadas em Porto Alegre. Toda essa movimentação dava-se também no sentido contrário. No retorno aos portos fluviais ou às estações do trem no interior, barcos e trens transportavam as mercadorias para cobrir as necessidades do interior colonial. Descarregados e armazenados em depósitos e armazéns, eram transportadas em carroções, puxados por várias parelhas de mulas, até as vendas nas picadas mais remotas. 

À primeira vista o esquema parece simples e funcional. Havia, porém, um problema vital a ser resolvido. Sem a sua solução a máquina carecia de lubrificação: o intermediário nos negócios, o personagem capaz de manter vivas  ininterruptas nas relações comerciais entre todos os elos da cadeia, partindo do grande comércio atacadista da capital, passando pelos entrepostos maiores e terminando na venda mais rústica no  remoto interior colonial. Para exercer este papel é que surgiu a figura do Caixeiro Viajante, o personagem encarregado de percorrer a região colonial e oferecer as novidades que estavam sendo apresentadas pelas casas importadoras de Porto Alegre e depois retornar com as encomendas feitas pelos comerciantes.

Foram circunstâncias todo peculiares sob as quais foi posto em movimento e se manteve o vinculo entre o nosso centro de comércio e o “hinterland” mais afastado do Rio Grande do Sul.

Com a finalidade de superar as dificuldades dos comerciantes do interior e para assegurar o intercâmbio com o grande centro de comércio, utilizando os precários  meios de transporte, impôs-se há muito tempo a necessidade de fazer viajar representantes  credenciados. Sua Missão resumia-se na procura do “vendeiro” no seu próprio estabelecimento, oferecer-lhe  a oportunidade de remeter seu dinheiro sem que fosse obrigado a abandonar o seu negócio por um tempo maior, encomendar as mercadorias tomando como base as amostras apresentadas pelos caixeiros viajantes. 

Foi preciso percorrer vastas e inóspitas regiões cobertas de mata, cortadas por caminhos raros e quase intransitáveis. Na época também já se viajava pelas intermináveis planuras verdes da Campanha. As ferrovias ainda eram desconhecidas entre nós. Vapores pequenos e precários percorriam, aqui e acolá, o Rio Jacuí e o Sinos, ou ligando em viagens irregulares os entrepostos comerciais do Taquari, o Porto dos Guimarães (São Sebastião do Caí) e o  afamado “Passo” de São Leopoldo. (Riograndenser Musterreiter, p. VII)

No período aqui considerado, 1880-1930, o cenário de trabalho dos caixeiros viajantes cobria, não só toda a área de colonização alemã, de Taquara a Santa Maria e os primeiros núcleos de Passo Fundo, Soledade, Cruz Alta, Ijuí, Santa Rosa, .... Incluía também as colônias italianas mais antigas, principalmente o eixo Garibaldi - Bento Gonçalves – Veranópolis, assim como praticamente toda a Campanha. Nos relatos de caixeiros constam viagens para fazer a praça até em Uruguaiana. Não há necessidade de insistir que essas viagens implicavam num elevado teor de risco, por uma série de circunstâncias próprias da época. 

Uma viagem no lombo de uma mula até Cachoeira do Sul, até Veranópolis ou até Alegrete e Uruguaiana, por si só significava já um desafio gigantesco. Exigia do caixeiro um preparo físico e uma disposição psicológica fora do comum. Para as pessoas de hoje, acostumadas a todo tipo de facilidades, fica difícil imaginar sequer uma cavalgada de semanas e até meses em condições de dificuldades extremas. 

Falar do caixeiro viajante significa falar da natureza, da alma da prática comercial na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. O oposto é também verdadeiro. Querer caracterizar o comércio daquele período exige que se fale do papel fundamental que nele coube ao caixeiro viajante. Uma descrição do caixeiro viajante Carl Naschold de 1913, imortalizou o caixeiro no seus traços mais característicos. Reproduzimos o texto traduzido do original alemão, publicado no Riograndenser Musterreiter: 


A vida do caixeiro viajante rio-grandense constitui-se num maravilhoso poema. Quem sabe apresenta-se alguém que reúna essa jóia  numa única canção. Reúna numa única canção esse apetite indomado, essa atividade  cheia de aventuras e persistência em meio a uma natureza toda peculiar, em meio às florescentes colônias alemãs e à Campanha rica em cidades. 

