Da Enxada à Cátedra [ 76 ]

Ação Popular – Action Populaire.

Mais acima já enumerei e comentei as organizações da juventude no meio estudantil em todos os níveis a Juventude universitária católica – JUC; a Juventude estudantil no nível médio – JEC. A essas veio juntar-se a Juventude independente católica – JIC; a Juventude operária católica – JOC; a juventude agrária católica – JAC; as Congregações Marianas dos formados, estudantes universitários, estudantes do nível médio, profissionais liberais e por aí vai. Pois, no meio dos diversos níveis e categorias das Juventudes Católicas foi-se infiltrando sub-repticiamente o marxismo adotando as táticas da “Action Populaire” importada da França. Para entender a lenta contaminação das organizações católicas pelo marxismo, que no final termina numa simbiose espúria, é preciso ir mais ao fundo da questão. Até o final da década de 1950 a Ação Católica imaginada por Pio XI destinava-se em todas suas versões e modalidades de organização, à formação de católicos convictos das sua fé e dispostos a testemunhá-la sem reticências na conduta profissional e particular. Aos poucos, entretanto, foi tomando corpo a ideia de que o catolicismo não deveria restringir-se às convicções pessoais mas engajar-se em ações que tivessem como objetivo transformar a sociedade em que atuavam. Essa abertura para o grande mundo levou o catolicismo praticado nas suas organizações a entrar em contato com os métodos pregados por outras correntes do pensamento, especialmente o marxismo. Defendendo os mesmos objetivos, isto é, a transformação da sociedade conservadora e “capitalista” numa sociedade socialista e igualitária, os métodos marxistas revolucionários foram conquistando a simpatia das organizações católicas. Aos poucos foram incorporando em sua cosmovisão as diversas vertentes do marxismo, com destaque para o Marxismo-Lenilista, a experiência da implantação do comunismo em Cuba e não em último ligar o movimento comunista liderado por Mao Tse Tung na China. Desse caldo resultou uma tal ou qual “marxzização do catolicismo” como também o inverso, uma “a catolização do marxismo”, aliás um fenômeno antropológico histórico que já teve seus precedentes na “cristianização do helenismo” e sua contrapartida a “helenização do cristianismo”, a “cristianização da romanidade” e vice versa “a romanização do cristianismo”, assim como a cristianização da germanidade” e, ao mesmo tempo a “germanização do cristianismo”. Sobre a simbiose entre essas três vertentes fundamenta-se, em última análise a Cultura Ocidental, alvo das baterias dos pensadores da Escola de Frankfurt. Mas, deixemos esse viés do turbilhão em andamento para uma análise mais abaixo. Não se pode esquecer, entretanto, que há uma diferença de fundo entre os dois fenômenos históricos. Na cristianização da helenidade, da romanidade, da germanidade e vice-versa, os preceitos éticos fundamentais, embora formulados e praticados de acordo com o perfil de cada uma das civilizações que entraram nessa amálgama, sempre ditaram o rumo do andar do processo histórico antropológico. São provas do que estamos falando os códigos que disciplinam os direitos e deveres das pessoas inseridas no contexto sócio cultural ocidental: o código do direito romano, o código do direito germânico e o código do direito canônico. A Ética, bem ou mal respeitada e praticada, na sucessão e ou alternância de impérios e repúblicas foi o Leitmotiv responsável que garantiu um mínimo de coesão entre os protagonistas da Cultura Ocidental.

