Bicentenário da Imigração - 29

A primeira providência tomada pelos pioneiros ao atacarem uma nova fronteira de colonização e à formação de mais uma comunidade, consistia em abrir uma trilha de acesso aos lotes. Denominavam-na “picada”. Começava de modo geral na entrada de um vale e prolongava-se até a propriedade mais afastada. Mais tarde essas picadas transformavam-se em caminhos, em estradas vicinais, em estradas municipais, dependendo da localização, do tamanho e da importância estratégica. Por terem sido as responsáveis pela circulação interna no espaço comunal e por isso possibilitado a sua integração, essas trilhas ou picadas, incorporaram com o tempo o sentido de uma unidade humana. Terminaram por significar a comunidade como um todo. Assim, quando alguém dizia, ou usava  a expressão “a minha picada”, “a minha linha”, queria significar a comunidade natal. Do significado original, meramente prático passou a conceituar a própria unidade comunal. 

No arranjo comunal as moradias não costumavam concentrar-se em aldeias, como acontecia na Europa. Cada agricultor construía a mordia e as demais benfeitorias  no próprio lote. Tomava o cuidado de instalar-se próximo ao caminho ou estrada vicinal. Daí resultava em geral uma linha de casas, estábulos, depósitos e paióis, percorrendo o vale. A partir dessa “linha” popularizou-se “a linha” como outro conceito  familiar na região de colonização. “A linha”, um dado originariamente físico como a “picada”, terminaria significando a própria comunidade. Linha Santa Fé, Linha Comprida, Linha Bonita, Linha Imperial e tantas outras “linhas”, significam, na verdade comunidades com este nome.

Os cursos de água das áreas colonizadas costumavam apresentar leitos rochosos, acidentados, cheios de corredeiras e de pedras. Deram-lhe o nome de “lajeados”. Também este conceito veio a significar uma unidade geográfica e humana, como por ex., a comunidade de “Lajeado Grande”. Assim como cada um dos compartimentos geográficos menores costumava marcar os limites da unidade comunal, assim também uma região mais ampla, apresentando características  semelhantes e formando uma unidade maior, como por exemplo, a bacia de um rio, formava uma unidade regional. Pontos estratégicos no seu interior atuavam como polarizadores da vida social,  econômica e religiosa.  Como exemplo tomemos a bacia do Rio Caí. Poderia ser também a do Rio dos Sinos, Taquari, Jacuí ou Pardo. 

A bacia do Rio Caí é relativamente pequena. Estende-se por cerca de 100 quilômetros para o norte de Porto Alegre. O eixo central, formado pelo rio é servido por meia dúzia  de cursos de porte médio e pequeno, demarcando uma bacia topograficamente muito bem definida. Nas várzeas contíguas ao rio e nos vales adjacentes dos seus afluentes, instalaram-se dúzias de comunidades de colonos.  Duas cidades desenvolveram-se, desde cedo, às margens do rio: Montenegro e São Sebastião do Caí, ambas junto a portos fluviais. Montenegro, além do porto beneficiava-se  da estrada de ferro Porto Alegre – Caxias do Sul. A cidade de Caí evoluiu junto ao porto que marcava o termino da navegabilidade do rio. De uma forma ou de outra todas as vias de circulação interna do vale, terminavam confluindo para os dois portos. Uma boa infraestrutura assegurava um bom funcionamento, em termos de época. Serviam de ponto de embarque para os produtos coloniais oriundos do interior das colônias mais afastadas. Dos portos, os mesmos veículos que levavam feijão, batata, banha, etc., distribuíam as mercadorias procedentes das casas importadoras de Porto Alegre, para as vendas nas comunidades mais afastadas. Além das embarcações de carga, outras destinavam-se o transporte de passageiros.  

Até a década de 1930, a forma mais rápida de chegar à capital do Estado, consistia em deslocar-se, a pé ou a cavalo, até Montenegro, Maratá ou Salvador do Sul e embarcar no trem. Quem dispusesse de mais tempo e preferisse outra modalidade  de transporte, embarcava numa lancha de passageiros em São Sebastião do Caí ou Montenegro. Ao formarem-se, mais tarde, cooperativas, associações regionais de colonos, dioceses, associações de municípios, os mesmos critérios geográficos foram adotados. A Cooperativa dos Suinocultores do Caí Superior, a Associação  dos Prefeitos do Vale do Rio dos Sinos, são exemplos característicos.  

