Enquanto no verão o sol castiga o viajante, no inverno os lodaçais, os arroios e os rios transbordados, dão-lhe muito trabalho. O animal só avança passo a passo pelos caminhos enlameados que cruzam o mato. Transpor os vaus impetuosos ou os rios numa canoa, segurando no cabresto o animal que nada ao lado, transforma-se numa verdadeira batalha. A mula resfolega ruidosamente, assusta-se e é preciso muito cuidado para que não termine debaixo da canoa e a vire. Nesse tipo de viagens e travessias alguns viajantes e muitos colonos já perderam a vida. Nas estradas do campo formam-se no inverno extensos atoleiros, na maioria das vezes de pouca profundidade. Passá-los montado não significa propriamente uma diversão. Além de tudo o caixeiro é obrigado a viajar sob muita chuva. Caso resolvesse aguardar tempo bom, estaria condenado a mofar, por semanas, numa casa de comércio qualquer, retido pela chuva, inconveniente que de qualquer forma lhe acontece nas ocasiões em que os arroios sobem repentinamente, tornando a travessia impossível por alguns dias. O poncho de pano azul forrado com flanela vermelha ou o poncho de borracha protegem-no da chuva que cai por dias seguidos. É inevitável que os pés se molhem e às vezes a água entra nas botas. O viajante toma aqui e acolá um copinho de cachaça de cana ou de conhaque para prevenir-se contra as más conseqüências que mais adiante sobrevêm na forma de reumatismo.
Viajar pela Campanha é coisa bem diferente. Em primeiro lugar muitos que viajam por lá o fazem somente de trem. A maioria deles são brasileiros. Não se trata de caixeiros viajantes no rigoroso sentido do termo. Nas cidades da Campanha as coisas se apresentam muito mais civilizadas do que nas colônias alemãs e italianas. Não é costume que o viajante coma ou beba algo nas casas de comércio com o objetivo de receber encomendas. É obrigatório, porém, que no dia da chegada faça uma visita aos fregueses, os saúde sem falar em negócios, a não ser, no máximo de passagem. Esse procedimento chama-se “passar pomada”. Passar pomada ou um certo cerimonial é indispensável no relacionamento comercial com os brasileiros. Se eventualmente algum comerciante for até o hotel, o viajante costuma jogar bilhar ou cartas com ele o convida para tomar uma cerveja, vinho chartreuse ou conhaque. Pode acontecer também que o viajante faça uma visita na casa de comércio. No verão senta-se na frente da casa com o comerciante e conversa com ele de preferência sobre política. Todo o brasileiro com alguma formação é um político apaixonado. É óbvio que a última guerra civil com seus horrores amorteceu de alguma forma o fanatismo partidário e reduziu drasticamente as manifestações de natureza política.
Depois de passar a indispensável pomada, o viajante precisa certificar os fregueses que, sem falta, no dia seguinte terá que viajar. Desta forma, na maioria dos casos, confiam-lhe encomendas de considerável volume. O relacionamento entre o viajante e o comerciante costuma ser de total cordialidade. O comportamento usual adotado pelos viajantes seria interpretado como pura barbárie entre os polidos brasileiros.
