O compromisso com a causa e a missão.
Aprofundando um pouco mais a caracterização da identidade germânica, encontramos um outro elemento que, aliado ao mito do “homem forte”, tornou-se o “motor da cultura germânica” na conquista do mundo, na expressão de Hans Naumann.
O edifício social dos povos germânicos tinha, no matrimônio o seu fundamento. Concebido por eles como monogâmico indissolúvel, significava muito mais do que um vinculo celebrado entre um homem e uma mulher. Anton Stonner resumiu assim o significado do matrimônio entre aqueles povos.
O grupo mais amplo, a parentela tem o seu fundamento no matrimônio e, por isso, o mantém sob vigilância. Muito mais do que hoje o matrimônio entre os germanos não foi apenas assunto entre cônjuges, mas uma questão que interessava às parentelas. O representante da parentela exercia o poder de tutela não só sobre a noiva como também sobre o noivo. Depois do casamento, a mulher encontrava proteção contra as agressões do marido. No âmbito da parentela exercia-se também o direito e o dever da vingança de sangue. A parentela era responsável por uma determinada unidade das corporações militares. (Stonner, 1934, p. 57)
Na sociedade germânica alicerçada sobre o matrimônio monogâmico indissolúvel e o grupo de parentesco, a parentela, assegurava a continuidade das tradições. Não explica, porém, por que os povos germânicos tivessem conquistado direta ou indiretamente continentes inteiros, impondo a sua cultura aos povos nativos. A parentela representava o que havia de conservador, o permanente, o estável, o perene na organização germânica. Mas, por isso mesmo, continha em si o gérmen que dificultava ou até impedia uma transformação mais substantiva na sua estrutura e organização social. Por essa razão, ainda segundo Stonner, “limitada à organização em parentelas, a Germânia nunca teria ultrapassado o estágio de uma sociedade de agricultores”. (Stonner, 1934, p. 59) .
O que, na verdade, explica as conquistas germânicas, passando pela Europa Central e do Norte, pela migração dos povos, pelas conquistas dos Normandos e Vikings, pela conquista das Américas, pelas colonizações de continentes inteiros, pela atividade dos missionários, foi o que Hans Naumann chamou de “motor da cultura germânica”, a “dedicação à causa”, a “Gefolgschaft”. No português não se encontra um vocábulo, um sinônimo que expressa o conceito no sentido exato em que, neste contexto é empregado. Tem aqui o sentido de adesão a uma causa, o comprometimento com uma missão. Implica, consequentemente, na subordinação e lealdade a um chefe, a um líder, a um comandante, a um superior, a um príncipe, a um rei, enfim a alguém encarregado de conduzir, comandar ou liderar a missão de conquista. Além da fidelidade e da lealdade ao chefe, estabelecia-se horizontalmente entre os participantes de uma missão, uma relação de lealdade e camaradagem. Era fundamental que os guerreiros, os conquistadores, os missionários, os colonizadores, partissem para o cumprimento de uma missão, mutuamente comprometidos e totalmente leais aos chefes. “Os germanos conquistaram o mundo movidos pela ideia do comprometimento com uma causa, aliada à ideia de uma liderança forte, de uma educação para a vontade heroica e a vontade de se ver participando de um grupo a serviço de uma causa. (cf. Stonner, 1934, p. 59)
De acordo com o mesmo Stonner, deve-se a essa peculiaridade a relativa facilidade e a rapidez com que os povos germânicos passaram em massa para o cristianismo.
O instituto germânico da adesão a uma causa, que não pode ser esquecido ao lado do grupo de parentesco, a parentela, conta entre os elementos que passaram para o cristianismo num estado de pureza relativamente grande, inclusive atingindo um brilho peculiar. Movidos pela fidelidade à uma causa os jovens germanos abraçavam o cristianismo junto com seus chefes e lideres. Os missionários não tiveram o trabalho de convencer e conquistar indivíduos. Bastava que os lideres se deixassem batizar. A adesão ao batismo, embora livre, tornava-se uma opção óbvia, em razão da lealdade ao chefe. (Stonner, 1934, p. 49)
Nesse contexto entende-se, por ex., o princípio que, depois da implantação da Reforma, colocou nas mãos dos príncipes a prerrogativa de estabelecer a confissão religiosa a ser adotada pelos súditos dos territórios sob sua jurisdição, o princípio “cujus regio eius religio”.
