Bicentenário da Imigração - 32

Da mesma forma como procederam com a escola e a educação, assim os imigrantes alemães organizaram a sua vida religiosa. No âmbito do espaço comunal providenciaram por tudo que fosse necessário para que a religiosidade tivesse condições de desenvolver-se  e florescer. Como ponto de partida organizava-se a comunidade da igreja (Kirchengemeinde). A ela pertenciam em princípio todos os moradores. Dentre os membros da comunidade da igreja elegia-se a diretoria da igreja (Kirchenvorstand). A ela cabia a tarefa da construção da igreja ou capela e a instalação de um cemitério. Nas sedes paróquias acrescia mais um compromisso: adquirir para a comunidade um lote de terra vizinha à igreja (Kirchenland). A função mais específica  da diretoria consistia na edificação e na instalação de uma moradia para o pároco ou o pastor que iria assumir a cura de almas da paróquia com suas capelas. Nas suas visitas periódicas às capelas o pároco ou seu auxiliar costumava hospedar-se na casa do professor ou de algum morador próximo à capela.  

A diretoria  da igreja, uma vez concluída a infra-estrutura  inicial, ficava com a responsabilidade de, daí em diante, providenciar tudo o que era preciso para o bom funcionamento da prática da religiosidade. Entre essas obrigações constava o agenciamento junto às autoridades eclesiásticas a presença permanente de um padre ou pastor; cuidar da limpeza e ornamentação da igreja; aquisição e manutenção das alfaias usadas nas missas, cultos e administração dos sacramentos; organização das festas do ano litúrgico. Um dos seus membros costumava ser destacado para vigiar o comportamento  de adolescentes e jovens durante os ofícios do culto. Nessas ocasiões sua autoridade não sofria contestação. 

Nas capelas que só periodicamente contavam com a presença do sacerdote, a organização e a condução do culto ficava sob a responsabilidade da diretoria local. O professor costumava presidir o culto. Além disto era ele que dava catequese na escola, ensaiava os cantos e detinha uma autoridade por todos acatada. Em situações de emergência, ministrava o batismo, presidia os matrimônios e encomendava os defuntos. Com esses pré-requisitos a vida religiosa das comunidades costumava funcionar a contento. O fervor religioso mantinha-se desta forma intacto em novas fronteiras de colonização onde a presença de um sacerdote às vezes levava meses para se repetir.  

As missas e cultos dominicais tinham um outro significado de não pouca importância naquelas circunstâncias. Ofereciam a única ocasião para o encontro da comunidade. Antes e depois do ato religioso as pessoas conversavam sobre os assuntos mais diversos, veiculavam notícias, trocavam informações e experiências, acertavam encontros, desfaziam mal-entendidos e até realizavam negócios.

Mais do que a escola a igreja atuava como polarizadora da vida comunal como um todo. Batalhando duramente durante a semana, em companhia apenas da  família, no isolamento de sua propriedade, o encontro dominical na igreja, impedia que os colonos se transformassem em vitimas de uma isolamento prolongado. Confluindo de todos os lados e de todos os recantos, o encontro dominical guardava viva a consciência da unidade comunal. Fazia com que no encontro as pessoas encontrassem apoio e compreensão para as durezas e infortúnios da vida. Renovavam a convicção de que ninguém estava só, que a solidariedade dos vizinhos e, mais do que tudo, só a união de todos é capaz de construir algo de bom e de duradouro para o futuro.  

As comunidades teutas no sul do Brasil formavam unidades humanas auto-suficientes em quase tudo que dizia respeito às exigências normais do dia a dia. Pouca coisa era preciso trazer de mais longe. Somente gêneros não produzidos na região, como açúcar, sal, certos condimentos, tecidos e ferramentas um pouco mais sofisticadas, eram adquiridos no comércio. 

Em nenhuma comunidade um pouco maior  faltava um moinho. O milho colhido nas propriedades costumava ser levado até ele no lombo de cavalos, mulas ou carroças, moído a um preço módico, e a farinha consumida  em forma de pão, confeitos domésticos. Foi um hábito generalizado que o preço da moagem fosse convertido proporcionalmente em alguns quilos de farinha e no farelo que resultava como subproduto da moagem. O lucro maior que o moleiro costumava auferir pelo seu trabalho, provinha da  comercialização da farinha e da engorda de porcos com o farelo. A farinha de trigo utilizada em festas maiores e em outras ocasiões especiais costumava ser importada. Conclui-se daí que o pão-nosso-de-cada-dia chegava por um preço até modesto na  mesa do colono. Tudo acontecia sem intermediação, sem burocracia e com a qualidade garantida.

Uma prática parecida resolvia  o fornecimento das ferramentas básicas para a atividade agrícola, sobretudo em frentes pioneiras de colonização. Nas ferrarias forjavam-se  enxadas, facas, facões, foices, pás de arado e ferragens para os mais diversos usos. Ao ferreiro cabia outrossim a importante tarefa de ferrar os cavalos, o principal meio de locomoção das pessoas e o transporte de cargas leves. As regiões pedregosas da maioria das picadas e linhas em que moravam os colonos, exigiam um cuidado constante com os cascos e ferraduras. Na fabricação das carroças o ferreiro encarregava-se das partes de ferro e o carpinteiro das parte de madeira. A aquisição de ferramentas um pouco mais sofisticadas e elaboradas, como serras, machados, enxós, plainas, verrumas, limas, puas, martelos e formões,  dependia da importação.

As serrarias, carpintarias e marcenarias encarregavam-se de atender outro conjunto de primeira necessidade. A abundância de madeira de boa qualidade extraída nas propriedades dos colonos, fez com que estivesse presente em todas as situações da vida quotidiana. As moradias, os celeiros, as estrebarias, as pocilgas e demais benfeitorias, tinham na madeira a matéria prima por excelência. No começo as construções inteiras costumavam ser feitas de madeira, dede os fundamentos até a cobertura com tabuinhas. As serrarias desdobravam as toras em tábuas, madeiras de canto, barrotes, caibros e sarrafos. As  serrarias não costumavam dispor de estoques próprios de madeira. Serravam sob encomenda as toras que os colonos levavam. Não se conheciam intermediários e com isso o custo de uma benfeitoria qualquer ficava nos limites das possibilidades dos colonos. Formando um complexo integrado com as serrarias ou funcionando em instalações separadas, as carpintarias e as marcenarias aprontavam móveis, esquadrias, portas, janelas, a parte da madeira das carroças e dos arados, etc. Móveis mais elaborados e até com alguma sofisticação vinham das casas de importação em Porto Alegre.

Como o deslocamento de pessoas e cargas leves era feita quase que exclusivamente  com cavalos, havia necessidade constante de arreios, selas  e de outros artefatos de couro. Da mesma forma usavam-se na colônia, chinelos, botas, tamancos, sapatos. As sapatarias  e as selarias se encarregavam de suprir essas necessidades. Os couros podiam ser adquiridos com facilidades nos matadouros locais ou comprados na região da campanha, que afinal não ficava tão distante. Para curtir o couro surgiram, desde cedo, os pequenos curtumes no vale do Rio dos Sinos, do Caí e demais áreas da colonização. As sapatarias e selarias foram aumentando o volume da produção ao mesmo tempo em que sofisticaram as instalações à medida em que a população crescia e a demanda aumentava. O fato é que, a partir das pequenas sapatarias  e dos primitivos curtumes artesanais, desenvolveu-se a pujante  indústria coureiro-calçadista que, até o final do século XX, foi responsável pela principal atividade econômico-industrial do vale do Sinos. Seus calçados e seus artefatos de couro eram exportados para os cinco continentes e renderam para os cofres  do Pais centenas de milhões de dólares. A região tornou-se  nacionalmente famosa pelo nome quase carinhoso de “Vale do Sapateiro”. 

Um fato semelhante se deu com as ferrarias artesanais. Muitas evoluíram para indústrias metalúrgicas de respeitável porte. Esse setor industrial alcançou um nível bem mais significativo entre os colonizadores italianos. Entre eles instalações  que forjavam  enxadas e pás de arado, transformaram-se em complexos metalúrgicos modernos e de grande porte, empregando milhares de operários, utilizando a mais avançada tecnologia e entregando no mercado nacional e internacional produtos de alta qualidade. São exemplares neste caso a Indústrias Metalúrgicas Eberle, em Caxias do Sul, a Metalúrgica Rossi em São Leopoldo, a Gerdau, a Tramontina e outras mais. 

Uma vez garantida a escola, a igreja e os meios de apoio à vida de uma comunidade, acrescia todo um conjunto de providências para garantir o lazer, as atividades culturais e associações destinadas à promoção humana. Foi assim que, a partir da década de 1850, surgiram primeiro em Porto Alegre, depois nos incipientes centros urbanos de São Leopoldo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e outros mais, centenas de associações, sociedades e clubes, destinados ao cultiva da sociabilidade, do lazer, da música, do canto, do teatro, dos mais diversos esportes, da ginástica, de beneficência, etc.  Nas comunidades do interior colonial multiplicaram-se as sociedades de canto junto às igrejas e capelas. 

