Bicentenário da Imigração - 27

A dinâmica da expansão colonial

Depois de vencidas as dificuldades iniciais, os imigrantes alemães e seus descendentes, que se instalaram a partir de 1824 na Real Feitoria do Linho Cânhamo em São Leopoldo, não demoraram  em implantar suas comunidades em áreas próximas.. O processo da expansão colonial começara. Essa dinâmica foi impulsionada por dois poderosos fatores.  Em primeiro lugar, pesou a intensificação da vinda de novos imigrantes até 1831, ano em que os incentivos para a imigração foram cancelados. O segundo fator, ao que parece o mais forte tem a ver com o forte crescimento vegetativo da população na região de imigração alemã desde 1850. A partir desta data a primeira geração nascida no Brasil, completara a idade de procurar o seu lote de terra. Ora, é por todos conhecido que as famílias eram numerosas e a mortalidade infantil relativamente baixa para a época. Ao mesmo tempo, os lotes coloniais com suas dimensões reduzidas, não permitiam mais do que uma ou no máximo duas divisões. Levantamentos feitos sobre aquela época, mostram  que na média cada 1000 famílias geravam, anualmente, nada menos do que 200 excedentes, candidatos natos a novos lotes de terra. Como o crescimento populacional cresceu em progressão geométrica, fica fácil imaginar  a movimentação no seio das colônias alemãs durante mais de um século.

A fase inicial da expansão
O final da primeira década apos o começo da imigração alemã, fato que coincidiu com o início da Guerra dos Farrapos, marcou o começo da ocupação das terras cobertas de mata, além dos limites  da área destinada inicialmente para a colonização. Na obra “Cem anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, o Pe. Theodor Amstad assim descreveu a situação.

No começo da Guerra dos Farrapos, como já foi dito, estava ocupada a parte anterior e plana da colônia governamental de São Leopoldo e a primeira parcela  das três picadas: Dois Irmãos, Picada dos Berghan (Ivoti) e Picada dos Portugueses (São José do Hortêncio). Poucos povoadores, como por exemplo, M. Mombach, arriscaram-se a cruzar o topo dos primeiros morros. Na Picada dos Portugueses, já em 1832, foi preciso desistir dos postos avançados do Fritzenberg e Rosental e concentrar-se na parte baixa, por causa do ataque dos bugres. Somente na década de 1840, ao terminar a Guerra dos Farrapos, arriscou-se a ocupação das áreas mais afastadas das picadas. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 103) 

O término da Guerra dos Farrapos marcou o começo da ocupação  sistemática das áreas periféricas do núcleo original da imigração. Nos 10 anos, entre 1845 e 1855, o avanço da colonização teve como alvos preferenciais o vale do rio Feitoria, afluente do rio Caí, com Dois Irmãos como ponto de irradiação e o rio Cadeia, também afluente do rio Caí, com a  Picada dos Portugueses como referência. Sucessivamente foram sendo povoados o Bugerberg ou Bucherberg, Jammertal e Walachei. Em seguida o avanço seguiu em direção ao Herval. 

Uma dinâmica semelhante impulsionou o povoamento das porções posteriores das Picadas dos Berghan (Ivoti) e dos Portugueses. Neste processo destacaram-se  Bohnental, Linha Nova, Schneiderstal, Holanda e Picada Café, com suas diversas ramificações. A obra que acabamos de citar “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, resumiu assim os 25 primeiros anos da expansão colonial.

É licito afirmar então que em meados dos anos cinquenta as terras postas à disposição para a colonização pelo governo imperial nas três picadas antigas, estavam em linhas gerais povoadas. A Picada Feliz, que veio somar-se em 1845, contava na época com 90 a 100 famílias, podendo ser considerada ocupada, tomando como base as condições populacionais da época. Nada mais natural então  que muitos pais com família numerosa e muitos jovens empreendedores da colônia, procurarem terras favoráveis em outra parte. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 108)

As áreas colonizadas até aqui tinham sido de propriedade do Governo Imperial. Em torno delas, localizavam-se extensões maiores ou menores em mãos de particulares, tanto no curso médio e superior do rio dos Sinos e seus afluentes, como do Caí. Foi sobre essas matas que a lógica do avanço orientou o fluxo da colonização. As terras de ambas as margens do Santa Maria (Paranhana) pertenciam a Tristão Monteiro. Quando começou a coloniza-las com imigrantes alemães, batizou-as com o sugestivo nome de Mundo Novo. O povoamento do Mundo Novo começou efetivamente em 1847 e prolongou-se até o final da década de 1870, quando contava com 284 famílias, das quais apenas 10 não eram alemãs. Vizinha ao Mundo Novo localizava-se a fazenda Padre Eterno, vendida em lotes pelo proprietário, o Barão do Jacuí. Idêntico caminho tomou na época  a família Leão, proprietária do Leonerhof  (Sapiranga e arredores). O prolongamento da colônia da Feitoria, o Morro Pelado na margem do Rio dos Sinos, foi colonizado por seus donos, Chico Santos e Fialho. 

