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Da Enxada à Cátedra [ 79 ]

Coordenador do PPGH

Em meados de 1994 aconteceu uma inesperada reviravolta na minha trajetória acadêmica. Fui chamado pelo reitor da universidade, Pe. Aloísio Bohnen. Ao entrar no seu gabinete recebeu-me com o sorriso meio maroto que lhe era peculiar em encontros informais. Pediu que me sentasse, empurrou um envelope timbrado da universidade em minha direção e pediu que o abrisse e lesse o conteúdo em forma de uma portaria. Para meu susto e quase espanto flagrei-me nomeado para assumir a coordenação do Programa de Pós-Graduação em História, substituindo a Profa. Beatriz Franzen. Acontece que a professora que fora junto com o Pe. Ignácio Schmitz a idealizadora daquele PPGH não contava com título de pós-graduação stricto sensu. Como o PPGH estava apenas autorizado a funcionar pela CAPES, foi preciso providenciar o credenciamento. Pelo fato de a coordenadora carecer tanto de mestrado quanto de doutorado as condições para o credenciamento poderiam complicar-se quando fosse entregue à CAPES o relatório dos emissários daquela instância anunciados para o começo do segundo semestre daquele ano. O Reitor, no melhor estilo jesuítico, encarregou-me da missão de consolidar o Pós-Graduação, sem perguntar se estava de acordo ou não. Pediu ainda que comunicasse à coordenadora a sua substituição e o pedido que fosse encontrar-se com o ele. Ela não falou uma palavra, mas percebi que levou um choque. Naquele encontro dela com o Reitor, resultou a decisão de que a universidade bancaria as despesas para que ela se doutorasse em História pela universidade de Lisboa. E, de fato, ela conquistou com o brilhantismo que lhe era próprio, esse título para depois retornar ao PPGH e implantar e coordenar um Núcleo de Estudos Luso-Brasileiros ao modelo da Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros, além de continuar ministrando seminários e orientando mestrandos e doutorandos

A primeira tarefa consistiu em preparar a visita da profa. Campos da UNESPE de Franca, destacada pela CAPES, para examinar as condições para um possível credenciamento. O maior problema foi a definição da “Área de Concentração”. A proposta falava em “Estudos IberoAmericanos” posta em questão pela visitadora. Depois de argumentos a favor da nossa parte e contra da parte da visitadora, propus como saída conciliatória a denominação de “Estudos LatinoAmericanos”. A sugestão foi aceita e os demais ajustes solicitados foram feitos sem maiores tropeços e o prof. Werner Altmann, especialista nessa área da história, redigiu o arrazoado que serviu de suporte teórico ao documento envidado à CAPES. Não demorou muito e veio o credenciamento tão esperado. O primeiro programa de pós-graduação “stricto sensu” tornara-se realidade na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Pode alguém perguntar porque o primeiro não foi criado em outra área da universidade. A reposta é simples e técnica. Na década de 1980 quando foi solicitada a autorização para o funcionamento do PPGH os mestres e doutores não passavam de uma minoria nos diversos departamentos e, em não poucos inexistentes. Na Unisinos o curso de História foi o único que contava com um número mínimo para arriscar o salto para a pós-graduação stricto sensu. E não se esqueça o detalhe que na verdade o Pe. Schmitz e o prof. Rui Ruben Ruschel eram os únicos portadores do título de doutor e livre-docente específicos em História. Eu próprio contava com o título de doutor em Filosofia e livre docente em Antropologia, além de um estágio de pós doutoramento em Antropologia na Université V, René Descartes em Paris.

Depois da visita da representante da CAPES seguiu a elaboração do projeto do Programa enviado para a apreciação daquele órgão em Brasília. Não demorou veio a confirmação do credenciamento no nível de mestrado. Com isso os mestrandos que haviam concluído os créditos exigidos e aprovadas as dissertações foram submetidos a bancas de avaliação e seus diplomas de mestres em história devidamente validados. Vale destacar que Maria Cristina Bohn Martins e Eliane Deckmann Fleck podem-se orgulhar de terem sido as primeiras mestras do PPGH da Unisinos.

Com o credenciamento e os primeiros mestres devidamente com os diplomas na mão tratei de convencer o Reitor Pe. Aloísio Bohnen e a pró reitora de Ensino e Pesquisa Emi Maria Santini Saft a dar início a elaboração do projeto do doutorado. O reitor apoiou de saída a ideia. Na pró reitoria percebi uma tal ou qual dúvida da oportunidade para apresentar naquele momento, logo depois do credenciamento do mestrado, partir para o nível de doutorado. De outras autoridades acadêmicas de segundo escalão tive que ouvir, sem meias palavras, que não passava de uma temeridade partir logo para o doutorado. Com a certeza do apoio do reitor passei grande parte das férias de 1995, alinhavando um esboço para o doutorado. Com ele na mão fui procurar ainda nas férias, o reitor na residência dos jesuítas. Depois de detalhar para ele as grandes linhas a serem propostas reafirmou sua satisfação que o primeiro doutorado da universidade estava em condições de se tornar realidade. Com a volta às atividades acadêmicas depois das férias o projeto foi analisado minuciosamente pelo colegiado do PPGH, formulado numa proposta para ser avaliada pelo Conselho Universitário. Este momento ocorreu numa das reuniões da instância deliberativa maior da universidade numa das sessões do primeiro semestre daquele ano. Fui obrigado a recorrer a uma série de malabarismos para deixar claro o que se pretendia em termos de formação acadêmica e de pesquisa com o projeto do doutorado em História. Questionamentos de diretores de centros pondo em dúvida a oportunidade e insinuando precipitação no implantar, argumentando com o corpo docente qualificado reduzido, critérios de seleção de docentes; acolhimento de candidatos de áreas profissionais portadores de bacharelado e ou licenciatura que não procedessem especificamente do curso de história; linhas de pesquisas, área de concentração e outros mais não impediram que o projeto fosse aprovado na mais alta instância acadêmica da universidade com a recomendação de submetê-lo às instâncias pertinentes em Brasília. Sem perda de tempo o projeto seguiu para a análise da CAPES. Depois de em torno de dois meses veio a resposta pedindo mais uma série de ajustes antes da aprovação por aquela instância maior do Ministério da Educação. A notícia me foi comunicada pela pró reitora com visível ar de quem dizia nas entrelinhas: “não avisei que era prematuro?”. Não me lembro se fiz alguma comentário. Só sei que, com a colaboração dos colegas e posterior crivo do colegiado do PPGH, a versão atendendo às exigências da CAPES foi reencaminhada para aquela agência. Depois de alguma demora fui informado de que deveria viajar a Brasília a fim de me encontrar com o prof. Vasquez, responsável pelo parecer de aprovação ou não, para tirar as últimas dúvidas com ele. Mais uma breve demora e aprovação do doutorado nos foi comunicada. Não perdemos tempo. Junto com as instâncias internas do PPGH foi feita a chamada para a seleção dos primeiros candidatos ao doutorado em História e o programa pioneiro nesse nível da Unisinos. E, para encurtar a história, se não me falha a memória a profa. Doris Fernandes defendeu a primeira tese de doutorado da Unisinos em 1999.

Somada à rotina do bom andamento do programa em si e no seu diário, cabia-me participar da reunião bi anual de todos os coordenadores dos programas de História em andamento no País, coordenada pela ANPUH, com a finalidade de garantir a unidade mínima entre todos os programas. Devo a essas reuniões a ocasião para conhecer a realidade dos pós de História de Fortaleza, Recife, Bahia, Rio de Janeiro, Niterói, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Brasília, Goiânia, Cuiabá e, por fim Maringá. Não vou entrar em detalhes do que foi tratado em cada um desses encontros. Só sei que me proporcionou uma ideia abrangente da direção em que sopravam os ventos do estudo da História em nível de pós graduação “stricto sensu” nas universidades públicas e privadas em todo o País e, ao mesmo tempo, colher inspirações nelas para aperfeiçoar o programa da Unisinos, além de torna-lo conhecido e reconhecido pelo Brasil afora.