Bicentenário da Imigração - 31

A salvaguarda dos valores culturais não podia esquecer o canto. Os alemães, como outros imigrantes, em especial os italianos e seus descendentes  no Brasil, notabilizaram-se por uma afeição toda especial ao canto. O canto, como se sabe, constitui-se numa das vias mais completas e mais eficientes de manifestar-se uma cultura. A rigor bastaria analisar com profundidade o que as letras dizem e o que as melodias e os ritmos sugerem, para se ter uma noção de determinada cultura e identificar-lhe a história, a ambiência geográfica, os episódios que marcaram a visão do homem, do mundo e das coisas que lhe são próprias. As vigorosas canções populares da Rússia, somente lá poderiam ter aparecido. Retratam as imensas planuras daquele país continente, o tipo humano forjado no embate de centenas de povos que lá se encontraram, se guerrearam e também se miscigenaram, para resultar num tipo humano peculiar: agressivo, rude, vigoroso e profundamente sentimental, apaixonado e religioso. E foi nos territórios donde partiram  os imigrantes alemães que o canto e a música ocuparam sempre um lugar privilegiado.  Muitos dos grandes mestres da musica clássica aí nasceram, viveram e compuseram suas peças imortais. Um imenso e um rico repertório de canções populares fala da história, das alegrias, das tristezas, das guerras e da paz. A solidariedade, a fidelidade, o heroísmo, a camaradagem, a coragem, são temas sempre repetidos. Falam das florestas com seus mistérios, da majestade das montanhas, dos rios e lagos com seus mistérios, dos rochedos com seus segredos, dos castelos e suas sagas.

O canto, imortalizando todo esse  tesouro cultural, não podia ser relegado a um segundo plano também entre os imigrantes alemães no além-oceano. A criança, desde muito cedo, ouvia os pais e irmãos  cantarem as melodias mais comuns e mais apreciadas, enquanto se dedicavam às tarefas diárias. Ao começar a freqüentar a escola era submetida a um tirocínio intenso. Em muitas escolas ensinavam-se rudimentos de solfejo e até técnicas de educação vocal. O que, entretanto, mais interessava era a meia hora diária de ensaio de canto. O currículo previa que nos quatro anos obrigatórios de freqüência  à escola  as crianças aprendessem quarenta e oito cantos: vinte e quatro religiosos e vinte e quatro profanos. É claro que nem todos os egressos e nem todas as  escolas cumpriam essa determinação. Algumas com certeza a ultrapassavam. Muitos professores, principalmente os mais jovens, com formação em escola normal, sabiam tocar algum instrumento como harmônio e violino e com menos freqüência flauta. O acompanhamento com algum desses instrumentos emprestava um sabor todo especial aos ensaios e dificilmente as crianças não se entusiasmavam. 

Assim, em clima de quase recreio, eram aprendidos os quarenta e oito cantos e, não raro mais. Também neste particular a escola cumpria uma parcela da sua missão de guardar e de transmitir a cultura. E os egressos dessas escolas partiam para a vida fazendo do canto um dos meios mais eloqüentes da manifestação dos seus sentimentos e do seu estado de alma. 

A escola como alfabetizadora, a escola como fiadora da religião e da religiosidade, a escola como guardiã dos valores culturais, assumia mais uma importante função. Os imigrantes alemães e seus descendentes, apesar de todos os laços culturais e afetivos para com seu passado, politicamente falando, haviam “queimado os navios”. Tinham emigrado para não mais retornar. Chegaram com o firme propósito de amarem no Brasil a sua tenda definitiva e assumirem-se como cidadãos plenamente comprometidos. 

Ora, esse passo absolutamente necessário, encontrava seus problemas. Não resta dúvida para todos aqueles que tem um razoável conhecimento de como se processou a fixação dos imigrantes no sul do Brasil, que as colônias alemãs ficaram isoladas nas primeiras décadas. Os próprios colonizadores  viram-se forçados a encontrar formas de sobrevivência. Não tendo a quem recorrer, puseram em ação a sua própria criatividade. Organizaram suas comunidades, construíram suas escolas e igrejas. Conseguiram sobreviver agarrando-se às tradições, empenhando em favor  da  educação o melhor do que dispunham nas circunstâncias adversas. Não só lograram sobreviver, como lançaram raízes definitivas nas terras conquistadas à floresta e deram início a uma sociedade de agricultores que foi obtendo êxito e terminou prosperando. 

Em tais circunstâncias o exercício  efetivo da cidadania não passava de algumas formalidades burocráticas, como o registro dos nascimentos, óbitos e matrimônios, a regularização dos títulos de propriedade, a efetivação dos inventários e talvez algo  mais. De resto a vida diária do colono, o convívio social e a maneira de ser permaneciam próximos da origem. Aparentemente não acontecera nada mais do que um transplante da Europa para o espaço físico e geográfico no Sul do Brasil.

Essa  situação predominou até o final do século XIX.  A aparente alienação, contudo, não significou desinteresse. Quando das Guerras Platinas, da Guerra dos Farrapos, da Guerra do Paraguai e da Revolução Federalista, houve uma participação muito mais significativa do que muitos historiadores da imigração registram ou querem admitir. O que, porém, prova indiretamente a vontade de colaborar como cidadãos, com a pátria que agora de direito era sua, foi grande esforço civilizador que transformou rapidamente o extremo sul do Brasil, de terra de ninguém, em província em definitivo incorporada ao Império. 

Até os anos de 1890, ser cidadão brasileiros significou para os imigrantes e seus descendentes, empenhar todas as forças e pôr à disposição da terra que os acolhera, toda a riqueza e todo o dinamismo que haviam herdado dos seus antepassados. A situação começou a mudar na virada do século. Um número apreciável de comunidades haviam-se transformado em pequenos centros urbanos. A navegação fluvial, a ferrovia e a abertura de estradas regionais, superaram o pior do isolamento. O contato com Porto Alegre já era constante e até certo ponto fácil. O comércio movimentava um volume considerável de produtos, de modo especial feijão, banha de porco e farinha de mandioca, com destino para o Rio de Janeiro e São Paulo. Produtos importados da Europa lotavam os armazéns do porto da capital do Estado. De lá seguiam para os entrepostos de distribuição  nos portos fluviais do Rio dos Sinos, do Caí, Taquari, Pardo e Jacuí, ou nas estações  da estrada de ferro para, finalmente, serem oferecidos à venda nas casas de comércio no hinterland colonial.  

Apesar de as comunidades locais continuarem a  desempenhar o papel de unidades humanas básicas, a vida da colônia alemã encontrava-se numa transição e numa transformação significativa. Na medida em que essa dinâmica se acentuava, levava a contatos cada vez mais  freqüentes  com o segmento luso do Estado e com os recém-chegados italianos, instalados nas colônias de Caxias, Farroupilha, Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves, Veranópolis, Silveira Martins, etc. O contato com as repartições públicas e com a burocracia oficial tornara-se inevitável e rotineira. 

Compreende-se que neste contexto “ser cidadão” assumisse conotações  mais concretas, inevitáveis e diuturnas. O exercício da cidadania passara a ser um dado quotidiano, uma variável sempre presente, enfim um fato rotineiro. Aos poucos as pessoas começaram a sentir-se membros e participantes de uma sociedade mais ampla. Descobriam que o mundo estendia-se para bem longe além dos topos dos morros, que delimitavam o seu universo comunal. Novos personagens, novos usos novas realidades, teimavam em introduzir-se em suas vidas de aldeões pacatos, senhores incontestes de suas glebas. A consciência de pertencimento a uma realidade mais ampla do que a “picada” ou a “linha” em que haviam nascido, aos poucos, despertava neles a conveniência e a necessidade de se integrarem numa pátria comum em parceria com as outras etnias e culturas. Tratava-se de um fato que já não admitia protelações. Chegara o momento de assumirem a cidadania plena. 

A escola assumiu o papel de agente mais eficaz nesta tomada de posição. A Associação dos Professores, responsável direta pela orientação didático-pedagógica das escolas da rede comunitária, chamou a si a responsabilidade principal. Na Assembléia em Bom Princípio e 1900, aprovou um currículo comum para todas as escolas. Estabeleceram-se nele diretrizes  gerais que deveriam orientar o sistema, uma linha comum de procedimentos didático-pedagógicos foi implantada e a língua portuguesa foi introduzida como obrigatória, junto com a história e a geografia do Brasil. 

Não há necessidade de insistir que, nos primeiros anos, mais valeu a  intenção do que os resultados efetivos. O problema maior estava com os professores. Na maioria dos casos, eles próprios, dominavam precariamente o português. Mesmo assim, o impulso então dado, veio a frutificar aos poucos. Na década de 1930, que marcou o ponto alto das escolas comunitárias, em todas elas, salvo raras exceções, havia um espaço significativo reservado para  aprendizado da língua nacional. Paralelamente a escola comunitária cumpria a tarefa de não negligenciar e preservar os valores dos antepassados e despertar nos alunos a consciência de suas responsabilidades civis. As disciplinas de “História e Geografia da Pátria”, como costumavam denominá-las, davam-lhes uma noção  da extensão, das riquezas, das potencialidades e da gente do pais em que viviam.