Simultaneamente às colonizações a leste do núcleo inicial de São Leopoldo, no vale do Rio dos Sinos, intensificou-se o avanço para o oeste e para o norte, para dentro do vale do Caí. Todas essas terras, dotadas de alta fertilidade, encontravam-se em mãos de particulares e estendiam-se ao longo das margens do Caí e dos seus quatro principais afluentes: O Forromeco, o Salvador e o Maratá na margem direita e o  Cadeia na margem esquerda. Os  donos dessas terras as dividiram e as venderam aos colonos procedentes, na sua grade maioria, das áreas mais antigas de colonização no vale do Rio dos sinos e, em menor número, diretamente imigrados da Alemanha.

Na mesma época  em que no vale do Rio Caí, iniciou-se o povoamento do vale do Taquari. Na grande maioria, também esses colonos saíram das colônias mais antigas do Sinos. O avanço se deu num ritmo impressionante. Todo o vale do Caí e todo o vale do Taquari foram, por assim dizer, tomados de assalto e conquistados ao mesmo tempo. Assim como aconteceu no Caí, também no Taquari, as terras pertenciam  a proprietários particulares. Os dois mais conhecidos no Taquari foram Vito Mena Barreto, na margem esquerda, e  Antônio Fialho na margem direita. Não demorou que as terras férteis  do Rio Forqueta fossem incorporadas na frente de colonização. O mesmo se repetiria mais para o interior, na margem esquerda do Taquari, com a colonização de Teutônia. Na margem direita, o avanço tomou a direção de Santa Clara do Sul, Sampaio, Venâncio Aires, Santa Emília, Mato Leitão e arredores. As terras do Governo de Monte Alverne foram colonizadas na mesma época e serviram de ligação para a colônia de Santa Cruz no Rio Pardinho. 

O avanço da colonização, a começar em Taquara do Mundo Novo até Santa Cruz do Sul, incorporaram as terras mais planas dos cursos médios dos rios. Os vales mais afastados e as encostas da Serra, em mão de proprietários menores entraram, a partir de 1875, no mesmo processo. Em questão de 20 anos, todas as terras de algum modo disponíveis, haviam sido ocupadas. Apesar das dificuldades da topografia e da distância dos centros maiores, contribuíram  com uma parcela significativa dos produtos básicos da época: feijão, banha de porco e, na região de Santa Cruz e Venânco Aires, o tabaco. Neste avanço incluíram-se também as colonizações mais para o sul, como Rincão del Rei e as de Candelária até Santa Maria. 

A Expansão para o Norte e o Noroeste.
Com achegada da década de 1880 as últimas reservas de terras nas bacias do Sinos,  Caí,  Taquari, Pardo e Jacuí estavam ocupadas. Nas colônias aí presentes, porém, a demanda por mais terras aumentava dia por dia. Na época a única válvula capaz de aliviar a pressão populacional, encontrava-se no avanço sobre novas fronteiras de colonização. Desta vez a lógica apontava em direção ao norte e noroeste, em direção às áreas cobertas de mata virgem da Serra, das Missões e do Alto Uruguai. E foi nesta direção que se orientou o fluxo migratório a partir da década de 1880.

Em 1890 abriram-se as primeiras clareiras na mata, onde hoje floresce Ijuí, a metrópole da Serra. O Pe. Amstad comparou Ijuí com São Leopoldo. Assim como São Leopoldo foi centro de irradiação das chamadas colônias antigas, ou “colônias velhas”, assim Ijuí seria o centro de irradiação para as “colônias novas”, no norte e noroeste do Estado. A partir daí, a região transformou-se num grande laboratório de experiências de colonização. Entre os anos de 1890 e 1930, foram implantados no mínimo quatro modelos. Ijuí foi uma iniciativa do governo federal, Santa Rosa do governo estadual, Santo Ângelo um projeto municipal. Todas as demais colonizações foram empreendimentos particulares, ou de empresas, ou de associações, ou de pessoas físicas. O Pe Amstad resumiu assim  a colonização de toda essa região.

