Bicentenário da Imigração - 9

O compromisso com a causa e a missão.

Aprofundando um pouco mais a caracterização da identidade germânica, encontramos um outro elemento que, aliado ao mito do “homem forte”, tornou-se o “motor da cultura germânica” na conquista do mundo, na expressão de Hans Naumann.

O edifício social dos povos germânicos tinha, no matrimônio o seu fundamento. Concebido por eles como monogâmico indissolúvel, significava muito mais do que um vinculo celebrado entre um homem e uma mulher. Anton Stonner resumiu assim o significado do matrimônio entre aqueles povos.

O grupo mais amplo, a parentela tem o seu fundamento no matrimônio e, por isso, o mantém sob vigilância. Muito mais do que hoje o matrimônio entre os germanos não foi apenas assunto entre cônjuges, mas uma questão que interessava às parentelas. O representante da parentela exercia o poder de tutela não só sobre a noiva como também sobre o noivo. Depois do casamento, a mulher encontrava proteção contra as agressões do marido.  No âmbito da parentela exercia-se também o direito e o dever da vingança de sangue. A parentela era responsável por uma determinada unidade das corporações militares. (Stonner, 1934, p. 57)

Na sociedade germânica alicerçada sobre o matrimônio monogâmico indissolúvel e o grupo de parentesco, a parentela, assegurava a continuidade das tradições. Não explica, porém, por que os povos germânicos tivessem conquistado direta ou indiretamente continentes inteiros, impondo a sua cultura aos povos nativos. A parentela representava o que havia de conservador, o permanente, o estável, o perene na organização germânica. Mas, por isso mesmo, continha em si o gérmen que dificultava ou até impedia uma transformação mais substantiva na sua estrutura e organização social. Por essa razão, ainda segundo Stonner, “limitada à organização em parentelas, a Germânia nunca teria ultrapassado o estágio de uma sociedade de agricultores”. (Stonner, 1934, p. 59) .

O que, na verdade, explica as conquistas germânicas, passando pela Europa Central e do Norte, pela migração dos povos, pelas conquistas dos Normandos e Vikings, pela conquista das Américas, pelas colonizações de continentes inteiros, pela atividade dos missionários, foi o que Hans Naumann chamou de “motor da cultura germânica”,  a “dedicação à causa”, a “Gefolgschaft”. No português não se encontra um vocábulo, um sinônimo que expressa o conceito no sentido exato em que, neste contexto é empregado. Tem aqui o sentido de  adesão a uma causa, o comprometimento com uma missão. Implica, consequentemente, na subordinação e lealdade a um chefe, a um líder, a um comandante, a um superior, a um príncipe, a um  rei, enfim a alguém encarregado de conduzir, comandar ou liderar a missão de  conquista. Além da fidelidade e da lealdade ao chefe, estabelecia-se horizontalmente entre os participantes de uma missão, uma relação de lealdade e  camaradagem. Era fundamental que os guerreiros, os conquistadores, os missionários, os colonizadores, partissem para o cumprimento de uma missão, mutuamente comprometidos e totalmente leais aos chefes. “Os germanos conquistaram o mundo movidos pela ideia do comprometimento com uma causa, aliada à ideia de uma liderança forte, de uma educação para a vontade heroica e a vontade de se ver participando de um grupo a serviço de  uma causa. (cf. Stonner, 1934, p. 59)

De acordo com o mesmo Stonner, deve-se a essa peculiaridade a relativa facilidade e a  rapidez com que os povos germânicos passaram em massa para o cristianismo.

O instituto germânico da adesão a uma causa, que não pode ser esquecido ao lado do grupo de parentesco, a parentela, conta entre os elementos que passaram para o cristianismo num estado de pureza relativamente grande, inclusive atingindo um brilho peculiar. Movidos pela fidelidade à uma causa os jovens germanos abraçavam o cristianismo junto com seus chefes e lideres. Os missionários não tiveram  o trabalho de  convencer e conquistar indivíduos. Bastava que os lideres se deixassem batizar. A adesão ao batismo, embora livre, tornava-se uma opção óbvia, em razão da lealdade ao chefe. (Stonner, 1934, p. 49)

Nesse contexto entende-se, por ex., o princípio que, depois da implantação da Reforma, colocou nas mãos dos príncipes a prerrogativa de estabelecer a confissão religiosa a ser adotada pelos súditos dos territórios  sob sua jurisdição, o princípio “cujus regio eius religio”.

O comprometimento com uma causa, embora por livre opção exigia a aceitação de uma série de  imposições, de regras, de obrigações como a propriedade coletiva de bens, o celibato e no caso de alguém optar pelo matrimônio, obrigava-o a desligar-se da causa, da “Gefolglschaft”. Não se admitia a calúnia. Todos eram obrigados a vingar o companheiro como se fosse um irmão. Cabia ao  chefe ou ao líder divulgar notícias. O chefe resolvia os desentendimentos. Os feitos heróicos dos indivíduos eram obrigatoriamente creditados ao chefe. Ninguém podia sobrepor-se ao chefe. 

O compromisso com tais regras implicava, naturalmente, em reflexos  importantes  sobre a vida quotidiana. Na prática significava o abandono do grupo de parentesco, e a entrega total e sem restrições a uma causa e a submissão sem reticências a um chefe. Este espírito favoreceu o surgimento das ordens de cavaleiros, que se tornaram lendárias na história: os cavaleiros teutônicos; os templários; os cavaleiros de Malta; os cavaleiros da Cruz e outras ordens semelhantes. Foi este espírito que animou também os cruzados a partirem sob as ordens de reis e príncipes, para a conquista da Terra Santa ou o extermínio dos inimigos dos cristãos, deixando para trás mulheres, filhos e propriedades. O mesmo espírito impulsionou  os Normandos e Vikings pelo norte da Europa e pela Rússia. Vista nesta lógica, não causa surpresa a forma como os castelhanos, descendentes remotos dos visigodos e vândalos, impuseram o seu domínio sobre o mundo. Entende-se também o destemor dos missionários ao difundirem o cristianismo, sem medirem nem obstáculos, nem riscos, mesmo que, para muitos, significasse o sacrifício da própria vida. Para se formar uma ideia mais completa desta visão missionária, basta dar uma olhada na “Conquista Espiritual” de Ruiz de Montoya. 