As maiores facilidades de viajar pelos rios, de trem e por estradas cada vez melhores, abertura de novas frentes de colonização  no Norte e Noroeste do Estado do Rio Grande do  Sul e no Centro-Oeste de Santa Catarina, o contato mais seguido com a capital e outras cidade do interior, vieram completar o que na escola os professores ensinavam pelos livros e pelo mapas. E, na década de 1930, é possível encontrar o personagem resultante desse processo evolutivo, em toda a extensão das áreas colonizadas por alemães e seus descendentes. Ficou conhecido como o “teuto-brasileiro”. Teuto porque em suas veias circulava o sangue germânico; porque cultivava com carinho e veneração  as tradições culturais herdadas dos seus antepassados e porque continuava a falar a língua materna alemã; teuto porque da religião e da sua prática fazia um dever sagrado. Brasileiro porque nascera no território deste grande pais; brasileiro porque como tal fora registrado e se assumia. Mas brasileiro principalmente porque se engajara com entusiasmo e com toda a obstinação do camponês, na edificação da nacionalidade. Brasileiro, enfim, porque como tal se assumira para o que desse e viesse. E não se trata de afirmação retórica. A Segunda Guerra Mundial e os anos que se seguiram o demonstraram com fartura. Como qualquer outro brasileiro, os filhos das colônias alemãs foram convocados para lutar contra a Alemanha na  frente de combate na Itália e como qualquer outro brasileiro não se recusaram. Logo após a guerra  e a retomada da democracia, esses teuto-brasileiros filiaram-se aos mais diversos partidos políticos, candidataram-se a cargos eletivos em igualdade de condições  com os cidadãos  de outras origens étnicas. Traindo-se não poucas vezes pelo forte sotaque característico, foram batalhar pela modernização do Pais.

O que ocorreu no plano político aconteceu também no setor empresarial, comercial, industrial e administrativo. O posto mais alto da nação já foi ocupado por um teuto-brasileiro, oriundo de uma comunidade, ainda hoje das mais típicas do vale do Taquari. As forças armadas contam em suas fileiras com centenas de oficiais de todas as patentes cujas origens remontam às colônias alemãs do sul. Resumindo-se pode-se dizer que o teuto-brasileiro é o cidadão brasileiro assumido sem restrições como tal e ao mesmo tempo continua falando alemão ou algum dialeto e continua, principalmente, cultivando suas tradições. 

Bicentenário da Imigração - 30

Para os imigrantes alemães e seus descendentes a casa em que nasceram (Heim – Vaterhaus), na qual tiveram suas experiências infantis, em que cresceram e tornaram-se adultos, assumia as proporções do sagrado. Representava à sua maneira um santuário no qual não se permitia a entrada do lado escuso do homem. Dele se bania tudo o que era baixo, tudo o que era sórdido, tudo o que era mentiroso, tudo o que era pérfido. Quando alguém se reportava  à sua casa paterna (Heim), sempre o fazia com respeito e com veneração. Entre suas quatro paredes, por mais modestas que tivessem sido,  viveram e lutaram as pessoas a quem mais queria e devia: os pais. Foi lá que aprenderam a amar e  a rezar, o que é certo e o que é errado e a sentir-se membros da micro sociedade  que é a família. Na casa paterna (no seu Heim) cresceram e se tornaram adultos e, por fim, partiram para a vida, carregando consigo  uma rica bagagem de valores humanos e religiosos e dispostos   a perpetuá-los  onde quer que fossem instalar  o “em casa” (das Zuhause) dos seus filhos. Como se pode ver esses valores eram essenciais na preservação da identidade. Preservá-los nada mais significou do que manter vivas as raízes culturais. A quem, por uma razão ou outra,  faltassem essas raízes, carecia da ligação mais importante para com o passado cultural. Ficava separado da cepa que o vivificava com a  seiva vital da sua história. 

Enquanto na família a assimilação dessa realidades acontecia pelo vivenciar diário no relacionamento com os  pais e irmãos, na escola a questão era tratada de maneira mais sistemática. Não se recorria a grandes discursos para garantir  os resultados, a dramatizações do tipo ético, apontando para os castigos e os prêmios reservados aos faltosos e os cumpridores das suas obrigações. Obtinha-se um resultado excelente com a leitura de histórias, de contos, de fábulas, com a declamação de poesias, com execução de cantos que se ocupavam com o tema. Os livros de leitura adotados nas escolas costumavam preencher uma dupla finalidade: exercitar a leitura e consolidar os valores culturais da tradição dos antepassados. 

O espaço formal reservado para a disciplina “Realia” não passava de meia hora por semana. Nem Havia necessidade para mais pois, seus conteúdos permeavam todas as outras disciplinas. Serviam de pano de fundo para histórias, fábulas, poesias, cantos, contos etc., como serviam para exercícios de  redação e de composição. 

Como extensão da casa destacava-se uma segunda “realidade”, não menos vital. Na tradição germânica ficou designada como “Hof” ou em tradução livre “pátio”. Esse vocábulo, entretanto, não se aproxima nem de longe do conceito que os alemães e seus descendentes lhe atribuíam. Os  elementos físicos do “Hof” compreendiam a casa de moradia (das Haus), os celeiros, os estábulos e as demais benfeitorias. Não podia faltar o jardim com flores na frente da casa. Entre as construções cresciam árvores de sombra, árvores frutíferas. Soltos andavam galinhas, patos, gansos e obviamente cães e gatos. Tudo estava convenientemente cercado por arame farpado ou uma taipa de pedras. Não raro a área ultrapassava vários mil metros quadrados. Todo esse complexo formava o pequeno mundo imediato do colono. A criança, ao sair do recinto sagrado da casa, entrava nesse espaço ainda perfeitamente delimitado e circunscrito. Este seria o seu mundo até os seis ou sete anos. Neste espaço vivenciava as alegrias e as realizações, as tristezas e as frustrações da infância. Esse minúsculo universo proporcionava-lhe o contato com as plantas e os animas. Nele descobria as primeiras incógnitas oferecidas pela natureza. Nele passava os dias brincando, divertindo-se e tentando entender os mistérios que evolviam a vida e a natureza. 

Essas experiências e essas vivências  todas faziam com que o colono lançasse raízes profundas e existenciais  no chão sagrado do “Hof”. Cada árvore contava uma história, cada pássaro  recordava uma emoção, cada flor sugeria um símbolo, cada telhado evocava um acontecimento, enfim, tudo que existia, vivia e se movimentava  neste recinto, vinha carregado de significados e de simbolismos. Nem a distância, nem a idade, nem os descaminhos da vida fariam com que qualquer autêntico filho dessa estirpe se esquecesse do seu “Hof”. Retornava a ele quando possível. E não havia nada mais triste e mais decepcionante para o forasteiro do que, voltando ao local onde ficara o  seu “Hof” e não encontrar mais nada, nem a casa em que nascera, nem as árvores em cuja sombra brincara e cujos frutos apreciara, nem os muros que marcavam as fronteiras do seu universo de criança, nem os celeiros, nem as estrebarias, nem as flores, nem os animais amigos. O palco desfeito do seu mundo infantil aperta-lhe o peito e faz doer o coração, com uma dor profunda pelo paraíso perdido mas não esquecido. As ervas desordenadas, os arbustos selvagens, os cipós e as árvores estranhas, que tomaram conta de tudo, parecem chamar-lhe a atenção que suas raízes já não se encontram naquele lugar. Foram apagadas e se perderam no passado. E o viajante perdido no chão que já não reconhece como o seu, tenta com tristeza e nostalgia, reconstruir na memória aquilo que um dia fora o seu “Hof”. Sente-se estrangeiro e estranho em sua própria terra e partindo, convence-se de que algo de existencial lhe foi roubado. 

Também na preservação de mais esse componente  importante da identidade, a escola participava de forma decisiva. As histórias dos livros de leitura, as poesias, os contos e os cantos, não se cansavam de chamar a atenção para as realidades integrantes do minimundo do  “Hof”. Enquanto na vivência  diária aprendiam reconhecer os limites práticos e as realidades concretas do “Hof”, na escola se lhes despertava a consciência da necessidade de apreciá-lo e amá-lo com todas as energias da alma. O descendente autêntico dos imigrantes alemães cultivava um verdadeiro caso de amor com o seu “Hof”. 

Mais tarde, com sete ou oito anos, a criança chegava na idade de freqüentar a escola. Chegara o momento de transpor os limites do minúsculo universo que era o “Hof”. A partir daí tomava pé numa realidade circunstancial mais ampla, mas que não deixava de ser uma extensão  das duas anteriores, a casa paterna, o “Heim” e o “Hof”. Começava a viver e conviver com a terra natal, a “querência natal”, a “Heimat”. Falamos novamente de um espaço geográfico e de uma experiência de vida. As fronteiras da comunidade limitavam o espaço geográfico. Como realidade humana a sociedade local polarizava-se em torno da escola, da igreja, do cemitério, da casa de comércio, dos artesanatos e demais elementos da infra-estrutura comunal. Até a década de 1950 a existência dos colonos, de fato,  esgotava-se e se consumia no perímetro da terra natal, da “Heimat”. Nela nasciam, viviam e morriam. Por essa razão o convívio na comunidade da terra natal, assumia em termos a mesma importância da casa paterna, do “Hof”. O menino e a menina identificavam aos poucos esse espaço e aprendiam a orientar-se por todas as trilhas  e caminhos que interligavam os moradores. Sabiam onde cada um morava, quem era, quais suas virtudes e quais seus defeitos. Assim, aos domingos, na igreja, nos encontros festivos, nos bailes periódicos, só encontravam rostos conhecidos. Algum forasteiro eventual caía logo em vista. Consolidava-se a consciência do mundo comunal no qual um pacto tácito, porém, sagrado, convidava as pessoas a se comprometerem mutuamente e a se engajarem  nos objetivos comuns.

