Bicentenário da Imigração - 6

As emigrações em massa da Europa Central e do Norte, assumindo as proporções de autênticas diásporas, durante os séculos XVIII, XIX e a primeira metade do século XX, foram um outro momento objeto desses acontecimentos. Milhares, centenas de milhares, milhões de homens, mulheres e crianças cruzaram os oceanos em busca de uma utopia, em busca de novas querências, nas três Américas e nos demais continentes. Em qualquer um dos destinos, na América do Norte, na América Central e na América do Sul, no Brasil, na Rússia, na Namíbia ..., a mulher forte e corajosa, destemida e, contudo, consciente do seu papel  feminino de mãe, esposa e companheira fiel, acertou o passo no mesmo ritmo do homem, quando se tratava de enfrentar o desconhecido e fazer a sua parte. Não poucos artistas foram de uma rara felicidade ao fixar para a posteridade, em monumentos comemorativos, as figuras de tais mulheres. Uma destas representações encontra-se no porto de Puerto Montt, em homenagem aos imigrantes alemães que colonizaram o Sul do Chile. Na frente caminha o homen com machado na mão em atitude de desafio  à floresta desconhecida e, um pouco atrás, a mulher com o filho pequeno nos braços e   o outro um pouco maior ao lado. De cabeça erguida parece encorajar o homen: “Abre a primeira trilha, limpa a primeira clareira, construa o primeiro abrigo, que eu tenho consciência da parte que me cabe e darei conta dela no que der e vier”. 

As histórias e reflexões sobre as mulheres entre os imigrante e seus descendentes no sul do Brasil, valem também para as imigrantes italianas vindas do norte daquele país. As  populações daquelas regiões descendem basicamente dos Cimbros e Teutões, dos Ostrogodos, Visigodos, Alamanos, Longobardos e demais grupos germânicos que cruzaram ou contornaram os Alpes e se fixaram definitivamente naquela região. Valem também para os imigrantes poloneses, rumenos, lituanos, belgas holandeses, suecos, noruegueses, teuto-russos e outros. Não menos significativo vem a ser o monumento ao imigrante em Caxias do Sul. Localizado no quilômetro 150 da Br 116. Retrata um jovem casal, a mulher com a criança pequena no colo e o homem com a enxada no ombro direito e a mão esquerda sobre a testa, olham para a vastidão de terra na qual construiriam uma nova “querência” na “Mérica”, tema de uma das canções tão emblemáticas, cantada ainda hoje pelos descendentes dos imigrantes italianos em momentos em que recordam suas raízes e seus antepassados pioneiros imigrados da Itália.

Dos vinte contos dialetais escritos pelo Pe. Balduino Rambo, caracterizando a obra colonizadora dos alemães no Sul do Brasil, com seus personagens e atores, três  são dedicados  inteiramente  à mulher. Já os títulos são sugestivos: “Susana Bitterselig”, “Bárbara Pannekuche” e “Festa do Batizado”. O primeiro começa com uma caracterização fiel das circunstâncias em que a mulher imigrante foi obrigada  a viver. Susana a mulher forte do colono Cristóvão conta.

Meu pai comprou uma colônia de terra na Picada do Pote do Leite, na época  em que lá ainda era tudo mato. Nos primeiros anos morou numa casa que não era muito mais do que uma choupana. Naquela choupana miserável nascemos os cinco mais velhos. Não éramos  ricos, mas nunca faltou comida e todos tínhamos saúde. O mato em volta estava cheio de animais selvagens. Os bugios andavam sobre os galhos da grande figueira ao lado da estrebaria e, nos dias de chuva faziam música. Meu pai costumava dizer que era a companhia de músicos da Picada do Pote do Leite. De noite, quando escurecia, escutava-se com frequência o urro da onça no alto do morro. Nós crianças corríamos para dentro de casa e nos escondíamos debaixo das camas. Também o nosso cachorro perdia a coragem e nos acompanhava para dentro de casa. (Rambo, Balduino, 2.002, p. 67-68)

Não há dúvida de que o êxito das colonizações também no Sul do Brasil, se deve tanto às mulheres quanto aos homens. Sem o seu comprometimento para a vida e para a morte, a obra não teria deitado raízes, muito menos prosperado. Os homens e, mais ainda as mulheres, deram tudo de si num grau heroico, mas infelizmente niveladas pelo anonimato. Mesmo que se conheçam poucos nomes  de figuras exemplares de mulheres, foi no anonimato que as Marias, as Margaridas, as Susanas, as Bárbaras, as Gertrudes, as Matildes, as Elisabethes, as Irmgards, as Hildegards, as Ingrids, as Anas, numa parceria de total compromisso com os Pedros, os Jacós, os Alfredos, os Nicolaus, os Matias, os Felipes, os Cristovãos, entregaram-se, sem restrições e sem reticências, à missão que lhes fora confiada e a levaram a bom termo.   

Bicentenário da Imigração - 5

A mulher na sociedade germânica

Entre os povos germânicos pré-cristãos e no raiar do cristianismo, é notória a posição de destaque que as mulheres ocupavam em todas as situações. A mulher germânica, de forma alguma, deve ser vista como uma criatura do assim chamado “sexo frágil”, necessitando de constante proteção, nem tampouco como uma fatalidade biológica indispensável para a procriação e a satisfação do homem, ou como uma besta de  carga responsável pela criação dos filhos e a administração da casa. A mulher germânica costumava estar ao lado do seu homem para o que desse e viesse. Essa constatação  nada mais é do que uma consequência óbvia quando se analisam, por exemplo, as migrações dos povos entre os séculos quarto e nono. Não foram apenas  incursões de guerreiros e conquistadores no sentido corrente do termo mas, povos inteiros que se movimentavam, migravam e  terminavam por se fixar em terras longínquas. As vanguardas de combatentes abriam caminho e a eles seguiam de perto as mulheres e os filhos. Compartilhavam os riscos e privações, encorajavam os homens, orgulhavam-se dos seus feitos e do seu heroísmo quando tombavam nos combates. Costumavam carregar no cinto um pequeno punhal e dele se valiam quando a necessidade o exigia. Ocasiões houve em que as mulheres se envolviam diretamente nos combates. Relatos históricos dão conta de que esta era, na prática, a rotina das mulheres dos Cimbros e Teutões, em migração para além dos Alpes e na conquista do Norte da Itália. 

