O Caixeiro Viajante e sua Mula
O deslocamento desde as casas matrizes de Porto Alegre em busca dos comerciantes do interior, implicava numa série de desafios a serem enfrentados e vencidos. Para começar era preciso escolher o melhor e mais seguro meio de locomoção. Numa época em que as primeiras ferrovias estavam sendo construídas e a navegação fluvial estreava nos rios da região, a locomoção terrestre constituía-se na forma mais rápida e mais segura para alcançar todas as picadas, também as mais afastadas, sem falar da própria Campanha, cavalgando nas condições mais precárias que se podem imaginar.
Nessas circunstâncias a mula foi a montaria mais aconselhada por ser um animal pouco exigente, rústico, robusto, versátil, de considerável longevidade, bem maior do que a dos cavalos, embora lenta, embora despida da aura e da fama dos lances épicos do cavalo do gaúcho. Aliás a mula já se imortalizara na História do Rio Grande do Sul por ter sido um dos esteios da pujança econômica no período do charque. Caravanas e mais caravanas de mulas seguiram para o centro do Pais, umas após as outras carregadas de charque, percorrendo a lendária estrada das mulas, partindo do interior do Estado, passando por Porto Alegre, Viamão, Glorinha, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Vacaria, Lages, atravessando todo o estado de Santa Catarina, Paraná, até São Paulo e Minas Gerais. E no momento em que no Rio Grande do Sul entrava na nova fase de vitalidade e progresso econômico, a mesma mula foi reconvocada para participar no processo como peça fundamental. Desta vez não mais como mera besta de carga, mas como portadora dos intermediadores do comércio, que carregavam em sua bagagem algo a mais do que amostras, faturas, encomendas e pagamentos. No seu lombo viajavam também as novidades e as notícias, vindas da capital do Estado, do Pais inteiro e do grande mundo, para repercutirem nos povoados e moradores mais distantes do interior colonial e da Campanha.
Dessa forma o caixeiro viajante e sua mula compunham uma simbiose quase perfeita capaz de desincumbir-se a contento da tarefa que lhes cabia: garantir o pulsar da economia regional veicular a cultura, fazer circular informações de toda a ordem entre a capital, os centros urbanos e as picadas mais remotas. Por seu intermédio chegavam as notícias dos acontecimentos nacionais e internacionais. Desempenhavam, portanto, o papel do jornal, do rádio e do correio. Atuavam, enfim, como poderoso antídoto contra o isolamento, a estagnação, a involução e o empobrecimento econômico, social, cultural e físico das comunidades do interior.
Em momento algum da história a mula, esse animal tão útil em inúmeros países e, ao mesmo tempo considerado o escravo entre os animais, desprezado, símbolo da falta de inteligência, da teimosia irracional e de uma estupidez primigênia e insanável, experimentou um reconhecimento de sua utilidade tão explícita e tão sincera como lhe foi dedicada pelo caixeiro viajante. Nos versos com o titulo “Mula Morta”, Cyclop (pseudônimo do caixeiro viajante Alfred Wiedemann) cantou em versos o que a mula significou para esses agentes comerciais.
Era uma vez um caixeiro viajante que há muitos anos cavalgava a sua mula. Onde quer que se encontrasse, irradiava o seu alto astral, porque a profissão de caixeiro viajante lhe dava prazer. Tinha uma velha mula que não venderia nem por cinco contos. Cavalgava-a conforme as regras da velha escola, enfrentando sem medo, as pequenas e as grandes dificuldades. Em muitas ocasiões pelearam duras escaramuças juntos. (Riograndenser Musterreiter, p. 157)
Arthur Spindler, outro caixeiro viajante caracterizou, também em versos e na forma de diálogo a relação entre o caixeiro e sua mula.