Consolidava-se aí um convívio que retratava com absoluta fidelidade uma comunidade colonial Todas as pessoas conheciam-se pelo nome. O vizinho e o parente significavam muito mais do que um mero acidente geográfico ou uma simples fatalidade biológica. A trama das relações  interpessoais encontrava na proximidade e na vizinhança geográfica e no parentesco biológico, toda a sua motivação e toda a sua vitalidade. Essa realidade transformou-se no critério elementar para definir os direitos e os deveres mútuos. Vizinho tinha deveres e direitos por serem vizinho e parente tinha deveres e direitos por sere parente. 

Entende-se assim a não existência de certos serviços de assistência prestados hoje por repartições públicas ou por empresas especializadas. Não se conhecia, pro ex., a figura do coveiro, funcionário da prefeitura ou da comunidade. Providenciar o atestado de óbito, combinar a hora  da encomendação, abrir a sepultura, velar o falecido, leva-lo até o cemitério e, finalmente, sepulta-lo, cabia como obrigação aos vizinhos. Da mesma forma solidária procedia-se em outras situações. A maioria das obras de utilidade da comunidade, eram encaradas e assumidas como obrigação pessoal. Desta forma ficava fácil mobilizar um grande número de pessoas em se tratando de construir uma escola, uma igreja, uma capela, ou limpar e enfeitar o cemitério, preparar as festas ou cuidar da construção e manutenção das estradas. 

Em algum lugar muito especial da terra natal o jovem ou a jovem encontraria a pessoa que seria o grande amor da sua vida e com quem construiria um novo lar (Heim), organizaria seu próprio “Hof”, na terra natal (Heimat) que seria a dos seus filhos. A terra natal, a querência (die Heimat), portanto, significou sempre um lugar concreto e único, no qual convivia uma micro sociedade, também concreta e única, comprometida e mobilizada em torno de um propósito e de um projeto também comum, concreto e único. A terra natal não representava uma conceito abstrato, uma categoria teórica criada por intelectuais. Significou, como significa ainda hoje, um dado concreto, uma realidade geográfica e humana que os olhos podem apreciar, que o observador  pode descrever, que o poeta pode cantar. É uma realidade que, antes de mais nada, faz parte existencial da vida das pessoas. Chega ser um verdadeiro estado de espírito e, por isso mesmo, objeto obrigatório das reminiscências do viajante sozinho e em terra estranha.

Basta percorrer a poética e o cancioneiro popular para encontrar abundantes provas. Um ou outro exemplo para comprovar. O viajante longe da sua terra natal, recordando-se dela canta:

Im Schönsten Wiesengrunde
Ist meiner Heimat Land 
Ich Schaut’ so manche Stunde 
Ins Tal hinaus.

Em tradução livre: “No mais belo dos  prados,  encontra-se a minha terra natal. Durante horas e mais horas eu contemplo o vale”. 

O mercenário só e entregue à rude sorte cantarola em suas vigílias solitárias: “Difícil para o legionário é o caminho de retorno para casa. E muitos jamais de verão de nono a terra natal”:

Der Weg nach Haus ist Schwer
Für einen Legionär
Und viele, viele sehen die Heimat,
Die Heimat niemals mehr.

Embarcado em seu navio, o marinheiro pega da viola, recolhe-se ao convés e, embalado pelas ondas, bafejado pela brisa salgada, inspirado pela lua e pelas estrelas, canta:

“Um barco branco navega para Hongkong. As terras estranhas me atraem. Eu sinto saudades de casa. Eu disse aos ventos e às nuvens: levai-me convosco. Com muito prazer eu troco os muitos países estranhos, por uma única viagem para casa”:

Fährt ein weises Schiff nach Hongkong
Hab’ ich Sehnsucht nach zu Haus
Hab’ ich Sehnsucht nach der Ferne.
Und ich sagt’ zu Wind und Wolken, 
Nimmt mich mit ich tausche gerne, 
All die vielen fremden Länder, 
Für eine Heimfahrt aus. 

Depois é o forasteiro desgarrado, longe do torrão natal, da sua querência, da sua Heimat, que canta:


Heimatlos sind viele auf der Welt, 
Heimatlos und einsam wie ich. 
Ùberall verdine ich mein Geld,
Doch es wartet keiner auf mich.
Keine freunde, keine Liebe, kein “Zuhause”,
Wie es Früher, Früher einmal war.
Ein par Freunde, eine Liebe, ein Zuhause, ein Glück,

Ou seja: Muitos há que não têm terra natal. Como eu, solitário, não têm terra natal.  Nos muitos lugares onde passo, ganho o meu dinheiro, mas ninguém espera por mim. Nenhum amigo, nenhum amor, como foi antigamente. Preciso de amigos, sinto falto de um amor, de um “em casa”. 

Folheando qualquer livro de cantos, o tema “Heimat”, terra natal, impõe-se com freqüência impressionante. Observando com mais atenção constata-se que vem relacionado com outros valores que o complementam e enriquecem de forma  extraordinária. O que mais se destaca é o amor. A terra natal, a querência, a “Heimat”, é o palco onde o amor desperta, onde amor floresce, onde o amor amadurece, onde o amor se perpetua. Fora deste contexto esse sentimento, esse valor não é capaz de lançar raízes e muito menos prosperar. Vão aí algumas amostras: “Onde encontrei a bem amada, lá se encontra a minha terra natal, lá eu me senti em casa:


Wo ich die Liebste fand,
Dort ist mein Heimatland,
Dort war ich einmal Zuhause.

À mesma relação terra natal-amor reporta-se o legionário em outra passagem do canto há pouco citado:

Fremd ist die Erde,
Fremd der Himmel,
Fremd sind die Reden,
Fremd die Lieder,
Fremd sind die Herzen,
Und keines Schlägt für ihn:

“Estranha é a terra - estranho o firmamento - estranhas são as falas - estranhas  as canções  -  estanhos os corações e nenhum pulsa por ele.”  

A terra Natal (die Heimat), o “em casa” (das Zuhause), a pessoa amada (die Liebste), simbolizam tudo o que desfila pela recordação da pessoa que, por obra do destino, encontra-se longe. Trata-se de um cenário concreto, elaborado pela vivência e sublimado ao ponto de acompanhar o homem como um estado de espírito. 

Bicentenário da Imigração - 29

A primeira providência tomada pelos pioneiros ao atacarem uma nova fronteira de colonização e à formação de mais uma comunidade, consistia em abrir uma trilha de acesso aos lotes. Denominavam-na “picada”. Começava de modo geral na entrada de um vale e prolongava-se até a propriedade mais afastada. Mais tarde essas picadas transformavam-se em caminhos, em estradas vicinais, em estradas municipais, dependendo da localização, do tamanho e da importância estratégica. Por terem sido as responsáveis pela circulação interna no espaço comunal e por isso possibilitado a sua integração, essas trilhas ou picadas, incorporaram com o tempo o sentido de uma unidade humana. Terminaram por significar a comunidade como um todo. Assim, quando alguém dizia, ou usava  a expressão “a minha picada”, “a minha linha”, queria significar a comunidade natal. Do significado original, meramente prático passou a conceituar a própria unidade comunal. 

No arranjo comunal as moradias não costumavam concentrar-se em aldeias, como acontecia na Europa. Cada agricultor construía a mordia e as demais benfeitorias  no próprio lote. Tomava o cuidado de instalar-se próximo ao caminho ou estrada vicinal. Daí resultava em geral uma linha de casas, estábulos, depósitos e paióis, percorrendo o vale. A partir dessa “linha” popularizou-se “a linha” como outro conceito  familiar na região de colonização. “A linha”, um dado originariamente físico como a “picada”, terminaria significando a própria comunidade. Linha Santa Fé, Linha Comprida, Linha Bonita, Linha Imperial e tantas outras “linhas”, significam, na verdade comunidades com este nome.

Os cursos de água das áreas colonizadas costumavam apresentar leitos rochosos, acidentados, cheios de corredeiras e de pedras. Deram-lhe o nome de “lajeados”. Também este conceito veio a significar uma unidade geográfica e humana, como por ex., a comunidade de “Lajeado Grande”. Assim como cada um dos compartimentos geográficos menores costumava marcar os limites da unidade comunal, assim também uma região mais ampla, apresentando características  semelhantes e formando uma unidade maior, como por exemplo, a bacia de um rio, formava uma unidade regional. Pontos estratégicos no seu interior atuavam como polarizadores da vida social,  econômica e religiosa.  Como exemplo tomemos a bacia do Rio Caí. Poderia ser também a do Rio dos Sinos, Taquari, Jacuí ou Pardo. 