Figuras femininas germânicas como Hertwiga, companheira de Odoaker, mortalmente ferida em companhia do marido na batalha de Ravena no final do século V, tornaram-se exemplares na história desses povos. Entre elas, merece destaque, por exemplo, Veleda, a mais famosa vidente conhecida entre os germanos pré-cristãos. Do alto de uma torre na Vestfália, distribuía seus conselhos a integrantes  das tribos da região, inclusive aos romanos, que costumavam procurá-la. 

Tácito, ao ressaltar a posição de destaque de que a mulher gozava na antiga sociedade germânica, além de registrar a sua admiração pessoal por ela, perseguia também um objetivo pedagógico. As mulheres germânicas deveriam servir de exemplo para a sociedade romana  como um todo em decadência, mas principalmente para a mulher romana em particular. 

A cristianização dos povos germânicos em nada afetou o lugar tradicional da mulher. Sob certos aspectos até o sublimou. Houve uma preocupação muito grande da parte dos missionários em preservar tudo o que de positivo havia naquelas tradições em relação à mulher, ao seu papel e à imagem da sua personalidade forte e marcante. A Igreja deve, de fato, muito às mulheres germânicas, principalmente no período da cristianização dos povos a que pertenciam. Lendárias  tornaram-se as figuras da esposa de Ehlowig, uma princesa cristã borgúndia, que tem o seu nome indelevelmente  vinculada à conversão dos francos; a princesa bávara Theodolinde, que ajudou São Columbano a construir o mosteiro de Bobio; a participação da princesa da Turíngia, educada num convento francônio, foi decisiva na cristianização do próprio povo. A conversão dos anglo-saxões  por missionários enviados pelo papa Gregório, só pôde ser levada a bom termo com a interferência de Ethelbert, rei dos anglo-saxões, e uma princesa  cristã da casa real dos francos. O acima citado A. Stonner, não hesita em afirma.

Presenciamos também como essas mulheres  germânicas passaram por uma sublimação interna pessoal, fato que faz parte  daquilo que há de mais belo e acende uma luz em meio às perturbações daqueles tempos, não poucas vezes selvagens. (Stonner, 1934, p. 37)

Na companhia dos grandes missionários responsáveis pela cristianização da Europa Central e do  Norte, encontram-se invariavelmente personalidades femininas. Deram tudo de si  para que a obra prosperasse e, em não poucos casos, garantiram a continuidade da obra começada, quando os missionários partiam para novas frentes de envangelização ou vinham a faltar por outro motivo qualquer. Nesse sentido há notícia de uma mulher Viking de nome Friedeburg e de sua filha Kathle, que permaneceram fieis à fé cristã, mesmo após a expulsão do bispo Gautbert e dos missionários sob sua orientação e o povo voltou a venerar os deuses pagãos. Merecem ser citadas algumas personalidades femininas na vida e atividade cristianizadora de São Bonifácio, cognominado apóstolo da Alemanha. Entre elas destaca-se a anglo-saxônica Eangyth, que presidiu um mosteiro duplo para monges e monjas, uma realidade, para a nossa maneira atual de ver as coisas, um tanto estranha. Não é difícil de imaginar o que o cargo vinha a exigir da abadessa em termos de sabedoria na condução e energia em fazer valer a disciplina monástica, numa instituição que abrigava, por vezes, várias centenas de monges e monjas. Em sua correspondência com São Bonifácio fala da responsabilidade de manter, num bom patamar, tanto no regime disciplinar como na conduta monacal e, ainda, administrar  os desentendimentos internos, de modo especial entre os monges. 

No fim o autor acrescenta a observação de que essas mulheres, de forma alguma, foram  personalidades masculinizadas. A prova encontra-se novamente na correspondência da abadessa Eangyth com São Bonifácio e em outras correspondências de mulheres da época. Ele próprio definiu o significado da presença feminina da abadessa na sua vida,  ao chamá-la  “solatium peregrinationis meae” – “consolo da minha peregrinação”. 

Uma segunda figura feminina que acompanhou São Bonifácio e colaborou na fundação e condução do mosteiro de Fulda foi Lioba. Filha única de grande amigo do santo, deve ter sido uma mulher dotada de uma sabedoria enérgica e de uma autêntica  personalidade feminina. Este relacionamento fraterno, íntimo, comprometido entre personagens paradigmáticos do cristianismo da época, com figuras femininas igualmente exemplares, não foi, de maneira alguma, excepcional. Fazia parte  da natureza do próprio cristianismo e da sua consolidação no mundo bárbaro. Os exemplos poderiam ser multiplicados ao indefinido. Não é o objetivo do presente trabalho. Concluímos com a observação de Stonner em seu livro intitulado “Cristandade e Germanidade”.