Aqui parece o momento para chamar a atenção para uma característica que conferia ao PPGH da Unisinos um caráter peculiar, isto é, aceitar mestrandos e doutorandos, com bacharelado e ou licenciatura procedentes dos mais diversos cursos de graduação tanto da área das humanidades, letras e artes, quanto de áreas técnicas como de engenharia, arquitetura, direito e outras mais. Essa característica que hoje causa arrepios aos responsáveis pelo arcabouço acadêmica das universidades brasileiras, fundamentava-se no princípio da concepção interdisciplinar como método para construir conhecimento. Em outras palavras. As mais diferentes áreas do conhecimento não passam de caminhos que levam a conhecimentos, mutuamente complementares e convergentes. Assim conquistaram o título de mestrado no PPGH em causa, formados em arquitetura, sociologia, letras, direito, assistência social e outros mais. Essa experiência estimulou a concepção de um Pós Graduação de Filosofia e Ciências Humanas abrangendo a História, a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, a Política e a Pedagogia. A profa. Beatriz Franzen e eu passamos um bocado de horas montando o projeto. O esboço foi submetido à análise do colegiado e depois de aperfeiçoado com as sugestões colhidas submetido à apreciação do Conselho do Centro de Ciências Humanas. Naquela instância foi declarado inviável e por isso morreu na casca. Parece oportuno lembrar que na UFRGS o primeiro programa de pós graduação na área de Ciências Humanas na década de 1970 tinha esse feitio. Reunia a Antropologia, a Política e a Sociologia num único programa. Tive a oportunidade de, com antropólogo participar do Colegiado que o regia, em parceria com representantes da Sociologia e Política. Com o andar dos anos esse programa interdisciplinar também foi fragmentado, resultando em três programas de pós-graduação independentes. Mas, voltando à Unisinos. Para falar a verdade os responsáveis de cada uma das áreas em pauta sonhavam cada qual com um projeto de pós graduação próprio. Com isso, salvo melhor juízo, perdeu-se a ocasião de por em andamento uma pós graduação interdisciplinar administrativa e academicamente mais polivalente, levando a uma formação acadêmica voltada para uma perspectiva ampla e complementar da Filosofia e Ciências humanas, além de um suporte administrativo mais enxuto. Com andar dos anos as coordenações que me sucederam a partir de 2002 e o corpo docente aumentado e renovado, o próprio PPGH encolheu-se sobre si mesmo admitindo exclusivamente candidatos formados em algum curso de história. O resultado está aí. As pós graduações multiplicaram-se na universidade. Multiplicaram-se também os custos administrativos e acadêmicos que hoje 25 anos depois beiram à insustentabilidade além da fragmentação dos resultados nos muitos programas de pós graduação isolados em seus casulos herméticos e irredutíveis. No máximo que conseguem formar são mestres e doutores de uma limitação de visão deploráveis, presas fáceis do Marxismo combinado com o Gramscismo, a Escola de Frankfurt e por aí vai. Profissionalmente não passam de peritos ou “Kenner”, e jamais sábios ou “Weise”, como diriam os alemães. Os docentes e formandos em História ocupam-se com os acontecimentos transitórios e não se dão conta que o que de fato é determinante é o perene que perpassa a história do homem desde o começo que se perde no crepúsculo do tempo. Não se doutoram mais juristas mas manipuladores mais ou menos competentes das leis ou, pior, rábulas de porta de cadeia ou porta de delegacia. Um fenômeno parecido acontece em todas as demais áreas do conhecimento. Para maiores informações remeto às reflexões mais exaustivas mais acima no contexto da análise do “temporal desencadeado com entrada do marxismo, do gramscismo, da escola de Frankfurt, da Teologia da Libertação, da Pedagogia do Oprimido, Piaget, Chomsky, além de outros fatores complementares.

Voltando agora à rotina da coordenação destaco a preocupação e o esforço de ampliar e qualificar o corpo docente do Programa. Até 2002, quando passei a coordenação para o prof. Werner Altmann, foram incorporadas as doutoras em História Ieda Gutfreind e Heloísa Reichel, aposentadas da UFRGS, Paula Caleffi, Loiva Otero, Martin Dreher e as recém doutoradas pela PURGS Eliane Dekmann Fleck, Maria Cristina Bohn Martins, Marcos Jussto Tramontini; pela URFRGS Eloisa Capovilla Luz Ramos, Marlusa Harres. Como se pode ver ao entregar a coordenação do corpo docente o Programa correspondia plenamente às exigências postas pela CAPES e demais instâncias do Ministério da Educação.

Enquanto redigia as presentes memórias, 20 anos após passar o bastão da coordenação do PPGH para outras mãos, fui surpreendido com a notícia de que nova administração da Unisinos resolvera encerrar, melhor, fechar o PPGH e outros pós graduações sricto senso alegando insustentabilidade financeira. Recebi a notícia com a sensação de um soco no estômago. Não me sinto com vontade de opinar sobre o significado dessa decisão que sugere que no fundo, no fundo, muitas, não digo todas as universidades abdicaram do papel de formar “sábios Weise”, diriam os alemães, para assumir a formação em série, como que em esteiras de montagem, de “peritos – Kenner”, recorrendo novamente à classificação alemã, para atender o mercado de trabalho imediato. Sonhe-se nesse modelo de formação com produção de conhecimento de alto nível e oferecimento ao mercado tecnologias de ponta.

Da Enxada à Cátedra [ 78 ]

A Teologia da Libertação

Acabamos de mostrar como o Marxismo foi minando sorrateiramente, via AP, as organizações católicas, de modo especial aquelas que congregavam as diversas classes de jovens estudantes e outras. No decorrer da década de 1960 e 1970 os integrantes das mais diversas modalidade de AP dos estudantes graduaram-se em cursos superiores, em pós graduações no nível de mestrado e doutorado dentro e fora do Brasil. Fascinados pelo métodos de domínio da opinião pública pela Hegemonia Ideológica de Gramsci, somada à estratégia da Indústria Cultural da Escola de Frankfurt, tendo como pano de fundo o Marxismo, chegou o momento de perguntar: E, como essa turbulência toda repercutiu sobre a Igreja Católica?.

Para entender como a Igreja Católica foi afetada pela turbulência que se abateu sobre a história da humanidade a partir de 1960, pressupõe-se ter uma noção das orientações doutrinárias, disciplinares e pastorais constantes nas conclusões do Concílio Vaticano II – 1962- 1965 - convocado por João XXIII e concluído por Paulo VI. Dois pressupostos têm que ser tomados em conta para entender o caminho que a Igreja pós conciliar começou a por em prática no sentido de se adaptar aos novos tempos. Em primeiro lugar é preciso deixar claro que os padres conciliares não puseram em questão os fundamentos dogmáticos vigentes até então. Em princípio não foi um concílio convocado para rever questões doutrinárias, porém, para encontrar um caminho para uma estratégia pastoral ajustada às novas circunstâncias. As decisões conciliares prometiam uma “nova primavera” para o Catolicismo superando o risco de estagnação ao insistir nas práticas pastorais e litúrgicas próprias do período da Restauração, entre 1850 e 1960. Na missa, administração dos sacramento e demais atos litúrgicos o latim foi substituído pelas línguas dos respectivos povos; a celebração da missa com o celebrante de costas para o povo deu lugar a altares que invertiam essa posição; a redução dos sacerdotes ao estado laico foi flexibilizada; a participação ativa de leigos nos atos litúrgicos, como na celebração da eucaristia, e outros sacramentos foi ampliada; os trajes clericais e os hábitos das ordens e congregações religiosas deram lugar a modelos mais próximos do mundo civil; foi retomado o diaconato exercido por leigos inclusive casados, além de outras aberturas menos visíveis. Com essas medidas de acomodação pastoral aos novos tempos, previa-se, com boas razões uma nova “primavera” para a Igreja. Ordens e congregações religiosas adaptaram-se às determinações do Concílio.

Foi então que repercutiu, de maneira mais perceptível sobre o mundo ocidental, a tormenta dos movimentos de rebeldia de 1968, contra o status quo da cultura, seus valores e sua forma de ver e interpretar a história e as civilizações que se sucederam durante a história da humanidade. Com rara precisão o filósofo Alexandro S. Caldera resumiu os contornos desse fenômeno:

Se as propostas explícitas da pós-modernidade na arte, na literatura, no cinema, na linguagem, permanecem na fragmentação dos modelos e na desconstrução dos paradigmas, fenômenos que estamos por demais presenciando desde o surrealismo, o dadaísmo, Picasso, etc., a realidade nos está conduzindo a formas históricas que não previvem fragmentadas, senão que se reagrupam em novos modelos globalizantes que se confeccionam nos centros de poder mundial e que tendem a uma uniformidade planetária”. (Caldera, 2004, p. 92)

Assim está posto o panorama em que a Igreja Católica procurou e ainda está à procura de uma forma, para enfrentar os desafios pastorais. Sucederam-se ensaios e mais ensaios alternando com outros tantos erros na prática pastoral deixando o povo católico confuso e atordoado. A Inculturação” como método de fazer a catolicidade dialogar com as mais diversas tradições histórico-culturais terminou em inúmeros casos desfigurando ao irreconhecível a imagem da Igreja. Como já lembramos mais acima a matriz marxista, mais exatamente a AP minou pela base as organizações católicas principalmente da juventude a partir do final da década de 1950. Simultaneamente soma-se a essa dinâmica o Gramscismo, a Escola de Frankfurt, sem falar de toda uma geração de pensadores, sociólogos, historiadores, antropólogos, economistas, artistas e por aí vai. A Igreja Católica que sonhava coma uma “nova primavera” como resultado das conclusões do Concílio Vaticano II implementadas pela estratégia de imersão, ou inculturação nas realidades culturais nas suas incontáveis formas, terminou sacudida por um temporal de proporções apocalípticas.

