Bicentenário da Imigração - 39

A Igreja dos imigrantes

Introdução
A decisão tomada pelo governo imperial de convidar imigrantes da Europa Central e do Norte para colaborar  na ocupação dos territórios devolutos do País, foi de um alcance  incalculável. Costuma-se destacar normalmente o modelo inovador de ocupação do território. Em vez das imensas propriedades características dos grandes ciclos econômicos do açúcar, do algodão, do café e do gado, foi implantada a pequena propriedade  rural de natureza familiar. Em poucas décadas regiões inteiras nos estados do sul iriam exibir uma nova paisagem. Os pequenos proprietários foram-se agrupado, formaram comunidades e organizaram a vida comunal em torno da igreja, da escola, da casa de comércio, dos artesanatos, do hospital e das instituições de lazer. Até aquele momento não existira nada similar no Pais no que se refere à organização de base dos seus habitantes. A comunidade substituiu o patriarcado do usineiro, do fazendeiro, do barão do café ou da cana. A economia firmara a sua base na unidade familiar e a educação passou a ser uma tarefa da comunidade. 

Nesse contexto destacou-se um outro elemento cuja importância no raro passou despercebido ou até intencionalmente ignorado. Os imigrantes alemães, italianos, poloneses e outros destacavam-se pela grande religiosidade. As convicções doutrinarias  e os princípios éticos e morais, desempenhavam um papel fundamental na moldagem da fisionomia sócio-cultural da população imigratória no Brasil. A questão que se coloca é esta: como foi a igreja que os imigrantes encontraram em como foi a igreja que trouxeram e terminaram por implantar, não só nas regiões  onde somavam maioria, como também em  outras em todo o território nacional. Quais as características da Igreja de tradição luso-brasileira que os imigrantes encontraram? Como foi a Igreja dos imigrantes alemães, italianos e poloneses católicos? Como foi a Igreja dos imigrantes alemães protestantes? 

A Igreja que os imigrantes encontraram.
O modelo predominante de Igreja que os imigrantes  encontraram no Brasil, de modo especial nos estados do sul, ostentava as marcas peculiares das circunstâncias históricas em que se desenvolveu. Em primeiro lugar é preciso lembrar que no Brasil vigorava o padroado. O Imperador  investido também da prerrogativa de chefe da Igreja e a religião oficial do Estado era a católica decida a criação de dioceses, paróquias e capelanias, requeria a chancela  da autoridade civil. A nomeação de bispos, párocos, capelães e demais postos da hierarquia, dependia da aprovação oficial. A união  entre a Igreja e o Estado transformara o catolicismo em religião oficial, fazendo com que as demais não fossem reconhecidas e seus atos considerados nulos ou ilegais. Aos protestantes, por ex.,  estava interditado o sepultamento nos cemitérios oficiais, casamentos considerados como concubinato, o batismo sem valor legal e seus lugares de culto na podiam ostentar a aparência de templo. Como é óbvio essa realidade, condenou à marginalidade especialmente os imigrantes alemães protestantes. Alguma brechas e alguns arranjos introduzidos na legislação fizeram com que nas décadas  finais do Império a situação dos protestantes se tornasse menos desconfortável. Permaneceram, contudo, em última análise, como clandestinos até a proclamação  da República. Em poucas palavras, imigrantes católicos encontraram uma Igreja  sujeita, submissa  e dependente dos caprichos dos governantes e administradores civis, na qual a doutrina e os bons costumes pouco ou nada decidiam. O imperador era, na verdade, a autoridade maior enquanto que Roma se limitava a ratificar os atos dos detentores do poder tanto civil como religioso.

O tipo de clero que respondia pela cura das almas, deve ter causado, no mínimo, surpresa para os imigrantes vindos da Europa Central ou do Norte. A disciplina clerical de modo algum era o seu forte. Um número considerável de sacerdotes era filiado à Maçonaria. Outros tantos dedicavam-se à política, eram fazendeiros ou centravam a atenção em qualquer outra ocupação menos a cura de almas. No seu quotidiano o clero dependia da vontade e dos caprichos das lideranças políticas e econômicas, que ditavam as normas nas freguesias, nas capelanias, nas irmandades e nas confrarias. As centenas ou milhares de quilômetros que os separava dos bispos, impediam a estes dar um mínimo de assistência ou conforto. Encontramos assim um clero entregue à própria sorte. Não é de se admirar que se deixasse influenciar e, na maioria dos casos, arrastar pelo clima secular que o envolvia. A atividade pastoral sob sua  responsabilidade não ultrapassava  em muito os limites do cumprimento da rotina burocrática de batizar, legitimar  matrimônios e encomendar os defuntos. Mesmo nessas funções viam-se coagidos pelas lideranças leigas da freguesia e  que, na maioria dos casos, pouco ou nada tinha a ver com um autêntico catolicismo. 