O que na fundação da Igreja parecia uma perspectiva promissora, ao observarmos a colaboração com que Paulo contou na sua obra missionária, ressurgiu aqui, após longa estagnação, numa exuberância somente explicável pelo respeito que os germanos cultivavam pela mulher. Infelizmente, este florescimento não foi duradouro. Este grau de valorização das grandes mulheres durou apenas até o tempo dos Otões, Hartsvit de Gauderheim, tão grande como escritora quanto como poetisa, bem como Adelheid, Gerberga e, ainda, de Mechtild de Quedlingburg e a imperatriz Kunegunde, foram mulheres deste formato. (Stonner, 1934, p. 45-46)

Embora, conforme a avaliação de Stonner, as grandes mulheres, as mulheres que marcaram época e fizeram a história entre os povos germânicos da Antiguidade e da Idade Média, se tivessem  tornado uma raridade, elas estão presentes e, principalmente, foram decisivas mesmo no anonimato, em momentos dramáticos da história posterior. E um desses momentos foram sem dúvida os anos logo depois da Segunda Guerra Mundial. O Holocausto merece com justiça um destaque proporcional à sua importância a ele dedicado pelos historiadores. Mas, há um outro aspecto da guerra e, principalmente, suas conseguências pouco destacado. Alemanha fora sistemticamente arrasada pelos borbardeios aéreos e os combates terrestres. Cidades sem qualquer importância estratégica, como Dresden com suas galerias de arte, museus, pinacotecas e arquitetura admirada pelos historiadores, artistas e os visitantes comuns, foi reduzida em três dias a escombros por sucessivas ondas de centenas de bombardeiros. Pilhas de corpos de crianças, mulheres e idosos ocupavam ruas e praças. Dezenas de outras cidades não escaparam ao bombardeio diário dos aviões dos aliados. E, a vinvasão por terra a partir do oeste pelos ingleses, americanos e franceses e a partir do leste pelos russos, arrasaram o que escapara dos bombardeios. Em meio a esse caos generalizado o maior preço foi pago pela população civil. A população masculina de jovens, adultos incluindo homens de 50 ou mais anos, ou morrera nas frentes de combate, ou caíra prisioneira e confinada nos campos de prisioneiros e, na frente leste, incontáveis deles confinados nos campos de trabalhos forçados na Sibéria. 

Acontece que a história das guerras costuma ser contada e registrada pelo viés dos vencedores. A tragédia que a população da Alemanha vencida enfrentou durante o conflito e os anos que o seguiram, senão ignorada, passou à margem dos interesses dos historiadores que se ocuparam ou ocupam ainda com com aquele período. Poucos são os livros e outras formas de registro que lançam alguma luz sobre  o quotidiano dramático das mulhres, crianças e idosos atônios e desnorteados, que perambulavam às centenas de milhares, senão milhões, sem abrigo, sem alimento, sem assistência, procurando de alguma forma sobreviver e tentando vislumbrar algum sinal que alimentasse os restos de esperança de um possível futuro menos sombrio. Ja em fase de uma rápida e espantosa recuperação da Alemanha tive acesso a dois livros, um deles com o titulo “Der Tod Dresdens” (A morte de Dresden) e  segundo “Heldentum deutscher Frauen” (O heroísmo de mulheres alemãs). “A Morte de Dresden” descreve em detalhes o horror daqueles dias 13, 14 e 15 de fevereiro de 1945. Em sucessivas levas 1.300 bombardeiros despejaram 3.900 toneladas de bombas, muitas delas incendiárias sobre a cidade apelidada  de a “Florença do Elba”. A estimativa de mortos, na sua totalidade civis oscila entre 250.000 e 500.000. Como já alertamos mais acima, Dresden não foi uma cidade militarmente estratégica. Há-os que defenderam o bombardeio, mas 70 anos depois do episódio a opinião de historiadores, analistas e estrategistas  igualam essa destruição, somada a muitas outras cidades sem importância militar, ao holocausto e afirmam tratar-se de autênticos crimes de guerra. Ninguém foi responsabilizado porque, afinal coube aos vencedores permitir que esse verdadeiro genocídio fosse perpetrado. Com esse breve resumo sobre a tragédia de Dresden e dezenas de outras cidades, tive com objetivo a contextualização  da reação das mulheres alemãs principalmente em situações extremas. A resposta para essa cacterística fica explícita no também já citado livro “O Heroísmo de Mulheres alemãs”. (Heldentum Deutscher Frauen). Não é aqui o lugar para me ater exaustivamente às violências cometidas pelas tropas de ocupação nos dois fronts, em termos de  estupros, assassinatos, torturas e outras tantas agressões impostas pelos vencedores a mulheres de todas as idades.

Terminada a guerra os novos líderes da Alemanha subsidiados pelo “Plano Marshal” não perderam tempo para reconstruir o País. Foi neste cenário que que se fez presente a figura da “Trümmerfrau” – “A Mulher dos escombros”. Estima-se que só em Berlim 60.000 delas foram responsáveis pela remoção dos tijolos, madeiras e demais restos de construção que cobriam as ruas, avenidas, e praças. Com carrinhos de mão, carrocinhas improvisadas e com as mãos desprotegidas separavam os tijolos, os limpavam e empilhavam para serem reaproveitados na reconstrução. Amontoavam os entulhos inaproveitáveis em lugares estratégicos livrando os espaços para os profissionais programarem e executarem a espantosa obra da reconstrução das cidades pequenas e grandes arrasadas pela estupidez e a irracionalidade da guerra. Dezenas de milhares de viúvas, mães, noivas e moças solteiras que choravam os maridos, os filhos, os noivos e os irmãos, tombados nas frentes de combate, desaparecidos ou confinados em campos de prisioneiros e/ou de trabalhos forçados, reuniram-se como que num exército de assalto, que tornou, em grande parte, possível o duro remeço. As atuais gerações da Alemanha fariam bem em construir um monumento em homenagem às  suas avós e bisavós que sozinhas com as mãos esfoladas, os pés maltratados,  com o coração sangrando, mas indômitas como suas ancestrais formaram as brigadas das “Trümmerfrauen – das “Mulheres dos Escombros”. E, voltando à reflexão que motivou essa digressão observa-se, respeitadas as devidas circunstâncias, uma paralelismo nada forçado entre o perfil das “Mulheres dos escombros” de Berlim e outras cidades e suas contemporâneas, as “Mulheres da floresta virgem”, no Rio Grand do Sul, no Alto Uruguai, Oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná 



Bicentenário da Imigração - 4

Personalidades fortes

Personalidades dotadas de um físico robusto e sobretudo dotadas de um caráter sólido, retilíneo, coerente, acompanharam sempre os grandes lideres, os grandes chefes, os reis e imperadores, os comandantes nos campos de batalha, os príncipes na condução dos seus domínios, os bispos à testa das suas dioceses, os missionários na pregação do evangelho. Entre eles não havia lugar para fracos, para pusilânimes e, menos ainda, para medrosos e covardes. Tanto os povos germânicos conhecidos por Tácito, como seus herdeiros mais de dois mil anos depois, se renderam como se rendem ainda ao fascínio e à mística das personalidades fortes. É neste contexto que é preciso entender a afirmação de Anton Stonner, ao mostrar como, na cristianização da Europa Central e do Norte, a personalidade forte dos missionários foi decisiva. 

