Da Enxada à Cátedra [ 75 ]

A Laicização.

Uma questão de fundamental importância que permeia as reflexões que acabamos de fazer sob o título geral de “O Temporal” que se abateu sobre a nossa civilização a partir da década de 1960, vem a ser a “Laicização”. Pode-se afirmar que ela não poupou nada e ninguém. Não chega a ser novidade para os dotados de uma formação apurada que na Primeira República o Positivismo deu as cartas na política nacional, estadual e municipal. Pelo que se pode avaliar o relacionamento dos governantes positivistas com a religião e as igrejas costumava ser civilizada, tanto assim que o Cardeal Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro chegou a celebrar um pacto de convivência pacífica com o governo republicano, no qual as partes se comprometeram a não interferir nos negócios específicos que cabiam a ambos os lados. Emblemática neste sentido veio a ser a declaração do Pe. J. Rick referindo-se ao Presidente do Rio Grande do Sul o positivista Borges de Medeiros: “Eu e aquele velho positivista lá no palácio do governo concordamos em muitas coisas!”.

Por uma dessas coincidências históricas que fazem pensar, a fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1922 aconteceu no mesmo ano em que o Pe. Werner von und zur Mühlen assumiu a Congregação Mariana Mater Salvatoris e durante quase 20 anos formou uma elite de intelectuais católicos em condições de fazer frente ao positivismo, ao comunismo, ao anarquismo e outras tendências que povoavam a cabeça das elites e ditavam as regras das suas ações. Por curiosidade menciono outra dessas coincidências históricas envolvendo a Igreja Católica e o Marxismo. No mesmo ano, isto é, 1848, em que Marx publicou o “Manifesto Comunista”, o bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler pronunciou seus famosos sermões sobre o “Direito à Propriedade e seus Limites”, embrião da Doutrina Social Católica, formulada mais tarde por Heinrich Pesch, fundamentada no princípio de que “o que importa não é socializar a propriedade, mas socializar a mente dos proprietários”. Mais tarde Gustaf Gundlach, Oswald von Nel Breunig e o bispo Döfner formularam a proposta social da Igreja Católica tornada oficial pelo Papa Leão XIII na encíclica“Rerum Novarum”, reafirmada na “Quadragesimo Anno” de Pio IX, na “Mater et Magistra” de João XXIII e “Populorum Progressio” de Paulo VI.

Mais acima já lembrei o papel e a influência dessa elite nas profissões liberais diferentes em que atuaram, na reitoria de Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na ocupação de cátedras, principalmente na Faculdade Filosofia, Ciências e Letras criada em 1942. Já mencionei também a difusão da Ação Católica e as Congregações Marias modalidades de associações que permearam todas as camadas e ou classes da sociedade civil e até militar, com um catolicismo convicto e muito bem fundamentado. Dispensam identificação porque já foram enumeradas mais acima. Nem o mundo operário foi esquecido. Em 1932 o Pe. Leopoldo Brentano fundou em Pelotas o primeiro Círculo Operário inspirado na Liga Operária Católica criada pelo Pe. Reus em Rio Grande, na primeira década de 1900. O formato original dessa organização era de caráter eminentemente clerical, pois, suas atividades dependiam inteiramente do “placet” de um assistente eclesiástico. A ideia foi retomada em 1932 pelo Pe. Leopoldo Brentano, desta vez em Pelotas. O modelo inspirado em Jacques Maritain, alinhava-se perfeitamente com os objetivos das demais organizações católicas acima já mencionadas. Os círculos operários não foram sindicatos, nem cooperativas mas federações locais, regionais e por fim uma Federação Nacional com sede no Rio de Janeiro e mais tarde em Brasília. Na verdade podem ser considerados como um instrumento para garantir a presença cristã no mundo operário. Para não me prolongar demais sobre a presença e atuação dos Círculos operários no RS resumo dizendo que se concentravam em Porto Alegre, São Leopoldo e demais cidades maiores do Estado. Na avenida Polônia 625 mantinha um auditório e outras dependências. Inspiradas na “universidade laboral” da Espanha criaram a “universidade dotrabalho” na verdade uma escola técnica no bairro Farrapos.

Outro Círculo emblemático foi o dos ferroviários da então VFRGS (Viação Férrea do RS). Dois jesuítas destacaram-se no atendimento pastoral dos ferroviários, o Pe. Johannes Rick e o Pe. Cláudio Mascrrello.