Valendo-se do método da “Inculturação” fez com os responsáveis pela base da doutrinação católica como os párocos e seus auxiliares, catequistas, formadores da nova geração de sacerdotes e religiosos, entrassem em contato diuturno com as realidades sociais, políticas, econômicas e religiosas da grande massa popular. Até aqui tudo bem. As orientações do concílio vaticano II para a atividade pastoral em todos os níveis sociais, pressupõe logicamente tomar contato direto com as realidades humanas em que é posta em prática. A nova Igreja desenhada pelo Concílio pressupõe o abandono das práticas tradicionais da imposição de cima para baixo da doutrina, das práticas litúrgicas, dos preceitos canônicos. Em vez disso manda que os agentes pastorais: catequistas, diáconos, sacerdotes e bispos procurem, não apenas familiarizar-se, mas imergir, por assim dizer, na mentalidade do povo que lhes é confiado. Em outras palavras essa imersão ou contato e convivência da realidade concreta deverá ditar os parâmetros da ação pastoral. Não passa do óbvio que essa guinada histórica em busca de “nova era para o catolicismo” o latim como língua litúrgica universal desse lugar às milhares de idiomas falados pelas inúmeras culturas espalhadas pelo mundo. Mais acima já lembrei algumas outras adaptações mais superficiais como a substituição dos hábitos dos sacerdotes e religiosos e religiosas em geral, o celebrante rezando a missa num altar virado para o público, a participação dos leigos inclusive mulheres nas celebrações litúrgicas e outros mais. Tudo Bem. O discurso “ex Cátedra” ou o discurso que reduzia o universo dos fiéis católicos a um rebanho sem voz própria, sem autonomia e sem escolha a não ser enquadrar-se nos exageros, em muitos casos levados ao extremo pelos agentes pastorais, exigia retoques, senão recursos cirúrgicos mais ou menos drásticos. Mas, pelo que parece os remédios propostos pela interpretação analítica e antropológica dos agentes pastorais “imersos” nas realidades concretas das classes menos favorecidas, maioria numérica na pirâmide social, exagerou na dose, de modo especifico na América Latina. Obedecendo ao bom tom do discurso politicamente correto afinado com a Teologia da Libertação, enveredaram para um descaminho no mínimo preocupante, senão em colisão frontal com o próprio cerne doutrinário da Igreja Católica.

O caminho, melhor a referência, a que recorreu a Teologia da Libertação para lidar com o problema e de alguma maneira dar voz às massas populares consideradas “oprimidas”, baseou-se na matriz marxista. O papa Bento XVI resumiu em poucos parágrafos os desvios doutrinários em que a Teologia da Libertação incorreu. Começa subvertendo a palavra “Salvação” por “Libertação” o que transformou o esforço para solução dos problemas sociais numa questão meramente política em vez de salvacionista no sentido doutrinário da Igreja. Para tanto se faz necessário uma mudança radical das estruturas em vigor, de modo especial na América Latina consideradas como “pecado” responsável de todos os males que acometem os oprimidos. Sem muito esforço percebe-se nesse modo avaliar os problemas sociais o dedo dos filósofos da Escola de Frankfurt, de matriz marxista, fazendo valer a “Teoria Crítica” implementada pela “Indústria Cultura” a serviço da demolição dos valores da Cultura Ocidental. Não se trata, portanto de uma luta religiosa, mas de uma luta política que precisa ser enfrentada e resolvida em primeiro lugar no nível político. A Salvação não passa de um projeto político para o qual se vale dos instrumentos oferecidos pelo marxismo. Como tal o homem vem a ser seu próprio salvador e dispensa a redenção conquistada por Cristo com sua paixão e morte na cruz. Com isso a espiritualidade católica perde seu sentido assim como os sacramentos, os mandamentos, enfim todo arcabouço doutrinário da Igreja levando a uma radical subversão do cristianismo. Como se pode perceber estamos frente a uma nova forma de compreensão do cristianismo como um todo. Os teólogos da Teologia da Libertação continuam valendo-se da linguagem teológica, ascética e litúrgica da Igreja mascarando, entretanto, a distorção pela raiz dos conceitos consagrados por séculos. Essa estratégia ilude não poucos católicos achando que a Teologia da Libertação de fato leva a realização do viés imaginado pela nova pastoral pelo Concílio Vaticano II, quando na verdade não passa de uma heresia passível de excomunhão automática conforme o Decreto de Pio XII de primeiro de junho de 1949. Em outras palavras os defensores da Teologia da Libertação não passam de “lobos em pele de ovelha”. Quem interpreta os acontecimentos históricos e cria e põe em prática os remédios adequados para a solução das massas oprimidas vem a ser a “comunidade”. É dessa forma que o povo se transforma numa antítese à hierarquia que passa a ser degradada à condição de opressora. O magistério da Igreja que defende a existência de valores permanentes contradiz a história. No entendimento da Teologia da Libertação o conceito de Deus e da Revelação são absorvidos pela história. Na prática a verdade realiza-se na história e na práxis. A ação é a verdade e, portanto, a única e verdadeira ortodoxia. De acordo com essa doutrina são ressignificados o mistério pascal assumindo o significado de uma revolução, a eucaristia uma festa de libertação e o êxodo como símbolo da Libertação, assume o papel central da história da salvação.

Creio que essa sucinta análise dos principais ingredientes que deram origem a tentativa de desconstrução dos valores consagrados pela Cultura Ocidental, permite entender de alguma maneira o panorama histórico tumultuado e errático do começo desse terceiro milênio e identificar nas linhas e entrelinhas o Marxismo ateu como inspirador maior desses movimentos considerados individualmente e no seu conjunto.

Dedicação exclusiva na Unisinos – 1990-213

Depois de uma interrupção de dois anos retornei à Unisinos a convite do Pe. Herbert E. Wetzel, pro reitor de Pesquisa e Pós graduação. Propôs-me assumir a coordenação da Pesquisa da universidade. Pedi para me substituir no cargo por outro professor com o argumento de que pretendia me dedicar mais tempo à pesquisa sobre a imigração alemã no sul do Brasil, um tema que sempre me foi muito caro e não tinha como me dedicar devido ao excesso de aulas em duas universidades. O Pe. Wetzel apoiou-me e me integrou na Pós-Graduação de História em fase de implantação. Apresentei-me à profa. Beatriz Franzen coordenadora do programa. De pronto me acolheu e confiou-me a tarefa de montar um “Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros”, com a observação: “No primeiro andar, ao lado da escada, há uma sala com uma mesa, uma cadeira, e um pequeno armário reservado para a instalação do Núcleo”. Pois, foi naquela sala de poucos metros quadrados que se tornou realmente possível e de fato dedicar-me aos sonhos e dramas que acompanharam a imigração dos alemães e outras vertentes étnicas para o sul do Brasil. Não pretendo me demorar em detalhar como foram na sua realidade humana e geográfica as sagas dos imigrantes, mas mergulhar um pouco mais a fundo na história das migrações, imigrações, emigrações. A pergunta que subjaz a todas as outras é essa: “Porque as pessoas migram?” Não me refiro aos viajantes, aventureiros, cientistas, pessoas em busca de tesouros. Refiro-me aos migrantes procurando um local para garantir um futuro promissor para as futuras gerações, resumido nas 4 palavras herdadas da sabedoria dos antigos romanos, já lembradas mais acima: “Ubi bene ibi pátria”.