O benigno leitor e a sempre graciosa leitora queiram emprestar asas à imaginação e deixar-se transportar comigo até uma das picadas alemãs, isto é, viajar comigo por uma daquelas estradas que cruzam as picadas alemãs. Vamos a cavalo e avançamos num trote lento e suave como é costume aqui, para não cansar  demais nem o homem nem o animal. À direita e à esquerda áreas  de mato alternam-se com potreiros, roças cultivadas e mordias. Essas últimas costumam ficar a uma boa distancia umas das outras e um pouco recuadas da estrada. Um muro ou uma cerca protegem as moradias e os potreiros, evitando que cavalos, reses, porcos e outros animais se evadam. 

Aproximamo-nos de uma casa que fica perto da estrada. Diante da porta encontramos, em alguns casos sim e outros não, algumas árvores de sombra. O que nunca falta são postes e sobre eles traves  transversais, ou pelo menos argolas para prender os nossos cavalos. Encontramo-nos diante de uma casa de comércio, de uma assim chamada “venda”. Apeamos pois, a nossa intenção é conhecer caixeiros viajantes que tem como cenário de trabalho as vendas. A atenta dona da venda se apressa em oferecer uma cadeira para a nossa bela leitora, facilitando o desmontar com o vestido comprido. As mulheres da  colônia, na maioria dos casos,  costumam andar a cavalo com vestido curto, sendo que algumas cavalgam bem à maneira dos homens. Saímos da luz ofuscante do dia e entramos na agradável penumbra da venda protegida da claridade com cortinas. Saudamos os presentes com um aperto de mão como é costume no País, quando são de alguma forma conhecidos. Depois sentamo-nos num banco em frente à mesa da loja chamada balcão. As senhoras que nos acompanharam sentam-se em cadeiras que lhes são oferecidas. Pedimos uma garrafa de cerveja nacional pois, a cavalgada ao sol nos rendera uma grande sede. Para as senhoras há licor, água com extrato de framboesa  e doces.

Apesar dos muitos detalhes típicos a serem ainda observados está na hora de nos ocuparmos com o caixeiro viajante. Encaminhamo-nos até a porta e eis que se aproximam dois cavaleiros, sobre a cabeça chapéus de abas largas e caídas, um poncho esvoaçando ao vento, lenço no pescoço, botas de cano alto munidas com grandes esporas, o relho, com a direita segurando chicote de cabo curto, a pistola na guaiaca, o cinturão com a bolsa do dinheiro, confeccionada de pele de castor ou outro animal qualquer. Ainda não é certo que se trata de caixeiros viajantes  pois, este é o traje nacional do Rio Grande do Sul e o mais adequado para as viagens do interior. Um dos homens ainda moço carrega atrás de si, pendendo de ambos os lados da cela, duas grandes bruacas de couro marrom. É o distintivo do caixeiro viajante. Passam por nós, erguem levemente o chapéu, saltam das mulas, passam o cabresto pela argola do poste o prendem-no na trave transversal. Entram na venda e saúdam a vendeira com um aperto de mão. Perguntam pelo dono da casa, pela família toda e de modo especial pelas filhas da casa. Os colonos presentes também os  saúdam como  velhos conhecidos. O motivo está nas muitas festas na colônia de que os viajantes participam e em cada uma das ocasiões em que se acham presentes, cabe-lhes o papel mais importante. São dançarinos desenvoltos e valentes bebedores. Os  filhos da colônia a quem surrupiam as garotas reconciliam-se com eles pela sua maneira espontânea e elegante. Mandam servir dúzias da “inglesa”, isto é, cerveja estrangeira. Conhecem as piadas mais engraçadas, sabem contar os acontecimentos políticos e são o jornal vivo para a colônia. Cabe a eles formar a opinião pública dos colonos e dos comerciantes do interior. Durante a recente revolução rio-grandense eram vistos pelo governo como perigosos propagandistas dos maragatos, em outras palavras perturbadores da ordem, o que obviamente não passou de uma injustiça. Com raras exceções defendiam o único ponto de vista razoável: manter as colônias neutras frente à guerra fratricida de brasileiros contra brasileiros. Os caixeiros viajantes representam em todo o caso um poder. São os pioneiros do comércio alemão e os defensores do germanismo. Conquistam muitos amigos e muito apoio na colônia, são convidados para padrinhos e a maioria encontra suas mulheres nas melhores famílias da colônia.