Avaliando-se (os missionários, religiosos e bispos) e empregando os mesmos conceitos da nossa terminologia atual, somos obrigados a dizer: os homens que protagonizaram a conversão ao cristianismo, conquistaram o reconhecimento por meio da sua coragem, do seu arrojo e da solidez do espírito. Tornaram-se guias espirituais devido às suas qualidades de liderança, como se conta do abade de Corbie: Era um homem que falava pouco, realizava muito e dominava a pessoas com os eu olhar de fogo. (Stonner, 1934, p. 20)

O “olhar de fogo” que impressionou tanto o cronista do abade de Corbie, reaparece em relatos cronologicamente muito próximos a nós, caracterizando missionários vindos da Europa para o Sul do Brasil. Num dos seus famosos contos em dialeto, o Pe. Balduino Rambo, conta como foi a primeira visita do padre Johannes Rick, originário do Tirol do norte na Áustria, aos colonos pioneiros na fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina, na década de 1930. 

O padre chegou a cavalo. Era um homem enorme, de ombros largos, braços compridos, punhos imensos, cabelos negros e o rosto cheio de sulcos e rugas, como que esculpido num tronco de louro. Quando apertou as mãos dos pioneiros e os encarou com seus olhos castanhos, todos se convenceram: este é o padre certo para nós. Não é de “frescuras” e, com seus olhos, nos penetra a nós colonos, até os ossos”. (Rambo Balduino, 2002, Vol. I. p. 288)

No mesmo contexto o autor põe na boca de um líder do grupo de pioneiros, o espírito que os animava ao enfrentarem a mata virgem. Depois de contar as peripécias próprias dum começo como aquele: seca, praga de gafanhotos, peste suína, ataque de bandos de revolucionários, perseguição política etc., concluiu:

Olha, padre, e tudo isso não nos abateu a nós moradores emigrados da Picada do Pote do Leite. Somos como aquela canafístula no alto do morro. Nenhuma tormenta conseguiu abate-la. Floresce todos os verões e não se importa se sobre seus galhos andam os macacos e os coatís e sobre eles pousam os urubus.
 (Rambo Baluino, 2002,Vol. I, p. 294

Ilustrativo é também o depoimento de um antigo aluno do Ginásio Conceição, em São Leopoldo, no início do século XX, Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Na despedida, após concluir os estudos, descreveu assim um dos seus mestres, o mesmo  jesuíta tirolês citado há pouco, descendente, portanto, dos alamanos que se fixaram na região dos Alpes, no século quarto e quinto da nossa era. 

Como último na portaria, topei com o Pe. Rick. Pousou suas mãos incrivelmente grandes sobre os meus ombros, cravou seus olhos castanhos puxando para o amarelo, nos meus, perguntou-me com uma voz que retumbava como o canto de guerra dos germanos: “Então, meu filho, o que pretendes ser?” Respondi, tremendo que pretendia estudar direito. “Tu e jurisprudência! Vai meu filho. De ti nunca sairá algo que preste!” Lembrando-me do total fracasso na matemática, anotei a terrível profecia. Desisti da jurisprudência e entrei no círculo dos literatos. Com que sucesso? Deixo que meus leitores decidam. (Rick, 2004, p.19)

Os depoimentos que acabamos de registrar soam, na verdade, como o eco dos antigos escritores que foram os grandes admiradores da natureza humana em seu estágio primigênio: um misto de rudeza e autenticidade, que marcavam os povos germânicos. César relatou.

Consta, conforme nos informam os nossos, o que nos relatam os gauleses e os comerciantes, quando destacam nos germanos a enorme estatura, a incrível valentia e destreza nas armas. Contam que, ao se encontrarem com eles, não foram capazes de suportar o seu olhar e os seus olhos penetrantes. Isto atemorizou de tal forma o exército como um todo que a coragem deu lugar a uma perplexidade generalizada. (cf. Tácito, p. 87)

E Sêneca em “De Ira”, 11.

Quem é mais corajoso do que os germanos? Quem mais agressivo no combate? Quem mais dado às armas? Neste clima, nascem e são educados. Nisto depositam todas as suas preocupações, enquanto não dão valor nenhum às outras coisas. Quem é mais forte e mais temperado para suportar tudo? Na maioria dos casos, não dispõem de vestimenta para o corpo, nenhuma proteção contra o clima eternamente frio. Ensinai-lhes a ponderação, ensinai-lhes a disciplinar seus corpos e seus corações valentes, que não conhecem prazeres, que não conhecem vida tranquila, e estaremos de volta por assim dizer, aos autênticos costumes romanos. (Sêneca, p. 87)

Na  tradição germânica, o matrimônio monogâmico e vitalício, formava a base da família e ela, por sua vez, representava o fundamento último do edifício social. O papel da mulher não pode ser ignorado. Numa sociedade em que o arrojo, a valentia, a força física e moral ocupava o primeiro lugar entre as virtudes de um homem, a parceria com uma mulher igualmente  ousada e destemida, conferia a qualquer empreendimento uma dinâmica e um ritmo todo peculiar pois, como observou Stonner,

Também nesta parceria, isto é, na construção da cultura, da etnicidade como um todo, homem e mulher atuavam juntos como camaradas. E neste sentido é significativo como se avaliam mutuamente, e qual a atitude externa e interna que cultivam um em relação ao outro. (Stonner, 1934, p. 37)