Em primeiro de abril de1990 fui ocupar o gabinete que a profa. Beatriz me tinha destinado. Realmente não encontrei nada mais do que uma mesa, uma cadeira e um armário de duas portas. Para começar me pus a elaborar um projeto para recuperar e reunir a memória escrita sobre a imigração alemã no sul do Brasil, encontrável nos diversos acervos e bibliotecas de São Leopoldo, Porto Alegre e arredores. Para dar conta desse projeto o Padre Wetzel cedeu duas bolsas de iniciação científica da FAPERGS. Dos bolsistas exigia-se o domínio perfeito do alemão além de saber ler todo tipo de fonte também na impressão e manuscrita gótica. Como candidatos para essa tarefa não podiam ser encontrados na graduação de História, fui procura-los no IFPLA (Instituto de formação de professores de língua alemã) na área das Letras. Foi assim que Isabel Cristina Arendt e Katia Rex formaram a primeira dupla de bolsistas. Nos anos seguintes vieram reforçar a equipe outras bolsistas, todas oriundas do Instituto de formação de professores de língua alemã, entre elas Andrea Marinês Kunz, Justine Koppe, Beatriz Koppe. Elisabeht Breunig, Karen Maurer, Gerson Neumann e outros. O trabalho de Recuperação da Memória levou em torno de 4 anos até ser concluído e posto à disposição dos pesquisadores. Os acervos e bibliotecas mais importantes minuciosamente examinadas foram: a biblioteca do Instituto Anchietano de Pesquisas, a biblioteca do Museu Histórico de São Leopoldo, a biblioteca histórica dos Jesuítas atualmente no sexto andar da biblioteca central da Unisinos, a biblioteca da EST (Escola Superior de Teologia), o Acervo Mentz, na época na UFRGS, a biblioteca particular do prof. Walzer em Hamburgo Velho e outros mais. Em 1991 o prof. Lúcio Kreutz, emérito da Universidade Federal de Viçosa, estudioso da história da educação entre os alemães do sul do Brasil, veio reforçar a equipe do Núcleo. Visitamos o acervo da prefeitura de Nova Petrópolis, o acervo do prof. Renato Seibt, o Acervo da Sociedade União Popular em Pinhal Alto, onde nos foi oferecida uma coleção praticamente completa da periódico da Associação União Popular: o Skt. Paulusblatt. Terminamos a visita a Nova Petrópolis com uma visita ao prof. Reinaldo Krauspenhar, que fora professor de português na Escola Normal (Lehrer Seminar) em Hamburgo Velho e personagem chave no episódio que terminou com o fechamento da instituição pelas autoridades do Estado Novo, exigida por Coelho de Souza, Secretário da Educação do Governo do RS. Naquele mesmo ano o prof. Lúcio e eu fomos participar de um simpósio centrado no tema da contribuição cultural dos imigrantes alemães em Santa Rosa. Aproveitamos a ocasião para visitar o prof. Martin Wobeto em Cândido Godoy. Tínhamos informações de que ele guardava em casa uma rica coleção de livros didáticos usados nas escolas comunitárias católicas e protestantes. Para proteger essas obras da fúria iconoclasta dos agentes da nacionalização, melhor talvez, do “abrasileiramento”,cavou um esconderijo debaixo do assoalho da sala de estar de sua casa, onde não foram encontrados nas invasões a domicílios rotineiras entre 1940 e 1945. Passados os anos de chumbo da nacionalização, acomodou a preciosa coleção num dos cômodos da casa. Resumindo. Quando soube da nossa intenção de inventariar a memória escrita da imigração, especialmente da escola e da educação, nos autorizou a levar tudo que nos interessasse. Foi assim que o Prof. Lúcio enriqueceu significativamente a coleção de livros didáticos que serviram de base para um livro seu focado no material didático das escolas comunitárias, publicado pela Edit. da Unisinos.

Essas buscas pela memória tiveram um outro efeito que considero de grande importância. Na medida em que a nossa atividade de localização de documentos, revistas, jornais, livros, impressos de tudo que era tipo e conteúdo, foi-se tornando conhecido, foram-nos oferecidas pequenas coleções pessoais, relíquias guardadas dos antepassados, além de acervos de respeitável tamanho e valor histórico. Ao acervo de livros didáticos do prof. Wobeto e de outros menores veio somar-se o do prof. Walzer que nos foi oferecido pelas herdeiras Diva e Beatriz com a simples intenção de que o trabalho de décadas do pai como professor não se perdesse. Uma coleção completa do Correio do Povo de 1937- 1960, cobrindo, portanto, o importante período de antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, foi adquirido por uma modesta soma em dinheiro. Com o correr do tempo veio somar-se ao acervo já existente toda a documentação relativa à Sociedade União Popular, o acervo pessoal do Pe. Balduino Rambo, a documentação do CEDOP (Centro de Documentação e Pesquisa) fundado pelo Pe. Pedro C. Beltrão e levado a um nível até internacionalmente conhecido pelo estudo e prática do Cooperativismo sob o comando do Pe. Roque Lauschner e Pe. Odelso Schneider e seus auxiliares. O CEDOPE deu lugar no final da década de 1990 ao “Instituto Humanitas” com objetivos totalmente diferentes. Outro acervo de importância para entender a evolução e consolidação da colonização no sul do Brasil vem a ser o acervo reunido pelo Pe. Arthur Rabuske centrado da atividade dos jesuítas, principalmente os da velha guarda que atuaram na região entre 1849 e 1950. Por fim o juiz responsável pela massa falida do Frigorífico Vacriense, o FRIVA entregou à Unisinos como depositária legal, a parte documental da empresa. Toda essa riqueza encontra-se hoje guardada no sexto andar da biblioteca central da Unisinos.

Formou-se assim em poucos anos um Centro de Documentação e Pesquisa que serviu de inspiração para livros, artigos científicos, dissertações de Mestrado, teses de Doutorado inclusive com tradução e publicação na Alemanha. Com isso o Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros que começou com uma mesa, uma cadeira e um armário de duas portas, evoluiu como uma referência regional, nacional e até internacional na sua especialidade. Na formulação do currículo, por ocasião do credenciamento do PPGH esse Núcleo passou à categoria de Linha de Pesquisa com o nome “Imigração e Colonização na América Latina”.

Da Enxada à Cátedra [ 77 ]

O Gramscismo.

Depois de tentar mostrar como a partir do começo da década de 1960 o marxismo começou a infiltrar-se e minar as organizações religiosas principalmente de jovens em geral e estudantes em particular; depois de comentar como essas organizações assimilaram a ideologia da AP transformando-se em defensores e propagadores de uma orientação minada pelas orientação de viés comunista nas suas diversas modalidades, com destaque para o leninismo-stalinismo; depois ainda de analisar o efeitos sobre conceito de universidade e, consequentemente, a sua estrutura acadêmica com reflexos sobre as disciplinas, de modo especial das da área das Humanidades, passo a tecer algumas considerações sobre outro ingrediente que elevou a temperatura do caldo cultural em andamento. Refiro-me a entrada em cena do Gramscismo com sempre maior número de adeptos e entusiastas da ideia da “Hegemonia do pensamento”. Não é aqui o lugar para uma análise mais aprofundada do pensamento de Gramsci mas chamar a atenção pelo poder de fogo que acrescentou aos defensores do marxismo e da Escola de Frankfurt. Em vez de propor como uma das etapas para a conquista do poder pela revolução para neutralizar ou aniquilar os opositores à marcha do comunismo, defende a “Hegemonia” do pensamento, ou a dominação pela ideologia. Em resumo. No momento em que uma ideologia, ou uma cosmovisão consegue se impor como dominante, as demais vão sendo rotuladas negativamente, combatidas com todos instrumentos disponíveis, principalmente os meios de comunicação social, a educação em todos os níveis, os embates filosóficos, o discurso político, e por aí vai. Para fazer valer a hegemonia, melhor talvez, a tirania do pensamento único, qualquer meio é válido. Em outras palavras. O fim justifica os meios. Os que pensam diferente ou discordam do “politicamente correto” tem que sercalados utilizando todos os instrumentos disponíveis: a detração, a calúnia e em casos extremos até o sumiço de pessoas, ou mesmo assassinatos são justificados. Não vou entrar em detalhes pois, respiramos dia por dia o hálito empestado que impregna a atmosfera da nossa civilização em todas as suas dimensões. Assistimos diariamente à deseducação, para não dizer perversão, que tomou conta de todos os níveis da formação dos cidadãos a quem cabe garantir um mundo decente para as futuras gerações. Só não enxerga quem é cego que os valores que garantem o que há de perene na história da humanidade, estão sendo arquivados nos museus do tempo. Acervos documentais ou bibliotecas históricas, se é que não são jogados sumariamente na lata do lixo, são entregues às traças. A família, o convívio e comprometimento solidário das pessoas com seus semelhantes, a religiosidade e a religião e todos os demais valores que fazem com que as pessoas sejam de fato humanas, já não decidem sobre o comportamento imposto pela tirania do pensamento hegemônico, do politicamente correto. E, num mundo em que impera o princípio de que o fim justifica os meios, já não há mais lugar para a Ética a quem caberia apontar o norte a ser seguido pelas civilizações humanas. Segundo o pensamento de Gramsci, não basta podar a árvore da civilização atual fundamentada na tradição Judaico-Cristã, é preciso arrancá-la pelas raízes.

As futuras gerações que irão herdar e sofrer as consequências dos descaminhos e autênticas aberrações que moldou o mundo nesse começo do terceiro milênio, levarão um espaço de tempo difícil de mensurar para colocar novamente tudo em seu devido lugar. Essa missão foi magistralmente resumida por Alexandro S. Caldera em seu livro “Meditações Máximas e Mínimas: “Por isso há que entender a identidade desde a visão de um mundo plural, aberto e intercomunicado, de um mundo onde a diferença não seja barreira, mas ponte, e na qual as distintas visões e imaginários da vida e da história sejam vasos comunicantes e façam possível a capilaridade cultural, a Unidade na Pluralidade”. (p. 94).