A vendeira informa aos dois caixeiros que o marido saiu a cavalo para voltar em seguida. Não vai demorar porque à noite haverá “música”, isto é, baile na casa, para o qual estavam obviamente convidados a ficar. Em tais ocasiões os caixeiros são hóspedes sempre bem vindos para os comerciantes pois, gastam bastante e garantem a movimentação para o estabelecimento. O dono das grandes bruacas, um viajante de fazendas, convenceu-se logo que com o reboliço na casa não havia esperança para qualquer tipo de acerto e resignou-se com a sorte. Mas o outro viajante para secos e molhados, isto é, mercadorias para o consumo na colônia pretendia continuar a viagem, porque tinha a concorrência nos calcanhares e, com certeza, não é nenhuma diversão quando um outro tira a nata do leite. A gente mesmo prefere fazê-lo. Enquanto tentava argumentar entrou o vendeiro, saudou os dois com alarde: “viajando de novo por aqui?” Sacode-lhes amigavelmente as mãos  enquanto os interpela: “Se não ficarem para o baile não compro nada. Hoje não se faz negocio”. Depois desta o viajante para secos e molhados conformou-se também. O primeiro levou a sacola com as roupas, os livros de leitura e um par de chinelos para dentro e o segundo suas grandes e pesadas bruacas de couro, presas uma na outra com uma longa tira. 

Desencilharam as mulas, colocaram uma caixinha com meia quarta de milho na frente de cada uma. Depois de comerem o milho soltaram-nas no potreiro, uma ampla área de pasto cercada com arame. Os cavalos e as mulas que pastam  no potreiro costumam ser reunidas em torno de um grande coxo comum no qual recebem milho para comer. Animais estranhos costumam receber o trato à parte porque são impedidos de comer no coxo pelos coices dos  de casa.

A primeira coisa que os viajantes fazem logo após a saudação, é pedir  uma ou duas garrafas de cerveja, de preferência nacional. Um grande número de cervejeiros abastece as colônias com um produto de qualidade aceitável. A cerveja importada é vendida por dois e meio a três mil réis a garrafa, muito cara para as condições de hoje. É óbvio que o negociante participe. Sua mulher também é convidada para um copo. Depois a conversa deslancha e versa sobre todo o tipo de novidades de natureza política, pessoal e humorística. O tomar cerveja serve de preâmbulo para começar os negócios. Daí para frente as coisas se tornam mais fáceis para o caixeiro, especialmente quando viaja para uma casa bem conceituada, porque os comerciantes raramente compram de um único e do mesmo ramo. Costumam comprar dos viajantes de quase todas as firmas, em parte porque no ramo dos tecidos a diversidade do sortimento o exige e em parte porque de alguma forma cultivam uma tal ou qual amizade com todos os caixeiros e também porque eles “consomem” alguma coisa. Alguns comerciantes instalados  em locais estratégicos, consolidaram um negocio lucrativo com a circulação dos viajantes. Mantêm uma espécie de hospedaria na qual eles gostam de pernoitar. Nessas ocasiões costumam bebericar principalmente quando há vários reunidos. O negociante bebe com eles à vontade, vinho à mesa e cerveja depois, diverte-se com a conversa e termina lucrando na comida e na bebida e no pernoite, mesmo cobrando preços módicos. De qualquer forma todo o comerciante concede acolhida ao viajante quando este é surpreendido pela noite, porque nas picadas da colônia não há hotéis. Só se encontram nos núcleos maiores. Via de regra os preços são acessíveis. São exceções os negociantes  conhecidos como notórios exploradores  de viajantes. Mais frequentes são os hoteleiros que conseguem resultados fabulosos com a manipulação de contas por meio de cálculos fantásticos. Um deles tinha o costume de anotar sempre uma segunda garrafa de cerveja ou vinho indistintamente para todos os viajantes, a titulo de penalidade pelo incômodo causado ao dono da casa. Aplicava a penalidade também nos casos em que o hospedeiro estava mal disposto ou se esquivava para providenciar bebida. Acontece que o hotel er o único na cidadezinha onde se encontrava  boa bebida e, o que era mais importante, onde também as mulas eram servidas com um bom pasto. Por isso, apesar de tudo, era procurado por quase todos os viajantes. Não é de se admirar que esse tipo de hoteleiro acumulava em pouco tempo uma fortuna. 