Antes  da conversão ao cristianismo os povos germânicos costumavam reunir-se na sombra de carvalhos milenares para prestar culto a Thor, o deus da guerra. Como a guerra era uma constante, algo que fazia parte do quotidiano  desses povos e como tal figurava no imaginário como instrumento pedagógico disciplinador  da personalidade, do caráter, os cultos em homenagem a Thor, como que se transformaram na expressão mais visível da sua religiosidade. Tanto assim  que São Bonifácio, o primeiro apóstolo da Alemanha, para provar que o Deus dos cristãos  era mais poderoso do que o Thor dos pagãos, derrubou o carvalho sagrado em cuja sombra o povo atônito se achava reunido para cultuar o deus da guerra. Frente ao silêncio de Thor, a resistência  para a aceitação do cristianismo estava quebrada. Seguiu-se a conversão em massa dos povos germânicos. Com a aceitação das novas crenças, não foram obrigados a renunciar, porém, a sua organização comunal fundamentada sobre uma sólida estrutura familiar. Não tiveram que abandonar os valores humanos, éticos e religiosos. Não trocaram  os hábitos e costumes frugais que tanto impressionaram o escritor Tácito, nem tiveram que renunciar aos referenciais simbólicos consagrados pela tradição. Pelo contrário. Mais do que muitos outros povos, a conversão ao cristianismo não significou para os povos  germânicos, uma ruptura tão radical e tão profunda com o passado histórico. Muito da forma tradicional de viver, agir, encarar a vida, valores e costumes orientadores da vida individual e coletiva, pôde ser preservado, revestindo-se apenas com a roupagem cristã. A passagem  para o cristianismo não chegou a mexer em elementos substantivos da tradição germânica. O papel de base cabia à família. E, como observou Tácito, em sua obra clássica sobre a Germânia, a infidelidade no matrimônio sofria sansões  pesadas, com exposição à execração pública, principalmente das mulheres infratoras. O alto valor atribuído à monogamia coincidia, portanto, com a concepção cristã do matrimônio. De outra parte, a organização comunal, como base da sociedade e fórum das decisões sobre os interesses comuns, como que se constituía numa réplica das comunidades do começo da história do cristianismo. Em termos organizacionais, por isso, a conversão à nova religião não impôs nenhuma violência, rejeição ou abandono da tradição. Bastou renominá-la e reorienta-la para as novas perspectivas. No relacionamento das pessoas e no trato das questões públicas e de interesse comum, os princípios da ética da conduta individual e coletiva, aproximavam-se e até identificavam-se com o cristianismo. As rígidas normas de conduta familiar, a lealdade para com o grupo, os camaradas e os chefes, o respeito para com os direitos do outro, uma forte estrutura hierárquica, as sanções aos transgressores e muitos outros aspectos, despertaram a admiração do escritor romano, impressionado com a decadência dos costumes de Roma e serviram de chão propício para a aceitação e o florescimento da doutrina e da disciplina cristã. 

Sobre a importância das decisões tomadas pela base popular, observou Tácito .

Os príncipes decidem  em questões menos importantes. Nas mais importantes, o conjunto do povo, mesmo naquelas às quais cabe o povo examinar e os príncipes já tomaram alguma decisão. Perante a assembleia do povo podem-se tratar de acusações que implicam em procedimentos judiciais passíveis até da aplicação da pena de morte. (Tácito, p. 33)

E sobre o matrimônio as observações de Tácito, entre outras, são as seguintes.

Apesar de tudo, reina entre eles uma concepção rigorosa a respeito do matrimônio e nenhuma outra faceta da sua vida moral merece  tantos louvores. Pois, entre os povos estranhos, são praticamente os únicos que se contentam com uma única esposa.Vivem, por isso, num clima de moralidade dos costumes, onde não se conhecem espetáculos licenciosos e protegidos contra todo e qualquer tipo de estímulo imoral. Desconhece-se a troca secreta de correspondência tanto entre homens  quanto entre mulheres. Numa população tão numerosa a infidelidade é muito rara e o castigo segue o ato e fica a cargo do esposo. Ele a expulsa de casa diante dos parentes, com os cabelos cortados e despida e enxota-a com açoites pela aldeia toda. Para a castidade vilipendiada, não há perdão. Apesar da juventude, apesar da riqueza, não encontrará outro homem, porque  entre eles, ninguém graceja sobre o vício e deixa-se seduzir pois, não significa algo ocasional. Ainda melhor estão as coisas naquelas tribos onde somente virgens chegam ao casamento e onde a expectativa e o juramento do matrimônio significam  a realização da mulher. Assim como só têm uma alma e um corpo, recebem um único esposo. Entre elas, não deve ter nenhum pensamento, nenhuma aspiração além disto. Cabe-lhe amar não apenas o esposo mas simultaneamente o vínculo matrimonial. (Tácito, p. 35)

E, pelo que tudo indica, os cristianizadores da Germânia, com São Bonifácio à frente, souberam preservar o cerne da cultura original. Bastou reorientar os referenciais doutrinários, disciplinares, simbólicos e civilizatórios. Com o ato simbólico de derrubar  o carvalho de Thor, São Bonifácio não investiu contra a religiosidade germânica em si, mas contra a entidade divina que a encarnava. Com sua atitude, não intencionou privar o carvalho de seu potencial simbólico religioso. Continuaria e, talvez mais do que até então,  a simbolizar a estirpe, a cepa germânica, admirada por não poucos e, por que não admiti-lo, odiada por outros, pela sua solidez milenar, pela fidelidade às raízes, pela lealdade aos chefes, pelo compromisso com os camaradas, pela defesa até o sacrifício da vida pela comunidade humana em que se acha inserido, pela disciplina que lhe confere confiabilidade e, de modo especial, pelo simbolismo religioso que o acompanha. Tanto assim que, nos séculos que se seguiram à cristianização, de modo especial na Idade Média, os troncos ocos de carvalhos milenares, serviam de nichos para abrigar estátuas  e imagens de Nossa Senhora. Os fieis peregrinavam até eles e, na sua sombra os devotos homenageavam, não o deus Thor, mas a Mãe da Cristandade.

Bicentenário da Imigração - 8

Uma quarta personalidade feminina de destaque pelas memórias que deixou registradas no livro de sua autoria: “Die Tochter des Pioniers” – “A filha do Pioneiro”, com tradução para o português e o espanhol, vem a ser “Tutz Culmey Herwig”. Fez o papel de secretária do pai, Carl Culmey, engenheiro agrimensor. Nascido e formado na Alemanha  veio exercer a profissão no sul do Brasil e norte da Argentina. Foi ele que mediu as terras na região de Cerro Largo e Santo Cristo enquanto  o Pe. Max von Lassberg dava atendimento aos colonizadores, procedentes na sua maioria das “velhas colônias” com se costumava dizer então. E, como inciso, um detalhe um tanto peculiar para as décadas iniciais do século XX. Max von Lassberg era jesuíta e Culmey protestante. Apesar disso consolidaram uma parceria que tinha como base muito mais do que uma relação de competências. Cultivavam uma respeitosa amizade que resultou num compromisso de suporte mútuo para cumprir a missão de abrir perspectivas de futuro para os excedentes que se acumulavam nas colônias mais antigas. Essa parceria foi também o suporte do sucesso na colonização de Puerto Rico na Província de Missiones no norte da Argentina.

A última empreitada de Carl Culmey foi a colonização da região de Palmitos quando veio a falecer afogado no rio Uruguai. A filha Tutz fez-se sua secretária e não perdeu a oportunidade para observar atentamente o papel da mulher numa frente de colonização. Aos 83  anos reuniu suas observações no livro acima citado: “Die Tochter des Pioniers” – “ A Filha do Pioneiro”. O foco dessa obra que interessa aqui resume-se no papel e no lugar da mulher naquelas colonizações. Giesla Lermen na sua tese de doutorado: “Mulheres alemãs emigrantes  no sul do Brasil” pinçou do livro de Tutz Culmey um parágrafo que resume as reflexões registradas no livro “A Filha do Pioneiro”.  “Aqui é o momento e lugar para cantar um hino de louvor a essas pioneiras anônimas da floresta virgem que cumpriam com as tarefas mais inimagináveis próprias do dia a dia. Cozinhavam, cuidavam dos filhos, tomavam conta dos animais domésticos, a administração da casa, costuravam, remendavam, ordenhavam as vacas e o que mais se possa imaginar. Pouco tempo restava para o descanso. E quando  ao entardecer o marido voltava da roça cansado, esperava-o com o chimarrão pronto. Enquanto ele descansava, ela continuava o trabalho desgastante até altas horas da noite. Importava dar banho às crianças e acomodá-las nas camas   para dormir, selecionar o feijão e deixar tudo organizado para a manhã seguinte. Ela, a primeira a levantar, prepara o café, apronta as crianças para irem à escola, alimenta as galinhas e os porcos, ordenha as vacas. E, depois de ter dado  conta das pequenas tarefas da casa, segue o marido para ajuda-lo na roça para voltar correndo para casa e aprontar o almoço, lavar a louça, supervisionar as tarefas escolares dos filhos para, novamente, seguir para roça e ajudar o marido”. (cf. Büttner Lermen, 2006, p. 54).