Escola de Frankfurt

A Escola de Frankfurt, fundada em 1922 marca o nascedouro da “Teoria Crítica” somada à estratégia da “Indústria Cultural, vem a ser mais um ingrediente do caldo que caracteriza a civilização atual. Associada à universidade de Frankfurt essa escola reuniu um grupo de pensadores desde a década de 1920 que, de enfoques de vista diferentes, tiveram como ponto de partida o Marxismo. O trio Max Horkheimer, Theodor Adorno e Fiedrich Pulloch foram seus fundadores. Merecem destaque ainda Herbert Marcuse, Jurgen Habermas, Ernst Bloch, Erich Fromm e muitos outros. Todos esses pensadores e muitos outros que se identificam por terem como base o marxismo, por vias de interpretação diversas, coincidem no final das contas no esforço da atualização da matriz marxista adaptando-a às circunstâncias do século XX. Em outras palavras o marxismo não estagna como referência da análise e compreensão das sociedades modernas, porém, atualizado, para atender as características da dinâmica do andar da história. Nessa perspectiva ser crítico” significa analisar a relação entre a teoria, no caso formulada pela matriz marxista, e a realidade concreta e peculiar em que os acontecimentos histórico culturais estão acontecendo. Dessa forma os estudos e análises da sociedade não podem limitar-se a identificar as características, os produtos, os valores, as soluções e estratégias para salvaguardar o status quo” mas, a partir delas passar a moldar um novo modelo de sociedade. Como a Escola de Frankfurt defende na sua essência aquela imaginada por Marx, todo esforço deve concentrar- se em superar a cosmovisão capitalista com os meios, todos e quaisquer meios, que contribuam para arredar os pilares que sustentam o conservadorismo e ou o liberalismo. O conceito central que orienta os pensadores da Escola de Frankfurt vem a ser a “Teoria Crítica” instrumentalizada pela “Indústria Cultural” que, em última análise, se resume num mecanismo de controle das mentes e pessoas, imposto de cima para baixo reduzindo-as a um rebanho de indivíduos sem identidade própria, escravos dos bens de consumo que lhes são impostos e propostos pela ideologia de plantão. Com o lucro como valor maior, as pessoas são manipuladas pela padronização dos gostos e interesses, pela massificação dos produtos, insumos de fácil acesso e alto potencial de consumo.

Cabe à cultura a condição de fundamento para modelar a mentalidade e a visão política das pessoas. Para alterar a cultura é necessário infiltrar-se nos canais institucionais, particularmente a educação. Em resumo. A “Teoria Crítica” é a politização da lógica. Segundo Horkheimer um argumento é lógico quando tem por objetivo destruir as bases culturais tradicionais da Civilização Ocidental e é ilógico se ele tem como objetivo defende-las. Em outras palavras é o “politicamente correto” e condena o debate aberto, livre e sem censura como subversivo. A Indústria Cultural leva à padronização do comportamento e a Teoria Crítica leva à inversão da lógica. Não existe uma Verdade universal porque as verdades mudam de acordo com a realidade social.

Não é aqui também o lugar para uma análise mais aprofundada do pensamento dos adeptos da Escola de Frankfurt. O que interessa é a matriz sobre a qual se fundamenta a “Teoria Crítica” que tem na “Indústria Cultural” o instrumento para manipular as massas humanas em favor dos seus objetivos. Cai em vista a proximidade para não falar em coincidência da estratégia para manipular as massas proposta pela Indústria Cultural e o conceito de Hegemonia, ou Domínio Ideológico de GramsciNão há necessidade de nenhuma perspicácia maior para identificar o dedo dos pensadores-sociólogos da Escola de Frankfurt na proposta de Gramsci para moldar a cosmovisão e as práticas da civilização de um século depois.

Da Enxada à Cátedra [ 76 ]

Ação Popular – Action Populaire.

Mais acima já enumerei e comentei as organizações da juventude no meio estudantil em todos os níveis a Juventude universitária católica – JUC; a Juventude estudantil no nível médio – JEC. A essas veio juntar-se a Juventude independente católica – JIC; a Juventude operária católica – JOC; a juventude agrária católica – JAC; as Congregações Marianas dos formados, estudantes universitários, estudantes do nível médio, profissionais liberais e por aí vai. Pois, no meio dos diversos níveis e categorias das Juventudes Católicas foi-se infiltrando sub-repticiamente o marxismo adotando as táticas da “Action Populaire” importada da França. Para entender a lenta contaminação das organizações católicas pelo marxismo, que no final termina numa simbiose espúria, é preciso ir mais ao fundo da questão. Até o final da década de 1950 a Ação Católica imaginada por Pio XI destinava-se em todas suas versões e modalidades de organização, à formação de católicos convictos das sua fé e dispostos a testemunhá-la sem reticências na conduta profissional e particular. Aos poucos, entretanto, foi tomando corpo a ideia de que o catolicismo não deveria restringir-se às convicções pessoais mas engajar-se em ações que tivessem como objetivo transformar a sociedade em que atuavam. Essa abertura para o grande mundo levou o catolicismo praticado nas suas organizações a entrar em contato com os métodos pregados por outras correntes do pensamento, especialmente o marxismo. Defendendo os mesmos objetivos, isto é, a transformação da sociedade conservadora e “capitalista” numa sociedade socialista e igualitária, os métodos marxistas revolucionários foram conquistando a simpatia das organizações católicas. Aos poucos foram incorporando em sua cosmovisão as diversas vertentes do marxismo, com destaque para o Marxismo-Lenilista, a experiência da implantação do comunismo em Cuba e não em último ligar o movimento comunista liderado por Mao Tse Tung na China. Desse caldo resultou uma tal ou qual “marxzização do catolicismo” como também o inverso, uma “a catolização do marxismo”, aliás um fenômeno antropológico histórico que já teve seus precedentes na “cristianização do helenismo” e sua contrapartida a “helenização do cristianismo”, a “cristianização da romanidade” e vice versa “a romanização do cristianismo”, assim como a cristianização da germanidade” e, ao mesmo tempo a “germanização do cristianismo”. Sobre a simbiose entre essas três vertentes fundamenta-se, em última análise a Cultura Ocidental, alvo das baterias dos pensadores da Escola de Frankfurt. Mas, deixemos esse viés do turbilhão em andamento para uma análise mais abaixo. Não se pode esquecer, entretanto, que há uma diferença de fundo entre os dois fenômenos históricos. Na cristianização da helenidade, da romanidade, da germanidade e vice-versa, os preceitos éticos fundamentais, embora formulados e praticados de acordo com o perfil de cada uma das civilizações que entraram nessa amálgama, sempre ditaram o rumo do andar do processo histórico antropológico. São provas do que estamos falando os códigos que disciplinam os direitos e deveres das pessoas inseridas no contexto sócio cultural ocidental: o código do direito romano, o código do direito germânico e o código do direito canônico. A Ética, bem ou mal respeitada e praticada, na sucessão e ou alternância de impérios e repúblicas foi o Leitmotiv responsável que garantiu um mínimo de coesão entre os protagonistas da Cultura Ocidental.

A simpatia e aceitação pura e simples da filosofia e dos métodos pregados por Marx ditou a morte às organizações católicas, nascidas no contexto da Ação Católica proposta por Pio XI. No mundo estudantil e numa proporção não menor entre os intelectuais vingou a moda de auto denominar- se católico-marxista. E não demorou que a nova geração deixasse para trás a herança católica para se auto afirmarem como marxistas, leninistas, maoístas, castristas e outras mais, todas vertentes inspiradas no Marxismo. Parece que o maior problema na prática dessa simbiose espúria entre o catolicismo e o cristianismo das mais diversas confissões e o marxismo, não se encontra apenas no fato de o segundo pregar o ateísmo, mas de valer-se do princípio de que “o fim justifica os meios” como norte para qualquer tipo de ação e estratégia na busca do objetivo final: “uma sociedade sem classes”, em outras palavras, “o comunismo”. Como já alertei em outra ocasião “são como água e óleo”. Podem estar no mesmo recipiente, mas não se misturam. Autodenominar- se católico ou cristão marxista não passa de uma contradição, senão uma aberração. Isso não quer dizer que não possam colaborar em obras comuns que visam, por ex., a promoção humana, o desenvolvimento econômico, obras de caridade e assistência social. Em outras palavras, retomando a metáfora do recipiente, enchem-no sem, entretanto, misturar-se doutrinariamente. Eu próprio com professor e pesquisador vivi essa experiência inúmeras vezes. A grande maioria dos meus colegas e uma alta porcentagem dos alunos costumavam identificar-se como marxistas, comunistas, socialistas ou outras classificações na moda. Não me lembro de ter terminado uma amizade ou negar-me participar de um grupo de estudos, dum projeto de pesquisa, motivado por meus princípios cristãos-católicos e, por isso mesmo, não abrindo mão da conduta ética no cumprimento da missão que me fora confiada. Em inúmeros momentos discordávamos no varejo mas no atacado costumávamos chegar a um consenso deixando de lado as convicções doutrinárias.

