Bicentenário da Imigração - 38

Os Riscos da Profissão

Aos obstáculos e riscos normais como intempéries, enchentes, estradas e trilhas quase intransitáveis, a travessia de arroios e rios sem pontes, etc., somavam-se outros tantos oriundos das circunstâncias históricas peculiares da época. Entre elas destaca-se em primeiro lugar o fato de os caixeiros viajantes, além de venderem produtos e mercadorias das respectivas casas sediadas em Porto Alegre, na falta de uma rede bancaria, arrecadavam os pagamentos e levavam o dinheiro vivo para os patrões  em Porto Alegre. Em muitos casos significava somas respeitáveis, de modo especial nas décadas de maior dinamismo econômico na região colonial. As décadas finais do século dezenove foram denominadas de “os anos das onças de ouro”. Foram os anos em que praticamente todo o feijão consumido no centro do Pais procedia das colônias do sul. São freqüentes os relatos que falam de roubos e assaltos a caixeiros viajantes. Aconteceram também assassinatos e mortes de caixeiros por outras razões. 

Um dos casos mais brutais aconteceu em Garibaldi em que o viajante Hugo Fichtner  foi aliciado para uma tocaia e assassinado por um tal de Conti, que soubera da grande soma de dinheiro que a vítima carregava. Conti sumiu depois  do crime e não foi mais encontrado. O companheiro de Fichtner  deixou o seguinte registro do episódio.

A minha primeira viagem levou-me em 1885 até a colônia italiana de Conde d’Deu, atual vila Garibaldi. Partindo de Neustadt (hoje Rio dos Sinos em São Leopoldo), cruzando o campo em Portão, passando por São João do Montenegro e subindo pela região montanhosa do Maratá, alcancei as colônias italianas. Na entrada da cidadezinha de Conde d’Eu, mais ou menos a 100 metros do hotel de Luiz Faraon, por todos conhecido e estimado, topei com um grupo de colonos.  Acabavam de entrar na estrada vindos do mato. (...) Contaram-me em poucas palavras que acabavam de encontrar o corpo do caixeiro Hugo Flichtner, desaparecido há dois dias mais ou menos, a 50 passos daí, numa trilha de pedestres, que levava até algumas choupanas mais adiante.
Depositaram por um momento a maca no chão. Apeei da mula, levantei o poncho de  listras marrons que cobria o corpo deitado sobre a maca. Deparei-me então com um quado assustador. O corpo do meu infeliz colega estava horrivelmente mutilado. Levara um tiro no pescoço e outro no peito além de vigoroso faconaço na mão direita que segurava uma pistola carregada. Vivenciei um triste “momento mori”, logo na primeira viagem. (Riograndenser Musterreiter, p. 23)

Num outro episódio dois caixeiros viajantes perderam a vida nos arredores e Lages. Curiosamente não foram alemães. Um, Ernesto Canoza, era italiano e o outro, Olympio Centeno, de origem lusa. Foram emboscados, mortos e o dinheiro roubado por dois indivíduos que lhes haviam conquistado a confiança e que para a populaçãoo da cidade passavam por amigos dos viajantes. 

Uma terceira vítima de roubo com morte foi o jovem viajante de 30 anos, Bruno Gans. No regresso de uma viagem a Uruguaiana  pernoitou num hotel em Alegrete em companhia de outros colegas. Carregava consigo apenas algumas dezenas de milréis, pois na época, 1912, já funcionavam agências bancárias nas cidades mais importantes, onde depositara o grosso  das arrecadações que havia feito. Dois ladrões entraram nos quartos  dos viajantes subtraindo-lhes, sem que acordassem, o dinheiro que guardavam debaixo do travesseiro. Ao entrarem no quarto de Gans, este acordou e, ao erguer-se da cama levou uma pancada na cabeça com uma barra de ferro. Apesar da violência do golpe tentou defender-se quando o segundo agressor acertou-lhe um tiro certeiro no coração.