As viagens mais perigosas e mais difíceis são aquelas que adentram fundo na Campanha, ou avançam, quem sabe, até a região da fronteira, território dos bugres, dos índios mansos, que foram os primitivos donos das terras. Partindo da última estação do trem, o viajante embrenha-se no campo sem fim. Cavalga em companhia de dois peões, quase sempre descendentes de bugres. Na sua frente tange de 20 a 30 mulas de reserva. Parte delas carrega a indispensável bagagem para a viagem, utensílios de cozinha e gêneros alimentícios. Muitos viajam em diligências de sua propriedade pois, na Campanha as estradas são largas e transitáveis. Mesmo assim, não pode dispensar os animais de reserva e os peões que são também os vaqueanos ou os conhecedores do caminho. Assim cavalga-se ou roda-se dias a fio por estradas empoeiradas no verão e cobertas de lama no inverno, em busca de uma localidade, de uma cidadezinha e de fregueses. Durante a viagem surge aqui e acolá uma fazenda que, em caso de emergência, oferece um pernoite hospitaleiro. Encontram-se também vendas isoladas que cobram preços fabulosos por qualquer produto. Costumam homiziar tipos rudes tomando cachaça. Trata-se dos assim chamados gaúchos, tropeiros e criadores de gado, a serviço de fazendeiros das proximidades. São indivíduos selvagens, dispostos a matar. É preciso responder-lhes cordialmente e com a palavra certa, ao convite de tomar com eles um copo de cachaça, sob pena de correr risco de vida. É preciso evitar que percebam que o viajante carrega muito dinheiro. Naquelas ermos, naquelas regiões vazias de gente, onde o braço da lei não chega, em meio a essa gente rude e meio selvagem, meio índios, os mais pavorosos assassinatos, motivados ou pela política, ou por mulheres, ou por cavalos, ou por dinheiro estão na ordem do dia. Por causa dessa situação os viajantes não poucas vezes preferem acampar ao relento e não raro não lhes resta outra alternativa. Os peões e o próprio viajante revezam-se montando guarda, para precaver-se contra assaltos de ladrões. Uma viagem dessas pela Campanha costuma durar três meses, no final dos quais o viajante carrega somas muito grandes. Os meios para enviar o dinheiro diretamente aos centros de comércio estão pouco desenvolvidos pois, no interior antigamente não havia bancos. Até há pouco os pagamentos eram feitos aos próprios viajantes. É uma vantagem que o nosso dinheiro é de papel facilitando com isso o seu transporte. No tempo em que circulava ouro e prata, o viajante se via obrigado a aceita-lo e carrega-lo em mulas. (cf. Riograndenser Musterreiter).
O “Riograndenser Musterreiter” resumiu da seguinte forma a relação que se estabeleceu entre os caixeiros viajantes, os seus patrões em Porto Alegre e os comerciantes do interior colonial.
Quanto maior o tamanho dos sacrifícios que cada comerciante individualmente seria obrigado a fazer para resolver seus problemas, deslocando-se a Porto Alegre, tanto mais bem vinda era a intermediação do viajante comercial, livrando-o de tamanho incômodo e transtorno. Tanto maior costumava ser também o reconhecimento para com aquele que providenciava para a visita do seu caixeiro ocorresse de acordo com uma programação prévia, permitindo que o dinheiro e a encomendas estivessem pontualmente providenciadas.
A consequência direta dessa reciprocidade no atendimento dos interesses mútuos, foi o estabelecimento de uma grande cordialidade entre os comerciantes e os viajantes. Pressionada pelas circunstâncias dos anos de maus negócios que seguiram mais tarde, em poucos casos, essa feliz relação não logrou resistir. Mesmo assim, para felicidade nossa, sobreviveu até hoje ao menos na sua essência. Por essas mesmas razões o papel do caixeiro viajante assumiu importância e influência maior do que poderia ter sido em circunstâncias menos adversas.
Exigia-se dele, em primeiro lugar, um físico sadio, capaz de suportar sem problemas, durante meses, as oscilações do clima, os temporais, as chuvas, o calor, o frio. Longas e cansativas eram as cavalgadas pela mata úmida, cruzando vales, enfrentando as corredeiras dos rios e os leitos pedregosos dos arroios que descem das encostas. Não poucas vezes foi preciso pernoitar em meio da mãe-natureza. As próprias moradias dos amigos comerciantes que lhes serviam de hospedaria, ofereciam acomodações deveras modestas. Quem não fosse um cavaleiro experimentado ou quem não suportasse cavalgadas ininterruptas, por dias seguidos, não tinha estofo para a tarefa. Não se tratava apenas de suportar os riscos da viagem. Impunha-se também manter uma perene boa disposição. Naquele tempo como hoje era proibido apresentar-se aos fregueses de cara amarrada, apesar de torrado pelo sol ou depois de a cavalgadura afundar até a barriga no lodaçal e a bombacha, o poncho e as botas exibirem as marcas inconfundíveis do acontecido.
