Da Enxada à Cátedra [ 74 ]

Depois dessas colocações de caráter mais teórico vem a pergunta: e, se consideradas as circunstâncias concretas, a realização do sonho de paisagens humanizadas inspiradas na combinação dos dois trinômios que formulamos acima, é exequível? Fiquei horas empacado procurando uma resposta para esse questionamento. A proposta feita há mais de 50 anos pelos técnicos alemães para a valorização do vale do rio dos Sinos prova a sua validade em dezenas de pequenos municípios emancipados de então para cá em todos os vales dos rios que confluem paraformaroGuaíba.Emboranãosetenhafeitoumplanejamento técnicocomoodescritoacima a maioria desses municípios desenvolveu-se de forma muito parecida com o modelo desenhado tecnicamente para o vale do Sinos. Têm em comum que sua população na média não chega aos 10.000 habitantes. As sedes urbanas contam com uma infraestrutura administrativa enxuta e eficiente confiada a prefeitos, vereadores, funcionários e técnicos, que têm como prioridade o progresso e o bem-estar da população. Os desvios desse objetivo e a prática de atos de corrupção, se ocorrem, são exceções e de proporções até absorvíveis. A população conta com postos de saúde bem equipados, a cargo de profissionais treinados e, em casos de cirurgias e situações de maior gravidade, as prefeituras dispõem de ambulâncias para levar os pacientes aos hospitais regionais e a Porto Alegre quando o caso o requer. A educação costuma ser, a par da saúde, a preocupação maior das administrações municipais e da população em geral. Para tanto dispõem de uma rede de escolas que vão do maternal até o ensino médio. O transporte escolar eficiente atende os alunos, as professoras e professores são relativamente bem pagos e os prédios e instalações adequadas a um ensino de qualidade. Ha exemplos em que municípios investem até 30% dos seus recursos na educação. Não podem faltar salões de festa, para casamentos bailes e comemorações de datas importantes como os aniversários das emancipações. Há municípios que dispõem de museus e centros de eventos. Os Kerbs fazem parte do calendário onde predominam os descendentes de imigrantes alemães. As estradas municipais em muitos casos costumam estar asfaltadas até os limites dos municípios, facilitando a circulação das mercadorias e pessoas. Mas, o que mais se destaca é o complexo da atividade econômica. Nas sedes dos municípios, as antigas casas de comércio, as lendárias “vendas”, foram substituídas por lojas especializadas bem ao estilo urbano. Pequenas, médias e até indústrias de porte maior oferecem um número significativo de postos de trabalho. No interior desses municípios a típica policultura familiar de subsistência deu lugar a atividades mais seletivas, tornando obsoleto todo o complexo de instrumentos e ferramentas tradicionais. Arados de bois, moendas de cana, carroças de bois, machados, serras manuais e até enxadas e machados, máquinas de costura manuais ou com pedais, são hoje, em grande parte, artigos de museu. Com a chegada da eletricidade tudo foi substituído por ferramentas que tornaram a produção rural muito mais produtiva e muito menos penosa do que das gerações passadas. Motosserras dispensaram o machadoeotraçador,roçadeiras,microtratorese tratoresdemaiorportedispensaramosarados e as juntas de bois, carros, motos e caminhões tomaram o lugar das carroças puxadas por bois, cavalos ou mulas. Em vez de montarias as pessoas deslocam-se em automóveis que já não são mais motivo de ostentação e riqueza mas, fazem parte das utilidades normais da imensa maioria das pessoas, também do meio rural. Como já afirmamos mais acima, a produção rural tornou-se mais seletiva e especializada para atender ao mercado regional, estadual, nacional e até internacional. Dezenas de aviários alinham-se nas encostas dos morros acomodados no meio de árvores nativas e em não poucos casos rodeados pela mata secundária. Abastecem o mercado estadual, nacional e internacional. Famílias inteiras, filhos e netos de antigos agricultores encontram trabalho rentável e, ao mesmo tempo, saudável nesse ramo de atividade amparados por tecnologias de última geração no manejo de frangos de corte e galinhas de postura. A suinocultura intensiva valendo-se também de tecnologias de ponta como a seleção genética de raças mais apuradas, inseminação artificial, alimentação balanceada, assistência veterinária, higiene e destino dos dejetos, substituíram a criação de suínos destinados a suprir as necessidades das famílias. Como no caso da avicultura a suinocultura destina-se ao atendimento das demandas regionais, nacionais e do mercado internacional em constante crescimento quantitativo e com exigências qualitativas mais rigorosas. Esse setor de atividade oferece um mercado de trabalho difícil de dimensionar além de perspectivas para evitar que muitos jovens nascidos no meio rural se deixem iludir com os encantos das oportunidades oferecidos pela vida urbana. Um ensino fundamental e médio que inclua em suas programações o alerta pelas oportunidades e a realização de uma vida sadia e digna no meio rural de hoje, pode evitar que muitos jovens traídos pela fantasia de uma vida fácil e cômoda nas cidades, terminem subempregados, mal empregados e desempregados, expostos a todos os riscos que infestam os bairros periféricos. Os administradores dos municípios, os conselhos comunitários, as autoridades e agremiações religiosas e outras tantas, têm condições de prestar um serviço de valor incalculável para as futuras gerações, conscientizando-as e propondo iniciativas e soluções concretas. As escolas agrícolas de nível médio podem ser multiplicadas formando técnicos na produção de hortigranjeiros orgânicos, fruticultura, suinocultura, avicultura, floricultura, silvicultura e por aí vai. E já que o público consumidor e a legislação e controle sanitário e o manejo dos reflorestamentos e a proteção da mata nativa, exigem conhecimentos especializados, abre-se espaço para egressos das escolas superiores de agronomia, veterinária, engenharia florestal e similares.