Bicentenário da Imigração - 3

Amor à natureza e ao torrão natal

Não há necessidade de encarecer que os povos da antiga Germânia, vivendo a sua história em contato  diuturno com a natureza, cultivassem com ela uma relação íntima e existencial. As decisões importantes e de interesse comum, costumavam ser  tomadas em assembleias da comunidade, da tribo ou da parentela, na sombra dos bosques, nas proximidades de fontes, de arroios ou sob a copa de carvalhos sagrados. Nesses ambientes, aconteciam também os cultos em que se veneravam as divindades personificadas em fenômenos ou entes naturais, como o sol, a lua, a mãe terra. A religião dos antigos germanos foi uma religião profundamente enraizada na natureza. Nela se venerava a terra, a água, o fogo, o sol, a lua, o dia, as estações do ano, a tempestade, a tormenta, a germinação, a fertilidade, o explodir da brotação e o fenecer da vegetação. Numa invocação anglo-saxônica, a terra é saudada como a mãe dos homens. “Glória a ti, mãe dos homens”. Tácito ao falar sobre as crenças germânicas, destacou que  a terra gerou originalmente o deus Tuisto, do qual descende Manus, o que significa homem, e este novamente gerou três filhos, que foram os ancestrais dos germanos. O culto ao sol, à lua e às estrelas foi imortalizado em imagens de ouro e, ainda hoje é lembrado, quando, no alemão, o domingo é o dia do sol –“Sontag”, a segunda-feira é o dia da lua -“Montag”, Donnerstag-dia do Trovão. Muitos outros exemplos poderiam ser enumerados.

Quando, dois mil anos mais tarde, os descendentes remotos desses povos se fixaram no sul do Brasil, trouxeram consigo, como herança preciosa, mais esta faceta dos seus ancestrais. Uma compacta floresta subtropical cobria as áreas destinadas pelo Império do Brasil, para serem povoadas  pelos imigrantes procedentes da Europa do Norte e Central. Comparadas com as florestas europeias, notava-se uma diferença flagrante. As espécies dominantes  naquelas, nessas foram substituídas por outras desconhecidas na Europa. Em vez de carvalhos, faias, abetos, tílias, plátanos, castanheiras, bordos, bétulase outras mais, as responsáveis pelo perfil da mata virgem brasileira, eram louros, cedros, cabriúvas, angicos, cangeranas, canafístulas, grápias, araucárias e outras tantas. Além das araucárias em altitudes maiores, inexistiam coníferas de importância  numa floresta em que, espécies de folhas em parte perenes se alternavam com espécies de folhas caducas. Sob as copas dos gigantes vicejava uma vegetação arbustiva  e rasteira, em muitos casos, impenetrável pela densidade, pelo emaranhado e pelos espinhos. Agarrando-se e subindo até as copas mais altas, dezenas de espécies de cipós, tornavam a penetração e o  trânsito pela floresta ainda mais desafiador. Com essas características, a primeira visão da floresta brasileira não deixou de assustar, de impressionar, ao mesmo tempo, de despertar um profundo fascínio nos filhos das florestas germânicas. Sentimentos deste tipo encontram-se registrados em relatos de viajantes e em depoimentos dos próprios colonizadores. Avé-Lallemant assim pintou a impressão que teve ao avistar a Walachei e  o Jammertal:

A visão da Walachei e do Jammertal é grandiosa. Será difícil encontrar sequências tão selvagens de mata como aquelas. É difícil localizar as áreas cultivadas no fundo escuro das gargantas. É preciso coragem para embrenhar-se no vale, antigo refúgio de índios, onças e tapires. (Cem anos de germanidade, 1924, p. 103-104)

Um outro componente que conferia àquelas matas um toque adicional de mistério foram as montanhas da região, elevando-se a altitudes de até 800 a 900 metros, inteiramente cobertas  de mata fechada. Nas encostas, formando escarpas, gargantas e peraus, cavernas, refúgios e abrigos naturais serviam, desde tempos imemoriais, de esconderijo para onças, pumas, jaguartiricas e porcos do mato. Nos galhos e nas copas das árvores, reinavam soberanos, os bugios, os micos, os coatís e uma infinidade de espécies de pássaros de todos os tamanhos e coloridos, enchendo a penumbra da mata com a  sinfonia dos seus gritos, pios, assobios e cantos.

Não demorou e os colonizadores se depararam com um inesperado fator de temor e constante sobressalto. Nos matos de toda a região, vagavam seminômades as tribos dos indígenas espoliados de suas terras. Pensando bem, pelo princípio do “ius primi possidentis”, eram eles os legítimos donos daquelas terras. Do seu ponto de vista  os imigrantes não passavam de usurpadores dos seus  domínios. De outra parte, porém, os colonos não alimentavam a mínima dúvida de que as terras que estavam ocupando, lhes foram legitimamente entregues pelas autoridades imperiais, cuja competência ninguém discutia, ou doadas, adquiridas por ocupação ou, mais tarde, por compra.

O que interessa não é a discussão em torno da legitimidade ou não-legitimidade em relação à posse daquelas terras, nem pelos imigrantes, nem pelos nativos. O importante é mostrar como a floresta que os imigrantes foram obrigados a enfrentar, oferecia  mais este complicador. Encontros diretos com os índios, com os “bugres”, como eram chamados no quotidiano da colônia, contam-se em poucas dezenas. Limitam-se a alguns raptos de crianças e mulheres, alguns assassinatos e assaltos a propriedades, seguidos de roubos de animais e produtos das roças. 

Em poucas palavras, foi esta a floresta oferecida aos imigrantes com a finalidade de transformá-la em terra arável e produtiva: uma floresta exuberante, imensa, densa, quase impenetrável, exercendo uma atração carregada de temor ao desconhecido e, ao mesmo tempo, alimentado pelo imaginário  de uma terra de promissão. A literatura regional em língua alemã, tanto na erudita, quanto na dialetal, dão conta do fato em inúmeras referências. Como amostra alguns exemplos.