Na década de 1960 um outro fator pouco ou nada lembrado veio contribuir para que círculos católicos e cristãos de modo geral fossem perdendo terreno na orientação do mundo acadêmico, especialmente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual era docente de Antropologia na cátedra de Etnografia e Etnologia. A velha guarda fundadora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em 1942 encontrava-se em fim de carreira. Alguns como o Pe. Balduino Rambo faleceram nesse período, outros se aposentaram. Figuras emblemáticas como o prof. Luiz Pilla da química, Francisco Carrion, prof. de História Medieval, José Azambuja, prof. de Mineralogia e Petrografia, Alarich Schultz de Botânica, Romeu Mucillo de Biologia, Heinrich Bunse das Letras, Dorival Schmidt História da América e outros tantos, que formavam, por assim dizer, a velha guarda daquela faculdade, foram progressivamente saindo de cena. Seus assistentes, incluo-me entre eles, treinados ainda no feitio das cátedras, antes da Reforma do Ensino, levaram em parte a orientação dos antigos catedráticos nas suas preleções. Mas, é oportuno lembrar que na época não havia Pós Graduação stricto sensu na UFRGS. Foi então que a primeira geração de mestres e doutores foram conquistar seus títulos neste nível na Universidade de São Paulo, nos Estados Unidos, na França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália e outros países. Oferecia-se ainda outro oportunidade para os professores com dificuldade de afastar-se do País: a Livre Docência. Nessa alternativa previa-se a dupla finalidade de progressão na carreira acadêmica específica somada ao título de Doutor, no meu caso em filosofia e Ciências Humanas. Optei por esse caminho. Assim conquistei em fins de 1976 os dois diplomas: o primeiro de Livre Docente em Antropologia e o segundo como Doutor em Filosofia. Mais tarde, 1988, tive oportunidade de dar uma retocada na Livre Docência e Doutorado conhecido como Pós Doutorado, na Univeristé V – René Descartes em Paris.

Nesse meio tempo, as universidades brasileiras tanto públicas quanto privadas, começaram a oferecer programas de Pós Graduação Stricto Sensu para sempre mais habilitações. Falando em História e Antropologia a USP tomou a dianteira e atraiu uma considerável porcentagem de candidatos procedentes de todo País, para as duas áreas de concentração: História Econômica e História Social. Um bom número continuou procurando universidades de outros países. No caso específico da Antropologia os endereços preferidos foram os Estados Unidos e a Inglaterra. Refiro- me aqui especificamente à Antropologia, a História e a Geografia que formavam o tripé desse curso de graduação. Com a saída de cena da velha guarda e a ocupação dos seus postos por acadêmicos munidos de títulos de mestre e ou doutor, novos ventos começaram agitar esses cursos. Para essa reviravolta contribuiu não pouco a Reforma Universitária que, por ex. dividiu o Curso de História e Geografia em duas graduações autônomas. Com os novos docentes, a maioria creio tinham participado diretamente ou pelo menos foram influenciados pelo clima de simpatia da AP (Ação Popular) pelo marxismo, como já lembramos mais acima, fizeram valer suas convicções. Como exemplo emblemático mostro o que aconteceu com a disciplina à qual eu estava diretamente ligado. Ao ser criada na implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em 1942, constava como cadeira de Etnografia e Etnologia e o Pe. Balduino Rambo o catedrático fundador. Acontece que ele faleceu inesperadamente em setembro de 1961 com apenas 56 anos. No decorrer dos meses que faltavam para terminar aquele ano, a cátedra, como também já lembrei, ficou sem titular feita presa disputada por docentes de dentro e fora da UFRGS. Finalmente coube ao Pe. I. Schmitz, o assistente mais antigo, a titularidade da cátedra. Uma das suas primeiras providências foi convidar o prof. Sérgio Teixeira para preencher a vaga de instrutor de ensino. Depois de um ou dois anos de docência e efetivado com assistente foi fazer o mestrado na USP. Encantou-se, e com razão, pela Antropologia Cultural. Mais ou menos ao mesmo tempo o recém graduado em Sociologia Ruben Oliven seguiu para a Inglaterra e conquistou o doutorado em Antropologia Social na universidade de Londres. Com essa renovação do corpo docente e seus contatos com a Antropologia Cultural e Social somado à Reforma Universitária, a cadeira Etnografia e Etnologia sofreu uma guinada 180 graus na sua própria concepção acadêmica. Foi sendo abandonado sem muito alarde o viés Histórico Cultural que até então ditara a natureza dos conteúdos programáticos das preleções, para dar lugar à hegemonia do viés cultural e social. Ao iniciar a minha trajetória docente na URGS, foi-me confiada a disciplina então denominada de Antropologia Física. Em resumo resumia-se numa Introdução ao Estudo do Homem e compreendia a natureza física do homem e sua inserção ontológica na natureza, com destaque para a genética e a miscigenação, simbiose com meio ambiente, as raças humanas, as migrações a partir do Mesolíto e Paleolítico e pelo Neolítico. Mais acima já expliquei porque o catedrático me convidou para dar conta desses conteúdos, não gozando de uma formação histórica convencional. A Antropologia Física não foi suprimida nesse processo de evolução, mas assumiu a configuração de uma “Introdução ao Estudo do Homem”. E, para ser honesto, foi sobre essa plataforma que encontrei espaço para me envolver com a realidade da “Espécie Humana” em todas as dimensões que esse conceito sugere, formulado há mais de dois milênios pela sabedoria grega: a Espécie humana existe como os minerais, vegeta como os vegetais, sente e tem memória e consciência como os animais, porém distingue-se dessas categorias pela “inteligência reflexa e a consciência do certo e do errado e, ao mesmo tempo, dotado de liberdade para obedecer aos ditames do certo e do errado. Em outras palavras o homem é um “Ser Ético”. Encontrei nessa visão a utilidade, melhor, uma razão de ser prática para os múltiplos conhecimentos apropriados no bacharelado em línguas e Literatura Clássica, no bacharelado de Filosofia, no Bacharelado de História Natural e Geologia e, por fim, na Licenciatura em Teologia. Na década de 1970 e 1980 uma série de faculdades ofereciam a Antropologia com esse formato, como disciplina optativa, mas contando créditos. Foi por essa razão que lecionei para enfermeiras e médicos no Hospital de Clínicas, na Odontologia, no Jornalismo, nas Letras, na Geografia, todos cursos de graduação da UFRGS, como também nos cursos de História, Sociologia, Pedagogia, Jornalismo, Ciências Econômicas e, no Básico da Unisinos. Na faculdade de Ciências Econômicas da Unisinos chegavam a formarem-se turmas até em sábado de tarde. Foi uma experiência e tanto.

Da Enxada à Cátedra [ 75 ]

A Laicização.

Uma questão de fundamental importância que permeia as reflexões que acabamos de fazer sob o título geral de “O Temporal” que se abateu sobre a nossa civilização a partir da década de 1960, vem a ser a “Laicização”. Pode-se afirmar que ela não poupou nada e ninguém. Não chega a ser novidade para os dotados de uma formação apurada que na Primeira República o Positivismo deu as cartas na política nacional, estadual e municipal. Pelo que se pode avaliar o relacionamento dos governantes positivistas com a religião e as igrejas costumava ser civilizada, tanto assim que o Cardeal Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro chegou a celebrar um pacto de convivência pacífica com o governo republicano, no qual as partes se comprometeram a não interferir nos negócios específicos que cabiam a ambos os lados. Emblemática neste sentido veio a ser a declaração do Pe. J. Rick referindo-se ao Presidente do Rio Grande do Sul o positivista Borges de Medeiros: “Eu e aquele velho positivista lá no palácio do governo concordamos em muitas coisas!”.

Por uma dessas coincidências históricas que fazem pensar, a fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1922 aconteceu no mesmo ano em que o Pe. Werner von und zur Mühlen assumiu a Congregação Mariana Mater Salvatoris e durante quase 20 anos formou uma elite de intelectuais católicos em condições de fazer frente ao positivismo, ao comunismo, ao anarquismo e outras tendências que povoavam a cabeça das elites e ditavam as regras das suas ações. Por curiosidade menciono outra dessas coincidências históricas envolvendo a Igreja Católica e o Marxismo. No mesmo ano, isto é, 1848, em que Marx publicou o “Manifesto Comunista”, o bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler pronunciou seus famosos sermões sobre o “Direito à Propriedade e seus Limites”, embrião da Doutrina Social Católica, formulada mais tarde por Heinrich Pesch, fundamentada no princípio de que “o que importa não é socializar a propriedade, mas socializar a mente dos proprietários”. Mais tarde Gustaf Gundlach, Oswald von Nel Breunig e o bispo Döfner formularam a proposta social da Igreja Católica tornada oficial pelo Papa Leão XIII na encíclica“Rerum Novarum”, reafirmada na “Quadragesimo Anno” de Pio IX, na “Mater et Magistra” de João XXIII e “Populorum Progressio” de Paulo VI.