Tens quase trinta anos. Passaste por inúmeras borrascas. Sempre me carregaste em segurança nas horas negras e nos momentos agradáveis. Nunca vacilaste ou renegaste a caminhada. Passamos juntos, apenas nós dois, incontáveis e inesquecíveis noites no meio do mato. Inteiramente a sós cruzamos o campo, tendo como companhia apenas as cobras, as rãs e as corujas. Apesar de não conversares comigo, eu te entendia. Sem errar e para a minha sorte interpretava o teu relinchar ao longe. É verdade, não poucas vezes te evadiste do potreiro durante a noite. Mas a tua magnífica voz indicava ao dono irritado onde te encontravas. Não demorava e ouvia-se: “peguei!” E quantas não foram as memoráveis ocasiões em que nós dois atolamos no lodo. Foi preciso abandonar a sela e os estribos para depois continuar. Teu apetite foi sempre grande e sadio. Mostravas-te satisfeito quando te serviam tanto milho, quanto raízes ásperas, pasto picado ou palha seca. E quando os outros zombavam de mim, tu me demonstravas simpatia. Na condição de uma autêntica mula não me abandonaste diante da ameaça de um acidente iminente. Agora nunca mais passarás necessidade. No dia em que eu próprio assumir a chefia, até o dia da tua morte tranqüila, irás privar comigo pois, só te montarei para passear.
E na poesia “O velho Caixeiro Viajante”, novamente de Alfred Wiedemann, encontramos os versos carregados de nostalgia. “Já não tenho mais mula para encilhar e, como nos velhos tempos, cavalgar por aí, pelo mundo afora. Meu velho amigo “Hans” continua em paz o teu caminho. Nós dois nos entendíamos tão bem, nós dois, tu e eu” (Cyclopiade, p. 88)
E numa outra poesia Wiedemann volta a homenagear a mula.
Nós próprios estamos curtidos como nunca e entendemos de todo o tipo de negócios. E contudo a estimada mula nos é tão familiar como se fosse um parente nosso. Nas viagens cuidamos de nós por último, como o manda o dever de cavaleiro. Trata o “Hans” primeiro, depois senta na mesa. (Cyclopiade, p. 158)
E um pouco mais adiante.
O orelhudo nos é muito útil na viagens. Onde quer que nos demoramos em sua companhia, na casa do Jacó Rick ou de Matias Lütz, a conta é religiosamente dividida. Em não poucas colônias ouve-se dizer no momento em que se pretende regatear o pernoite: O pasto para o senhor e sua mula importa em vinte e cinco mil réis. (Riograndenser Musterreieter, p. 64)
O viajante Wiedemann dedicou a seu colega uma poesia intitulada: “O caixeiro viajante”, por ocasião da Fahnenweihe em 1886, com os seguintes versos, que reproduzimos em prosa.
Bem cedo às cinco da madrugada encilha e com o pôr do sol encerra a caminhada, caso a mula não se tenha esquecido de andar neste meio tempo, ou assustada o tenha atirado no barro. Por horas, sem parar, conversa com sua companheira, a mula. (Riograndenser Musterreiter, p. 108)
Para encerrar os comentários sobre o relacionamento entre o caixeiro viajante e a sua mula, apenas mais uma amostra extraída da poesia “Mula Morta” de Alfred Wiedemann. Depois de descrever a morte da mula estaqueada nas ripas de um alambrado ao saltar do cercado para a roça.
O que seria capaz de causar-te tristeza maior? As lágrimas escorriam como a resina. Meu bom e estimado Emil Barz, a tua dor é compreensível para qualquer um. Depois que levamos até o local definitivo aquela que por tanto tempo te serviu com fidelidade, entre lamentos escreveste, em meio às faturas, no teu livro de viagem: Aí jazes sobre a relva verde, tu que foste o maior prazer para os meus olhos. Estás livre agora, para gramar descansada, ó mais estimado e mais elegante entre os animais. Quem daqui em diante carregar as bruacas pela picada, já feitas sob medida para ti? Quem trotará pela noite levando a sua carga com tanta segurança? (Riograndenser Musterreiter, p.157)