A educação, a conscientização, a formação técnica em todos os níveis e o acesso às tecnologias e métodos de última geração, não mudou apenas o rendimento e a qualidade dos produtos, como também uma paisagem físico geográfica inimaginável há 80 anos passados. A policultura à base da enxada e do arado de bois nas encostas pedregosas e muito íngremes foi abandonada e entregue ao avanço da vegetação nativa. Já nos referimos a esse fenômeno em outa ocasião mais acima. Vai se formando uma floresta secundária muito parecida na sua composição e formato da original e intocada que os imigrantes encontraram ao desembarcarem e se fixarem nessas paragens. Em não poucos casos, no fundo dos vales mais estreitos essa recuperação florestal já desceu até os arroios formados pelos muitos córregos que descem dos morros. Um outro efeito extremamente benéfico desse florestamento espontâneo consiste na retenção da água das chuvas aumentando a vasão das fontes e córregos e fazendo reaparecer fontes que haviam secado depois do desmatamento. Na medida em que a nova floresta avança horizontalmente e se avoluma verticalmente vai-se confundindo com as manchas de floresta virgem original que sobreviveram nas coroas e nos topos dos morros. E, na medida em que a floresta secundária se espalha e avoluma, as espécies de aves, mamíferos, répteis, batráquios e insetos, que não foram extintos, saem dos seus refúgios e voltam a povoar a nova “casa”, enchendo-a com a sinfonia dos seus cantos, assobios, gritos, pios, roncos e urros. A proibição da caça anima pássaros, mamíferos, répteis e outas espécies a se aproximarem das moradias e por assim dizer, conviver em harmonia e comunhão com o homem e seus animais domésticos. A grande maioria das espécies de aves originais e mamíferos, exceto a onça, o puma e a anta, encontram tranquilidade nos terrenos acidentados de inúmeras áreas abandonadas, impraticáveis para a produção agrícola nos moldes da demanda de alimentos de hoje. A floresta reconquistando o seu espaço nos declives dos morros e montanhas, as pastagens, a fruticultura e o reflorestamento artificial, nas encostas menos íngremes, as áreas mais planas ocupadas com a produção de hortaliças e legumes, as moradias acomodadas na sombra de grandes árvores, o traçado das estradas e caminhos acompanhando as características topográficas, as cidades em franco progresso no centro ou na saída dos vales, compõem paisagens que provam que o “jardim” confiado por Deus ao homem, quando “cultivado” racional e afetivamente resulta em panoramas de uma beleza singular.