Mais acima já lembrei o papel e a influência dessa elite nas profissões liberais diferentes em que atuaram, na reitoria de Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na ocupação de cátedras, principalmente na Faculdade Filosofia, Ciências e Letras criada em 1942. Já mencionei também a difusão da Ação Católica e as Congregações Marias modalidades de associações que permearam todas as camadas e ou classes da sociedade civil e até militar, com um catolicismo convicto e muito bem fundamentado. Dispensam identificação porque já foram enumeradas mais acima. Nem o mundo operário foi esquecido. Em 1932 o Pe. Leopoldo Brentano fundou em Pelotas o primeiro Círculo Operário inspirado na Liga Operária Católica criada pelo Pe. Reus em Rio Grande, na primeira década de 1900. O formato original dessa organização era de caráter eminentemente clerical, pois, suas atividades dependiam inteiramente do “placet” de um assistente eclesiástico. A ideia foi retomada em 1932 pelo Pe. Leopoldo Brentano, desta vez em Pelotas. O modelo inspirado em Jacques Maritain, alinhava-se perfeitamente com os objetivos das demais organizações católicas acima já mencionadas. Os círculos operários não foram sindicatos, nem cooperativas mas federações locais, regionais e por fim uma Federação Nacional com sede no Rio de Janeiro e mais tarde em Brasília. Na verdade podem ser considerados como um instrumento para garantir a presença cristã no mundo operário. Para não me prolongar demais sobre a presença e atuação dos Círculos operários no RS resumo dizendo que se concentravam em Porto Alegre, São Leopoldo e demais cidades maiores do Estado. Na avenida Polônia 625 mantinha um auditório e outras dependências. Inspiradas na “universidade laboral” da Espanha criaram a “universidade dotrabalho” na verdade uma escola técnica no bairro Farrapos.

Outro Círculo emblemático foi o dos ferroviários da então VFRGS (Viação Férrea do RS). Dois jesuítas destacaram-se no atendimento pastoral dos ferroviários, o Pe. Johannes Rick e o Pe. Cláudio Mascrrello.

Em resumo todo esse aparato estratégico teve como finalidade assegurar um catolicismo sólido, fundamentos doutrinários e a disciplina eclesiástica sob o comando do máximo em Roma. Até o final da década de 1950 o espírito dessas organizações católicas e não poucas congêneres cristãs, com destaque para as da IECLEB, (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil), realmente permeavam vertical e horizontalmente a quase totalidade a vida diária das populações urbanas e evidentemente as rurais. Vistas e analisadas de acordo com os parâmetros teóricos e práticos de hoje não poucos intelectuais de modo especial aqueles que se consideram como tais, encontrariam argumentos para classificar aquele período de intolerante, machista, homofóbico, racista, divisionista e outros estigmas do gênero. Como, porém, estamos falando de um período em que essa terminologia não ditava os parâmetros do quotidiano da intelectualidade, dos profissionais, dos políticos, dos operários e da população em geral, nem viveu seus efeitos práticos, a geração que viveu nesse período e participou dos seus movimentos e organizações, não têm dúvidas de falar em “anos de ouro”.

O redesenho desse panorama começa a se manifestar sutilmente no começo, intensificando-se, assumindo aos poucos as características de um temporal ou, quem preferir uma revolução, com o marxismo como motor, já no final da década de 1950. Nessa dinâmica de dimensões globais, universais ou planetárias o Brasil não tinha como não ser envolvido e arrastado. A revolução cubana seguida da derrubada do ditador Batista e a implantação do comunismo naquele país do Caribe, veio a ser o alerta mais estridente, o vulcão, por assim dizer alertando que as “placas tectônicas” da história estavam se movimentando. O efeito da revolução cubana empolgou uma porcentagem significativa, principalmente de estudantes. Fidel Castro, Che Guevara e outros líderes do movimento foram alçados ao patamar dos personagens do começo de uma nova era. Os evidentes crimes como execuções sumárias sem direito à defesa, desapropriação das terras e demais bens, confisco dos produtos agrícolas e industriais, tudo foi justificado em nome de uma nova ordem, com pretensão de servir de protótipo para toda a América Latina. Acontece que a revolução de Cuba e demais que se desenhavam no horizonte levaram a uma inversão de valores pela raiz e causa responsável em última análise pelo clima errático em que se terminou debatendo a atual civilização, 60 anos depois. O princípio de que “o fim justifica os meios”, isto é, todo e qualquer meio, sem exceção em busca de um “fim” deve ser considerado legítimo, mesmo violando os direitos fundamentais das pessoas inclusive o direito à vida. Justifica-se a execução sumária, o extermínio em massa pela fome, o extermínio em embates revolucionários dos que pensam e agem fora do padrão na conquista do fim. Não há necessidade de muitos argumentos de que nessa perspectiva não há lugar para a “Ética” que vem a ser o sustentáculo e a garantir dos valores perenes. Com uma velocidade em aceleração vai-se impondo um estilo de comportamento em que o fim, mesmo o mais desumano e perverso justifica os meios mais desumanos e mais perversos. É nesse contexto que se confirma a atualidade da advertência deixada há 1300 anos pelo matemático persa Al Khawarismi. “Se ages norteado pela Ética, és 1; se, além disso és inteligente serás 10; se também fores rico soma mais um zero e serás 100; se também fores belo, serás 1000. No momento em que perderes o “1” terminas sendo “0”. A lógica não deixa dúvidas. Uma coletividade em que as pessoas abandonaram e ou desprezaram a Ética não passa de um rebanho de “zeros”, semelhante a uma alcateia de lobos na qual todos uivam afinados com os teóricos de plantão. Quem se nega afinar-se com a alcateia leva o estigma de politicamente incorreto seguido da ladainha de estigmas tão nossos conhecidos. O filósofo Roger Scruton, há pouco falecido, chega a ser impiedoso, senão agressivo, ao afirmar que “o relativismo moral é o primeiro refúgio dos canalhas”.

Essa guinada de 180 graus não pôde deixar de refletir-se profundamente no ambiente imediato em que cumpria minha missão de vida como professor e pesquisador numa universidade pública e numa particular. A seguir destaco alguns que julgo mais decisivos e mais determinantes.

Da Enxada à Cátedra [ 74 ]

Depois dessas colocações de caráter mais teórico vem a pergunta: e, se consideradas as circunstâncias concretas, a realização do sonho de paisagens humanizadas inspiradas na combinação dos dois trinômios que formulamos acima, é exequível? Fiquei horas empacado procurando uma resposta para esse questionamento. A proposta feita há mais de 50 anos pelos técnicos alemães para a valorização do vale do rio dos Sinos prova a sua validade em dezenas de pequenos municípios emancipados de então para cá em todos os vales dos rios que confluem paraformaroGuaíba.Emboranãosetenhafeitoumplanejamento técnicocomoodescritoacima a maioria desses municípios desenvolveu-se de forma muito parecida com o modelo desenhado tecnicamente para o vale do Sinos. Têm em comum que sua população na média não chega aos 10.000 habitantes. As sedes urbanas contam com uma infraestrutura administrativa enxuta e eficiente confiada a prefeitos, vereadores, funcionários e técnicos, que têm como prioridade o progresso e o bem-estar da população. Os desvios desse objetivo e a prática de atos de corrupção, se ocorrem, são exceções e de proporções até absorvíveis. A população conta com postos de saúde bem equipados, a cargo de profissionais treinados e, em casos de cirurgias e situações de maior gravidade, as prefeituras dispõem de ambulâncias para levar os pacientes aos hospitais regionais e a Porto Alegre quando o caso o requer. A educação costuma ser, a par da saúde, a preocupação maior das administrações municipais e da população em geral. Para tanto dispõem de uma rede de escolas que vão do maternal até o ensino médio. O transporte escolar eficiente atende os alunos, as professoras e professores são relativamente bem pagos e os prédios e instalações adequadas a um ensino de qualidade. Ha exemplos em que municípios investem até 30% dos seus recursos na educação. Não podem faltar salões de festa, para casamentos bailes e comemorações de datas importantes como os aniversários das emancipações. Há municípios que dispõem de museus e centros de eventos. Os Kerbs fazem parte do calendário onde predominam os descendentes de imigrantes alemães. As estradas municipais em muitos casos costumam estar asfaltadas até os limites dos municípios, facilitando a circulação das mercadorias e pessoas. Mas, o que mais se destaca é o complexo da atividade econômica. Nas sedes dos municípios, as antigas casas de comércio, as lendárias “vendas”, foram substituídas por lojas especializadas bem ao estilo urbano. Pequenas, médias e até indústrias de porte maior oferecem um número significativo de postos de trabalho. No interior desses municípios a típica policultura familiar de subsistência deu lugar a atividades mais seletivas, tornando obsoleto todo o complexo de instrumentos e ferramentas tradicionais. Arados de bois, moendas de cana, carroças de bois, machados, serras manuais e até enxadas e machados, máquinas de costura manuais ou com pedais, são hoje, em grande parte, artigos de museu. Com a chegada da eletricidade tudo foi substituído por ferramentas que tornaram a produção rural muito mais produtiva e muito menos penosa do que das gerações passadas. Motosserras dispensaram o machadoeotraçador,roçadeiras,microtratorese tratoresdemaiorportedispensaramosarados e as juntas de bois, carros, motos e caminhões tomaram o lugar das carroças puxadas por bois, cavalos ou mulas. Em vez de montarias as pessoas deslocam-se em automóveis que já não são mais motivo de ostentação e riqueza mas, fazem parte das utilidades normais da imensa maioria das pessoas, também do meio rural. Como já afirmamos mais acima, a produção rural tornou-se mais seletiva e especializada para atender ao mercado regional, estadual, nacional e até internacional. Dezenas de aviários alinham-se nas encostas dos morros acomodados no meio de árvores nativas e em não poucos casos rodeados pela mata secundária. Abastecem o mercado estadual, nacional e internacional. Famílias inteiras, filhos e netos de antigos agricultores encontram trabalho rentável e, ao mesmo tempo, saudável nesse ramo de atividade amparados por tecnologias de última geração no manejo de frangos de corte e galinhas de postura. A suinocultura intensiva valendo-se também de tecnologias de ponta como a seleção genética de raças mais apuradas, inseminação artificial, alimentação balanceada, assistência veterinária, higiene e destino dos dejetos, substituíram a criação de suínos destinados a suprir as necessidades das famílias. Como no caso da avicultura a suinocultura destina-se ao atendimento das demandas regionais, nacionais e do mercado internacional em constante crescimento quantitativo e com exigências qualitativas mais rigorosas. Esse setor de atividade oferece um mercado de trabalho difícil de dimensionar além de perspectivas para evitar que muitos jovens nascidos no meio rural se deixem iludir com os encantos das oportunidades oferecidos pela vida urbana. Um ensino fundamental e médio que inclua em suas programações o alerta pelas oportunidades e a realização de uma vida sadia e digna no meio rural de hoje, pode evitar que muitos jovens traídos pela fantasia de uma vida fácil e cômoda nas cidades, terminem subempregados, mal empregados e desempregados, expostos a todos os riscos que infestam os bairros periféricos. Os administradores dos municípios, os conselhos comunitários, as autoridades e agremiações religiosas e outras tantas, têm condições de prestar um serviço de valor incalculável para as futuras gerações, conscientizando-as e propondo iniciativas e soluções concretas. As escolas agrícolas de nível médio podem ser multiplicadas formando técnicos na produção de hortigranjeiros orgânicos, fruticultura, suinocultura, avicultura, floricultura, silvicultura e por aí vai. E já que o público consumidor e a legislação e controle sanitário e o manejo dos reflorestamentos e a proteção da mata nativa, exigem conhecimentos especializados, abre-se espaço para egressos das escolas superiores de agronomia, veterinária, engenharia florestal e similares.