A bacia do Rio Caí é relativamente pequena. Estende-se por cerca de 100 quilômetros para o norte de Porto Alegre. O eixo central, formado pelo rio é servido por meia dúzia  de cursos de porte médio e pequeno, demarcando uma bacia topograficamente muito bem definida. Nas várzeas contíguas ao rio e nos vales adjacentes dos seus afluentes, instalaram-se dúzias de comunidades de colonos.  Duas cidades desenvolveram-se, desde cedo, às margens do rio: Montenegro e São Sebastião do Caí, ambas junto a portos fluviais. Montenegro, além do porto beneficiava-se  da estrada de ferro Porto Alegre – Caxias do Sul. A cidade de Caí evoluiu junto ao porto que marcava o termino da navegabilidade do rio. De uma forma ou de outra todas as vias de circulação interna do vale, terminavam confluindo para os dois portos. Uma boa infraestrutura assegurava um bom funcionamento, em termos de época. Serviam de ponto de embarque para os produtos coloniais oriundos do interior das colônias mais afastadas. Dos portos, os mesmos veículos que levavam feijão, batata, banha, etc., distribuíam as mercadorias procedentes das casas importadoras de Porto Alegre, para as vendas nas comunidades mais afastadas. Além das embarcações de carga, outras destinavam-se o transporte de passageiros.  

Até a década de 1930, a forma mais rápida de chegar à capital do Estado, consistia em deslocar-se, a pé ou a cavalo, até Montenegro, Maratá ou Salvador do Sul e embarcar no trem. Quem dispusesse de mais tempo e preferisse outra modalidade  de transporte, embarcava numa lancha de passageiros em São Sebastião do Caí ou Montenegro. Ao formarem-se, mais tarde, cooperativas, associações regionais de colonos, dioceses, associações de municípios, os mesmos critérios geográficos foram adotados. A Cooperativa dos Suinocultores do Caí Superior, a Associação  dos Prefeitos do Vale do Rio dos Sinos, são exemplos característicos.  

É evidente que a partir da década de 1950, com a abertura  de rodovias federais e estaduais de longo curso e melhor construídas,  o fator identidade geográfica fosse perdendo cada vez  mais a importância inicial. Mais um fator contribuiu  para a mudança nas áreas recentemente colonizadas no oeste do Paraná. A topografia daquela região é pouco acidentada. O relevo suavemente ondulado e em grandes extensões praticamente plano, orientou a formação das unidades comunais de outra forma. As designações de “picada”, “linha” e “lajeado”, tão comuns no Rio Grande do Sul e no Centro Oeste de Santa Catarina, perderam em grande parte o seu significado no oeste do Paraná.

Mesmo que os colonizadores alemães do Sul morassem dispersos em suas propriedades, isso em nada  afetou a sua coesão e a sua integração comunitária. No ponto mais central da “linha” ou da “picada”, reservavam uma área considerável para a instalação da infraestrutura comunal indispensável: a escola, a igreja, o cemitério e demais complementos que viriam a ser necessários para o bom andamento da vida comunitária. Por razões estratégicas funcionava aí  também a venda, a ferraria, a serraria, o moinho, a carpintaria, a sapataria, a alfaiataria. Uma organização desse tipo oferecia uma série de vantagens e contribuiu, em grande parte, para que as comunidades coloniais fossem capazes de manter, e por longo tempo, a sua índole peculiar. Conservaram o caráter de comunidades solidamente  estruturadas  em torno dos seus objetivos materiais e espirituais comuns. E os propósitos comuns voltavam-se para a escola e a educação, para a Igreja e a religiosidade, para a prática do lazer e da sociabilidade e, enfim, todos os meios necessários para impulsionar a vida social, econômica e cultural. 

O fato de cada colono morar na sua propriedade resultou, ao menos em termos, numa vantagem adicional. Como já se afirmou acima, cada família agia em seu lote como se fosse uma microempresa familiar. No dia-a-dia da atividade agrícola, portanto, predominava a absoluta autonomia e independência. Cada qual se assemelhava mais  a um pequeno reino ou uma minúscula república. Todas as decisões sobre o que plantar, como plantar, que animais domésticos criar, qual o destino a ser dado  para a produção, como gerenciar essa “empresa”, emanavam de dentro dela. As cooperativas e as associações de agricultores, quando traçavam linhas de conduta, quando sugeriam novas  técnicas ou novos produtos, não tinham o poder de impor. Limitavam-se a aconselhar e a orientar. Não raro o colono mantinha sua autonomia com sérios prejuízos. Essas circunstâncias, peculiares à própria natureza do sistema da pequena propriedade, formaram um camponês fanaticamente agarrado à sua propriedade e à sua independência. Costumavam auto denominar-se “reis em sua gleba”. Quando o sucesso acontecia, reivindicavam-no todo para si. No caso de fracasso, se não por razões alheias à sua vontade, eram obrigados a assimila-lo sozinhos. 

A relativa dispersão geográfica dos colonos em suas glebas reforçou o espírito de autonomia e independência. Nas comunidades do tipo europeu, concentradas em aldeias, o inevitável contato mais frequente   com os vizinhos gerava uma intromissão mútua nos negócios e nas preocupações muito mais frequentes, afetando, não raro, a própria privacidade. 

É evidente que a dispersão dos moradores por toda a área ocupada por uma comunidade tinha as suas dificuldades. Obrigava as crianças a caminhadas diárias, às vezes de vários quilômetros, para ir e voltar da  escola. Para muitos a igreja ficava longe, impedindo a frequência com a assiduidade desejada por muitos. Da mesma forma era preciso percorrer distâncias significativas para ir ao moinho, à ferraria, à carpintaria ou sapataria. Apesar desses empecilhos, a comunidade continuou a significar, além da família, a grande motivadora da vida dos colonos. Nela haviam nascido, nela encontravam praticamente tudo do que precisavam, nela tinham o seu mundo de relacionamento humano, nela enfim, se esgotava a existência da grande maioria. Importava, por isso, preserva-la de tudo quanto pudesse ameaçar a sua integridade. E a integridade comunal era posta a perigo cada vez que algum dos elementos polarizadores fosse mal estruturado, mal conduzido ou atacado por inimigos externos. 

Os colonos alemães elegeram, desde muito cedo, a escola e a educação como um dos meios mais eficazes  no combate à decadência cultural e religiosa.   Em todas as comunidades coloniais cuidou-se, por isso,  da instalação e funcionamento de uma escola, antes mesmo de construir-se uma capela. A primeira providência consistia em constituir a comunidade escolar (Schulgemeinde). Integrada por todos os membros de uma comunidade, chamava a si  tudo que fosse necessário para instalar e fazer funcionar a escola. Dentre os membros da comunidade escolar escolhia-se a diretoria da escola (Schulvorstand). Composta de poucas pessoas, a diretoria encarregava-se diretamente da construção do prédio, com a instalação interna e com o material didático. A função mais importante relacionava-se com o professor. Cabia à diretoria procurar e escolher o professor, contratá-lo, pôr-lhe à disposição a moradia e uma área de terra na qual sua família pudesse produzir. Fiscalizava o desempenho do professor, vigiava-lhe a conduta e garantia-lhe a remuneração. No caso de não satisfazer cabia ainda à diretoria a sua substituição.

Dessa forma, foi possível, desde o começo, atender aos requisitos mínimos  exigidos pela educação dos filhos dos colonos. Se as comunidades coloniais tivessem esperado pelas autoridades locais ou provinciais, as primeiras gerações de colonos teriam ficado sem escola, com as conseqüências óbvias. Em vez de se firmarem, em lugar de progredirem, teriam estagnado, regredido e sofrido um retrocesso econômico, social, cultural e religioso irreversível. Conscientes de semelhante risco, canalizaram  a parcela mais significativa de sua energia comunitária em favor da escola e da educação. 

O resultado não podia ser outro. No final da década de 1930, no momento em que o Estado, em nome de um nacionalismo no mínimo discutível, interveio no sistema, poucas eram as comunidades que não se podiam orgulhar da sua escola. A importância dada à escola pelos colonos alemães, ultrapassou em muito o simples dado de poder contar com uma. Fizeram dela o elemento estratégico fundamental para a sobrevivência e o progresso.  O lugar comum defendido levianamente por muitos, segundo o qual a escola comunitária colonial alemã, não passava de um meio de enquistamento sócio-cultural e a grande responsável pela resistência dos imigrantes ao abrasileiramento, no mínimo não passa de um equívoco. 

Com a finalidade de fazer da escola o instrumento estratégico de maior importância para a sua sobrevivência, dotaram-na de uma organização  didático-pedagógica coerente. Fizeram dela uma instituição em que os filhos dos colonos, além de serem alfabetizados, familiarizavam-se com o manejo da língua falada e escrita. As crianças recebiam na escola um sólido conhecimento de aritmética, cálculo de juros e porcentagens, alem de informações sobre medidas, volumes, pesos, etc. A escola esmerava-se em tudo que pudesse contribuir para que o filho do colono fosse capaz de gerenciar com segurança as suas atividades como agricultor. 