Com essas colonizações abrira-se o espaço para os excedentes populacionais das colônias antigas. E no fim da revolução em 1895, começou um novo e alegre movimento migratório. As mudanças aconteciam via trem, a cavalo, de carro até com carroças de boi. Não raro podia-se assistir ao espetáculo inusitado, como pessoas que até aquele momento mal haviam ultrapassado os marcos de fronteira do seu município, carregaram com toda a naturalidade  seus pertences numa carroça, passando três ou quatro semanas peregrinando, até alcançarem o extremo noroeste do nosso Estado, em Serro Azul, Pirapó ou Serro Pelado, para aí construírem a sua nova querência. 

Tempos difíceis esperavam para breve pelas aves de arribação. Gafanhotos, seca e por fim ratos migratórios, tornaram a vida amarga. Mas o tempo de penúria passou e, quando os pioneiros e os mais pobres tinham aberto a brecha, seguiu um reforço financeiramente mais  bem dotado, gente com dinheiro. Adquiriram, muitas vezes, complexos de terras maiores na colônia de Guarani pertencente ao governo. Em questão de 10 a 15 anos o Rio Ijuí, de Serro Azul até a desembocadura no rio Uruguai, numa extensão de 70 quilômetros fora ocupado. Acabara-se de fundar a São Leopoldo do século vinte.

Fato semelhante verifica-se com as colônias de Passo Fundo e Cruz Alta. A diferença é que nelas  reside uma população étnica e confessionalmente mais mesclada. Mesmo assim encontram-se nessa região distrito coloniais de exclusiva descendência alemã, como  a Colônia Selbach, Barra do Colorado, Neu Wirtemberg, General Osório e outros. Desta forma também aí os excedentes das colônias antigas encontraram assentamentos novos fechados. Quem hoje visita as colônias de Passo Fundo, Palmeira, Cruz Alta, Santo Ângelo e São Luiz, pode estar certo  de encontrar aí assentados conhecidos procedentes das antigas colônias. Já se desenvolveu um ativo intercâmbio entre o norte e o sul e o leste e o oeste e não se constitui numa raridade que famílias inteiras das colônias  novas, locomovendo-se em carroças, vão fazer visitas nas colônias velhas. E exatamente nessas visitas que, muitas vezes, os hóspedes das colônias velhas adquirem terras para si e seus filhos, quando as circunstâncias das novas colônias agradam. Em muitas dessas visitas segue então, num prazo mais curto ou mais longo, a correspondente transferência para os novos assentamentos, os quais tomam rapidamente um acelerado ritmo de crescimento, impulsionado pelos colonos acostumados ao trabalho. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 129-130)

Um pouco mais adiante o Pe. Amstad chega a falar de um verdadeira febre migratória que teria acometido os colonos de todas as regiões do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1890 e 1920.

Havia duas razões principais  que explicam o surgimento do fenômeno nada desejável da febre de emigração: o sistema de colonização do governo estadual do Rio Grande do Sul e a especulação dos compradores e vendedores de terras.

Já que a maioria das colônias particulares e das pertencentes a companhias de colonizadoras havia sido ocupadas, restavam aos colonos à procura de terra para assentamentos, as colônias do governo. O sistema de colonização dos atuais governantes positivistas, consiste em abrir colônias mistas, nas quais são assentadas misturadas pessoas das mais diversas nacionalidades. Esse sistema não agrada nem aos colonos de descendência alemã, nem aos de descendência italiana, nem aos de descendência polonesa. Isto fez com que, durante os últimos anos, os melhores elementos, possuidores de mais capital, fossem fixar-se  fora do nosso Estado em colônias confessional e etnicamente separadas, em Santa Catarina, Paraná ou Argentina. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 131)

A expansão para fora do Rio Grande do Sul
Depois da Primeira Guerra Mundial, a febre migratória empurrara os excedentes, tanto das colônias alemãs como das italianas, até a barranca do Rio Uruguai, em toda extensão norte e noroeste do Estado. As matas virgens praticamente intactas da margem direita do rio, tanto no vizinho estado de Santa Catarina como também na Argentina, estimularam ainda mais o ímpeto da nova geração à procura de terra.