A simpatia e aceitação pura e simples da filosofia e dos métodos pregados por Marx ditou a morte às organizações católicas, nascidas no contexto da Ação Católica proposta por Pio XI. No mundo estudantil e numa proporção não menor entre os intelectuais vingou a moda de auto denominar- se católico-marxista. E não demorou que a nova geração deixasse para trás a herança católica para se auto afirmarem como marxistas, leninistas, maoístas, castristas e outras mais, todas vertentes inspiradas no Marxismo. Parece que o maior problema na prática dessa simbiose espúria entre o catolicismo e o cristianismo das mais diversas confissões e o marxismo, não se encontra apenas no fato de o segundo pregar o ateísmo, mas de valer-se do princípio de que “o fim justifica os meios” como norte para qualquer tipo de ação e estratégia na busca do objetivo final: “uma sociedade sem classes”, em outras palavras, “o comunismo”. Como já alertei em outra ocasião “são como água e óleo”. Podem estar no mesmo recipiente, mas não se misturam. Autodenominar- se católico ou cristão marxista não passa de uma contradição, senão uma aberração. Isso não quer dizer que não possam colaborar em obras comuns que visam, por ex., a promoção humana, o desenvolvimento econômico, obras de caridade e assistência social. Em outras palavras, retomando a metáfora do recipiente, enchem-no sem, entretanto, misturar-se doutrinariamente. Eu próprio com professor e pesquisador vivi essa experiência inúmeras vezes. A grande maioria dos meus colegas e uma alta porcentagem dos alunos costumavam identificar-se como marxistas, comunistas, socialistas ou outras classificações na moda. Não me lembro de ter terminado uma amizade ou negar-me participar de um grupo de estudos, dum projeto de pesquisa, motivado por meus princípios cristãos-católicos e, por isso mesmo, não abrindo mão da conduta ética no cumprimento da missão que me fora confiada. Em inúmeros momentos discordávamos no varejo mas no atacado costumávamos chegar a um consenso deixando de lado as convicções doutrinárias.

Na década de 1960 um outro fator pouco ou nada lembrado veio contribuir para que círculos católicos e cristãos de modo geral fossem perdendo terreno na orientação do mundo acadêmico, especialmente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual era docente de Antropologia na cátedra de Etnografia e Etnologia. A velha guarda fundadora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em 1942 encontrava-se em fim de carreira. Alguns como o Pe. Balduino Rambo faleceram nesse período, outros se aposentaram. Figuras emblemáticas como o prof. Luiz Pilla da química, Francisco Carrion, prof. de História Medieval, José Azambuja, prof. de Mineralogia e Petrografia, Alarich Schultz de Botânica, Romeu Mucillo de Biologia, Heinrich Bunse das Letras, Dorival Schmidt História da América e outros tantos, que formavam, por assim dizer, a velha guarda daquela faculdade, foram progressivamente saindo de cena. Seus assistentes, incluo-me entre eles, treinados ainda no feitio das cátedras, antes da Reforma do Ensino, levaram em parte a orientação dos antigos catedráticos nas suas preleções. Mas, é oportuno lembrar que na época não havia Pós Graduação stricto sensu na UFRGS. Foi então que a primeira geração de mestres e doutores foram conquistar seus títulos neste nível na Universidade de São Paulo, nos Estados Unidos, na França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália e outros países. Oferecia-se ainda outro oportunidade para os professores com dificuldade de afastar-se do País: a Livre Docência. Nessa alternativa previa-se a dupla finalidade de progressão na carreira acadêmica específica somada ao título de Doutor, no meu caso em filosofia e Ciências Humanas. Optei por esse caminho. Assim conquistei em fins de 1976 os dois diplomas: o primeiro de Livre Docente em Antropologia e o segundo como Doutor em Filosofia. Mais tarde, 1988, tive oportunidade de dar uma retocada na Livre Docência e Doutorado conhecido como Pós Doutorado, na Univeristé V – René Descartes em Paris.