Neste meio tempo os dois viajantes liquidaram diversas garrafas de cerveja acompanhados pelo negociante. A filha crescida da casa entrou saudou os viajantes com um jovial aperto de mão, manifestando satisfação pelo fato de os dois ficarem para a “musica” e manifestando  uma certa contrariedade porque o dos secos e molhados pretendia seguir viagem. Pede desculpas porque para a noite a espera muito trabalho. Numa “música” como aquela janta-se e toma-se café e como consequência há muito que fazer na cozinha. Alem disso é preciso arrumar, varrer e limpar o armazém onde normalmente acontece o baile,  enfeitá-lo com leques de coqueiro e taquaras. Estearina ralada  é espalhada pelo assoalho para torná-lo escorregadio. Uma garrafa de vinho do Reno presa a uma grinalda verde é pendurada no meio do salão. Ela é imediatamente reposta logo que algum rapaz toma coragem para baixar esse enfeite relativamente caro. 

Em meio ao fluxo do alegre entretenimento o caixeiro não perde de vista os negócios, obviamente sem deixar transparecer nada. Aparentemente sem segundas intenções procura descobrir, com perguntas e observações casualmente  entremeadas na conversa, que mercadorias  estão faltando ao vendeiro. Procura fazer amizade com o “caixeiro”, que é o faz tudo nas casas  de comércio da colônia e ao mesmo tempo é responsável pelo andamento da casa, fazendo o papel de guarda-livro, de correspondente, de balconista, supervisor do estoque, peão e professor da casa. É dele que o caixeiro viajante procura obter as informações a respeito do que falta em mercadorias. Inspeciona também   as prateleiras e dá uma volta pelo armazém. Munido com todas as informações ataca finalmente o negociante. Este quase sempre costuma fazer objeções dizendo que não precisa de nada, que vende muito pouco e assim por diante, para finalmente fechar uma vultosa encomenda. 

O viajante para secos e molhados tem consciência  que a concorrência está no seu encalço. Sabe também que na manhã seguinte depois do baile não haverá negocio porque  o negociante  quer dormir, ou está de mau humor, ou tem que atender os fregueses. Saca energicamente o livro e, como secos e molhados não requerem amostras e os livros são relativamente poucos, o negociante se aproxima depois de alguma resistência. Pergunta pelos preços dos artigos principais, faz saber que gostaria de um preço um pouco melhor. De tudo quer o melhor para finalmente fazer a encomenda. Em seguida o viajante apresenta a relação dos artigos constantes  em seu livro e que ainda não haviam sido discutidos. Um ou outro deles  irá completar a encomenda. O segundo viajante procura ajudar o colega da maneira mais discreta possível. De vez em quando joga uma palavra no meio capaz de convencer o negociante  a ficar com o artigo ou um número maior do mesmo. Nesta questão o câmbio eternamente flutuante desempenha um papel importante. Estimula ou desestimula a compra na medida em que se prevê a queda ou a elevação dos preços.

As encomendas estão concluídas, quando se aproximam mais três viajantes: um representante  de ferragens, um de porcelanas e um de sabão, todos obrigatoriamente montados e suas mulas. Um caixeiro viajante montado em cavalo é uma raridade, quase uma aberração. Nas colônias montanhosas os cavalos não tem resistência suficiente para viagens que duram semanas. Acontece um grande e alegre alvoroço. Obviamente pede-se cerveja à vontade e um conversa animada tem andamento. Todos sem exceção são homens moços que levam uma vida livre quase sem freios, sadios e preparados para enfrentar qualquer tipo de intempérie. Mostram-se indiferentes à chuva torrencial, ao sol escaldante, a estradas escorregadias, enlameadas ou beirando precipícios, a arroios caudalosos, aos perigos nas  trilhas solitárias no mato e aos riscos das estradas sem fim da Campanha. Carregam uma faca, mas muitos viajantes, por comodidade, levam as pistolas na bruaca ou na bolsa junto ao poncho. Não conhecem medo. Tomando em conta o grande número de caixeiros viajantes permanentemente na estrada, constitui-se numa raridade extraordinária alguém ser assaltado. Este fato é tanto mais admirável quando qualquer um sabe que eles costumam carregar muito dinheiro e são obrigados a passar por regiões onde só mora gente cor de café com leite. A maioria deles abate um ser humano com o mesmo sangue frio com que sangram uma rês. Mas esse povinho costuma ser covarde e indolente. Entre  eles como entre os luso-brasileiros os assassinatos para roubar são  menos freqüentes  do que por ciúmes, por mulheres, pelo jogo ou pelas carreiras, ocasiões em que as vitimas são muitas.