O comprometimento com uma causa, embora por livre opção exigia a aceitação de uma série de imposições, de regras, de obrigações como a propriedade coletiva de bens, o celibato e no caso de alguém optar pelo matrimônio, obrigava-o a desligar-se da causa, da “Gefolglschaft”. Não se admitia a calúnia. Todos eram obrigados a vingar o companheiro como se fosse um irmão. Cabia ao chefe ou ao líder divulgar notícias. O chefe resolvia os desentendimentos. Os feitos heróicos dos indivíduos eram obrigatoriamente creditados ao chefe. Ninguém podia sobrepor-se ao chefe.
O compromisso com tais regras implicava, naturalmente, em reflexos importantes sobre a vida quotidiana. Na prática significava o abandono do grupo de parentesco, e a entrega total e sem restrições a uma causa e a submissão sem reticências a um chefe. Este espírito favoreceu o surgimento das ordens de cavaleiros, que se tornaram lendárias na história: os cavaleiros teutônicos; os templários; os cavaleiros de Malta; os cavaleiros da Cruz e outras ordens semelhantes. Foi este espírito que animou também os cruzados a partirem sob as ordens de reis e príncipes, para a conquista da Terra Santa ou o extermínio dos inimigos dos cristãos, deixando para trás mulheres, filhos e propriedades. O mesmo espírito impulsionou os Normandos e Vikings pelo norte da Europa e pela Rússia. Vista nesta lógica, não causa surpresa a forma como os castelhanos, descendentes remotos dos visigodos e vândalos, impuseram o seu domínio sobre o mundo. Entende-se também o destemor dos missionários ao difundirem o cristianismo, sem medirem nem obstáculos, nem riscos, mesmo que, para muitos, significasse o sacrifício da própria vida. Para se formar uma ideia mais completa desta visão missionária, basta dar uma olhada na “Conquista Espiritual” de Ruiz de Montoya.
Antes da conversão ao cristianismo os povos germânicos costumavam reunir-se na sombra de carvalhos milenares para prestar culto a Thor, o deus da guerra. Como a guerra era uma constante, algo que fazia parte do quotidiano desses povos e como tal figurava no imaginário como instrumento pedagógico disciplinador da personalidade, do caráter, os cultos em homenagem a Thor, como que se transformaram na expressão mais visível da sua religiosidade. Tanto assim que São Bonifácio, o primeiro apóstolo da Alemanha, para provar que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que o Thor dos pagãos, derrubou o carvalho sagrado em cuja sombra o povo atônito se achava reunido para cultuar o deus da guerra. Frente ao silêncio de Thor, a resistência para a aceitação do cristianismo estava quebrada. Seguiu-se a conversão em massa dos povos germânicos. Com a aceitação das novas crenças, não foram obrigados a renunciar, porém, a sua organização comunal fundamentada sobre uma sólida estrutura familiar. Não tiveram que abandonar os valores humanos, éticos e religiosos. Não trocaram os hábitos e costumes frugais que tanto impressionaram o escritor Tácito, nem tiveram que renunciar aos referenciais simbólicos consagrados pela tradição. Pelo contrário. Mais do que muitos outros povos, a conversão ao cristianismo não significou para os povos germânicos, uma ruptura tão radical e tão profunda com o passado histórico. Muito da forma tradicional de viver, agir, encarar a vida, valores e costumes orientadores da vida individual e coletiva, pôde ser preservado, revestindo-se apenas com a roupagem cristã. A passagem para o cristianismo não chegou a mexer em elementos substantivos da tradição germânica. O papel de base cabia à família. E, como observou Tácito, em sua obra clássica sobre a Germânia, a infidelidade no matrimônio sofria sansões pesadas, com exposição à execração pública, principalmente das mulheres infratoras. O alto valor atribuído à monogamia coincidia, portanto, com a concepção cristã do matrimônio. De outra parte, a organização comunal, como base da sociedade e fórum das decisões sobre os interesses comuns, como que se constituía numa réplica das comunidades do começo da história do cristianismo. Em termos organizacionais, por isso, a conversão à nova religião não impôs nenhuma violência, rejeição ou abandono da tradição. Bastou renominá-la e reorienta-la para as novas perspectivas. No relacionamento das pessoas e no trato das questões públicas e de interesse comum, os princípios da ética da conduta individual e coletiva, aproximavam-se e até identificavam-se com o cristianismo. As rígidas normas de conduta familiar, a lealdade para com o grupo, os camaradas e os chefes, o respeito para com os direitos do outro, uma forte estrutura hierárquica, as sanções aos transgressores e muitos outros aspectos, despertaram a admiração do escritor romano, impressionado com a decadência dos costumes de Roma e serviram de chão propício para a aceitação e o florescimento da doutrina e da disciplina cristã.