Para encerrar os exemplos de caixeiros viajantes  vitimados em meio às características das circunstâncias do final do século XIX e do início do século XX, não pode faltar o episódio em que pereceu Eduard Sattler. Os anteriores foram  mortos e roubados. Sattler foi vítima de uma outra anomalia social da época. Um ancião de imensas barbas brancas liderava um bando de fanáticos na região de Soledade. Apresentava-se como o próprio Deus encarregado de livrar a humanidade oprimida e conduzi-la para a bem-aventurança terrena. Segundo algumas versões ele era irmão do falecido Antônio Conselheiro, morto em Canudos. O referido profeta reunira um grupo de seguidores fanáticos e acampara na altura de Encantado na margem esquerda do rio Taquari. Quirino Lucca, subdelegado de Encantado, Seu irmão João lucca, cervejeiro do lugar, o ferreiro  Pedro Mosin, o negociante João Ferri, o escrivão Ernesto Gregoir e mais alguns rapazes reuniram-se para dar apoio à autoridade policial, que pretendia inteirar-se das reais intenções dos integrantes da seita. Eduard Sattler reuniu-se ao grupo por entender  ser da sua obrigação colaborar com a tranquilidade da praça que lhe cabia atender como viajante da firma Pedro Schmitt Filho. O subdelegado, Satler e mais alguns homens cruzaram o rio de madrugada. Aproximaram-se do acampamento e o subdelegado fez saber que se encontrava aí a mando das autoridades, para certificar-se das reais intenções do grupo acampado. Convidou-os a acompanharem-no  espontaneamente. O porta-voz dos fanáticos, de nome Enea, respondeu que não se entregariam a um canalha como o subdelegado e concluiu: ”Até agora não fizemos mal a ninguém. Não roubamos e não cometemos assassinatos. Mas daqui para frente iremos assassinar e roubar e vamos começar imediatamente”. Sacou de um pistola e começou a atirar. Seguiu-se uma verdadeira batalha com tiros, faconaços e facadas. Terminada a refrega que durou poucos minutos, Sattler e o cervejeiro João de Lucca, horrivelmente  mutilados, estava, mortos. Na modesta sepultura do caixeiro viajante Lê-se: “Mori per defender os amigos” (sic). 4 de maio de 1902”.

A Revolução  Federalista na primeira metade dos anos noventa do século XIX, atingiu em cheio a atividade dos caixeiros viajantes. Seu campo de trabalho encolheu drasticamente. No interior colonial e na Campanha inúmeras casas de comércio haviam sido saqueadas, destruídas, incendiadas e abandonadas pelos proprietários. Muitos importadores e exportadores de Porto Alegre optaram por não mais exporem seus viajantes e aguardar dias mais tranquilos para retomar os negócios e arrecadar o dinheiro em haver pelas mercadorias vendidas no interior. Apesar de tudo alguns caixeiros arriscaram-se e tentaram  salvar o fruto dos negócios fechados importando em somas maiores. É evidente que eles se expuseram a todos os riscos que o dia a dia da revolução costumava oferecer. Expunham-se a serem roubados, maltratados, degolados ou sumariamente fuzilados. 

O caixeiro viajante  e poeta Alfred Wiedemann dexou um dos relatos mais dramáticos sobre a revolução federalista, ao descrever uma viagem pelo interior colonial, realizada no começo de 1894. Partiu de Porto Alegre, dirigindo-se a Teutônia e de lá subiu a serra até Bento Gonçalves e Veranópolis, onde ficava o quartel general  do mal afamado general Palmeira. Nada melhor do que reproduzir algumas passagens do seu relato.

Nesse período a atividade dos caixeiros viajantes sofreu uma interrupção total. Uma alta porcentagem das casas de comércio do interior haviam sido saqueadas e incendiadas. o comércio e o intercâmbio estagnara por toda a parte. Os caixeiros viajantes costumavam carregar consigo muito dinheiro, resultado de  de suas vendas. Nessas circunstâncias desaconselhava-se por inteiro correr o risco de uma viagem. As casas de importação de Porto Alegre preferiram que as somas a eles devidas permanecessem onde estavam até o advento de dias melhores.