Três foram as áreas que canalizaram as atenções  dos novos pioneiros: o vale do Rio do Peixe na região central de Santa Catarina, o extremo oeste do mesmo estado e a Província de Missiones na Argentina. Colonos procedentes das mais diversas localidades das antigas colônias do Rio grande do Sul, povoaram toda a área que atualmente tem como centro a cidade de Joaçaba. Outros ultrapassaram essa região para irem fundar Porto União e União da Vitória, em ambas  as margens do Rio Iguaçu, no extremo norte de Santa Catarina e no sul do Paraná. No extremo oeste, a colonização irradiou-se de núcleos iniciais mais importantes: Porto Feliz, hoje Mondai e Porto Novo, hoje Itapiranga. A partir deles, em questão de 30 anos, todo oeste de Santa Catarina foi incorporado no fluxo da colonização.

Já no final da década de 1950, a ordem “vamos às colônias novas”, que impulsionara a colonização do norte e noroeste do Rio Grande do Sul e grande parte do estado de Santa Catarina, foi substituída por outra palavra: “vamos para o Paraná”. Milhares de colonos procedentes de todas as regiões do Rio Grande do Sul, somados à primeira geração de excedentes de Santa Catarina, avançaram sobre as novas fronteiras de colonização no oeste do Paraná. O ritmo foi ainda mais intenso e mais acelerado do que nas etapas anteriores. Em praticamente uma geração, as áreas disponíveis na região estavam colonizadas. No decorrer das décadas de 1980 e 1990, o fluxo migratório  avançou pelos dois Mato Grosso, Rondônia e Acre, para, enfim, alcançar a fronteira norte do Pais em Roraima. Na mesma época, aconteceu a participação de agricultores vindos do sul em projetos agrícolas na Bahia, Maranhão, Goiás, Pará e Amapá. 

Encerramos aqui esse esboço muito sumário sobre a expansão da colonização alemã no Brasil. Tivemos como objetivo mostrar como em 200 anos, os efeitos da imigração alemã, desencadeada em 1824 em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, marcou indelevelmente regiões inteiras dos estados do sul, a fronteira da região centro-oeste e bolsões isolados em vários outros estados. 

Esse processo de expansão foi alimentado por dois fatores mais decisivos: a pequena propriedade ocupada por famílias numerosas, gerando constantemente situações de superpovoamento, somada à vontade  dos colonos de construir neste Pais um lar habitável. 

A saga dessa  expansão pode ser dividida nas seguintes etapas: a primeira de 1824 a 1850, consolidou a colonização no vale do Rio dos Sinos, e parte do Caí, formando as assim chamadas “colônias velhas”; 1850-1880, aconteceu o restante da ocupação do vale do Caí e dos vales do Taquari, Pardo e Jacuí ou as “colônias médias”; de 1890-1920, aconteceu a ocupação da Serra, das Missões e do Alto Uruguai com as “colônias novas”.  

Mais acima já lembrei o fato de que a região das Missões e Alto Uruguai ter sido fruto em larga escala da migração interna. Para lá confluíram contingentes significativos de todas as vertentes étnicas importantes que participaram da moldagem do perfil humano hoje presente no Rio Grande do Sul. Na segunda metade do século XIX vivia na região uma população esparsa e dispersa de remanescentes do tempo das Missões e posteriores. Eram descendentes dos bandeirantes apresadores de indígenas, aventureiros e comerciantes espanhóis e lusos, mestiços “missioneiros” e fragmentos das tribos de índios dispersos pelos campos e matas adjacentes. 

Instalou-se então, a partir da segunda metade do século XIX a ocupação e colonização definitiva de toda a região. Para lá confluíram alemães, italianos, poloneses, teuto-russos, judeus, etc. das antigas áreas de colonização nas bacias do Sinos, Caí, Taquari, Antas, Pardo, Jacuí, Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Veranópolis e demais localidades 

 De 1920-1950, aconteceu a colonização do centro-oeste de Santa Catarina; 1950-1970 seguiu a colonização do oeste do Paraná; 1970-1990 fundaram-se núcleos coloniais nos dois Mato grosso, em Rondônia, no Acre e em pontos isolados em outros estados.

O processo certamente não está encerrado e, não há a menor dúvida, de que os herdeiros das conquistas dos 200 anos da colonização alemã marcarão presença ativa na incorporação de muitas outras áreas no contexto produtivo do Pais.

This entry was posted on quinta-feira, 12 de maio de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.