Neste meio tempo anoiteceu. A dona da casa chama para dentro da venda: venham jantar! E todos sentam-se à mesa. O feijão que raras vezes falta é servido com carne seca ou carne de porco, farinha de mandioca, arroz, ovos fritos com linguiça e, por fim, um liquido suspeito semelhante a café,  feito mais de cevada, milho ou feijão do que de café. A tudo isso soma-se pão de centeio e “Schmier”.  Como é dia de “musica” oferece-se, em consideração aos viajantes, algumas amostras do cardápio do baile: um pouco de chucrute, batata, carne de porco, galinha, massa e pêssegos cozidos. Por fim serve-se um bolo bem ordinário. 

Depois do jantar os viajantes dirigem-se ao recinto do baile. Ainda não há ninguém. Poucas moças estão sentadas nos compridos bancos encostados nas paredes. De pé junto ao balcão alguns colonos tomam cachaça ou uma garrafa de cerveja. O pequeno estrado destinado aos músicos está ainda vazio. Eles chegaram há algum tempo, desencilharam os cavalos, soltaram-nos no potreiro e de momento estão jantando. Os músicos são honrados colonos. Como amadores ensaiaram nas horas de folga sob a regência de um “maestro” conhecedor de música. Nos períodos em que a plantação o permite dirigem-se, ora para um, ora para outro local, em viagens a cavalo de um dia ou mais. À noite tocam em bailes, casamentos, bênçãos de igrejas, ganhando um bom dinheiro. A plantação na roça não pode ser  negligenciada. É óbvio que na ausência  do marido as mulheres se encarregam do mais urgente. Aliás em qualquer situação as mulheres da colônia são obrigadas a trabalhar mais do que os homens. Não só auxiliam com toda a dedicação na roça, como tomam conta dos filhos e da casa, enquanto os homens  descansam. 

Aos poucos o salão enche. Os colonos vem chegando em companhia das mulheres, dos rapazes e das moças, a maioria a cavalo, os das redondezas a pé. Excetuando-se as cidades, anda-se aqui  muito pouco a pé, pois os caminhos são ruins, os cavalos baratos e para o transporte dos produtos o colono os precisa de qualquer maneira.

Os colonos usam chapéu de abas largas e às vezes poncho. Além disso, não se observa nada de especial em seus trajes. O chapéu e o poncho são tirados  e guardados na entrada no salão. Acontece também que nos bailes coloniais um ou outro rapaz provocador dança de chapéu, poncho, botas e esporas. As moças usam vestidos de chita clara e sapatos baixos e na maioria das vezes também espartilhos. Por falta de  quem tome conta, as mulheres levam com freqüência as crianças de peito. Elas são acomodadas em camas colocadas num quarto qualquer. 

A banda ocupa o seu lugar e toca a primeira marca. Não se costuma dançar a “polonaise”. Os rapazes dirigem-se até as moças  e sem muita cerimônia as convidam. Elas evitam geralmente a recusa. Dança-se bem e com desenvoltura. O salão está apinhado e acontecem fortes cotoveladas nas costelas. Os mais velhos parados junto à mesa como de costume bebem coragem para em seguida precipitarem-se com qualquer uma das mulheres nos braços, misturando-se na confusão do aperto. Durante a dança o dialogo é praticamente impossível. Aliás não há grande necessidade para tanto.  É difícil entender-se em meio à musica de instrumentos de metal, o sapatear cadenciado, os gritos roucos de alguns e os assobios imprevistos. Terminada a dança, a dama é conduzida diretamente para o banco ou dá-se primeiro uma circulada pelo salão. Não poucos rapazes, numa atitude  mal vista, não largam a sua garota durante a noite toda. Durante a pausa os homens encaminham-se para a mesa e bebem com vontade, quase sempre cerveja. Beber vinho é considerado uma ofensa segundo os costumes daqui. Outros são convidados a acompanhar, sendo preciso mandar abrir não só uma mas várias garrafas de cerveja. Aquele que manda colocar na mesa meia dúzia ou uma dúzia de cerveja inglesa, conquista o maior respeito.  É neste particular que os viajantes  não escapam para conquistar a simpatia do hospedeiro e dos comerciantes que de alguma forma participam da “música”. Os viajantes evidentemente não se fazem de rogados.