O número insuficiente de curas de alma fez com que a escolas assumissem também o papel principal no ensino religioso. No currículo escolar reservou-se um espaço significativo para o Catecismo e a leitura da Bíblia. Nessas escolas a religião ocupava uma posição tão importante quanto a língua e o cálculo. Não tivesse sido assim o nível religioso aliado à assiduidade na freqüência à missa e aos sacramentos não se teria mantido em nível tão elevado. Nos 25 primeiros anos da imigração, quando a assistência religiosa por parte de sacerdotes era praticamente nula pelo menos entre os católicos, sem a escola  a religiosidade teria sofrido danos irreparáveis. 

A escola fora concebida também como garantia e continuidade de uma série de valores básicos da cultura e do interesse direto dos colonos em particular e das comunidades em geral. Por esta razão foi incluída no Currículo, uma disciplina destinada a tratar de “coisas reais”, como sugere o nome latino adotado “Realia”. Pelo seu sentido didático-pedagógico distinguia-se do aprendizado da língua, da leitura, aritmética, cálculo e religião. O que se pretendia com essa disciplina? Contemplava, antes de mais nada, conteúdos que faziam parte da vivência diária dos colonos e integravam uma parcela muito rica da própria germanidade. Insistia-se na importância da pessoa como valor básico de uma sociedade. Alertava-se para o fato de que uma comunidade ou uma família somente podem cumprir corretamente a sua missão, quando há respeito mutuo, quando se observam os limites entre os direitos e deveres e se aceita o lugar que compete à autoridade. 

A disciplina “Realia” ocupava-se  com noções elementares  sobre as circunstâncias da vida do colono. Destacavam-se as estações do ano, a importância do solo, a utilidade da floresta e suas madeiras, dos animais úteis e benéficos, dos animais nocivos. Em resumo procurava-se situar a criança no seu entorno e informa-la de como melhor viver e conviver nele. Acompanhavam esse aprendizado noções elementares  de conservação e recuperação dos solos, o alerta sobre as conseqüências do desmatamento exagerado indiscriminado e noções sobre  florestamento e reflorestamento. No que, porém, a disciplina “Realia”  se preocupava mais era com a assimilação  de certos valores responsáveis pela inserção existencial do colono na sua comunidade. 

Bicentenário da Imigração - 28

O Sul Muda de Fisionomia

Da América Latina, o Brasil é o pais que ostenta o quadro étnico-cultural mais heterogêneo e mais diversificado. Encontram-se presentes  grupos significativos, representando diversas raças e culturas. Embora uns se concentrem mais numa região e outros em outra, encontramo-los em todo o território nacional. Para onde quer que se viaje, topa-se com o negro, com o asiático, com o branco e com todos os matizes de cor da pele e de cabelos que a miscigenação foi capaz de engendrar. Formas de vida as mais diversificadas, costumes e cosmovisões divergentes, filosofias de vida às vezes exóticas, encontraram guarida  em solo brasileiro e ao mesmo tempo clima favorável para se manifestarem livremente.

O que todos possuem em comum é a esperança de que aqui, apesar de todas as dificuldades momentâneas, existem condições reais e objetivas para construir um futuro melhor. E como objetivo de  construir um porvir mais promissor do que o oferecido pelas terras de origem, afluíram para o Brasil  representantes dos povos e das culturas mais diversas. Foi essa perspectiva que atraiu  portugueses,  açorianos,  alemães,  italianos,  europeus em geral,  japoneses e  todos os outros orientais. A grande presença negra infelizmente acha-se ligada à escravatura. Mesmo assim, embora a duras penas, o negro está começando a conquistar o seu espaço neste pais imenso e heterogêneo. 

A presença alemã nos estados do Sul seguiu em grandes linhas a mesma lógica. A partir do começo do século XIX, a administração colonial e depois a imperial, decidiu garantir  a soberania sobre as províncias do Sul. Esparsamente habitadas por estancieiros e alguns bolsões de colonos açorianos, esses territórios representavam uma tentação constante para as repúblicas castelhanas vizinhas. Por falta absoluta de súditos da Coroa portuguesa que pudessem povoar essas regiões vazias, o Conselho Ultramarino decidiu convidar europeus  do Centro e do Norte do continente. A preferência incidiu sobre alemães e italianos. Os motivos dessa preferência foram vários. Em poucas palavras, os mais importantes  parecem ter sido o fato de, tanto uns como os outros, terem praticado durante séculos a agricultura familiar em pequenas propriedades; de nunca terem criado problemas com a Coroa de Portugal, como fora o caso  dos franceses, ingleses e holandeses; de não terem representado perigo imediato para as fronteiras  do Sul, como os espanhóis. No caso específico dos alemães pesou o casamento de D. Pedro I com a princesa austríaca Dona Leopoldina. Um motivo adicional foi a disponibilidade  de colonos alemães em número suficiente, já que as províncias donde procediam achavam-se superpovoadas. As terras esgotadas já não ofereciam  grandes perspectivas e a incipiente industrialização, não tinha condições de absorver os agricultores empobrecidos. Para eles, a emigração significava a única saída  promissora para a situação. Para o Brasil, resolveria o problema da ocupação dos espaços vazios no Sul, motivo de contínuas  disputas e escaramuças de fronteira com os castelhanos do Paraguai, da Argentina e do Uruguai. 

Um outro pormenor  importante não pode ser esquecido. Até então os estados do Centro e do Norte haviam sido incorporados  à base do latifúndio  escravocrata. Foi assim na atividade canavieira, nas plantações  de algodão e nas fazendas de café. Para os estados do Sul foi projetado  uma outra modalidade de faze-los produtivos, implantando neles  uma agricultura diversificada, fundamentada na pequena propriedade de caráter familiar. A concretização desse modelo fora tentado durante a segunda metade do  século dezoito, com famílias de agricultores emigrados dos Açores. O número de casais açorianos disponíveis, entretanto,  foi muito pequeno para povoar  os espaços disponíveis no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A solução veio com os imigrantes alemães, italianos e poloneses principalmente. 

O propósito desta contribuição resume-se  em mostrar o que os imigrantes alemães, com sua identidade peculiar, trouxeram contribuições novas e diferentes e que marcaram indelevelmente grandes extensões da fisionomia humano do Brasil Meridional. Pretende, de outra parte, acompanhar de alguma forma a trajetória da integração deles e dos seus descendentes na sociedade nacional. 

Falemos em primeiro lugar da fisionomia humana peculiar que os colonizadores alemães imprimiram na paisagem das regiões em que se  estabeleceram no sul do Brasil. O elemento mais significativo, em termos de estrutura agrária, foi o regime da pequena propriedade de terra. Nos primeiros anos os lotes coloniais mediam em torno de 70 hectares. Mais tarde essa media foi diminuindo para 50, para 40, fixando-se entre 25 e 30 hectares, nas últimas fronteiras de colonização no centro oeste de Santa Catarina e no oeste do Paraná. É fácil  imaginar que em módulos tão reduzidos o máximo que se podia instalar e fazer render não passava os limites do sustento de uma família e, na melhor das hipóteses, a produção de alguns excedentes. 

Essa realidade leva a uma segunda constatação. Se a ocupação das pequenas propriedades se resumia, em última análise, numa empresa familiar com o objetivo principal de assegurar a subsistência  dessas famílias, a agricultura praticada tinha que ser diversificada. E foi o que ocorreu. Para suprir as necessidades diárias cultivava-se milho, feijão, batata, arroz, mandioca, aipim, amendoim, etc. Havendo excedentes esses eram comercializados. E, após os primeiros anos, superadas as dificuldades do começo, o feijão comercializado nas praças de São Paulo e do Rio de Janeiro, procedia na sua quase totalidade do Rio Grande do Sul. Ao lado dos produtos agrícolas os colonos  criavam suínos, bovinos, eqüinos, galináceos, ovelhas e outros. A banha de porco rendia bons ganhos adicionais e não faltava espaço para a colocação nos principais mercados do país. 

No Rio Grande do Sul, centro e oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná, o regime da pequena propriedade  e a economia baseada na policultura transformaram vastas regiões  numa paisagem humanizada inconfundível. As terras tinham sido repartidas sempre de acordo com o mesmo esquema. Um rio, um arroio, um dorso de morro, serviam como referência para alinhar os lotes. Uma trilha no mato no início, um caminho depois e muitas vezes uma estrada no final, permitiam a circulação de pessoas, animais e produtos. As moradias dos agricultores costumavam ser  construídas perto das estradas, cada qual no respectivo lote. No centro de um espaço geográfico desses, a igreja, a escola, o cemitério, a casa de comércio tinham o seu  lugar garantido. Dessa forma tem-se uma idéia de como se formaram as unidades comunais na região de imigração alemã, italiana, polonesa e outras. 