Nessa situação de abandono entende-se com facilidade que a disciplina clerical sofresse arranhões profundos. O predomínio de uma mentalidade laica e secular, o abandono e a solidão, fizeram com que a não observância do celibato se transformasse quase em regra. A situação do padre com sua companheira e via de regra filhos, já não causava surpresa. Os fieis não só o toleravam, como o aceitavam e aprovavam. Além disso o clero costumava  envolver-se ativamente nos negócios profanos, amealhado consideráveis fortunas por meio dos mais diversos negócios.

Nessas circunstâncias a própria Igreja assumira um papel todo peculiar. Como se apontou mais acima, quem de fato mandava na vida da freguesia, eram as lideranças locais, os chefes políticos, os detentores do poder econômico, os comandantes das guarnições militares, os provedores das irmandades, etc. Generalizou-se dessa forma uma Igreja em que a liturgia, as práticas de culto,  os cerimoniais e os rituais, atendiam mais aos caprichos dos patrocinadores, do que às exigências do culto divino. Padres pouco recomendáveis pela conduta pessoal celebravam a missa de acordo com as normas ditadas pelos mandatários locais. E suas prédicas falavam sobre aquilo que os presentes esperavam ouvir e com esse espírito batizavam as crianças, abençoavam os matrimônios e encomendavam os defuntos. Não havia espaço para freqüência dos sacramentos. Predominavam festas e procissões ruidosas, nas quais o profano costumava mascarar o religioso. 

Em resumo os imigrantes encontraram uma Igreja que mostrava os defeitos, os vícios e as distorções que o regime do Padroado terminou por imprimir nela. Estava confiada a um clero distante e avesso aos princípios doutrinários e às regras disciplinares ditadas por Roma. Os imigrantes encontraram uma Igreja sufocada por uma mentalidade, que se esgotava  em rituais e manifestações  em que o profano costumava encobrir o religioso. Os imigrantes defrontaram-se, enfim, com uma Igreja sem vida sacramental. A essa Igreja os imigrantes católicos iriam contrapor a Igreja da Restauração e os protestantes a Igreja da Reforma.

A Igreja da Restauração Católica 
A Igreja da tradição Luso-brasileira e suas práticas deve ter causado um grande impacto sobre os imigrantes alemães católicos que se estabeleceram nos estados do sul do Brasil. Procediam de uma caminhada religiosa oposta daquela que encontraram aqui. Após o Período Napoleônico, a Prússia impusera a sua hegemonia sobre os estados alemães. Sua influência mostrou-se especialmente draconiana no Palatinado, província fronteiriça com a França. Seus habitantes foram castigados com pesados impostos pagos em parte com a madeira das suas florestas de carvalhos.

Com a hegemonia prussiana o protestantismo impôs-se como religião oficial. Na condição de minoria religiosa e considerados como um perigo para o Estado por causa da sua fidelidade a Roma, de modo especial durante o período do Kulturkampf, trataram de fortalecer-se da melhor  forma possível. Para garantirem o seu espaço no seio da nacionalidade alemã em formação, organizaram o Partido Católico do Centro. A influência e a força  desse partido foi capaz de atenuar sensivelmente a política e a ação do Kulturkampf sobre os católicos, na medida em que se transformou numa força política de oposição que não podia ser ignorada. Bismarck acusou os jesuítas de serem os principais mentores do Partido Católico do Centro e, por isso mesmo, agentes  serviço de Roma e por isso expulsou-os da Alemanha. Com isso não poucos dos melhores quadros da Ordem foram destacados, durante as décadas de 1870 e 1880, para trabalharem entre os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul.

A situação peculiar na Alemanha de maioria protestante, em que o iluminismo e racionalismo dominavam as elites intelectuais e seus projetos políticos e culturais, obrigou os católicos e suas lideranças  a se firmarem em bases doutrinárias e disciplinares sólidas. Aderiram ao movimento conhecido como Restauração Católica. Em poucas palavras esse movimento tinha como pontos centrais: a retomada da doutrina formulada pelo Concílio de Trento; a obediência incondicional ao romano pontífice e dos bispos; a distância para com as autoridades civis e a rejeição da ingerência do Estado na vida e nos assuntos da Igreja.