Enquanto os homens bebem demais o mundo feminino geralmente  recebe de menos. Um ou outro dos rapazes providencia uma gasosa, um copo de água com framboesa ou uma garrafa de cerveja. Há também os homens que se lembram das mulheres e estas oferecem para as vizinhas. Mas na maioria das vezes elas  se vêem obrigadas  a reclamar antes de receberem alguma coisa. De resto elas comem e bebem muito pouco durante a “música”. Pela meia noite elas são conduzidas até uma mesa por seus pares. A comida é a mesma que já mencionamos, seguida de café e cuca. 

Um ou outro manda meia dúzia de cervejas para os músicos no estrado. Eles são muito sensíveis em relação a isso e reclamam quando são esquecidos. Em troca é permitido pedir que toquem um dança especial, uma “marca” a pedido. Todos participam da dança. A seqüência das danças fica, na maioria dos casos, entregue à vontade dos músicos. É rara uma programação impressa. Um dos músicos faz uma coleta durante a dança. Costuma dar-se um patacão, isto é, dois mil réis ou mais por uma noite inteira. 

Depois da janta a dança continua solta até clarear o dia. Não poucos rapazes enamorados deixam-se ficar sentados no banco com o braço dado com sua garota, alheios ao reboliço em volta ou quem sabe, adormecido com a cabeça reclinada no seio dela. Nestas coisas o homem costuma ser bastante desenvolto e nada melindroso. 

Durante a noite toda os dois caixeiros viajantes bebericaram com aplicação e dançaram de preferência com as mulheres e as filhas dos negociantes, sem contudo mostrar-se indiferentes  a outras beldades. Deitam-se de madrugada para dormir e levantar cedo. Estão habituados a tudo isso e pois seus corpos foram temperados e são  versáteis. O viajante para secos e molhados  que já resolveu seus negócios manda buscar a mula no potreiro para tratá-la com milho, toma uma xícara de café enquanto come lingüiça e pão preto. Para cobrir as despesas do hospedeiro com aparência deplorável, convida os colegas e o hospedeiro para um conhaque. Os outros oferecem também uma dose e os copos são enchidos e esvaziados várias vezes. Finalmente liberta-se dos seus colegas que tentam convencê-lo  a ficar, deixa uma saudação para a mulher e filha do dono da casa que ainda dormem e cavalga pelo ar puro e fresco da manhã. A mula descansada  avança disposta pelo caminho de argila endurecida. As montanhas estão azuladas, as matas exalam perfumes, os rios e arroios fumegam, no firmamento lampejam os primeiros clarões da aurora. É a hora em que a poesia inunda  o coração do viajante, é a hora em que aos brados externa toda a sua indômita vontade de viver. Apeia em todas as vendas onde pretende ou onde tem ocasião para realizar negócios. Em cada uma dessas vendas é obrigado a beber alguma coisa. O sol se eleva cada vez mais. O calor aumenta sem parar. Sorte sua quando pode cavalgar na sombra do mato. Quando, porém, a viagem se estende  pelo campo aberto sem proteção, por estradas largas sem árvores, os raios do sol o atingem como flechas ou de cima ou reverberados  pelo chão. Cavalga num mar de luz e claridade. Obriga-se a enterrar o chapéu fundo na testa, a fim de  evitar que os olhes se ofusquem. O calor espreme o suor por todos os poros. Chegando após o almoço nessas  condições numa venda, deita-se para dormir uma hora enquanto deixa a mula descansar. Depois segue viagem pela canícula e pelo pó da estrada. Com a aproximação do crepúsculo, acompanhado com suas sombras e seu frescor, com satisfação avisa enfim o objetivo da viagem. A mula avança com maior rapidez  e leveza do que de manhã e relincha alegremente ao avistar a cidadezinha que lhe é familiar. Uma dessas mulas experimentadas dos caixeiros viajantes conhece todos os caminhos tantas vezes percorridos e sem ser mandada pára na frente das casas de comércio e das pousadas. Não raro os viajantes obrigam-se a apear por um momento diante de uma casa em que não pretendia entrar, para o animal então resolver seguir caminho  sem problemas.