A salvaguarda dos valores culturais não podia esquecer o canto. Os alemães, como outros imigrantes, em especial os italianos e seus descendentes no Brasil, notabilizaram-se por uma afeição toda especial ao canto. O canto, como se sabe, constitui-se numa das vias mais completas e mais eficientes de manifestar-se uma cultura. A rigor bastaria analisar com profundidade o que as letras dizem e o que as melodias e os ritmos sugerem, para se ter uma noção de determinada cultura e identificar-lhe a história, a ambiência geográfica, os episódios que marcaram a visão do homem, do mundo e das coisas que lhe são próprias. As vigorosas canções populares da Rússia, somente lá poderiam ter aparecido. Retratam as imensas planuras daquele país continente, o tipo humano forjado no embate de centenas de povos que lá se encontraram, se guerrearam e também se miscigenaram, para resultar num tipo humano peculiar: agressivo, rude, vigoroso e profundamente sentimental, apaixonado e religioso. E foi nos territórios donde partiram os imigrantes alemães que o canto e a música ocuparam sempre um lugar privilegiado. Muitos dos grandes mestres da musica clássica aí nasceram, viveram e compuseram suas peças imortais. Um imenso e um rico repertório de canções populares fala da história, das alegrias, das tristezas, das guerras e da paz. A solidariedade, a fidelidade, o heroísmo, a camaradagem, a coragem, são temas sempre repetidos. Falam das florestas com seus mistérios, da majestade das montanhas, dos rios e lagos com seus mistérios, dos rochedos com seus segredos, dos castelos e suas sagas.
O canto, imortalizando todo esse tesouro cultural, não podia ser relegado a um segundo plano também entre os imigrantes alemães no além-oceano. A criança, desde muito cedo, ouvia os pais e irmãos cantarem as melodias mais comuns e mais apreciadas, enquanto se dedicavam às tarefas diárias. Ao começar a freqüentar a escola era submetida a um tirocínio intenso. Em muitas escolas ensinavam-se rudimentos de solfejo e até técnicas de educação vocal. O que, entretanto, mais interessava era a meia hora diária de ensaio de canto. O currículo previa que nos quatro anos obrigatórios de freqüência à escola as crianças aprendessem quarenta e oito cantos: vinte e quatro religiosos e vinte e quatro profanos. É claro que nem todos os egressos e nem todas as escolas cumpriam essa determinação. Algumas com certeza a ultrapassavam. Muitos professores, principalmente os mais jovens, com formação em escola normal, sabiam tocar algum instrumento como harmônio e violino e com menos freqüência flauta. O acompanhamento com algum desses instrumentos emprestava um sabor todo especial aos ensaios e dificilmente as crianças não se entusiasmavam.
Assim, em clima de quase recreio, eram aprendidos os quarenta e oito cantos e, não raro mais. Também neste particular a escola cumpria uma parcela da sua missão de guardar e de transmitir a cultura. E os egressos dessas escolas partiam para a vida fazendo do canto um dos meios mais eloqüentes da manifestação dos seus sentimentos e do seu estado de alma.
A escola como alfabetizadora, a escola como fiadora da religião e da religiosidade, a escola como guardiã dos valores culturais, assumia mais uma importante função. Os imigrantes alemães e seus descendentes, apesar de todos os laços culturais e afetivos para com seu passado, politicamente falando, haviam “queimado os navios”. Tinham emigrado para não mais retornar. Chegaram com o firme propósito de amarem no Brasil a sua tenda definitiva e assumirem-se como cidadãos plenamente comprometidos.
Ora, esse passo absolutamente necessário, encontrava seus problemas. Não resta dúvida para todos aqueles que tem um razoável conhecimento de como se processou a fixação dos imigrantes no sul do Brasil, que as colônias alemãs ficaram isoladas nas primeiras décadas. Os próprios colonizadores viram-se forçados a encontrar formas de sobrevivência. Não tendo a quem recorrer, puseram em ação a sua própria criatividade. Organizaram suas comunidades, construíram suas escolas e igrejas. Conseguiram sobreviver agarrando-se às tradições, empenhando em favor da educação o melhor do que dispunham nas circunstâncias adversas. Não só lograram sobreviver, como lançaram raízes definitivas nas terras conquistadas à floresta e deram início a uma sociedade de agricultores que foi obtendo êxito e terminou prosperando.
Em tais circunstâncias o exercício efetivo da cidadania não passava de algumas formalidades burocráticas, como o registro dos nascimentos, óbitos e matrimônios, a regularização dos títulos de propriedade, a efetivação dos inventários e talvez algo mais. De resto a vida diária do colono, o convívio social e a maneira de ser permaneciam próximos da origem. Aparentemente não acontecera nada mais do que um transplante da Europa para o espaço físico e geográfico no Sul do Brasil.
Essa situação predominou até o final do século XIX. A aparente alienação, contudo, não significou desinteresse. Quando das Guerras Platinas, da Guerra dos Farrapos, da Guerra do Paraguai e da Revolução Federalista, houve uma participação muito mais significativa do que muitos historiadores da imigração registram ou querem admitir. O que, porém, prova indiretamente a vontade de colaborar como cidadãos, com a pátria que agora de direito era sua, foi grande esforço civilizador que transformou rapidamente o extremo sul do Brasil, de terra de ninguém, em província em definitivo incorporada ao Império.