Uma outra característica  da Igreja da Restauração foi  a grande importância que emprestou às práticas religiosas. De modo especial insistia na freqüência regular da missa dominical e nos dias santificados e na prática religiosa centrada numa intensa vida sacramental. O batismo deixou de ser um mero ritual exigido pela legitimação social, para assumir o seu verdadeiro significado de sacramento. Os sacramentos da penitência e eucaristia, quase ausentes na Igreja de tradição luso-brasileira, transformaram-se no verdadeiro termômetro da prática religiosa. O fervor dos fiéis era medido pela assiduidade da confissão e da eucaristia. Não era considerado um bom cristão católico que não cumprisse pelo menos a desobriga pascal, isto é, que não se confessasse  e comungasse pelo menos uma vez ao ano por ocasião do período pascal.

O fervor religioso, a vida sacramental e a fidelidade à ortodoxia, eram estimulados. Neste particular sobressaíam como meios as Congregações Marianas que reuniam as diversas categorias profissionais,  em torno à devoção a Nossa senhora; as associações que se reuniam para venerar o Sagrado Coração de Jesus; as associações de crianças tendo como objeto a devoção ao Menino Jesus; as organizações das mães católicas: as organizações dos operários católicos que no Rio Grande do Sul teve a sua expressão maior nos Círculos Operários; Ação Católica, preferencialmente praticada pela juventude nas suas diversas categorias: Juventude Agrária Católica – JAC, Juventude Operária Católica – JOC, Juventude Estudantil Católica – JEC, Juventude Universitária Católica – JUC e Juventude Independente Católica – JIC. 

A Igreja dos imigrantes alemães empenhou-se  em favor da educação em todos os níveis. Foi por essa razão que em todas as paróquias e capelas funcionavam  escolas cujos mestres  e cujos currículos, estavam em perfeita sintonia com a doutrina e a disciplina da Igreja. Para garantir o autêntico espírito da Igreja da Restauração nos diferentes níveis de ensino, instalaram-se na colônia e nos centros urbanos ordens e congregações  religiosas dedicadas  ao ensino. Destacaram-se entre elas os irmãos lassalistas e maristas, as irmãs franciscanas, de Santa Catarina, de São José, da Divina Providência, e muitas outras. Além das agremiações religiosas fundadas para se dedicarem ao ensino e à educação, militavam pela mesma causa os melhores quadros dos jesuítas, franciscanos, palotinos, redentoristas, salesianos, capuchinhos e outros 

A Igreja interessava-se também pelo bem-estar material do povo pois, o considerava como pressuposto duma sadia vida espiritual. Concentrou a atenção em duas frentes: a assistência social  e a implantação de projetos de desenvolvimento e promoção humana. Movida por esse espírito liderou a construção de hospitais, asilos, sanatórios e orfanatos e liderou projetos de promoção humana que visavam  a educação, a assistência social, o desenvolvimento econômico, a promoção da vida religiosa, a solução dos problemas da terra, a modernização e a diversificação da produção agrícola, a coordenação e a abertura de novas fronteiras de colonização e a ascensão no cenário político. Para implementar toda essa gama de iniciativas foi fundada em 1900 a Associação Riograndense de Agricultores e em 1912 a Sociedade União Popular. Depois da implantação da República houve a tentativa de por em marcha um partido político, o Partido Católico do centro, inspirado no similar na Alemanha. Além dessas organizações de ampla abrangência, havia ainda aquelas  destinadas a objetivos específicos, como por ex., a Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul e, para garantir que a dinâmica católica não esmorecesse, realizaram-se de dois em dois anos, a partir de 1898 os Congressos Católicos, os “Katholikentage”. Serviam de fórum no qual os grandes problemas, os grandes projetos e a condução do catolicismo regional eram debatidos, onde se analisavam questões de interesse geral, onde se propunham soluções e se traçavam novos rumos. 

Em meio a toda essa efervescência religiosa impunha-se uma tarefa que envolvia em primeiro lugar a hierarquia eclesiástica, a  de garantir para o futuro o perfil da Igreja. Refiro-me ao clero da Igreja da imigração. O modelo da Igreja da Restauração trazido pelos imigrantes, alicerçava-se  sobre dois pressupostos: a ortodoxia  doutrinaria e a disciplina eclesiástica do Concílio de Trento e um clero de todo afinado com essa orientação  e ao mesmo tempo submisso à hierarquia, detentora exclusiva  do magistério oficial da Igreja.

Os imigrantes que foram chegando ao sul do Brasil depois da Guerra dos Farrapos, encontraram  em implantação  uma Igreja oficial nos moldes do Projeto da Restauração Católica. Pio IX, o papa da Restauração Católica, ao criar a diocese de Porto Alegre, com jurisdição sobre o  Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nomeou em 1860, como segundo bispo diocesano, D. Sebastião Dias Laranjeira. Formado em Roma fora escolhido a dedo pelo papa, com a missão  de implantar o Projeto da Restauração nos territórios sob sua jurisdição. Em 1849 haviam desembarcado na colônia alemã de São Leopoldo os primeiros jesuítas alemães, com a tarefa de dar assistência pastoral aos imigrantes. Estava assim posta a base  para a nova Igreja: a autoridade eclesiástica empenhada em implanta-la, os jesuítas temperados nos embates religiosos na Alemanha e os imigrantes educados no espírito da Restauração.