Em resumo todo esse aparato estratégico teve como finalidade assegurar um catolicismo sólido, fundamentos doutrinários e a disciplina eclesiástica sob o comando do máximo em Roma. Até o final da década de 1950 o espírito dessas organizações católicas e não poucas congêneres cristãs, com destaque para as da IECLEB, (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil), realmente permeavam vertical e horizontalmente a quase totalidade a vida diária das populações urbanas e evidentemente as rurais. Vistas e analisadas de acordo com os parâmetros teóricos e práticos de hoje não poucos intelectuais de modo especial aqueles que se consideram como tais, encontrariam argumentos para classificar aquele período de intolerante, machista, homofóbico, racista, divisionista e outros estigmas do gênero. Como, porém, estamos falando de um período em que essa terminologia não ditava os parâmetros do quotidiano da intelectualidade, dos profissionais, dos políticos, dos operários e da população em geral, nem viveu seus efeitos práticos, a geração que viveu nesse período e participou dos seus movimentos e organizações, não têm dúvidas de falar em “anos de ouro”.

O redesenho desse panorama começa a se manifestar sutilmente no começo, intensificando-se, assumindo aos poucos as características de um temporal ou, quem preferir uma revolução, com o marxismo como motor, já no final da década de 1950. Nessa dinâmica de dimensões globais, universais ou planetárias o Brasil não tinha como não ser envolvido e arrastado. A revolução cubana seguida da derrubada do ditador Batista e a implantação do comunismo naquele país do Caribe, veio a ser o alerta mais estridente, o vulcão, por assim dizer alertando que as “placas tectônicas” da história estavam se movimentando. O efeito da revolução cubana empolgou uma porcentagem significativa, principalmente de estudantes. Fidel Castro, Che Guevara e outros líderes do movimento foram alçados ao patamar dos personagens do começo de uma nova era. Os evidentes crimes como execuções sumárias sem direito à defesa, desapropriação das terras e demais bens, confisco dos produtos agrícolas e industriais, tudo foi justificado em nome de uma nova ordem, com pretensão de servir de protótipo para toda a América Latina. Acontece que a revolução de Cuba e demais que se desenhavam no horizonte levaram a uma inversão de valores pela raiz e causa responsável em última análise pelo clima errático em que se terminou debatendo a atual civilização, 60 anos depois. O princípio de que “o fim justifica os meios”, isto é, todo e qualquer meio, sem exceção em busca de um “fim” deve ser considerado legítimo, mesmo violando os direitos fundamentais das pessoas inclusive o direito à vida. Justifica-se a execução sumária, o extermínio em massa pela fome, o extermínio em embates revolucionários dos que pensam e agem fora do padrão na conquista do fim. Não há necessidade de muitos argumentos de que nessa perspectiva não há lugar para a “Ética” que vem a ser o sustentáculo e a garantir dos valores perenes. Com uma velocidade em aceleração vai-se impondo um estilo de comportamento em que o fim, mesmo o mais desumano e perverso justifica os meios mais desumanos e mais perversos. É nesse contexto que se confirma a atualidade da advertência deixada há 1300 anos pelo matemático persa Al Khawarismi. “Se ages norteado pela Ética, és 1; se, além disso és inteligente serás 10; se também fores rico soma mais um zero e serás 100; se também fores belo, serás 1000. No momento em que perderes o “1” terminas sendo “0”. A lógica não deixa dúvidas. Uma coletividade em que as pessoas abandonaram e ou desprezaram a Ética não passa de um rebanho de “zeros”, semelhante a uma alcateia de lobos na qual todos uivam afinados com os teóricos de plantão. Quem se nega afinar-se com a alcateia leva o estigma de politicamente incorreto seguido da ladainha de estigmas tão nossos conhecidos. O filósofo Roger Scruton, há pouco falecido, chega a ser impiedoso, senão agressivo, ao afirmar que “o relativismo moral é o primeiro refúgio dos canalhas”.

Essa guinada de 180 graus não pôde deixar de refletir-se profundamente no ambiente imediato em que cumpria minha missão de vida como professor e pesquisador numa universidade pública e numa particular. A seguir destaco alguns que julgo mais decisivos e mais determinantes.

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