Além da epidemia da varíola e dos seguidos surtos de tifo, uma outra ameaça à saúde era motivo de permanente preocupação. Vinha à tona quando da aproximação da data de nascimento de alguma criança na colônia. Falamos da assistência às parturientes. Complicações direta ou indiretamente  relacionados com o parto contaram entre as principais causas de óbitos de mulheres jovens.

Na sua tese de doutorado publicada na Alemanha com o título: “Deutsche Auswanderinnen in Brasilien”, Giesela B. Lermen começa a sua avaliação sobre a presença da mulher na imigração, com a afirmação: “A mortalidade materna em consequência do parto, é um dos capítulos mais obscuros da história da colônia”. 

Não resta dúvida  de que nos encontramos frente a um tema, de um lado comum a todas as comunidades coloniais e, do outro, um dos menos comentados. De qualquer forma não é difícil formar-se uma ideia da  extensão e profundidade do problema. Basta tornar conscientes as circunstâncias reinantes no meio colonial, durante todo o século XIX e os primeiros anos do século XX, no que se refere à assistência dada às parturientes. Começa por aí que não havia nem médicos nem hospitais a quem recorrer. No que se relacionava com recursos em casos de doenças e os problemas surgidos por ocasião de muitos partos, os colonos estavam entregues à própria sorte. Com isso a mortalidade de mulheres jovens chegou a níveis preocupantes. A autora se refere a um levantamento feito pelo jornal “Deutsches Volksblatt” em 1908 sobre a expectativa da vida na colônia. Serviram como base os registros de óbitos  da paróquia de São José do Hortêncio entre 1868 e 1908. Os números falam por si mesmos. Dos falecidos entre 30 e 50 anos, constavam 21 homens e 51 mulheres. O jornal fez o dado acompanhado pela observação: “Certamente uma prova cabal da importância  da questão das parteiras para a colônia e a urgência para encontrar uma solução para esse problema.

Os alarmantes dados sobre a mortalidade materna em função da deficiente assistência às parturientes, pedia ações e iniciativas  eficientes e duradouras. O Dr. Gabriel Schlatter que conhecia muito bem a situação da assistência médica na colônia, manifestou-se da seguinte forma sobre o problema, na sétima Assembléia Geral Assembleia Geral da Associação dos Agriultoresdo Rio Grande do Sul realizada em Estrela em maio de 1907:

Posso garantir-lhes que aqui na colônia alemã do Rio Grande do Sul, cada ano centenas de   colonas morrem em consequência da assistência defeituosa durante o parto ou elas adoecem pouco depois. Muitas delas morrem e muitas que, em caso favorável, melhoram parcialmente, continuam durante a vida toda com alguma sequela. Pois, mal passa uma semana, na qual um ou outro dos nossos jornais alemães, não traz a participação de luto de que uma mulher e mãe faleceu no apogeu da vida, em consequência de um parto. (citado por Giesela B. Lermen, 2006, p. 236)

Da fala do Dr. Schlattter resultou um acalorado debate do qual participaram  os padres Amstad e Gasper mais o pastor Gans. Concluíram que a situação era tão grave que exigia uma ação séria e urgente, de natureza permanente e a longo prazo. Na proposta estava implícito o propósito de, de alguma maneira treinar parteiras para socorrer as parturientes das comunidades coloniais. Naquela Assembleia Geral, entretanto, não foi tomada nenhuma resolução concreta nesse sentido. A adoção de uma solução aconteceu no ano seguinte na Assembleia Geral em Santa Cruz do Sul. Por decisão da grande maioria foi aprovada a criação de uma instituição de treinamento fora de Porto Alegre. A decisão apoiou-se na lógica de que a quase totalidade das candidatas procedia do interior da colônia e sua atividade seria desenvolvida nesse meio. A escolha recaiu sobre Estrela pelo fato de o Dr. Schlatter já manter um curso de treinamento junto ao seu consultório normal. Bastava ampliá-lo, equipá-lo melhor e franqueá-lo às candidatas procedentes de toda a região colonial. Infelizmente o curso de treinamento de parteiras foi uma das primeiras vítimas quando da transformação da Associação Rio-grandense de Agricultores em sindicato no ano seguinte. Por decisão unilateral do Sindicato de Santa Cruz do Sul o curso foi transferido para Porto Alegre com a alegação dos benefícios que poderia auferir com a proximidade da Faculdade de Medicina. A decisão implicou na mudança da própria natureza e como consequência o afastamento do  Dr. Schlatter e frustrada a intenção de formar parteiras especificamente para o meio colonial, procedentes daquele contexto e conhecedoras  das características, costumes e hábitos do seu campo de trabalho, Giesela Lermen comentou a situação criada: 

Apesar da situação assustadora pintada pelo Dr. Schlatter e amparada nas estatísticas, sobre o estado de coisas relativo ao atendimento às parturientes durante o século XIX na colônia, a presença de parteiras e sua atuação provam igualmente que exerceram a profissão com prontidão e eficiência e cônscias da sua responsabilidade, gozando do reconhecimento da população da colônia. A memória delas foi perpetuada em anúncios fúnebres escritos por maridos, filhos, noras e genros, assim como e manifestações de gratidão por parte de maridos pelos atendimentos dado às esposas. (Lermen, Giesela, 2006, p. 236)

A presença das parteiras, sua importância para a colônia e sua dedicação à causa, foram objeto de referência, de manifestações de reconhecimento e de gratidão, registrados em almanaques, jornais, periódicos e nas reuniões de associações e congressos.

De qualquer forma a situação das parturientes teria sido muito mais dramática se, a partir da segunda metade do século XIX, as comunidades da região colonial mais antiga do vale do Sinos e Caí e, em parte da região  mais recente dos vales do Taquari, Pardo e Jacuí não contassem com parteiras dedicadas e competentes. Na tese de doutorado de Giesela Lermen encontra-se uma lista delas com a data do falecimento e as comunidades em que atuaram: Elisabeth Scherer, falecida em 1901, trabalhou em Lomba Grande; Barbara Spaniol atuou em São José do Hortêncio e faleceu em 1893; Ana Maria Eich, falecida em 1908 atendeu a comunidade de Erval; Susanne Gallas, falecida em 1912 atendeu as comunidades de Dois Irmãos, Gauer Eck (São José do Sul) e São José do Hortêncio; Franziska Allgayer, falecida aem 1901 atendeu Bom Jardim (Ivoti); Anna Junges, falecida em 1897, exerceu sua atividade em São Salvador (Tupandi); Anna Maria Schmidt, falecida em 1898 atuou em Campestre (Salvador do Sul) e São Pedro da Serra; Maria Kunrath, falecida em 1905, atuou no Tigertal (Feliz); Gertrud Haupental, falecida em 1905, atendeu Linha Bonita e Harmonia Helena Spieker, falecida em 1907, atuou na Linha Tamanduá (Lajeado); Katahrina Rippel, falecida em 1904, atendeu a Colônia Mariante.

Obviamente essa lista não está completa, mas dá uma boa ideia do nível de assistência de que dispunham os colonos relativo à vital questão da presença das parturientes partos e recém nascidos.

Convém não esquecer que, apesar da dedicação das parteiras, a falta generalizada de médicos, deixava uma grave lacuna na assistência às parturientes. Em situações mais graves como complicações devido a infecções, necessidade cesariana, etc., a ausência de médicos cobrava um preço alto, em não poucos casos a vida da mulher e ou da criança.