A configuração topográfica e a superfície  do espaço comunal variavam de acordo com as características locais. Quando um vale ou um altiplano oferecia uma área suficiente para um número maior de módulos rurais locais, abrigava mais moradores,  servia de sede para a formação de uma comunidade também maior. Se a área disponível era menor, as comunidades compunham-se de um número pequeno de unidades familiares. É lógico que se exigiam áreas mínimas. Nas menores organizava-se, além da escola uma capela. Um número menor ou maior de capelas reuniam-se em volta da sede paroquial, situada na comunidade mais ampla e com maior número de moradores. Com o correr do tempo essas sedes paroquiais eram contempladas  com a infraestrutura necessária para o funcionamento regular da burocracia local, como subprefeitura, subdelegacia de polícia, agência do correio, cartório de registros, etc. A grande maioria das sedes paroquiais  do começo da colonização, evoluíram com o tempo para sedes  de municípios. Assim, designações essencialmente  geográficas na sua origem, transformaram-se, com o correr do tempo, em conceitos mais abrangentes. 

Bicentenário da Imigração - 27

A dinâmica da expansão colonial

Depois de vencidas as dificuldades iniciais, os imigrantes alemães e seus descendentes, que se instalaram a partir de 1824 na Real Feitoria do Linho Cânhamo em São Leopoldo, não demoraram  em implantar suas comunidades em áreas próximas.. O processo da expansão colonial começara. Essa dinâmica foi impulsionada por dois poderosos fatores.  Em primeiro lugar, pesou a intensificação da vinda de novos imigrantes até 1831, ano em que os incentivos para a imigração foram cancelados. O segundo fator, ao que parece o mais forte tem a ver com o forte crescimento vegetativo da população na região de imigração alemã desde 1850. A partir desta data a primeira geração nascida no Brasil, completara a idade de procurar o seu lote de terra. Ora, é por todos conhecido que as famílias eram numerosas e a mortalidade infantil relativamente baixa para a época. Ao mesmo tempo, os lotes coloniais com suas dimensões reduzidas, não permitiam mais do que uma ou no máximo duas divisões. Levantamentos feitos sobre aquela época, mostram  que na média cada 1000 famílias geravam, anualmente, nada menos do que 200 excedentes, candidatos natos a novos lotes de terra. Como o crescimento populacional cresceu em progressão geométrica, fica fácil imaginar  a movimentação no seio das colônias alemãs durante mais de um século.

A fase inicial da expansão
O final da primeira década apos o começo da imigração alemã, fato que coincidiu com o início da Guerra dos Farrapos, marcou o começo da ocupação das terras cobertas de mata, além dos limites  da área destinada inicialmente para a colonização. Na obra “Cem anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, o Pe. Theodor Amstad assim descreveu a situação.

No começo da Guerra dos Farrapos, como já foi dito, estava ocupada a parte anterior e plana da colônia governamental de São Leopoldo e a primeira parcela  das três picadas: Dois Irmãos, Picada dos Berghan (Ivoti) e Picada dos Portugueses (São José do Hortêncio). Poucos povoadores, como por exemplo, M. Mombach, arriscaram-se a cruzar o topo dos primeiros morros. Na Picada dos Portugueses, já em 1832, foi preciso desistir dos postos avançados do Fritzenberg e Rosental e concentrar-se na parte baixa, por causa do ataque dos bugres. Somente na década de 1840, ao terminar a Guerra dos Farrapos, arriscou-se a ocupação das áreas mais afastadas das picadas. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 103) 

O término da Guerra dos Farrapos marcou o começo da ocupação  sistemática das áreas periféricas do núcleo original da imigração. Nos 10 anos, entre 1845 e 1855, o avanço da colonização teve como alvos preferenciais o vale do rio Feitoria, afluente do rio Caí, com Dois Irmãos como ponto de irradiação e o rio Cadeia, também afluente do rio Caí, com a  Picada dos Portugueses como referência. Sucessivamente foram sendo povoados o Bugerberg ou Bucherberg, Jammertal e Walachei. Em seguida o avanço seguiu em direção ao Herval. 

Uma dinâmica semelhante impulsionou o povoamento das porções posteriores das Picadas dos Berghan (Ivoti) e dos Portugueses. Neste processo destacaram-se  Bohnental, Linha Nova, Schneiderstal, Holanda e Picada Café, com suas diversas ramificações. A obra que acabamos de citar “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, resumiu assim os 25 primeiros anos da expansão colonial.

É licito afirmar então que em meados dos anos cinquenta as terras postas à disposição para a colonização pelo governo imperial nas três picadas antigas, estavam em linhas gerais povoadas. A Picada Feliz, que veio somar-se em 1845, contava na época com 90 a 100 famílias, podendo ser considerada ocupada, tomando como base as condições populacionais da época. Nada mais natural então  que muitos pais com família numerosa e muitos jovens empreendedores da colônia, procurarem terras favoráveis em outra parte. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 108)

As áreas colonizadas até aqui tinham sido de propriedade do Governo Imperial. Em torno delas, localizavam-se extensões maiores ou menores em mãos de particulares, tanto no curso médio e superior do rio dos Sinos e seus afluentes, como do Caí. Foi sobre essas matas que a lógica do avanço orientou o fluxo da colonização. As terras de ambas as margens do Santa Maria (Paranhana) pertenciam a Tristão Monteiro. Quando começou a coloniza-las com imigrantes alemães, batizou-as com o sugestivo nome de Mundo Novo. O povoamento do Mundo Novo começou efetivamente em 1847 e prolongou-se até o final da década de 1870, quando contava com 284 famílias, das quais apenas 10 não eram alemãs. Vizinha ao Mundo Novo localizava-se a fazenda Padre Eterno, vendida em lotes pelo proprietário, o Barão do Jacuí. Idêntico caminho tomou na época  a família Leão, proprietária do Leonerhof  (Sapiranga e arredores). O prolongamento da colônia da Feitoria, o Morro Pelado na margem do Rio dos Sinos, foi colonizado por seus donos, Chico Santos e Fialho. 

Simultaneamente às colonizações a leste do núcleo inicial de São Leopoldo, no vale do Rio dos Sinos, intensificou-se o avanço para o oeste e para o norte, para dentro do vale do Caí. Todas essas terras, dotadas de alta fertilidade, encontravam-se em mãos de particulares e estendiam-se ao longo das margens do Caí e dos seus quatro principais afluentes: O Forromeco, o Salvador e o Maratá na margem direita e o  Cadeia na margem esquerda. Os  donos dessas terras as dividiram e as venderam aos colonos procedentes, na sua grade maioria, das áreas mais antigas de colonização no vale do Rio dos sinos e, em menor número, diretamente imigrados da Alemanha.

Na mesma época  em que no vale do Rio Caí, iniciou-se o povoamento do vale do Taquari. Na grande maioria, também esses colonos saíram das colônias mais antigas do Sinos. O avanço se deu num ritmo impressionante. Todo o vale do Caí e todo o vale do Taquari foram, por assim dizer, tomados de assalto e conquistados ao mesmo tempo. Assim como aconteceu no Caí, também no Taquari, as terras pertenciam  a proprietários particulares. Os dois mais conhecidos no Taquari foram Vito Mena Barreto, na margem esquerda, e  Antônio Fialho na margem direita. Não demorou que as terras férteis  do Rio Forqueta fossem incorporadas na frente de colonização. O mesmo se repetiria mais para o interior, na margem esquerda do Taquari, com a colonização de Teutônia. Na margem direita, o avanço tomou a direção de Santa Clara do Sul, Sampaio, Venâncio Aires, Santa Emília, Mato Leitão e arredores. As terras do Governo de Monte Alverne foram colonizadas na mesma época e serviram de ligação para a colônia de Santa Cruz no Rio Pardinho. 

O avanço da colonização, a começar em Taquara do Mundo Novo até Santa Cruz do Sul, incorporaram as terras mais planas dos cursos médios dos rios. Os vales mais afastados e as encostas da Serra, em mão de proprietários menores entraram, a partir de 1875, no mesmo processo. Em questão de 20 anos, todas as terras de algum modo disponíveis, haviam sido ocupadas. Apesar das dificuldades da topografia e da distância dos centros maiores, contribuíram  com uma parcela significativa dos produtos básicos da época: feijão, banha de porco e, na região de Santa Cruz e Venânco Aires, o tabaco. Neste avanço incluíram-se também as colonizações mais para o sul, como Rincão del Rei e as de Candelária até Santa Maria. 

A Expansão para o Norte e o Noroeste.
Com achegada da década de 1880 as últimas reservas de terras nas bacias do Sinos,  Caí,  Taquari, Pardo e Jacuí estavam ocupadas. Nas colônias aí presentes, porém, a demanda por mais terras aumentava dia por dia. Na época a única válvula capaz de aliviar a pressão populacional, encontrava-se no avanço sobre novas fronteiras de colonização. Desta vez a lógica apontava em direção ao norte e noroeste, em direção às áreas cobertas de mata virgem da Serra, das Missões e do Alto Uruguai. E foi nesta direção que se orientou o fluxo migratório a partir da década de 1880.