Além de um bom relacionamento pessoal havia outros predicados que não podiam faltar. A condução e o fechamento correto dos negócios durante as viagens, exigia dele, antes de mais nada, um espírito sadio e jovial, visto que as circunstâncias permitiam apenas três ou quatro visitas anuais aos fregueses, urgia aproveitar a ocasião e valorizar o curto espaço de tempo disponível e resolver, sem deixar dúvidas, questões de alguma forma relacionadas com o comércio.
Em todas as eventualidades o vendeiro encontrava no caixeiro viajante um conselheiro oportuno e leal. Pelo fato de os jornais não chegarem a tempo, cabia-lhe informar sobre tudo o que se passava no mundo. Veiculava em primeira mão tanto as notícias relativas ao grande mundo, cujos altos e baixos repercutiam, por seu intermédio, nas picadas mais distantes, quanto os preços da banha e do feijão, tão importantes no interior colonial. Os caixeiros viajantes tinham obrigação de estar a par da política do Pais pois, já naquela época, oscilações neste particular interferiam nos interesses comerciais. Em muitos casos cabia a ele assumir as tarefas de correio que funcionava mal, devido às precárias condições das comunicações. Pelo fato de circular por toda a parte e devido à sua lendária disposição para servir, eram-lhe confiadas as mais diversas encomendas.
As circunstâncias naquele tempo eram evidentemente patriarcais. O tratamento familiar por “tu” que costumava predominar no relacionamento entre fregueses e caixeiros, sugere bem a atmosfera de cordialidade e de transparência em que se processava a valorização recíproca. Observando que hoje muita coisa mudou para pior no que se refere à transparência, fazemos votos para que esse “tu” tão simpático, torne a significar o símbolo universal de uma confiança que reboa do fundo da alma.
É óbvio que todos os acertos feitos pelo viajante tinham a força de um compromisso, inclusive naqueles casos em que não se exarava nenhum documento escrito. Acontecia que o vendeiro se acostumava a enxergar no viajante o seu “patrão”, no lugar do chefe deste, a quem, na maioria dos casos, costumava conhecer apenas pelo nome impresso em negrito nas faturas. Resultava daí uma certa facilidade quando mais tarde o viajante resolvia estabelecer-se por conta própria. Seu relacionamento com a população da colônia e da Campanha facilitava-lhe a vida no momento em que era preciso um bom volume de capital vivo, quantia que em outras circunstâncias teria sido indispensável para montar uma firma própria.
Explica-se assim que a maioria das casas de comércio alemãs na Porto Alegre de hoje, têm como proprietários, antigos caixeiros viajantes. Em alguns casos foram admitidos depois de pouco tempo como sócios das casas para as quais tinham viajado. Em outros casos as casas foram novamente postas a funcionar pelos antigos viajantes. Pois, na época havia no âmbito do grande comércio espaço e campo de ação suficientes para os que dispunham de uma boa dose de coragem. Todos ganhavam bem, o agricultor, o vendeiro, o pequeno e o grande comerciante. Quem na época não era vítima de algum infortúnio todo especial em seus negócios, conquistava, quase sempre, uma situação sólida.
E com que boa disposição o caixeiro viajante partia para o seu campo de trabalho pois, a vida na colônia era tranqüila, sossegada, ao ponto de ser quase mais bonita do que a da cidade. E que satisfação quando se espalhava a notícia: o viajante X estará com certeza no Kerb! Sem dúvida haveria muitas novidades e algo para rir. Das imensas bruacas de couro o seu dono costumava desempacotar, além das amostras de mercadorias, muita outra coisa, da qual nunca se tinha ouvido falar e que fornecia assunto para as conversas de velhos e jovens, até a próxima vista.