Cabe  a essa altura a pergunta: E quem foram essas mulheres parteiras, qual o seu perfil humano e profissional? Para começar a quase totalidade eram mulheres comuns, casadas com colonos, mães de famílias numerosas, como mandava o costume da época, donas de casa, agricultoras, nos intervalos em que nãos se encontravam em missão de atendimento a alguma parturiente. Apropriavam-se dos conhecimento e da prática com profissionais experimentadas. Mais raro foram os casos em que as aspirantes à profissão se submetiam a algum estágio em hospital de Porto Alegre. Em todo o caso as parteiras daquela geração dedicavam-se à  profissão, como uma autêntica missão alimentada na solidariedade para com as mães, suas famílias, comunidades e com as novas gerações. Por isso mesmo gozavam do respeito e simpatia geral. Em contrapartida respondiam com discrição à toda prova e um respeito profundo para com as pacientes. Eram personalidades conhecidas e. respeitadas como eram o padre e o professor. Costumavam ser chamadas pelo emblemático qualificativo de “Storchentante” – “Tia Cegonha”.

Por fim, permito-me  prestar uma homenagem especial às Diaconisas, as “Schwester” e às Irmãs de Caridade que, durante mais de meio século, fizeram com que os hospitais, sanatórios, asilos e outras instituições similares, fossem e fato locais onde enfermos, idosos e familiares encontrassem um tratamento digno. Elas, religiosas de ambas as confissões, marcaram com sua presença, entre 1900 e 1960 e mais tarde ainda, dezenas dessas instituições espalhadas pelo Rio Grande do Sul. No Moinhos de Vento, nos hospitais de Montenedro, Sinimbu, Panambi, Não Me Toque, Taquara e outros atuaram as Schwester, as Diaconisas. Na Santa Casa de Misericórdia, na Beneficência Portuguesa, no Mãe de Deus, no Centenário de São Leopoldo, no Regina de Novo Hamburgo, no Sagrada Família de São Sebastião do Cai, no Pompeia em Caxias do Sul e em dezenas de outros  hospitais menores, encontramos as irmãs de caridade de diversas congregações católicas. 

Ouso afirmar que o nível desses hospitais deve-se à competência, o comprometimento, a dedicação e, porque não deixa-lo claro, pelo amor ao próximo que animava essas religiosas de ambas as confissões. O Moinhos de Vento, o Regina, o Mãe de Deus e tantos outros não teriam a fama de que hoje gozam, se não tivessem nascido, crescido e se consolidado nas mãos dessas religiosas. Acima da competência profissional e administrativa, zelavam por um comportamento ético rigoroso e o respeito  aos pacientes regia o quotidiano dos hospitais e outras instituições e impunha os limites para médicos e demais profissionais.

E, para concluir, não posso deixar passar em branco tão justa quanto respeitosa homenagem  às dedicadas às parteiras, cuidando que a entrada na vida fosse  mais tranquila possível para as mães e seus bebês e às religiosas comprometidas com a dignidade do tratamento dos enfermos nos hospitais, às religiosas que deram tudo de si nos muitos colégios de ensino em todos os níveis, naquele mesmo período. Essa história começa em 1872 com a chegada das Irmãs Franciscanas em São Leopoldo e a fundação do Colégio São José e mereceria da parte dos historiadores da educação, um destaque proporcional ao nível de formação oferecido aos egressos dessas instituições. A partir do Colégio São José de São Leopoldo, as instituições similares sob o comando  da diferentes congregações religiosas católicas e luteranas, multiplicaram-se por todo o sul do Brasil, contemplando todos os níveis de formação desde jardins de infância até o ensino superior. A dedicação dessas religiosas a escola comunitárias como em Tupandi até os emblemáticos colégios maiores como o Bom Conselho e o Sevingué em Porto Alegre, o Santa Ana em Santa Maria, o Santa Catarina e a Fundação Evangélica em Novo Hamburgo além de dezenas de outras cidades  pequenas e médias, merecem sem dúvida um hino de louvor pelo que foram e continuam sendo.

Bicentenário da Imigração - 7

A referência à mulher na colonização do sul do Brasil  merece ser ilustrada com o exemplo de quatro dessas figuras femininas que deixaram para a história os relatos escritos de suas vivências nessa empreitada. Pela ordem cronológica de suas presenças e participação nesse projeto colonizador destaco a figura de Madame von Langendonck, nascida em Antuérpia, Bélgica em 1798 e falecida em 1875 em Arroio Grande no Rio Grande do Sul. Como sugere o próprio nome, pertencia à uma família da aristocracia belga. Depois do falecimento do marido e  os 11 filhos e filhas já criados resolveu emigrar para o sul do Brasil. Foi estabelecer-se na fronteira de colonização na colônia de Montravel, hoje São Vendelino, Piedade e arredores. Como é conhecido o Imperador cedera ao então cônsul francês Montravel a colonização daquela área. O empreendimento  não teve o êxito esperado e as terras voltaram para a administração imperial. Dois filhos da Madame von Langendonck trabalhavam como agrimensores naquela colonização. Apesar das recomendações de cautela fixou-se  na floresta e descobriu nela um mundo encantado que jamais teria imaginado. Empolgada escutava os canto dos pássaros, admirava as grandes árvores, as cores e o silêncio eloquente daquela penumbra que tinha muito mais a comunicar à sua fantasia de poetisa, do que a civilização refinada que deixara na Europa. Por um bom tempo um filhote de onça foi sua fiel companhia. Acomodava-o no colo e brincava com ele. Mas, segundo ela, na medida em que a oncinha crescia chegou a um ponto em que um macaco por dia já não era o suficiente para saciá-la. Depois de dois anos retornou à Antuérpia. Deixou um livro com o título: “Um Colônia no Brasil”, além de um “Diário”, que se constuem fontes obrigatórias para os estudiosos do começo da colonização do vale do Cai. Tomada de saudades pela natureza virgem do sul do Brasil e dos filhos que tinham emigrado voltou ao Rio Grande do Sul e, pelo que se pode deduzir, foi residir em Arroio Grande em companhia dos filhos empenhados na demarcação dos lotes coloniais da Serra do Sudoeste. Seu diário da primeira e segunda permanência no Estado, fornece uma riqueza e detalhes da época, não encontráveis em outros documentos. Faleceu e foi sepultada naquela localidade.