Até os anos de 1890, ser cidadão brasileiros significou para os imigrantes e seus descendentes, empenhar todas as forças e pôr à disposição da terra que os acolhera, toda a riqueza e todo o dinamismo que haviam herdado dos seus antepassados. A situação começou a mudar na virada do século. Um número apreciável de comunidades haviam-se transformado em pequenos centros urbanos. A navegação fluvial, a ferrovia e a abertura de estradas regionais, superaram o pior do isolamento. O contato com Porto Alegre já era constante e até certo ponto fácil. O comércio movimentava um volume considerável de produtos, de modo especial feijão, banha de porco e farinha de mandioca, com destino para o Rio de Janeiro e São Paulo. Produtos importados da Europa lotavam os armazéns do porto da capital do Estado. De lá seguiam para os entrepostos de distribuição nos portos fluviais do Rio dos Sinos, do Caí, Taquari, Pardo e Jacuí, ou nas estações da estrada de ferro para, finalmente, serem oferecidos à venda nas casas de comércio no hinterland colonial.
Apesar de as comunidades locais continuarem a desempenhar o papel de unidades humanas básicas, a vida da colônia alemã encontrava-se numa transição e numa transformação significativa. Na medida em que essa dinâmica se acentuava, levava a contatos cada vez mais freqüentes com o segmento luso do Estado e com os recém-chegados italianos, instalados nas colônias de Caxias, Farroupilha, Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves, Veranópolis, Silveira Martins, etc. O contato com as repartições públicas e com a burocracia oficial tornara-se inevitável e rotineira.
Compreende-se que neste contexto “ser cidadão” assumisse conotações mais concretas, inevitáveis e diuturnas. O exercício da cidadania passara a ser um dado quotidiano, uma variável sempre presente, enfim um fato rotineiro. Aos poucos as pessoas começaram a sentir-se membros e participantes de uma sociedade mais ampla. Descobriam que o mundo estendia-se para bem longe além dos topos dos morros, que delimitavam o seu universo comunal. Novos personagens, novos usos novas realidades, teimavam em introduzir-se em suas vidas de aldeões pacatos, senhores incontestes de suas glebas. A consciência de pertencimento a uma realidade mais ampla do que a “picada” ou a “linha” em que haviam nascido, aos poucos, despertava neles a conveniência e a necessidade de se integrarem numa pátria comum em parceria com as outras etnias e culturas. Tratava-se de um fato que já não admitia protelações. Chegara o momento de assumirem a cidadania plena.
A escola assumiu o papel de agente mais eficaz nesta tomada de posição. A Associação dos Professores, responsável direta pela orientação didático-pedagógica das escolas da rede comunitária, chamou a si a responsabilidade principal. Na Assembléia em Bom Princípio e 1900, aprovou um currículo comum para todas as escolas. Estabeleceram-se nele diretrizes gerais que deveriam orientar o sistema, uma linha comum de procedimentos didático-pedagógicos foi implantada e a língua portuguesa foi introduzida como obrigatória, junto com a história e a geografia do Brasil.
Não há necessidade de insistir que, nos primeiros anos, mais valeu a intenção do que os resultados efetivos. O problema maior estava com os professores. Na maioria dos casos, eles próprios, dominavam precariamente o português. Mesmo assim, o impulso então dado, veio a frutificar aos poucos. Na década de 1930, que marcou o ponto alto das escolas comunitárias, em todas elas, salvo raras exceções, havia um espaço significativo reservado para aprendizado da língua nacional. Paralelamente a escola comunitária cumpria a tarefa de não negligenciar e preservar os valores dos antepassados e despertar nos alunos a consciência de suas responsabilidades civis. As disciplinas de “História e Geografia da Pátria”, como costumavam denominá-las, davam-lhes uma noção da extensão, das riquezas, das potencialidades e da gente do pais em que viviam.
As maiores facilidades de viajar pelos rios, de trem e por estradas cada vez melhores, abertura de novas frentes de colonização no Norte e Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul e no Centro-Oeste de Santa Catarina, o contato mais seguido com a capital e outras cidade do interior, vieram completar o que na escola os professores ensinavam pelos livros e pelo mapas. E, na década de 1930, é possível encontrar o personagem resultante desse processo evolutivo, em toda a extensão das áreas colonizadas por alemães e seus descendentes. Ficou conhecido como o “teuto-brasileiro”. Teuto porque em suas veias circulava o sangue germânico; porque cultivava com carinho e veneração as tradições culturais herdadas dos seus antepassados e porque continuava a falar a língua materna alemã; teuto porque da religião e da sua prática fazia um dever sagrado. Brasileiro porque nascera no território deste grande pais; brasileiro porque como tal fora registrado e se assumia. Mas brasileiro principalmente porque se engajara com entusiasmo e com toda a obstinação do camponês, na edificação da nacionalidade. Brasileiro, enfim, porque como tal se assumira para o que desse e viesse. E não se trata de afirmação retórica. A Segunda Guerra Mundial e os anos que se seguiram o demonstraram com fartura. Como qualquer outro brasileiro, os filhos das colônias alemãs foram convocados para lutar contra a Alemanha na frente de combate na Itália e como qualquer outro brasileiro não se recusaram. Logo após a guerra e a retomada da democracia, esses teuto-brasileiros filiaram-se aos mais diversos partidos políticos, candidataram-se a cargos eletivos em igualdade de condições com os cidadãos de outras origens étnicas. Traindo-se não poucas vezes pelo forte sotaque característico, foram batalhar pela modernização do Pais.
O que ocorreu no plano político aconteceu também no setor empresarial, comercial, industrial e administrativo. O posto mais alto da nação já foi ocupado por um teuto-brasileiro, oriundo de uma comunidade, ainda hoje das mais típicas do vale do Taquari. As forças armadas contam em suas fileiras com centenas de oficiais de todas as patentes cujas origens remontam às colônias alemãs do sul. Resumindo-se pode-se dizer que o teuto-brasileiro é o cidadão brasileiro assumido sem restrições como tal e ao mesmo tempo continua falando alemão ou algum dialeto e continua, principalmente, cultivando suas tradições.