A expulsão dos jesuítas da Alemanha resultou proveitosa para a Igreja que estava sendo implantada aqui. Um número apreciável dos seus melhores quadros transferiu-se  para o Sul do Brasil nas décadas de 1870 a 1890. Organizaram paróquias, iniciaram e consolidaram o ensino médio, tornaram-se os mentores de uma imprensa católica vigorosa,  comprometida e combativa, inspiraram e lideraram os grandes projetos de promoção humana de que falamos acima, reconquistaram para a Igreja um espaço definido e respeitado no cenário social e político. O velho paradigma da Igreja de tradição lusa foi sendo substituído sistematicamente com novos reforços de clero vindos da Europa, incluindo, além dos jesuítas, um número apreciável de padres diocesanos, um grande número de ordens e congregações religiosas masculinas, clericais ou não e uma dezena de congregações femininas. Todo esse exército afinado com o Projeto da Restauração, foi assumindo a pastoral nas paróquias e nas capelanias, o ensino e a orientação nas escolas do ensino fundamental e médio. O atendimento nos hospitais, asilos e orfanatos e liderou os projetos de promoção humana. 

Não demorou e um número crescente de filhos  e filhas, netos e netas dos imigrantes, engrossaram as fileiras desse exército  a serviço da Igreja. Também fora da região da imigração propriamente dita, na Campanha e nos Campos de cima da Serra, o clero renovado assumiu progressivamente as paróquias e as congregações religiosas, principalmente as femininas, fundaram colégios assumiram hospitais e asilos. 

Em 1912 D. João Becker, nascido na Alemanha  e imigrado para o Brasil ainda criança, assumiu a arquidiocese de Porto Alegre. Permaneceu no posto até a sua morte em 1946. Educado na Igreja da Restauração, não perdeu tempo para começar a formar  um clero afinado com o Projeto. Confiou a formação do mesmo aos jesuítas dos quais ele próprio tinha sido aluno. Assim o Seminário Central Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, durante 40 anos, formou o clero que imprimiria  o perfil definitivo à Igreja nos estados do sul do Brasil. Nele  formou-se uma geração inteira de bispos que foram administrar dioceses em todo o Pais, incluindo a arquidiocese do Rio de Janeiro na pessoa do cardeal D. Jaime de Barros Câmara. O Seminário Central de São Leopoldo formou um clero com sólida formação teológica e pastoral, fiel à orientação de Roma e dos bispos e observante da disciplina clerical. 

Não há necessidade de dedicar um espaço especial para caracterizar o catolicismo dos imigrantes italianos, poloneses e outro. Coincide em linhas gerais com o dos imigrantes alemães. Algumas particularidades contudo os distinguem. Uma delas é devido ao fato de que na Itália e na Polônia a presença do protestantismo ter sido quase nula. Tratou-se, portanto, de um catolicismo sem as marcas deixadas pelo  conflito religioso  várias vezes secular na Alemanha. Outro traço peculiar do catolicismo dos italianos resultou dos métodos pastorais, da ascese e da própria formação teológica dos capuchinhos franceses que os assistiram. 

Essas diferenças foram-se apagando na medida em que, já no século XX, o clero nativo tanto de origem alemã como italiana e polonesa, na sua quase totalidade foi egresso do Seminário Central de São Leopoldo, dirigido pelos jesuítas, orientados pelas diretrizes da arquidiocese de Porto Alegre.

As diferenças entre a Igreja de tradição luso-brasileira e a Igreja dos imigrantes foi assim resumida por Riolando Azzi: 

Daí surge uma diferença bem significativa entre a cristandade luso-brasileira e essa nova cristandade clerical em formação. Na cristandade colonial predominava a idéia de que a instituição eclesiástica fazia parte integrante do próprio Estado lusitano católico. A fé,  portanto, permeava as próprias instituições políticas. Já nas áreas de imigração existe a separação muito nítida, entre as manifestações religiosas e a esfera política do Estado brasileiro, geralmente minimizada ou ignorada. Na medida em que padres seculares e regulares se instalam na região dos imigrantes, as vinculações mais expressivas serão feitas com a Santa Sé. Por isso, ao analisar o catolicismo de imigração no Rio Grande do Sul, Luis de Boni chega a indicar  a formação de um verdadeiro “Estado papal”. Assim sendo, em termos eclesiológicos, pode-se afirmar que predomina nas áreas de imigração europeia uma teologia da cristandade clerical. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 74-75)

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