Sempre que um grupo de pioneiros dava início à abertura de uma nova picada e principalmente a uma nova fronteira de colonização maior, fazia proceder o começo da obra, com um ato religioso, de preferência uma missa ou um culto quando se contava com a presença de um padre ou um pastor. O ato era realizado na sombra dos gigantes da mata, no clima místico inspirado pela penumbra e aos sons melodiosos das criaturas da floresta. O P. Ambros Schupp relata que a implantação da Colônia de Santa Cruz do Sul teve como ato inicial uma missa rezada sob uma vigorosa figueira do mato. Fato similar foi registrado  para o início da colonização de Cerro Largo e mais  tarde, Porto Novo, no oeste de Santa Catarina.

O fascínio pela mata virgem foi de tal ordem que o termo “mata virgem” – “Urwald” vinha acompanhado por um apelo irresistível. Do quotidiano dos imigrantes faziam parte  termos como “colono da mata virgem”, “pioneiro da mata virgem”. “gigantes da mata virgem”, (Urwaldbauer, Urwaldpionier, Urwaldboden, Urwaldriese ...). Nos relatos históricos sobre a imigração e colonização alemã no Sul do Brasil,  fala-se até numa relação quase doentia com a mata virgem, que fazia com que não poucos fossem incapazes de viver longe dela. Encontravam-se em constante migração para novas fronteiras de colonização. Falava-se nesses casos da “doença da mata virgem” – “Urwaldkrankheit”. 
 
Numa conversa sobre os novos assentamentos no rio Uruguai, Josefine Wirsch  confirma esse espírito da boca de um colono de meia idade: “Se minha mulher e meus filhos estivessem de acordo”, afirmou com emoção, “como gostaria de novamente participar na derrubada da floresta virgem e recomeçar tudo do começo”.

“Como pode fazer essa afirmação”, ousei interromper, “Como é possível  o senhor desejar tal coisa”! O senhor com a sua rica propriedade, na qual tudo está organizado; com sua bela criação de animais e a bela terra, tudo resultado do seu trabalho”.

“Aí está e exatamente a questão” e pôs-se em pé e cruzou os braços. “Aqui tudo está feito, tudo arável. Isso já não se chama mais um trabalho de verdade. A senhora não se pode imaginar que disposição resulta do enfrentamento com a floresta virgem, arrancar dele pedaço por pedaço – Força contra força”!

Tive que admirar esse homem na sua postura – um homem robusto, os músculos temperados no enfrentamento com a natureza – num embate do qual saíra vitorioso e comecei a entender como é possível que, num trabalho sobre humano desses se esconda um fascínio que não deixa de cativar as pessoas.

A mesma opinião ouvi também de um dos sacerdotes pioneiros da florestas virgens. Num encontro do idoso senhor, referi-me à conversa com o referido colono. O idoso padre jesuíta, um figura veneranda com um comprida barba branca, falou: “Veja senhora, é o que costumo dizer, a floresta não nos larga. Como tenho saudades das minhas picadas na floresta virgem, dos meus pioneiros na floresta virgem, das minhas cavalgadas pela floresta virgem”! Falou essas palavras num tom de nostalgia. Durante décadas exercera a pastoral na região das florestas no Rio Grande do Sul e agora goza do merecido descanso numa simpática e bela povoação.

Parece que não há necessidade de insistir no fato de que os imigrantes procedentes da Europa Central e do Norte, apesar da distância geográfica e cronológica de muitos séculos que os separava das raízes, continuaram sendo, na sua essência, uma estirpe humana intimamente vinculada à floresta e alimentando-se de suas dádivas e valendo-se dos seus estímulos e símbolos. Sob a inspiração do entorno natural em que a floresta representava a realidade mais marcante, construíram, também em terras brasileiras,  todo um  imaginário e o transformaram num rico referencial simbólico de metáforas profundas, envolvendo o homem, a floresta e seus habitantes. 

A literatura histórica está repleta de exemplos que comprovam o que acabamos de afirmar. Enumera-las, mesmo em parte, extrapola os objetivos deste trabalho. 

Ainda hoje, é comum escutarem-se afirmações  como esta, entre os descendentes dos imigrantes europeus no sul do Brasil: “resistentes às intempéries” – “Wetterfest”; “incorruptível como o cerne da cabriúva”; “sólido como a canafístula”; “personalidade de um pinheiro”... Embora o entorno geográfico seja outro, assim como os referenciais simbólicos, o significado permanece o mesmo, apesar do tempo e do espaço que separam os ancestrais da Europa Central dos seus descendentes remotos no sul do Brasil. A história foi passando, mas não esquecida.

Bicentenário da Imigração - 2

A Gênese da Germanidade

Na sombra do carvalho

O Pe. Balduino Rambo definiu numa só frase a relação existencial  do homem com o chão em que vive e seu pertencimento ontológico a ele: “O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337). Sem tomar em consideração as circunstâncias físicas e geográficas, é impossível entender as histórias dos povos e a gênese das suas identidades étnicas. Na reflexão a que damos o sub título “Na sombra do Carvalho”, tentamos mostrar como essa afirmação encontra a sua confirmação na tradição cultural vivida pelos imigrantes alemães e seus descendentes no sul do Brasil. Desde a remota pré-História os povos germânicos dos quais descendem os “alemães” vindos para o Brasil, viveram e consolidaram suas tradições em meio às florestas que cobriam a Europa central e do norte. Pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, o carvalho tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra de carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, celebravam-se as efemérides importantes das comunidades. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os germanos de que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor, e em massa, converteram-se ao cristianismo. 