Em 1890 abriram-se as primeiras clareiras na mata, onde hoje floresce Ijuí, a metrópole da Serra. O Pe. Amstad comparou Ijuí com São Leopoldo. Assim como São Leopoldo foi centro de irradiação das chamadas colônias antigas, ou “colônias velhas”, assim Ijuí seria o centro de irradiação para as “colônias novas”, no norte e noroeste do Estado. A partir daí, a região transformou-se num grande laboratório de experiências de colonização. Entre os anos de 1890 e 1930, foram implantados no mínimo quatro modelos. Ijuí foi uma iniciativa do governo federal, Santa Rosa do governo estadual, Santo Ângelo um projeto municipal. Todas as demais colonizações foram empreendimentos particulares, ou de empresas, ou de associações, ou de pessoas físicas. O Pe Amstad resumiu assim  a colonização de toda essa região.

Com essas colonizações abrira-se o espaço para os excedentes populacionais das colônias antigas. E no fim da revolução em 1895, começou um novo e alegre movimento migratório. As mudanças aconteciam via trem, a cavalo, de carro até com carroças de boi. Não raro podia-se assistir ao espetáculo inusitado, como pessoas que até aquele momento mal haviam ultrapassado os marcos de fronteira do seu município, carregaram com toda a naturalidade  seus pertences numa carroça, passando três ou quatro semanas peregrinando, até alcançarem o extremo noroeste do nosso Estado, em Serro Azul, Pirapó ou Serro Pelado, para aí construírem a sua nova querência. 

Tempos difíceis esperavam para breve pelas aves de arribação. Gafanhotos, seca e por fim ratos migratórios, tornaram a vida amarga. Mas o tempo de penúria passou e, quando os pioneiros e os mais pobres tinham aberto a brecha, seguiu um reforço financeiramente mais  bem dotado, gente com dinheiro. Adquiriram, muitas vezes, complexos de terras maiores na colônia de Guarani pertencente ao governo. Em questão de 10 a 15 anos o Rio Ijuí, de Serro Azul até a desembocadura no rio Uruguai, numa extensão de 70 quilômetros fora ocupado. Acabara-se de fundar a São Leopoldo do século vinte.

Fato semelhante verifica-se com as colônias de Passo Fundo e Cruz Alta. A diferença é que nelas  reside uma população étnica e confessionalmente mais mesclada. Mesmo assim encontram-se nessa região distrito coloniais de exclusiva descendência alemã, como  a Colônia Selbach, Barra do Colorado, Neu Wirtemberg, General Osório e outros. Desta forma também aí os excedentes das colônias antigas encontraram assentamentos novos fechados. Quem hoje visita as colônias de Passo Fundo, Palmeira, Cruz Alta, Santo Ângelo e São Luiz, pode estar certo  de encontrar aí assentados conhecidos procedentes das antigas colônias. Já se desenvolveu um ativo intercâmbio entre o norte e o sul e o leste e o oeste e não se constitui numa raridade que famílias inteiras das colônias  novas, locomovendo-se em carroças, vão fazer visitas nas colônias velhas. E exatamente nessas visitas que, muitas vezes, os hóspedes das colônias velhas adquirem terras para si e seus filhos, quando as circunstâncias das novas colônias agradam. Em muitas dessas visitas segue então, num prazo mais curto ou mais longo, a correspondente transferência para os novos assentamentos, os quais tomam rapidamente um acelerado ritmo de crescimento, impulsionado pelos colonos acostumados ao trabalho. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 129-130)

Um pouco mais adiante o Pe. Amstad chega a falar de um verdadeira febre migratória que teria acometido os colonos de todas as regiões do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1890 e 1920.

Havia duas razões principais  que explicam o surgimento do fenômeno nada desejável da febre de emigração: o sistema de colonização do governo estadual do Rio Grande do Sul e a especulação dos compradores e vendedores de terras.

Já que a maioria das colônias particulares e das pertencentes a companhias de colonizadoras havia sido ocupadas, restavam aos colonos à procura de terra para assentamentos, as colônias do governo. O sistema de colonização dos atuais governantes positivistas, consiste em abrir colônias mistas, nas quais são assentadas misturadas pessoas das mais diversas nacionalidades. Esse sistema não agrada nem aos colonos de descendência alemã, nem aos de descendência italiana, nem aos de descendência polonesa. Isto fez com que, durante os últimos anos, os melhores elementos, possuidores de mais capital, fossem fixar-se  fora do nosso Estado em colônias confessional e etnicamente separadas, em Santa Catarina, Paraná ou Argentina. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 131)

A expansão para fora do Rio Grande do Sul
Depois da Primeira Guerra Mundial, a febre migratória empurrara os excedentes, tanto das colônias alemãs como das italianas, até a barranca do Rio Uruguai, em toda extensão norte e noroeste do Estado. As matas virgens praticamente intactas da margem direita do rio, tanto no vizinho estado de Santa Catarina como também na Argentina, estimularam ainda mais o ímpeto da nova geração à procura de terra.

Três foram as áreas que canalizaram as atenções  dos novos pioneiros: o vale do Rio do Peixe na região central de Santa Catarina, o extremo oeste do mesmo estado e a Província de Missiones na Argentina. Colonos procedentes das mais diversas localidades das antigas colônias do Rio grande do Sul, povoaram toda a área que atualmente tem como centro a cidade de Joaçaba. Outros ultrapassaram essa região para irem fundar Porto União e União da Vitória, em ambas  as margens do Rio Iguaçu, no extremo norte de Santa Catarina e no sul do Paraná. No extremo oeste, a colonização irradiou-se de núcleos iniciais mais importantes: Porto Feliz, hoje Mondai e Porto Novo, hoje Itapiranga. A partir deles, em questão de 30 anos, todo oeste de Santa Catarina foi incorporado no fluxo da colonização.

Já no final da década de 1950, a ordem “vamos às colônias novas”, que impulsionara a colonização do norte e noroeste do Rio Grande do Sul e grande parte do estado de Santa Catarina, foi substituída por outra palavra: “vamos para o Paraná”. Milhares de colonos procedentes de todas as regiões do Rio Grande do Sul, somados à primeira geração de excedentes de Santa Catarina, avançaram sobre as novas fronteiras de colonização no oeste do Paraná. O ritmo foi ainda mais intenso e mais acelerado do que nas etapas anteriores. Em praticamente uma geração, as áreas disponíveis na região estavam colonizadas. No decorrer das décadas de 1980 e 1990, o fluxo migratório  avançou pelos dois Mato Grosso, Rondônia e Acre, para, enfim, alcançar a fronteira norte do Pais em Roraima. Na mesma época, aconteceu a participação de agricultores vindos do sul em projetos agrícolas na Bahia, Maranhão, Goiás, Pará e Amapá. 

Encerramos aqui esse esboço muito sumário sobre a expansão da colonização alemã no Brasil. Tivemos como objetivo mostrar como em 200 anos, os efeitos da imigração alemã, desencadeada em 1824 em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, marcou indelevelmente regiões inteiras dos estados do sul, a fronteira da região centro-oeste e bolsões isolados em vários outros estados. 

Esse processo de expansão foi alimentado por dois fatores mais decisivos: a pequena propriedade ocupada por famílias numerosas, gerando constantemente situações de superpovoamento, somada à vontade  dos colonos de construir neste Pais um lar habitável. 

A saga dessa  expansão pode ser dividida nas seguintes etapas: a primeira de 1824 a 1850, consolidou a colonização no vale do Rio dos Sinos, e parte do Caí, formando as assim chamadas “colônias velhas”; 1850-1880, aconteceu o restante da ocupação do vale do Caí e dos vales do Taquari, Pardo e Jacuí ou as “colônias médias”; de 1890-1920, aconteceu a ocupação da Serra, das Missões e do Alto Uruguai com as “colônias novas”.  

Mais acima já lembrei o fato de que a região das Missões e Alto Uruguai ter sido fruto em larga escala da migração interna. Para lá confluíram contingentes significativos de todas as vertentes étnicas importantes que participaram da moldagem do perfil humano hoje presente no Rio Grande do Sul. Na segunda metade do século XIX vivia na região uma população esparsa e dispersa de remanescentes do tempo das Missões e posteriores. Eram descendentes dos bandeirantes apresadores de indígenas, aventureiros e comerciantes espanhóis e lusos, mestiços “missioneiros” e fragmentos das tribos de índios dispersos pelos campos e matas adjacentes. 

Instalou-se então, a partir da segunda metade do século XIX a ocupação e colonização definitiva de toda a região. Para lá confluíram alemães, italianos, poloneses, teuto-russos, judeus, etc. das antigas áreas de colonização nas bacias do Sinos, Caí, Taquari, Antas, Pardo, Jacuí, Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Veranópolis e demais localidades 

 De 1920-1950, aconteceu a colonização do centro-oeste de Santa Catarina; 1950-1970 seguiu a colonização do oeste do Paraná; 1970-1990 fundaram-se núcleos coloniais nos dois Mato grosso, em Rondônia, no Acre e em pontos isolados em outros estados.

O processo certamente não está encerrado e, não há a menor dúvida, de que os herdeiros das conquistas dos 200 anos da colonização alemã marcarão presença ativa na incorporação de muitas outras áreas no contexto produtivo do Pais.