Josephine Wirsch, nascida em 1860 em Bingen na Alemanha, imigrou em 1907 para os Estados Unidos da América do Norte fixando-se em Cincinati. Em 1920 a família Wirsch emigrou para o Brasil. Deixou um precioso relato de suas vivências de mais de 400 páginas com o título original alemão: “Durch drei Welten – Lebensweg einer deutschen Frau” – “Por três mundos – A jornada de vida de uma mulher alemã”. Os três mundos a que ela se refere são a Europa, mais especificamente a Alemanha, os Estados Unidos e o Brasil. Durante a guerra a senhora Wirsch fez parte da diretoria da sociedade alemã de auxílio às crianças alemãs de Cincinati, até que o trabalho em favor da caridade foi proibido a partir de Wastington. O clima hostil, resultado da primeira guerra mundial contra os imigrantes alemães, em que os USA se aliaram aos franceses e ingleses contra a Alemanha, complicou de tal maneira a vida da família Wirsch, que eles decidiram emigrar para o sul do Brasil. Uma irmã de Josephine era professora há 27 anos em Arroio da Seca, hoje município Imigrantes no vale do Taquari, há 100 anos uma colonização em fase de consolidação. Na terceira parte de seu relato Josephine descreve a viagem de navio dos Estados Unidos ao Brasil com uma parada no Rio de Janeiro onde visitou os pontos mais chamativos da cidade para seguir viagem num navio costeiro até Rio Grande, Porto Alegre, Hamburgo Velho e Dois Irmãos, lugares onde reencontrou parentes próximos há muitos anos imigrados. Descreve depois a viagem de barco pelos rios Jacuí e Taquari até Estrela, para de lá seguir de carro até o Arroio da Seca, onde reencontrou sua irmã depois de 27. Mandaram construir um sobradinho na encosta do morro e lá se instalaram. Uma das filhas assumiu o ensino na escola da comunidade. Nesse meio tempo a Maria, a filha mais velha casou-se com Carlos Rohde, designado pela Sociedade União Popular como diretor da nova fronteira de colonização fundada em 1926 por essa Associação no extremo oeste de Santa Catarina, conhecida como Porto Novo, hoje Itapiranga. Mais detalhes sobre Maria Rohde, mais abaixo. Acontece que depois que a filha Maria com o marido Carlos e os filhos pequenos consolidaram seu lar na nova colônia Josephine, o marido e as outras duas filhas, Margot e Antônia resolveram também morar na localidade conhecida como Capela, na margem direita  do rio Uruguai.  Margot casou-se com o Dr. Neff, um médico imigrado da Suiça e a Antônia com Karl Schickling, responsável pela demarcação dos lotes na floresta virgem. A exposição às intempéries, os acampamentos precários no meio da mata, o trabalho exaustivo exigido para abrir trilhas na floresta e colocar os marcos divisórios, afetaram seriamente a sua saúde, ao ponto de, acompanhado pela esposa Antônia,  procurar a cura na Alemanha. Quando tudo estava bem encaminhado ela voltou e ele ficaria mais um mês para completar o tratamento. Esse mês coincidiu com o começo da Segunda Guerra Mundial em primeiro de setembro de 1939. Como era cidadão alemão, roi retido e incorporado na força aéra alemã e morreu  numa missão de combate. Mas voltando à Josephine. Passou os últimos anos morando no morro da Capela e tanto ela como seu marido estão sepultados no cemitério daquela localidade. Maria sua filha lembra que a mãe pediu que colocassem uma saquinho contendo um punhado de terra da cidadezinha onde nascera  na Alemanha, sob sua cabeça quando fosse sepultada. Deixou como legado além das memórias “Por três Mundos”, uma série de poesias, uma delas publicada no livro comemorativo do primeiro centenário da imigração alemã: “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”. Maria Rohde, nascida Wirsch, conta como mais uma personalidade feminina   merecedora de um hino de louvor como pioneira em fronteira de colonização no sul do Brasil.  Nasceu em Bingen no Mosela na Alemanha. A família emigrou para os Estados Unidos, onde obteve a cidadania americana. Depois da Primeira Guerra Mundial os Wirsch emigraram para o Brasil. Em Estrela no Rio Grande do Sul onde foram residir casou-se com Carlos Rhode. Na época, segunda metade da década de 1920, começou a ser implantada a fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, a “Colônia de Porto Novo” que hoje cobre os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. Carlos Rhode foi encarregado pela Sociedade União Popular, como responsável pelo empreendimento como Diretor da execução do projeto. Foi fixar-se na margem do rio Uruguai num lote na floresta virgem, área que evoluiu para o  futuro povoado de Sede Capela. Depois do nascimento do primeiro filho em Estrela, Maria foi ao encontro do marido em fins de 1927. Participou da instalação da moradia, toda de madeira, na clareira recém aberta na mata virgem. Vivenciou com o marido e os medidores dos lotes da colônia uma vida semelhante a um acampamento. Em seguida foi buscar o filho pequeno, os pais e as duas irmãs em Estrela e a família toda foi morar na “Nova Colônia”. Condensou sua vivências no livro “Wie eine Frau eine Urwaldsiedlung wachsen sah” – Como uma mulher viveu o evolução de uma Colônia na mata virgem”,  escrito por ela para o 25º aniversário da Colônia em 1950. Não se trata de uma autobiografia, mas do relato das vivências, experiências, alegrias, dramas comuns a tais circunstâncias. Enfim, traça o perfil das mulheres fortes, conscientes do papel que lhes cabia, em parceria com seus maridos, nos anos pesados do começo da construção a partir do nada de uma nova “querência”, uma nova “Heimat”, onde não havia nada além da floresta virgem com suas promessas e perigos. Nos seus apontamentos desfilam pela imaginação do leitor as “heroínas fundadoras”, parceiras leais e comprometidas com seus homens, relegadas ao anonimato e, não raro, não devidamente reconhecidas e valorizadas pelos netos e bisnetos que  herdaram as condições mais propícias para prosperar na vida, numa paisagem humanizada de excepcional beleza e qualidade de vida, onde há um século sucediam-se, como ondas do oceano, as sequências das copas  dos gigantes da floresta e na sua penumbra ecoava a sinfonia das criaturas de Deus. Sugiro, aos que tiverem ocasião, visitar os cemitérios de Sede Capela, Itapiranga, São João do oeste, Tunápolis e outros. Ao pisar o chão sagrado desses locais, descubram-se e, caminhando entre as fileiras de sepulturas louvem a Deus e agradeçam às heroínas e heróis que ai descansam e a quem devem o bem estar e as oportunidades que o pedaço de chão abençoado em que pisam, oferece às atuais e futuras gerações.  Autora do livro observou que ao examinar a documentação relativa ao  empreendimento, o destaque foi reservado em primeiro lugar aos feitos dos desbravadores, enquanto a referência às pioneiras desbravadoras, parceiras fiéis dos seus homens, ocupa  como que um espaço à margem das narrativas. Vale a pena registrar o quotidiano dessas heroínas, assim como ela as observou ao percorrer a cavalo ou de carro todas as comunidades em formação nas décadas de 1920, 1930 e 1940.

“Inúmeras vezes nas minhas cavalgadas e visitas de carro pela colônia observei mulheres dando conta das tarefas mais pesadas no mesmo nível dos homens. Principalmente no começo quando havia escassez de braços,  observei, não poucas vezes, mulheres com o machado na mão derrubando a vegetação secundária e até derrubando os gigantes da floresta. Observei-as serrando com traçadores, em parceria com seus homens, grossas toras de árvores preparando tábuas, postes, barrotes, caibros e taboinhas, para construírem suas primeiras moradias. Observei-as também empenhadas na  construção propriamente dita das casas. E, depois de um dia  de trabalho cansativo e na cabana provisória enquanto a família descansava, não raro a mulher remendava a roupa dos seus amores, à luz de um lamparina alimentada com banha pois, as horas do dia eram preciosas demais para dar conta de mais essa trefa. E, aos primeiros clarões do novo dia, era a primeira a estar em pé para deixar a casa em dia, o café pronto e a família reunida para o desjejum. Depois seguia mais um dia de trabalho duro encarado com boa disposição”. (cf. Rhode, 1950, p. 228)

Bicentenário da Imigração - 6

As emigrações em massa da Europa Central e do Norte, assumindo as proporções de autênticas diásporas, durante os séculos XVIII, XIX e a primeira metade do século XX, foram um outro momento objeto desses acontecimentos. Milhares, centenas de milhares, milhões de homens, mulheres e crianças cruzaram os oceanos em busca de uma utopia, em busca de novas querências, nas três Américas e nos demais continentes. Em qualquer um dos destinos, na América do Norte, na América Central e na América do Sul, no Brasil, na Rússia, na Namíbia ..., a mulher forte e corajosa, destemida e, contudo, consciente do seu papel  feminino de mãe, esposa e companheira fiel, acertou o passo no mesmo ritmo do homem, quando se tratava de enfrentar o desconhecido e fazer a sua parte. Não poucos artistas foram de uma rara felicidade ao fixar para a posteridade, em monumentos comemorativos, as figuras de tais mulheres. Uma destas representações encontra-se no porto de Puerto Montt, em homenagem aos imigrantes alemães que colonizaram o Sul do Chile. Na frente caminha o homen com machado na mão em atitude de desafio  à floresta desconhecida e, um pouco atrás, a mulher com o filho pequeno nos braços e   o outro um pouco maior ao lado. De cabeça erguida parece encorajar o homen: “Abre a primeira trilha, limpa a primeira clareira, construa o primeiro abrigo, que eu tenho consciência da parte que me cabe e darei conta dela no que der e vier”. 