A “Sombra do Carvalho” como metáfora cobrindo  vastas regiões da Europa e, pela emigração avançou sobre países em outros continentes, também sobre o Brasil, a partir do sul. Onde quer que a “sombra do Carvalho” convida para a reflexão, estão presentes também as características do “rebento do carvalho”, transplantado para o Brasil: O amor à natureza e à querência natal – a Heimat; a paixão pela floresta virgem como cenário de múltiplos simbolismos; a família como núcleo da comunidade e esta como base da sociedade mais ampla; o papel da mulher na sociedade germânica; a lealdade aos chefes; o fascínio pelas personalidades fortes; a retidão de caráter; a religiosidade.

Floresta e germanidade
Depois desse panorama introdutório passamos a concentrar a atenção no cenário no qual,  nos últimos dez mil anos, consolidou-se a gênese de uma estirpe humana, de uma civilização que terminou por projetar a sombra da sua influência sobre vastas áreas, também fora da Europa.

Em linhas gerais essa paisagem de florestas estendia-se entre o Reno, os Alpes, o Mar do Norte, o Báltico e no leste até as imensas estepes da Rússia. Uma poderosa floresta mista na qual se alternavam os gigantes de folhas caducas com outros gigantes de agulhas perenes. Abetos, álamos, pinheiros, bordos, tílias, castanheiras, plátanos e o soberano de todos, o carvalho com suas variedades, reinavam nessas florestas. 

Pois foi nas entranhas das florestas da Germânia que nos últimos dez mil anos dezenas de estirpes, tribos e povos, consolidaram as bases de uma civilização rica, vigorosa e em extremo dinâmica. E nesta história o carvalho, a mais vigorosa, a mais frondosa, a mais duradoura e a mais longeva das espécies daquelas florestas, transformou-se no símbolo das culturas em formação. 

Na antiga mitologia germânica, o deus da guerra está associado ao carvalho. Quando no século XIX, as ondas nacionalistas e restauracionistas que seguiram à derrocada do império napoleônico, buscavam voltar aos tempos ideais anteriores à Revolução Francesa, o carvalho e Thor retornaram. Neles se viam as raízes do antigo, da fidelidade, do duradouro. Nas pinturas de Caspar Friedrich (1774-1840), o maior expoente do romantismo alemão na pintura, o carvalho, sempre de novo, vai aparecer ao lados dos túmulos de heróis ou junto a mosteiros. Nos heróis e nos mosteiros, os carvalhos, cujos troncos estão repletos de  nós e nódulos, que não se vergam e cujas raízes remontam à longa ancestralidade, são testemunhos da fidelidade. A durabilidade de suas raízes, aliás, é metáfora para todo aquele que não nega as suas origens e que lhes é fiel. (Dreher, in o Rebento do Carvalho, 2002, p. 3)

Fica mais do que claro nesta citação de Martin Dreher como nas entranhas das florestas da Germânia, uma única espécie de árvore, o carvalho, reuniu em si, como que  numa síntese, o significado, a essência, os valores de uma história cultural. Na sombra dos carvalhos reuniam-se os guerreiros germânicos para reafirmarem perante si mesmos, perante os companheiros, perante o seu povo e, principalmente, perante Thor, o compromisso, o juramento de fidelidade às divindades, ao povo, à tradição, às raízes, com todos os seus valores. No decurso de séculos e milênios consolidou-se  na sombra dos carvalhos da Germânia a linha mestra que até hoje marca  o perfil das instituições que, de alguma maneira, são suas herdeiras: as famílias reunidas em comunidades, em estirpes e em parentelas. Nesta organização de base resolviam-se  todas as questões de interesse comum. Os conselhos tribais julgavam os desvios de comportamento e os crimes que afetavam a harmonia interna ou abalavam as estruturas comunais, ou simplesmente as afrontava. Aplicavam-se penas aos infratores inclusive a pena de morte nos casos mais graves. Não importava se era o todo da  assembleia comunal que decidia ou se a decisão era confiada aos anciãos, aos conselhos escolhidos pelos membros da comunidade, da tribo ou da estirpe. Todas essas modalidades de organização tinham na sua base, na sua essência, a mesma concepção organizacional da sociedade: a família monogâmica congregada em torno de um conjunto de valores sociais, éticos e religiosos, aceitos e defendidos como pressupostos para o bem estar do indivíduo e da coletividade. Ao grupo local cabia zelar pela observância das regras, dos dispositivos e instrumentos que a tradição e a longa prática haviam consagrado. 

Vale a pena examinar mais a fundo alguns dos componentes mais significativos que moldaram o caráter histórico e cultural dos povos da antiga Germânia. Muitos deles entraram como traços constitutivos da cultura ocidental amalgamados com a herança grega, romana e cristã. É notável como, em momentos históricos decisivos, em que os herdeiros  remotos dos antepassados germânicos participaram ou foram os protagonistas principais, muitos desses traços marcantes afloram, ou irrompem com todo o seu vigor primigênio. Momentos como a invasão dos bárbaros no Império Romano, as expedições dos Normandos e Vickings, a conquista das Américas não deixam dúvidas. A colonização por povoamento das mesmas Américas e parcelas de outros continentes, no decorrer dos últimos 200 anos, o arrojo e a ousadia dos navegadores e exploradores, o espírito com que os missionários se entregaram de corpo e alma às missões  em todos os continentes, permitem ler nas linhas e perceber nas entrelinhas, os mesmos elementos dinâmicos. Tentamos apontar os mais significativos.

Bicentenário da Imigração - 1

Introdução

No dia 25 de julho de 2024 comemora-se a data do bicentenário da imigração alemã no Brasil. Entre as muitas modalidades para lembrar a efeméride, constam publicações referentes à essa história. Como  nos últimos 30 anos dediquei grande parte do meu tempo, das minhas pesquisas e publicações, com foco nos diversos aspectos da inserção dos imigrantes alemães e seus descendentes no todo da nacionalidade brasileira, decidi-me  oferecer aspectos significativos dessa trajetória ao público interessado. A grande maioria das matérias da série que segue, foi publicada em revistas especializadas de dentro e fora do País. Pelas suas características cabe à  série o título: Flagrantes dos 200 anos da Imigração Alemã no Brasil. Começa com uma reflexão sobre a “Gênese da Germanidade e a comparação da presença alemã na América Latina, com ênfase para a Argentina, o Chile e o Brasil, desde o período em que esses países ainda eram colônias da Espanha e Portugal e depois de se tornarem independentes. O objetivo central, porém, é a imigração alemã no Brasil, com destaque para lances de maior significado nesta história que completa  dois séculos.