Enquanto reflito sobre a realidade que acabo de pintar circulam nas redes sociais documentários que retratam pequenos municípios no interior do Rio Grande do Sul, todos contando com a mesma trajetória histórica. Derrubada a floresta virgem original, a terra foi cultivada durante 100 ou mais anos no mesmo molde da agricultura familiar de enxada e arado de bois descrito mais acima. De meio século para cá moldaram os seus perfis de acordo com as demandas dos mercados de consumo. Substituíram os tradicionais instrumentos de trabalho pelas ferramentas oferecidas pela tecnologia moderna. Os meios de comunicação ao alcance de qualquer colono na mais remota extremidade de um vale, mexeram e continuam mexendo fundo na maneira de ser dos produtores rurais, pondo-os em contato com o que há e acontece de novo, de bom, de discutível e/ou de deplorável no âmbito regional, nacional e internacional. Nesse cenário já não há mais lugar para as famílias numerosas de 10 ou mais filhos. Deram lugar a casais com um ou dois filhos e o próprio conceito do matrimônio tradicional indissolúvel convive tranquilamente com uniões consensuais, mães solteiras, separações e divórcios. A prática rigorosa e controlada da religião cedeu o lugar a uma opção mais pessoal e livre do que há duas ou três gerações passadas. Ficou no passado o agricultor que costumava percorrer apenas dois caminhos: o diário de ida e volta da roça e o dominical de ida e volta à igreja. Mas, não é aqui o lugar para uma análise antropológica e sociológica mais aprofundada. Resumindo, parece lícito afirmar que os pequenos municípios que surgiram no interior colonial e ocupam uma significativa parcela dos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e outros estados, moldaram um paradigma, diria civilizatório que, descontados os senões e mesmo críticas mais severas e contundentes, apontam o caminho para “cultivar” o “jardim” em que o Criador colocou homem para que tenha condições de realizar os seus anseios existenciais. Tendo sempre em vista que falo do modelo da pequena propriedade familiar dedicada à policultura de subsistência como horticultura, fruticultura e tantas outras modalidades, atrevo-me concluir nas linhas e sugerir nas entrelinhas, que o “agricultor” deu lugar ao “produtor rural”. Munido de um comportamento social e familiar urbano, cultivador de costumes e valores, hábitos religiosos, preocupações econômicas e políticas, sem pretensões de uma formação mais apurada, sem demora passará ser um personagem da história, como os artesãos e tantas outras ocupações. Os casamentos inter étnicos e inter confessionais tornaram-se rotineiros. Já não causam estranheza uniões entre pessoas louras e afro descendentes, entre católicos e outras confissões religiosas, entre alemães e italianos, poloneses, luso-brasileiros e afrodescendentes. Essa miscigenação resultou num cidadão brasileiro cuja origem remota é traída pelo sobrenome, muitas vezes associado a sobrenomes lusos, italianos e outros; um cidadão brasileiro que já não se serve mais dos seus dialetos em família, muito menos no relacionamento social; um cidadão brasileiro que pode ser encontrado em todos os níveis da hierarquia política, militar, econômica e social; um cidadão brasileiro que, apesar de tudo, bem ou mal, não se esqueceu de suas raízes remotas relembrando e cultivando os dialetos falados por seus avós, seja a nível acadêmico, seja a nível de grupos como os que cultivam os dialetos originários do Reno-Palatinado, ou relembrando nos “Kerb” e “Oktoberfest”, fragmentos de suas raízes ainda perceptíveis depois de 200 anos em terras brasileiras.

E, para concluir as reflexões que motivaram o terremoto que acabamos de caracterizar nas páginas acima, sugiro como opção de lazer circular em domingos ou feriados pelos vales dos rios que formam o Guaíba e admirar e degustar a paisagem étnico-geográfica moldada nos 200 anos pela presença dos imigrantes alemães, italianos, poloneses e outras procedências étnicas e seus descendentes no sul do Brasil: Santa Maria do Erval, Nova Petrópolis, Bom Princípio, São Vendelino, Tupandi, São Pedro da Serra, Salvador do Sul, Poço das Antas, Teutônia, Westfália, Imigrantes, Sinimbu, Sobradinho, Santa Cruz do Sul e tantos outros pequenos municípios na região das Missões, Alto Uruguai, Oeste, Centro e Leste de Santa Catarina e oeste do Paraná

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