As histórias e reflexões sobre as mulheres entre os imigrante e seus descendentes no sul do Brasil, valem também para as imigrantes italianas vindas do norte daquele país. As  populações daquelas regiões descendem basicamente dos Cimbros e Teutões, dos Ostrogodos, Visigodos, Alamanos, Longobardos e demais grupos germânicos que cruzaram ou contornaram os Alpes e se fixaram definitivamente naquela região. Valem também para os imigrantes poloneses, rumenos, lituanos, belgas holandeses, suecos, noruegueses, teuto-russos e outros. Não menos significativo vem a ser o monumento ao imigrante em Caxias do Sul. Localizado no quilômetro 150 da Br 116. Retrata um jovem casal, a mulher com a criança pequena no colo e o homem com a enxada no ombro direito e a mão esquerda sobre a testa, olham para a vastidão de terra na qual construiriam uma nova “querência” na “Mérica”, tema de uma das canções tão emblemáticas, cantada ainda hoje pelos descendentes dos imigrantes italianos em momentos em que recordam suas raízes e seus antepassados pioneiros imigrados da Itália.

Dos vinte contos dialetais escritos pelo Pe. Balduino Rambo, caracterizando a obra colonizadora dos alemães no Sul do Brasil, com seus personagens e atores, três  são dedicados  inteiramente  à mulher. Já os títulos são sugestivos: “Susana Bitterselig”, “Bárbara Pannekuche” e “Festa do Batizado”. O primeiro começa com uma caracterização fiel das circunstâncias em que a mulher imigrante foi obrigada  a viver. Susana a mulher forte do colono Cristóvão conta.

Meu pai comprou uma colônia de terra na Picada do Pote do Leite, na época  em que lá ainda era tudo mato. Nos primeiros anos morou numa casa que não era muito mais do que uma choupana. Naquela choupana miserável nascemos os cinco mais velhos. Não éramos  ricos, mas nunca faltou comida e todos tínhamos saúde. O mato em volta estava cheio de animais selvagens. Os bugios andavam sobre os galhos da grande figueira ao lado da estrebaria e, nos dias de chuva faziam música. Meu pai costumava dizer que era a companhia de músicos da Picada do Pote do Leite. De noite, quando escurecia, escutava-se com frequência o urro da onça no alto do morro. Nós crianças corríamos para dentro de casa e nos escondíamos debaixo das camas. Também o nosso cachorro perdia a coragem e nos acompanhava para dentro de casa. (Rambo, Balduino, 2.002, p. 67-68)

Não há dúvida de que o êxito das colonizações também no Sul do Brasil, se deve tanto às mulheres quanto aos homens. Sem o seu comprometimento para a vida e para a morte, a obra não teria deitado raízes, muito menos prosperado. Os homens e, mais ainda as mulheres, deram tudo de si num grau heroico, mas infelizmente niveladas pelo anonimato. Mesmo que se conheçam poucos nomes  de figuras exemplares de mulheres, foi no anonimato que as Marias, as Margaridas, as Susanas, as Bárbaras, as Gertrudes, as Matildes, as Elisabethes, as Irmgards, as Hildegards, as Ingrids, as Anas, numa parceria de total compromisso com os Pedros, os Jacós, os Alfredos, os Nicolaus, os Matias, os Felipes, os Cristovãos, entregaram-se, sem restrições e sem reticências, à missão que lhes fora confiada e a levaram a bom termo.   

Bicentenário da Imigração - 5

A mulher na sociedade germânica

Entre os povos germânicos pré-cristãos e no raiar do cristianismo, é notória a posição de destaque que as mulheres ocupavam em todas as situações. A mulher germânica, de forma alguma, deve ser vista como uma criatura do assim chamado “sexo frágil”, necessitando de constante proteção, nem tampouco como uma fatalidade biológica indispensável para a procriação e a satisfação do homem, ou como uma besta de  carga responsável pela criação dos filhos e a administração da casa. A mulher germânica costumava estar ao lado do seu homem para o que desse e viesse. Essa constatação  nada mais é do que uma consequência óbvia quando se analisam, por exemplo, as migrações dos povos entre os séculos quarto e nono. Não foram apenas  incursões de guerreiros e conquistadores no sentido corrente do termo mas, povos inteiros que se movimentavam, migravam e  terminavam por se fixar em terras longínquas. As vanguardas de combatentes abriam caminho e a eles seguiam de perto as mulheres e os filhos. Compartilhavam os riscos e privações, encorajavam os homens, orgulhavam-se dos seus feitos e do seu heroísmo quando tombavam nos combates. Costumavam carregar no cinto um pequeno punhal e dele se valiam quando a necessidade o exigia. Ocasiões houve em que as mulheres se envolviam diretamente nos combates. Relatos históricos dão conta de que esta era, na prática, a rotina das mulheres dos Cimbros e Teutões, em migração para além dos Alpes e na conquista do Norte da Itália. 

Figuras femininas germânicas como Hertwiga, companheira de Odoaker, mortalmente ferida em companhia do marido na batalha de Ravena no final do século V, tornaram-se exemplares na história desses povos. Entre elas, merece destaque, por exemplo, Veleda, a mais famosa vidente conhecida entre os germanos pré-cristãos. Do alto de uma torre na Vestfália, distribuía seus conselhos a integrantes  das tribos da região, inclusive aos romanos, que costumavam procurá-la. 

Tácito, ao ressaltar a posição de destaque de que a mulher gozava na antiga sociedade germânica, além de registrar a sua admiração pessoal por ela, perseguia também um objetivo pedagógico. As mulheres germânicas deveriam servir de exemplo para a sociedade romana  como um todo em decadência, mas principalmente para a mulher romana em particular. 

A cristianização dos povos germânicos em nada afetou o lugar tradicional da mulher. Sob certos aspectos até o sublimou. Houve uma preocupação muito grande da parte dos missionários em preservar tudo o que de positivo havia naquelas tradições em relação à mulher, ao seu papel e à imagem da sua personalidade forte e marcante. A Igreja deve, de fato, muito às mulheres germânicas, principalmente no período da cristianização dos povos a que pertenciam. Lendárias  tornaram-se as figuras da esposa de Ehlowig, uma princesa cristã borgúndia, que tem o seu nome indelevelmente  vinculada à conversão dos francos; a princesa bávara Theodolinde, que ajudou São Columbano a construir o mosteiro de Bobio; a participação da princesa da Turíngia, educada num convento francônio, foi decisiva na cristianização do próprio povo. A conversão dos anglo-saxões  por missionários enviados pelo papa Gregório, só pôde ser levada a bom termo com a interferência de Ethelbert, rei dos anglo-saxões, e uma princesa  cristã da casa real dos francos. O acima citado A. Stonner, não hesita em afirma.