É evidente que a partir da década de 1950, com a abertura  de rodovias federais e estaduais de longo curso e melhor construídas,  o fator identidade geográfica fosse perdendo cada vez  mais a importância inicial. Mais um fator contribuiu  para a mudança nas áreas recentemente colonizadas no oeste do Paraná. A topografia daquela região é pouco acidentada. O relevo suavemente ondulado e em grandes extensões praticamente plano, orientou a formação das unidades comunais de outra forma. As designações de “picada”, “linha” e “lajeado”, tão comuns no Rio Grande do Sul e no Centro Oeste de Santa Catarina, perderam em grande parte o seu significado no oeste do Paraná.

Mesmo que os colonizadores alemães do Sul morassem dispersos em suas propriedades, isso em nada  afetou a sua coesão e a sua integração comunitária. No ponto mais central da “linha” ou da “picada”, reservavam uma área considerável para a instalação da infraestrutura comunal indispensável: a escola, a igreja, o cemitério e demais complementos que viriam a ser necessários para o bom andamento da vida comunitária. Por razões estratégicas funcionava aí  também a venda, a ferraria, a serraria, o moinho, a carpintaria, a sapataria, a alfaiataria. Uma organização desse tipo oferecia uma série de vantagens e contribuiu, em grande parte, para que as comunidades coloniais fossem capazes de manter, e por longo tempo, a sua índole peculiar. Conservaram o caráter de comunidades solidamente  estruturadas  em torno dos seus objetivos materiais e espirituais comuns. E os propósitos comuns voltavam-se para a escola e a educação, para a Igreja e a religiosidade, para a prática do lazer e da sociabilidade e, enfim, todos os meios necessários para impulsionar a vida social, econômica e cultural. 

O fato de cada colono morar na sua propriedade resultou, ao menos em termos, numa vantagem adicional. Como já se afirmou acima, cada família agia em seu lote como se fosse uma microempresa familiar. No dia-a-dia da atividade agrícola, portanto, predominava a absoluta autonomia e independência. Cada qual se assemelhava mais  a um pequeno reino ou uma minúscula república. Todas as decisões sobre o que plantar, como plantar, que animais domésticos criar, qual o destino a ser dado  para a produção, como gerenciar essa “empresa”, emanavam de dentro dela. As cooperativas e as associações de agricultores, quando traçavam linhas de conduta, quando sugeriam novas  técnicas ou novos produtos, não tinham o poder de impor. Limitavam-se a aconselhar e a orientar. Não raro o colono mantinha sua autonomia com sérios prejuízos. Essas circunstâncias, peculiares à própria natureza do sistema da pequena propriedade, formaram um camponês fanaticamente agarrado à sua propriedade e à sua independência. Costumavam auto denominar-se “reis em sua gleba”. Quando o sucesso acontecia, reivindicavam-no todo para si. No caso de fracasso, se não por razões alheias à sua vontade, eram obrigados a assimila-lo sozinhos. 

A relativa dispersão geográfica dos colonos em suas glebas reforçou o espírito de autonomia e independência. Nas comunidades do tipo europeu, concentradas em aldeias, o inevitável contato mais frequente   com os vizinhos gerava uma intromissão mútua nos negócios e nas preocupações muito mais frequentes, afetando, não raro, a própria privacidade. 

É evidente que a dispersão dos moradores por toda a área ocupada por uma comunidade tinha as suas dificuldades. Obrigava as crianças a caminhadas diárias, às vezes de vários quilômetros, para ir e voltar da  escola. Para muitos a igreja ficava longe, impedindo a frequência com a assiduidade desejada por muitos. Da mesma forma era preciso percorrer distâncias significativas para ir ao moinho, à ferraria, à carpintaria ou sapataria. Apesar desses empecilhos, a comunidade continuou a significar, além da família, a grande motivadora da vida dos colonos. Nela haviam nascido, nela encontravam praticamente tudo do que precisavam, nela tinham o seu mundo de relacionamento humano, nela enfim, se esgotava a existência da grande maioria. Importava, por isso, preserva-la de tudo quanto pudesse ameaçar a sua integridade. E a integridade comunal era posta a perigo cada vez que algum dos elementos polarizadores fosse mal estruturado, mal conduzido ou atacado por inimigos externos. 

Os colonos alemães elegeram, desde muito cedo, a escola e a educação como um dos meios mais eficazes  no combate à decadência cultural e religiosa.   Em todas as comunidades coloniais cuidou-se, por isso,  da instalação e funcionamento de uma escola, antes mesmo de construir-se uma capela. A primeira providência consistia em constituir a comunidade escolar (Schulgemeinde). Integrada por todos os membros de uma comunidade, chamava a si  tudo que fosse necessário para instalar e fazer funcionar a escola. Dentre os membros da comunidade escolar escolhia-se a diretoria da escola (Schulvorstand). Composta de poucas pessoas, a diretoria encarregava-se diretamente da construção do prédio, com a instalação interna e com o material didático. A função mais importante relacionava-se com o professor. Cabia à diretoria procurar e escolher o professor, contratá-lo, pôr-lhe à disposição a moradia e uma área de terra na qual sua família pudesse produzir. Fiscalizava o desempenho do professor, vigiava-lhe a conduta e garantia-lhe a remuneração. No caso de não satisfazer cabia ainda à diretoria a sua substituição.