Eu cavalgara a partir de Teutônia ate Bento Gonçalves, passando por Garibaldi, nas colônias italianas onde me demorei provisoriamente. A revolução fizera grandes estragos  no vale da Boa Vista em Teutônia. A muitos colonos decentes e pobres diabos  quaisquer cortara-se o pescoço, baseado em acusações sem importância.

A  casa de comércio de May que a qualquer hora oferecia hospedagem, sempre apreciada pelos caixeiros viajantes  por causa da hospitalidade dos seus proprietários, estava abandonada e saqueada. Como muitas outras vendas oferecia um triste espetáculo com as portas e tampões arrombados, os móveis queimados  e as mercadorias destruídas. Bem perto daí, junto à ponte do Boa Vista, acontecera três dias antes,  uma escaramuça muito séria entre os rebeldes e as forças do governo, os primeiros entrincheirados atrás de grossos troncos de timbaúba na margem direita do Boa Vista. De lá atiravam nos inimigos que  tinham montado seu posto numa elevação na margem esquerda, atarás da casa de comércio de Dryer. Havia ainda grandes poças de sangue na frente da venda, indicando a perda de vidas humanas. No lado das timbaúbas os mortos tinham sido precariamente enterrados. (Riograndenser Musterreiter, 1913, p. 30-40)

A experiência vivida em Boa Vista levou o viajante a adotar algumas medidas de precaução para passar com relativa segurança, tanto pelos bandos revolucionários, quanto pelas tropas legalistas.

Frente a essa situação eu formara uma imagem muito carregada da maneira como a revolução se desenrolava. Só decidi continuar a viagem depois de tomar sérias medidas preventivas. Devido às características do momento, impunha-se evitar que o viajante fosse identificado como tal. Em hipótese alguma  podia permitir-se levar bruacas. Para as tropas com que cruzava era preciso aparentar um pobre professor das redondezas ou algo parecido. Os  arreios tinham que estar no estado mais miserável possível, na medida do possível rasgados. Para não despertar a cobiça sugeria-se a mesma estratégia também com a roupa. 

Na época encontravam-se no estado muito poucos viajantes comerciais que se arriscavam a ir atrás dos seus negócios. Arriscavam-se apenas aqueles que tinham suficiente conhecimento dos lugares e das pessoas para enfrentar com sucesso as complicadas situações. Via de regra éramos vistos com desconfiança devido a suspeitas mal intencionadas  que haviam sido espalhadas. Alguns nos atribuíam o papel de espiões. A verdade é que, ao cruzarmos por contingentes maiores de qualquer uma das facções, estes nos causavam relativamente poucas dificuldades. Esperavam que dessa maneira que o abastecimento a partir de Porto Alegre não fosse interrompido por completo. (Riograndenser Musterreiter, 1913,  p. 39-40)

O autor continua contando sua viagem a Veranópolis com detalhes das vivências em meio dos bandos dos serranos do general Palmeira, acantonado naquela cidade. Ele implantara um autêntico regime de terror entre os italianos da região, obrigando a população masculina, desde adolescentes até homens velhos  usar uma fita vermelha no chapéu. Wiedemann, ele próprio, muniu o chapéu  om uma fita vermelha para poder circular livremente entre os revolucionários. Numa ida de Veranópolis a Bento Gonçalves caiu nas mãos de uma patrulha das tropas legalistas. Com muito custo conseguiu convencer o comandante que não tinha nada a ver com os revolucionários, evitando que fosse degolado  Em seguida foi obrigado a retornar com a patrulha até Veranópolis. Perto do rio das Antas presenciou a degola de dois italianos, que levavam fitas vermelhas nos chapéus, presos pela patrulha e um terceiro, montado numa mula, foi sumariamente abatido a tiros. Depois a tropa legalista entrou em Veranópolis e após sangrentas escaramuças expulsou o general Palmeira com seus maragatos. 

Pela riqueza de detalhes e a precisão dos registros, o relato de Wiedemann representa um documento sem paralelo sobre uma faceta pouco conhecida  da revolução federalista na ramificação para as colônias italianas, que na época contavam menos de 25 anos de existência. 




This entry was posted on sábado, 4 de junho de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.