Nesse meio tempo, as universidades brasileiras tanto públicas quanto privadas, começaram a oferecer programas de Pós Graduação Stricto Sensu para sempre mais habilitações. Falando em História e Antropologia a USP tomou a dianteira e atraiu uma considerável porcentagem de candidatos procedentes de todo País, para as duas áreas de concentração: História Econômica e História Social. Um bom número continuou procurando universidades de outros países. No caso específico da Antropologia os endereços preferidos foram os Estados Unidos e a Inglaterra. Refiro- me aqui especificamente à Antropologia, a História e a Geografia que formavam o tripé desse curso de graduação. Com a saída de cena da velha guarda e a ocupação dos seus postos por acadêmicos munidos de títulos de mestre e ou doutor, novos ventos começaram agitar esses cursos. Para essa reviravolta contribuiu não pouco a Reforma Universitária que, por ex. dividiu o Curso de História e Geografia em duas graduações autônomas. Com os novos docentes, a maioria creio tinham participado diretamente ou pelo menos foram influenciados pelo clima de simpatia da AP (Ação Popular) pelo marxismo, como já lembramos mais acima, fizeram valer suas convicções. Como exemplo emblemático mostro o que aconteceu com a disciplina à qual eu estava diretamente ligado. Ao ser criada na implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em 1942, constava como cadeira de Etnografia e Etnologia e o Pe. Balduino Rambo o catedrático fundador. Acontece que ele faleceu inesperadamente em setembro de 1961 com apenas 56 anos. No decorrer dos meses que faltavam para terminar aquele ano, a cátedra, como também já lembrei, ficou sem titular feita presa disputada por docentes de dentro e fora da UFRGS. Finalmente coube ao Pe. I. Schmitz, o assistente mais antigo, a titularidade da cátedra. Uma das suas primeiras providências foi convidar o prof. Sérgio Teixeira para preencher a vaga de instrutor de ensino. Depois de um ou dois anos de docência e efetivado com assistente foi fazer o mestrado na USP. Encantou-se, e com razão, pela Antropologia Cultural. Mais ou menos ao mesmo tempo o recém graduado em Sociologia Ruben Oliven seguiu para a Inglaterra e conquistou o doutorado em Antropologia Social na universidade de Londres. Com essa renovação do corpo docente e seus contatos com a Antropologia Cultural e Social somado à Reforma Universitária, a cadeira Etnografia e Etnologia sofreu uma guinada 180 graus na sua própria concepção acadêmica. Foi sendo abandonado sem muito alarde o viés Histórico Cultural que até então ditara a natureza dos conteúdos programáticos das preleções, para dar lugar à hegemonia do viés cultural e social. Ao iniciar a minha trajetória docente na URGS, foi-me confiada a disciplina então denominada de Antropologia Física. Em resumo resumia-se numa Introdução ao Estudo do Homem e compreendia a natureza física do homem e sua inserção ontológica na natureza, com destaque para a genética e a miscigenação, simbiose com meio ambiente, as raças humanas, as migrações a partir do Mesolíto e Paleolítico e pelo Neolítico. Mais acima já expliquei porque o catedrático me convidou para dar conta desses conteúdos, não gozando de uma formação histórica convencional. A Antropologia Física não foi suprimida nesse processo de evolução, mas assumiu a configuração de uma “Introdução ao Estudo do Homem”. E, para ser honesto, foi sobre essa plataforma que encontrei espaço para me envolver com a realidade da “Espécie Humana” em todas as dimensões que esse conceito sugere, formulado há mais de dois milênios pela sabedoria grega: a Espécie humana existe como os minerais, vegeta como os vegetais, sente e tem memória e consciência como os animais, porém distingue-se dessas categorias pela “inteligência reflexa e a consciência do certo e do errado e, ao mesmo tempo, dotado de liberdade para obedecer aos ditames do certo e do errado. Em outras palavras o homem é um “Ser Ético”. Encontrei nessa visão a utilidade, melhor, uma razão de ser prática para os múltiplos conhecimentos apropriados no bacharelado em línguas e Literatura Clássica, no bacharelado de Filosofia, no Bacharelado de História Natural e Geologia e, por fim, na Licenciatura em Teologia. Na década de 1970 e 1980 uma série de faculdades ofereciam a Antropologia com esse formato, como disciplina optativa, mas contando créditos. Foi por essa razão que lecionei para enfermeiras e médicos no Hospital de Clínicas, na Odontologia, no Jornalismo, nas Letras, na Geografia, todos cursos de graduação da UFRGS, como também nos cursos de História, Sociologia, Pedagogia, Jornalismo, Ciências Econômicas e, no Básico da Unisinos. Na faculdade de Ciências Econômicas da Unisinos chegavam a formarem-se turmas até em sábado de tarde. Foi uma experiência e tanto.

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