Sobre a importância das decisões tomadas pela base popular, observou Tácito .
Os príncipes decidem em questões menos importantes. Nas mais importantes, o conjunto do povo, mesmo naquelas às quais cabe o povo examinar e os príncipes já tomaram alguma decisão. Perante a assembleia do povo podem-se tratar de acusações que implicam em procedimentos judiciais passíveis até da aplicação da pena de morte. (Tácito, p. 33)
E sobre o matrimônio as observações de Tácito, entre outras, são as seguintes.
Apesar de tudo, reina entre eles uma concepção rigorosa a respeito do matrimônio e nenhuma outra faceta da sua vida moral merece tantos louvores. Pois, entre os povos estranhos, são praticamente os únicos que se contentam com uma única esposa.Vivem, por isso, num clima de moralidade dos costumes, onde não se conhecem espetáculos licenciosos e protegidos contra todo e qualquer tipo de estímulo imoral. Desconhece-se a troca secreta de correspondência tanto entre homens quanto entre mulheres. Numa população tão numerosa a infidelidade é muito rara e o castigo segue o ato e fica a cargo do esposo. Ele a expulsa de casa diante dos parentes, com os cabelos cortados e despida e enxota-a com açoites pela aldeia toda. Para a castidade vilipendiada, não há perdão. Apesar da juventude, apesar da riqueza, não encontrará outro homem, porque entre eles, ninguém graceja sobre o vício e deixa-se seduzir pois, não significa algo ocasional. Ainda melhor estão as coisas naquelas tribos onde somente virgens chegam ao casamento e onde a expectativa e o juramento do matrimônio significam a realização da mulher. Assim como só têm uma alma e um corpo, recebem um único esposo. Entre elas, não deve ter nenhum pensamento, nenhuma aspiração além disto. Cabe-lhe amar não apenas o esposo mas simultaneamente o vínculo matrimonial. (Tácito, p. 35)
E, pelo que tudo indica, os cristianizadores da Germânia, com São Bonifácio à frente, souberam preservar o cerne da cultura original. Bastou reorientar os referenciais doutrinários, disciplinares, simbólicos e civilizatórios. Com o ato simbólico de derrubar o carvalho de Thor, São Bonifácio não investiu contra a religiosidade germânica em si, mas contra a entidade divina que a encarnava. Com sua atitude, não intencionou privar o carvalho de seu potencial simbólico religioso. Continuaria e, talvez mais do que até então, a simbolizar a estirpe, a cepa germânica, admirada por não poucos e, por que não admiti-lo, odiada por outros, pela sua solidez milenar, pela fidelidade às raízes, pela lealdade aos chefes, pelo compromisso com os camaradas, pela defesa até o sacrifício da vida pela comunidade humana em que se acha inserido, pela disciplina que lhe confere confiabilidade e, de modo especial, pelo simbolismo religioso que o acompanha. Tanto assim que, nos séculos que se seguiram à cristianização, de modo especial na Idade Média, os troncos ocos de carvalhos milenares, serviam de nichos para abrigar estátuas e imagens de Nossa Senhora. Os fieis peregrinavam até eles e, na sua sombra os devotos homenageavam, não o deus Thor, mas a Mãe da Cristandade.