O texto que acabamos de citar reproduz com grande fidelidade o perfil do caixeiro viajante da primeira geração. Cronologicamente situa-se nas últimas décadas do século dezenove e na primeira do século vinte. Corresponde à fase de pioneirismo desse tipo de profissão. O isolamento físico, social, cultural e econômico das comunidades do interior colonial, geograficamente delimitadas pelas bacias fluviais que têm o seu ponto de convergência em Porto Alegre, capital do Estado. É nesse cenário geográfico, em meio a essa realidade humana e nessa conjuntura histórica, que é preciso inserir, compreender e explicar o singular personagem que foi o caixeiro viajante. Os representantes comerciais de hoje, herdeiros remotos da profissão, em muito pouco lembram o que foi e principalmente o que ele significou no final do século XIX e no começo do passado.
Encontramos assim entre os caixeiros viajantes daquela época, figuras sadias de corpo e espírito. Desenvolveram uma certa originalidade, conseqüência da vida livre e da consciência do cumprimento fiel do dever nem sempre fácil. Essa originalidade não era, com certeza, o lado pior da personalidade, visto que, aliada a uma postura de legítima auto estima, só tinha condições de surgir e desenvolver-se onde reinava uma concepção de vida natural, sem artificialismo, avessa à estreiteza tacanha. A maneira harmoniosa de comportar-se imprimia a marca de todo o seu modo de pensar e sentir. Despertava nos círculos que frequentava uma transparência sincera e de um caráter digno de admiração, apesar da aparente rudeza. (Riograndenser Musterreiter, p. VIII)
Os elementos, as características, as virtudes que compunham a personalidade do caixeiro viajante, cobrem um largo espectro. Vão desde um imperturbável bom humor, mesmo nos lances mais difíceis da vida profissional, passando pela cordialidade, pelo amor à vida de quase aventureiro, pela disposição de enfrentar qualquer tipo de situação, pela alma de poeta romântico, pela total transparência na maneira de ser e agir, pela honestidade à toda a prova, pela confiabilidade, pela lealdade. Todas essas virtudes foram de alguma forma imortalizadas em prosa e verso, pelos próprios caixeiros viajantes ou pelos seus admiradores.
Há, entretanto, mais uma característica que torna os caixeiros viajantes digno de nota. Na sua quase totalidade foram personalidades cultas que manuseavam com maestria a língua, tanto em prosa como em verso. O exemplo mais acabado é a coletânea de poesias do caixeiro Alfred Wiedemann, conhecido pelo pseudônimo “Cyclop”, uma alusão ao personagem mitológico “Cíclope” que tinha um olho só na testa (Wiedemann só tinha um olho). Seus versos retratam com rara felicidade e precisão as peculiaridades do período histórico que vai de 1890 a 1920, apreciado de uma forma nada convencional pois, o autor era um representante comercial que escreveu poesia. A quase obsessão literária dos caixeiros viajantes fez com que uma série de relatos das assembléias do Clube dos Caixeiros Viajantes da década de 1890, fossem redigidas em verso.
Alem dos versos de Alfred Wiedemann encontram-se no Riograndenser Musterreiter versos de Carl Naschold, Arthur Spindler, Ernst Niemayer, Traugott Bechler, Natas (pseudônimo de Arno Phillip), Wilhelm Wustrow, Wilhelm Süffert, Emil Schlabitz.
As circunstâncias peculiares de tempo e espaço durante as décadas finais do século dezenove e as primeiras do século vinte, plasmaram o personagem inconfundível do caixeiro viajante, familiar em todo o Rio Grande do Sul. Assim como é impossível conceber um gaúcho sem o cavalo, o laço, a bombacha, o pala, as botas e as esporas, assim a mula, as botas, as esporas, o poncho, as bombachas e as bruacas de couro, compunham o perfil desse centauro peculiar que foi o caixeiro viajante.