A presença alemã nos diversos países da América Latina seguiu em todos eles um modelo muito parecido. No período colonial dos primeiros três séculos, os encontramos integrando a tripulação dos navios espanhóis e portugueses como peritos em navegação, como canhoneiros, como escrivães de bordo, integrantes dos batalhões de conquista, etc. Logo depois da consolidação das primeiras  praças de comércio entram em cena comerciantes alemães, muitos deles a serviço de importantes casas como os Welser e Fugger, da Companhia das Índias, e outras. Nestes casos combinava-se, não raro, um misto de espírito comercial com o aventureiro que fez com que os personagens mais conhecidos tenham sido representantes paradigmáticos da mentalidade da época, na prática comercial, na implantação e consolidação dos empreendimentos mais diversos e na colocação das bases que posteriormente orientaram  a gênese, a dinâmica e a evolução da história da América Latina. 

A conquista da América Latina pelos portugueses e principalmente pelos espanhóis não pode ser entendida sem que se incorpore nela a conquista espiritual. O espírito que animava a conquista pelas armas, a conquista pelo controle das riquezas do continente, a conquista pela efetiva e definitiva presença ibérica, a conquista pelo povoamento, teve como alma, como justificativa, como uma das formas de legitimação, a conquista espiritual. Foi nessa ação que entraram os missionários das mais diversas ordens religiosas: franciscanos, dominicanos, mercedários e principalmente jesuítas. O geral da ordem dos jesuítas criara em 1607 a província do Paraguai, encarregando-a da “Conquista Espiritual”, como o Pe. Ruiz de Montoya classificou a missão da ordem na América Latina. Com a revogação da proibição imperial que impdedia a entrada de estrangeiros nas colônias espanholas, elevou-se consideravelmente o número de jesuítas de língua alemã  entre os missionários em atividade nas colônias do Prata e demais regiões do continente. Aos jesuítas alemães coube de modo especial a transferência de tecnologias e de conhecimentos artísticos de toda espécie trazidos da Europa. Otto Quelle, citado em “Die  Deutschen in Lateinamerika – Schicksal und Leistung, p. 46, resumiu numa frase a contribuição dos jesuítas alemães: “Fazendo-se um balanço da atividade desses missionários alemães em tantos lugares na América Latina no período que vai de 1660 – 1770, estamos diante da maior obra cultural realizada por alemães na América Latina, nos séculos XVII e XVIII”. (Fröschle, 1984,  p. 46)


Os alemães, além de participarem na exploração dos caminhos marítimos e terrestres de acesso a América Latina  e no interior de seus territórios, além de integrarem as equipes de missionários, principalmente jesuítas; além de contribuírem ativamente na implantação e na consolidação e ampliação do comércio; além de desempenharem um papel fundamental na pesquisa pioneira dos recursos naturais minerais, vegetais e animais; além de contribuírem decisivamente na transferência de todo o tipo de tecnologias trazidas da Europa para as colônias espanholas e portuguesas; além de tudo isso, os alemães  tiveram um papel de fundamental importância na história da vida pública das colônias e mais tarde dos países da América Latina. A sua presença e a participação foi determinante e em muitos casos decisiva na condução político-administrativa de vários dos mais importantes países do continente. Os casos mais exemplares encontramos no Brasil, na Argentina e no Chile.  Há, porém, um setor da história pública dos países latino-americanos, e, novamente com destaque para o Chile, a Argentina e o Brasil, em que a contribuição alemã não pode ser ignorada. Referimo-nos aos  alemães incorporados como soldados e principalmente como oficiais com patentes superiores nas tropas destes países. A organização, as táticas militares e principalmente o princípio da disciplina teve uma forte inspiração no modelo prussiano. Figuras proeminentes da história militar dos três países acima mencionados, foram oficiais alemães contratados para executarem  tarefas específicas ou foram oficiais que fizeram carreira nos vários exércitos, conquistando os postos mais altos na hierarquia. Exemplos concretos serão mencionados quando nos ocuparmos com cada um dos países onde a presença militar alemã foi mais visível e mais permanente. 

Durante o período colonial os alemães não chegaram a constituir grupos maiores estáveis muito menos comunidades étnicas. Muitos deles permaneceram definitivamente no continente, tiveram filhos com portuguesas, espanholas, crioulas, mestiças e com frequência com índias. Seus nomes sofreram corruptelas nos registros ou foram definitivamente substituídos por nomes espanhóis ou portugueses. Desta forma suas obras, seus feitos e suas contribuições relacionam-se mais com os indivíduos que as desenvolveram a convite de governos coloniais ou por conta própria, do que com as organizações ou centros de pesquisa que por acaso fundaram. 

Na maioria das vezes viviam com uma ou mais índias. Assim, conquistadores e conquistados amalgamaram-se num único povo. Também os descendentes dos alemães diluíram-se nessa raça mestiça europeia-índia. Na maioria dos casos seus nomes sofreram corruptelas pelos escrivães espanhóis ou hispanizados pelos próprios portadores”.  Depois da renúncia de Carlos V somente alemães esparsos chegaram até a América Espanhola. Desta forma o elemento alemão representa apenas uma gota na mistura de sangue da qual procedeu o “crioulo”. (Fröschle, 1984, p. 45.)

Nas páginas que seguem  tentaremos caracterizar a presença alemã no Chile na Argentina e no Brasil  durante o período colonial desses países. Mas como pano de fundo é preciso traçar o perfil desses imigrantes e em que circunstâncias históricas ele foi moldado.