A educação, a conscientização, a formação técnica em todos os níveis e o acesso às tecnologias e métodos de última geração, não mudou apenas o rendimento e a qualidade dos produtos, como também uma paisagem físico geográfica inimaginável há 80 anos passados. A policultura à base da enxada e do arado de bois nas encostas pedregosas e muito íngremes foi abandonada e entregue ao avanço da vegetação nativa. Já nos referimos a esse fenômeno em outa ocasião mais acima. Vai se formando uma floresta secundária muito parecida na sua composição e formato da original e intocada que os imigrantes encontraram ao desembarcarem e se fixarem nessas paragens. Em não poucos casos, no fundo dos vales mais estreitos essa recuperação florestal já desceu até os arroios formados pelos muitos córregos que descem dos morros. Um outro efeito extremamente benéfico desse florestamento espontâneo consiste na retenção da água das chuvas aumentando a vasão das fontes e córregos e fazendo reaparecer fontes que haviam secado depois do desmatamento. Na medida em que a nova floresta avança horizontalmente e se avoluma verticalmente vai-se confundindo com as manchas de floresta virgem original que sobreviveram nas coroas e nos topos dos morros. E, na medida em que a floresta secundária se espalha e avoluma, as espécies de aves, mamíferos, répteis, batráquios e insetos, que não foram extintos, saem dos seus refúgios e voltam a povoar a nova “casa”, enchendo-a com a sinfonia dos seus cantos, assobios, gritos, pios, roncos e urros. A proibição da caça anima pássaros, mamíferos, répteis e outas espécies a se aproximarem das moradias e por assim dizer, conviver em harmonia e comunhão com o homem e seus animais domésticos. A grande maioria das espécies de aves originais e mamíferos, exceto a onça, o puma e a anta, encontram tranquilidade nos terrenos acidentados de inúmeras áreas abandonadas, impraticáveis para a produção agrícola nos moldes da demanda de alimentos de hoje. A floresta reconquistando o seu espaço nos declives dos morros e montanhas, as pastagens, a fruticultura e o reflorestamento artificial, nas encostas menos íngremes, as áreas mais planas ocupadas com a produção de hortaliças e legumes, as moradias acomodadas na sombra de grandes árvores, o traçado das estradas e caminhos acompanhando as características topográficas, as cidades em franco progresso no centro ou na saída dos vales, compõem paisagens que provam que o “jardim” confiado por Deus ao homem, quando “cultivado” racional e afetivamente resulta em panoramas de uma beleza singular.

Enquanto reflito sobre a realidade que acabo de pintar circulam nas redes sociais documentários que retratam pequenos municípios no interior do Rio Grande do Sul, todos contando com a mesma trajetória histórica. Derrubada a floresta virgem original, a terra foi cultivada durante 100 ou mais anos no mesmo molde da agricultura familiar de enxada e arado de bois descrito mais acima. De meio século para cá moldaram os seus perfis de acordo com as demandas dos mercados de consumo. Substituíram os tradicionais instrumentos de trabalho pelas ferramentas oferecidas pela tecnologia moderna. Os meios de comunicação ao alcance de qualquer colono na mais remota extremidade de um vale, mexeram e continuam mexendo fundo na maneira de ser dos produtores rurais, pondo-os em contato com o que há e acontece de novo, de bom, de discutível e/ou de deplorável no âmbito regional, nacional e internacional. Nesse cenário já não há mais lugar para as famílias numerosas de 10 ou mais filhos. Deram lugar a casais com um ou dois filhos e o próprio conceito do matrimônio tradicional indissolúvel convive tranquilamente com uniões consensuais, mães solteiras, separações e divórcios. A prática rigorosa e controlada da religião cedeu o lugar a uma opção mais pessoal e livre do que há duas ou três gerações passadas. Ficou no passado o agricultor que costumava percorrer apenas dois caminhos: o diário de ida e volta da roça e o dominical de ida e volta à igreja. Mas, não é aqui o lugar para uma análise antropológica e sociológica mais aprofundada. Resumindo, parece lícito afirmar que os pequenos municípios que surgiram no interior colonial e ocupam uma significativa parcela dos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e outros estados, moldaram um paradigma, diria civilizatório que, descontados os senões e mesmo críticas mais severas e contundentes, apontam o caminho para “cultivar” o “jardim” em que o Criador colocou homem para que tenha condições de realizar os seus anseios existenciais. Tendo sempre em vista que falo do modelo da pequena propriedade familiar dedicada à policultura de subsistência como horticultura, fruticultura e tantas outras modalidades, atrevo-me concluir nas linhas e sugerir nas entrelinhas, que o “agricultor” deu lugar ao “produtor rural”. Munido de um comportamento social e familiar urbano, cultivador de costumes e valores, hábitos religiosos, preocupações econômicas e políticas, sem pretensões de uma formação mais apurada, sem demora passará ser um personagem da história, como os artesãos e tantas outras ocupações. Os casamentos inter étnicos e inter confessionais tornaram-se rotineiros. Já não causam estranheza uniões entre pessoas louras e afro descendentes, entre católicos e outras confissões religiosas, entre alemães e italianos, poloneses, luso-brasileiros e afrodescendentes. Essa miscigenação resultou num cidadão brasileiro cuja origem remota é traída pelo sobrenome, muitas vezes associado a sobrenomes lusos, italianos e outros; um cidadão brasileiro que já não se serve mais dos seus dialetos em família, muito menos no relacionamento social; um cidadão brasileiro que pode ser encontrado em todos os níveis da hierarquia política, militar, econômica e social; um cidadão brasileiro que, apesar de tudo, bem ou mal, não se esqueceu de suas raízes remotas relembrando e cultivando os dialetos falados por seus avós, seja a nível acadêmico, seja a nível de grupos como os que cultivam os dialetos originários do Reno-Palatinado, ou relembrando nos “Kerb” e “Oktoberfest”, fragmentos de suas raízes ainda perceptíveis depois de 200 anos em terras brasileiras.

E, para concluir as reflexões que motivaram o terremoto que acabamos de caracterizar nas páginas acima, sugiro como opção de lazer circular em domingos ou feriados pelos vales dos rios que formam o Guaíba e admirar e degustar a paisagem étnico-geográfica moldada nos 200 anos pela presença dos imigrantes alemães, italianos, poloneses e outras procedências étnicas e seus descendentes no sul do Brasil: Santa Maria do Erval, Nova Petrópolis, Bom Princípio, São Vendelino, Tupandi, São Pedro da Serra, Salvador do Sul, Poço das Antas, Teutônia, Westfália, Imigrantes, Sinimbu, Sobradinho, Santa Cruz do Sul e tantos outros pequenos municípios na região das Missões, Alto Uruguai, Oeste, Centro e Leste de Santa Catarina e oeste do Paraná