Presenciamos também como essas mulheres  germânicas passaram por uma sublimação interna pessoal, fato que faz parte  daquilo que há de mais belo e acende uma luz em meio às perturbações daqueles tempos, não poucas vezes selvagens. (Stonner, 1934, p. 37)

Na companhia dos grandes missionários responsáveis pela cristianização da Europa Central e do  Norte, encontram-se invariavelmente personalidades femininas. Deram tudo de si  para que a obra prosperasse e, em não poucos casos, garantiram a continuidade da obra começada, quando os missionários partiam para novas frentes de envangelização ou vinham a faltar por outro motivo qualquer. Nesse sentido há notícia de uma mulher Viking de nome Friedeburg e de sua filha Kathle, que permaneceram fieis à fé cristã, mesmo após a expulsão do bispo Gautbert e dos missionários sob sua orientação e o povo voltou a venerar os deuses pagãos. Merecem ser citadas algumas personalidades femininas na vida e atividade cristianizadora de São Bonifácio, cognominado apóstolo da Alemanha. Entre elas destaca-se a anglo-saxônica Eangyth, que presidiu um mosteiro duplo para monges e monjas, uma realidade, para a nossa maneira atual de ver as coisas, um tanto estranha. Não é difícil de imaginar o que o cargo vinha a exigir da abadessa em termos de sabedoria na condução e energia em fazer valer a disciplina monástica, numa instituição que abrigava, por vezes, várias centenas de monges e monjas. Em sua correspondência com São Bonifácio fala da responsabilidade de manter, num bom patamar, tanto no regime disciplinar como na conduta monacal e, ainda, administrar  os desentendimentos internos, de modo especial entre os monges. 

No fim o autor acrescenta a observação de que essas mulheres, de forma alguma, foram  personalidades masculinizadas. A prova encontra-se novamente na correspondência da abadessa Eangyth com São Bonifácio e em outras correspondências de mulheres da época. Ele próprio definiu o significado da presença feminina da abadessa na sua vida,  ao chamá-la  “solatium peregrinationis meae” – “consolo da minha peregrinação”. 

Uma segunda figura feminina que acompanhou São Bonifácio e colaborou na fundação e condução do mosteiro de Fulda foi Lioba. Filha única de grande amigo do santo, deve ter sido uma mulher dotada de uma sabedoria enérgica e de uma autêntica  personalidade feminina. Este relacionamento fraterno, íntimo, comprometido entre personagens paradigmáticos do cristianismo da época, com figuras femininas igualmente exemplares, não foi, de maneira alguma, excepcional. Fazia parte  da natureza do próprio cristianismo e da sua consolidação no mundo bárbaro. Os exemplos poderiam ser multiplicados ao indefinido. Não é o objetivo do presente trabalho. Concluímos com a observação de Stonner em seu livro intitulado “Cristandade e Germanidade”.

O que na fundação da Igreja parecia uma perspectiva promissora, ao observarmos a colaboração com que Paulo contou na sua obra missionária, ressurgiu aqui, após longa estagnação, numa exuberância somente explicável pelo respeito que os germanos cultivavam pela mulher. Infelizmente, este florescimento não foi duradouro. Este grau de valorização das grandes mulheres durou apenas até o tempo dos Otões, Hartsvit de Gauderheim, tão grande como escritora quanto como poetisa, bem como Adelheid, Gerberga e, ainda, de Mechtild de Quedlingburg e a imperatriz Kunegunde, foram mulheres deste formato. (Stonner, 1934, p. 45-46)

Embora, conforme a avaliação de Stonner, as grandes mulheres, as mulheres que marcaram época e fizeram a história entre os povos germânicos da Antiguidade e da Idade Média, se tivessem  tornado uma raridade, elas estão presentes e, principalmente, foram decisivas mesmo no anonimato, em momentos dramáticos da história posterior. E um desses momentos foram sem dúvida os anos logo depois da Segunda Guerra Mundial. O Holocausto merece com justiça um destaque proporcional à sua importância a ele dedicado pelos historiadores. Mas, há um outro aspecto da guerra e, principalmente, suas conseguências pouco destacado. Alemanha fora sistemticamente arrasada pelos borbardeios aéreos e os combates terrestres. Cidades sem qualquer importância estratégica, como Dresden com suas galerias de arte, museus, pinacotecas e arquitetura admirada pelos historiadores, artistas e os visitantes comuns, foi reduzida em três dias a escombros por sucessivas ondas de centenas de bombardeiros. Pilhas de corpos de crianças, mulheres e idosos ocupavam ruas e praças. Dezenas de outras cidades não escaparam ao bombardeio diário dos aviões dos aliados. E, a vinvasão por terra a partir do oeste pelos ingleses, americanos e franceses e a partir do leste pelos russos, arrasaram o que escapara dos bombardeios. Em meio a esse caos generalizado o maior preço foi pago pela população civil. A população masculina de jovens, adultos incluindo homens de 50 ou mais anos, ou morrera nas frentes de combate, ou caíra prisioneira e confinada nos campos de prisioneiros e, na frente leste, incontáveis deles confinados nos campos de trabalhos forçados na Sibéria. 

Acontece que a história das guerras costuma ser contada e registrada pelo viés dos vencedores. A tragédia que a população da Alemanha vencida enfrentou durante o conflito e os anos que o seguiram, senão ignorada, passou à margem dos interesses dos historiadores que se ocuparam ou ocupam ainda com com aquele período. Poucos são os livros e outras formas de registro que lançam alguma luz sobre  o quotidiano dramático das mulhres, crianças e idosos atônios e desnorteados, que perambulavam às centenas de milhares, senão milhões, sem abrigo, sem alimento, sem assistência, procurando de alguma forma sobreviver e tentando vislumbrar algum sinal que alimentasse os restos de esperança de um possível futuro menos sombrio. Ja em fase de uma rápida e espantosa recuperação da Alemanha tive acesso a dois livros, um deles com o titulo “Der Tod Dresdens” (A morte de Dresden) e  segundo “Heldentum deutscher Frauen” (O heroísmo de mulheres alemãs). “A Morte de Dresden” descreve em detalhes o horror daqueles dias 13, 14 e 15 de fevereiro de 1945. Em sucessivas levas 1.300 bombardeiros despejaram 3.900 toneladas de bombas, muitas delas incendiárias sobre a cidade apelidada  de a “Florença do Elba”. A estimativa de mortos, na sua totalidade civis oscila entre 250.000 e 500.000. Como já alertamos mais acima, Dresden não foi uma cidade militarmente estratégica. Há-os que defenderam o bombardeio, mas 70 anos depois do episódio a opinião de historiadores, analistas e estrategistas  igualam essa destruição, somada a muitas outras cidades sem importância militar, ao holocausto e afirmam tratar-se de autênticos crimes de guerra. Ninguém foi responsabilizado porque, afinal coube aos vencedores permitir que esse verdadeiro genocídio fosse perpetrado. Com esse breve resumo sobre a tragédia de Dresden e dezenas de outras cidades, tive com objetivo a contextualização  da reação das mulheres alemãs principalmente em situações extremas. A resposta para essa cacterística fica explícita no também já citado livro “O Heroísmo de Mulheres alemãs”. (Heldentum Deutscher Frauen). Não é aqui o lugar para me ater exaustivamente às violências cometidas pelas tropas de ocupação nos dois fronts, em termos de  estupros, assassinatos, torturas e outras tantas agressões impostas pelos vencedores a mulheres de todas as idades.