Dessa forma, foi possível, desde o começo, atender aos requisitos mínimos  exigidos pela educação dos filhos dos colonos. Se as comunidades coloniais tivessem esperado pelas autoridades locais ou provinciais, as primeiras gerações de colonos teriam ficado sem escola, com as conseqüências óbvias. Em vez de se firmarem, em lugar de progredirem, teriam estagnado, regredido e sofrido um retrocesso econômico, social, cultural e religioso irreversível. Conscientes de semelhante risco, canalizaram  a parcela mais significativa de sua energia comunitária em favor da escola e da educação. 

O resultado não podia ser outro. No final da década de 1930, no momento em que o Estado, em nome de um nacionalismo no mínimo discutível, interveio no sistema, poucas eram as comunidades que não se podiam orgulhar da sua escola. A importância dada à escola pelos colonos alemães, ultrapassou em muito o simples dado de poder contar com uma. Fizeram dela o elemento estratégico fundamental para a sobrevivência e o progresso.  O lugar comum defendido levianamente por muitos, segundo o qual a escola comunitária colonial alemã, não passava de um meio de enquistamento sócio-cultural e a grande responsável pela resistência dos imigrantes ao abrasileiramento, no mínimo não passa de um equívoco. 

Com a finalidade de fazer da escola o instrumento estratégico de maior importância para a sua sobrevivência, dotaram-na de uma organização  didático-pedagógica coerente. Fizeram dela uma instituição em que os filhos dos colonos, além de serem alfabetizados, familiarizavam-se com o manejo da língua falada e escrita. As crianças recebiam na escola um sólido conhecimento de aritmética, cálculo de juros e porcentagens, alem de informações sobre medidas, volumes, pesos, etc. A escola esmerava-se em tudo que pudesse contribuir para que o filho do colono fosse capaz de gerenciar com segurança as suas atividades como agricultor. 

O número insuficiente de curas de alma fez com que a escolas assumissem também o papel principal no ensino religioso. No currículo escolar reservou-se um espaço significativo para o Catecismo e a leitura da Bíblia. Nessas escolas a religião ocupava uma posição tão importante quanto a língua e o cálculo. Não tivesse sido assim o nível religioso aliado à assiduidade na freqüência à missa e aos sacramentos não se teria mantido em nível tão elevado. Nos 25 primeiros anos da imigração, quando a assistência religiosa por parte de sacerdotes era praticamente nula pelo menos entre os católicos, sem a escola  a religiosidade teria sofrido danos irreparáveis. 

A escola fora concebida também como garantia e continuidade de uma série de valores básicos da cultura e do interesse direto dos colonos em particular e das comunidades em geral. Por esta razão foi incluída no Currículo, uma disciplina destinada a tratar de “coisas reais”, como sugere o nome latino adotado “Realia”. Pelo seu sentido didático-pedagógico distinguia-se do aprendizado da língua, da leitura, aritmética, cálculo e religião. O que se pretendia com essa disciplina? Contemplava, antes de mais nada, conteúdos que faziam parte da vivência diária dos colonos e integravam uma parcela muito rica da própria germanidade. Insistia-se na importância da pessoa como valor básico de uma sociedade. Alertava-se para o fato de que uma comunidade ou uma família somente podem cumprir corretamente a sua missão, quando há respeito mutuo, quando se observam os limites entre os direitos e deveres e se aceita o lugar que compete à autoridade. 

A disciplina “Realia” ocupava-se  com noções elementares  sobre as circunstâncias da vida do colono. Destacavam-se as estações do ano, a importância do solo, a utilidade da floresta e suas madeiras, dos animais úteis e benéficos, dos animais nocivos. Em resumo procurava-se situar a criança no seu entorno e informa-la de como melhor viver e conviver nele. Acompanhavam esse aprendizado noções elementares  de conservação e recuperação dos solos, o alerta sobre as conseqüências do desmatamento exagerado indiscriminado e noções sobre  florestamento e reflorestamento. No que, porém, a disciplina “Realia”  se preocupava mais era com a assimilação  de certos valores responsáveis pela inserção existencial do colono na sua comunidade. 

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