Terminada a guerra os novos líderes da Alemanha subsidiados pelo “Plano Marshal” não perderam tempo para reconstruir o País. Foi neste cenário que que se fez presente a figura da “Trümmerfrau” – “A Mulher dos escombros”. Estima-se que só em Berlim 60.000 delas foram responsáveis pela remoção dos tijolos, madeiras e demais restos de construção que cobriam as ruas, avenidas, e praças. Com carrinhos de mão, carrocinhas improvisadas e com as mãos desprotegidas separavam os tijolos, os limpavam e empilhavam para serem reaproveitados na reconstrução. Amontoavam os entulhos inaproveitáveis em lugares estratégicos livrando os espaços para os profissionais programarem e executarem a espantosa obra da reconstrução das cidades pequenas e grandes arrasadas pela estupidez e a irracionalidade da guerra. Dezenas de milhares de viúvas, mães, noivas e moças solteiras que choravam os maridos, os filhos, os noivos e os irmãos, tombados nas frentes de combate, desaparecidos ou confinados em campos de prisioneiros e/ou de trabalhos forçados, reuniram-se como que num exército de assalto, que tornou, em grande parte, possível o duro remeço. As atuais gerações da Alemanha fariam bem em construir um monumento em homenagem às  suas avós e bisavós que sozinhas com as mãos esfoladas, os pés maltratados,  com o coração sangrando, mas indômitas como suas ancestrais formaram as brigadas das “Trümmerfrauen – das “Mulheres dos Escombros”. E, voltando à reflexão que motivou essa digressão observa-se, respeitadas as devidas circunstâncias, uma paralelismo nada forçado entre o perfil das “Mulheres dos escombros” de Berlim e outras cidades e suas contemporâneas, as “Mulheres da floresta virgem”, no Rio Grand do Sul, no Alto Uruguai, Oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná 



Bicentenário da Imigração - 4

Personalidades fortes

Personalidades dotadas de um físico robusto e sobretudo dotadas de um caráter sólido, retilíneo, coerente, acompanharam sempre os grandes lideres, os grandes chefes, os reis e imperadores, os comandantes nos campos de batalha, os príncipes na condução dos seus domínios, os bispos à testa das suas dioceses, os missionários na pregação do evangelho. Entre eles não havia lugar para fracos, para pusilânimes e, menos ainda, para medrosos e covardes. Tanto os povos germânicos conhecidos por Tácito, como seus herdeiros mais de dois mil anos depois, se renderam como se rendem ainda ao fascínio e à mística das personalidades fortes. É neste contexto que é preciso entender a afirmação de Anton Stonner, ao mostrar como, na cristianização da Europa Central e do Norte, a personalidade forte dos missionários foi decisiva. 

Avaliando-se (os missionários, religiosos e bispos) e empregando os mesmos conceitos da nossa terminologia atual, somos obrigados a dizer: os homens que protagonizaram a conversão ao cristianismo, conquistaram o reconhecimento por meio da sua coragem, do seu arrojo e da solidez do espírito. Tornaram-se guias espirituais devido às suas qualidades de liderança, como se conta do abade de Corbie: Era um homem que falava pouco, realizava muito e dominava a pessoas com os eu olhar de fogo. (Stonner, 1934, p. 20)

O “olhar de fogo” que impressionou tanto o cronista do abade de Corbie, reaparece em relatos cronologicamente muito próximos a nós, caracterizando missionários vindos da Europa para o Sul do Brasil. Num dos seus famosos contos em dialeto, o Pe. Balduino Rambo, conta como foi a primeira visita do padre Johannes Rick, originário do Tirol do norte na Áustria, aos colonos pioneiros na fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, na década de 1930. 

O padre chegou a cavalo. Era um homem enorme, de ombros largos, braços compridos, punhos imensos, cabelos negros e o rosto cheio de sulcos e rugas, como que esculpido num tronco de louro. Quando apertou as mãos dos pioneiros e os encarou com seus olhos castanhos, todos se convenceram: este é o padre certo para nós. Não é de “frescuras” e, com seus olhos, nos penetra a nós colonos, até os ossos”. (Rambo Balduino, 2002, Vol. I. p. 288)

No mesmo contexto o autor põe na boca de um líder do grupo de pioneiros, o espírito que os animava ao enfrentarem a mata virgem. Depois de contar as peripécias próprias dum começo como aquele: seca, praga de gafanhotos, peste suína, ataque de bandos de revolucionários, perseguição política etc., concluiu:

Olha, padre, e tudo isso não nos abateu a nós moradores emigrados da Picada do Pote do Leite. Somos como aquela canafístula no alto do morro. Nenhuma tormenta conseguiu abate-la. Floresce todos os verões e não se importa se sobre seus galhos andam os macacos e os coatís e sobre eles pousam os urubus.
 (Rambo Baluino, 2002,Vol. I, p. 294

Ilustrativo é também o depoimento de um antigo aluno do Ginásio Conceição, em São Leopoldo, no início do século XX, Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Na despedida, após concluir os estudos, descreveu assim um dos seus mestres, o mesmo  jesuíta tirolês citado há pouco, descendente, portanto, dos alamanos que se fixaram na região dos Alpes, no século quarto e quinto da nossa era. 

Como último na portaria, topei com o Pe. Rick. Pousou suas mãos incrivelmente grandes sobre os meus ombros, cravou seus olhos castanhos puxando para o amarelo, nos meus, perguntou-me com uma voz que retumbava como o canto de guerra dos germanos: “Então, meu filho, o que pretendes ser?” Respondi, tremendo que pretendia estudar direito. “Tu e jurisprudência! Vai meu filho. De ti nunca sairá algo que preste!” Lembrando-me do total fracasso na matemática, anotei a terrível profecia. Desisti da jurisprudência e entrei no círculo dos literatos. Com que sucesso? Deixo que meus leitores decidam. (Rick, 2004, p.19)

Os depoimentos que acabamos de registrar soam, na verdade, como o eco dos antigos escritores que foram os grandes admiradores da natureza humana em seu estágio primigênio: um misto de rudeza e autenticidade, que marcavam os povos germânicos. César relatou.

Consta, conforme nos informam os nossos, o que nos relatam os gauleses e os comerciantes, quando destacam nos germanos a enorme estatura, a incrível valentia e destreza nas armas. Contam que, ao se encontrarem com eles, não foram capazes de suportar o seu olhar e os seus olhos penetrantes. Isto atemorizou de tal forma o exército como um todo que a coragem deu lugar a uma perplexidade generalizada. (cf. Tácito, p. 87)

E Sêneca em “De Ira”, 11.

Quem é mais corajoso do que os germanos? Quem mais agressivo no combate? Quem mais dado às armas? Neste clima, nascem e são educados. Nisto depositam todas as suas preocupações, enquanto não dão valor nenhum às outras coisas. Quem é mais forte e mais temperado para suportar tudo? Na maioria dos casos, não dispõem de vestimenta para o corpo, nenhuma proteção contra o clima eternamente frio. Ensinai-lhes a ponderação, ensinai-lhes a disciplinar seus corpos e seus corações valentes, que não conhecem prazeres, que não conhecem vida tranquila, e estaremos de volta por assim dizer, aos autênticos costumes romanos. (Sêneca, p. 87)

Na  tradição germânica, o matrimônio monogâmico e vitalício, formava a base da família e ela, por sua vez, representava o fundamento último do edifício social. O papel da mulher não pode ser ignorado. Numa sociedade em que o arrojo, a valentia, a força física e moral ocupava o primeiro lugar entre as virtudes de um homem, a parceria com uma mulher igualmente  ousada e destemida, conferia a qualquer empreendimento uma dinâmica e um ritmo todo peculiar pois, como observou Stonner,

Também nesta parceria, isto é, na construção da cultura, da etnicidade como um todo, homem e mulher atuavam juntos como camaradas. E neste sentido é significativo como se avaliam mutuamente, e qual a atitude externa e interna que cultivam um em relação ao outro. (Stonner, 1934, p. 37)