Archive for 2024

Da Enxada à Cátedra [ 88 ]

O potencial de conhecimento acumulado

A formação de bibliotecas não é um processo aleatório, uma simples preocupação em colecionar obras, reuni-las num recinto apropriado para simular o nível cultural do seu dono. Esse pode até ser o caso de algumas bibliotecas particulares ou de colecionadores de livros. No mais as bibliotecas de profissionais liberais, de intelectuais, de pessoas cultas, no sentido genérico, refletem os interesses e ou as preferências por conhecimentos determinados dos seus proprietários. Esse fato torna-se ainda mais determinante quando estão em jogo bibliotecas de instituições de ensino, de associações, de instituições religiosas, de casas de formação de natureza mais diversa, bibliotecas municipais, estaduais, nacionais, universitárias, de entidades culturais, etc. etc. Em cada uma delas fica clara a preferência dada aos interesses que motivaram a constituição de cada biblioteca em particular. Assim na biblioteca de um profissional liberal, engenheiro, arquiteto, médico, advogado, predominam obviamente as obras necessárias ou úteis para o exercício e atualização da profissão. Um professor de história, de filosofia, de economia, de direito cuidará que sua biblioteca esteja munida das melhores obras da sua especialidade. Esse fato não impede que uma porcentagem considerável da composição dos acervos ofereça obras que atendem às preferências literárias, religiosas, científicas e outras de cada dono ou colecionador. Assim é comum que a biblioteca reunida de um engenheiro, médico ou arquiteto, venha complementada com obras de literatura, arte, filosofia, história da ciência, etc. O exemplo mais emblemático vem a ser a “Coleção Cristo Rei”.

Parece pertinente descrever em poucas linhas o “perfil intelectual” de que estamos falando. Situados no tempo esses intelectuais eram todos jesuítas e completaram a formação antes da década de 1960. Contavam com isso na média com 14 anos de formação em nível superior, sem contar os anos de ensino fundamental e médio: Dois anos de estudos e prática ascética no noviciado; três anos de Letras Clássicas e Retórica; três anos de Filosofia; três a quatro anos de pratica pedagógica somada por muitos a um curso universitário da preferência de cada um; quatro anos de Teologia e mais um ano de estudo e prática de ascese. Somente depois somava-se um biênio ou mais, em nível de doutorado para especializar-se em algum campo da Filosofia ou Teologia. Só então passavam a integrar o corpo docente das faculdades Filosofia e Teologia. Entende-se assim que os mestres que reuniram a coleção Cristo Rei, alimentassem interesses intelectuais complementares, e por vezes, bem diversos do conteúdo das cátedras que regiam. Um professor de Teologia Dogmática cultivava como lazer a leitura de viagens, obras de literatura, compêndios de história, obras científicas e por aí vai. Dessa forma a coleção em foco oferece obras importantes, algumas únicas em praticamente todos os campos dos conhecimentos básicos das Ciências do Espírito e das Ciências Naturais, Humanas e Letras.

Se de um lado o perfil intelectual dos docentes de Filosofia e Teologia explica em parte a composição da Coleção Cristo Rei, um outro elemento foi decisivo. No currículo dos dois cursos, além das disciplinas que formavam a coluna mestra de cada um, costumavam-se oferecer disciplinas complementares que tinham como finalidade despertar a atenção e o interesse dos alunos de filosofia e teologia, sobre o avanço nos diversos outros campos do conhecimento e pesquisa científica e seus reflexos sobre a filosofia e teologia. O tratamento que se dava àquelas disciplinas constava no currículo não como obrigatórias em si, isto é, que fossem exigidos conteúdos pré-determinados de Física ou Biologia, por ex., mas oferecidos na medida da sua importância somada a especialistas disponíveis a ministrá-las. Constavam como “questões seletas” – “questiones selectae”. Com essa prática entrou na biblioteca um considerável número de obras também “seletas”.

A Coleção Cristo Rei serviu de subsídio aos professores e estudantes de Filosofia e Teologia jesuítas. Por isso sua constituição sofreu obviamente o direcionamento tendo em vistas uma formação afinada com a ortodoxia católica, orientada pelo viés da base teórico metodológica adotada nas faculdades sob a responsabilidade de jesuítas. Esse fato chama atenção a uma outra característica dessa coleção. Ela é seletiva oferecendo obras que em princípio não se afastam da ortodoxia oficial. E parece importante apontar para a particularidade de que a coleção foi reunida na sua totalidade entre o final do século XIX e meados do século XX. Cobre, portanto o período entre os dois Concílios do Vaticano. Em outras palavras, corresponde ao período áureo da implantação do projeto da Restauração Católica. O tomismo e o Suarezeanismo traçavam o rumo das preleções e eram os responsáveis pelo seu perfil. Destinavam-se em primeiro lugar para subsidiar a preparação das preleções dos professores de Filosofia e Teologia e como tal altamente especializadas. Em princípio não se destinavam à consulta dos estudantes. Estes serviam-se basicamente de compêndios e textos elaborados pelos mestres e somente aqueles que alimentavam alguma pretensão para no futuro dedicarem-se a estudos avançados em Filosofia ou Teologia.

Considerando as características que acabamos de registrar acima, a Coleção Cristo Rei constitui- se num complexo de obras que condensam o pensamento, a orientação e a doutrina oficial da Igreja Católica, entre os dois Concílios Vaticano. Em linhas gerais reflete o retorno à rigidez da ortodoxia doutrinária, moral e disciplinar definida pelo Concílio de Trento. Retrata também uma tomada de posição ostensiva e combativa em relação a um número de postulados doutrinários defendidos pela modernidade laica. Entres esses destacam-se como pontos altos da polêmica entre a Igreja e o avanço das Ciências Naturais, com acento para o Evolucionismo pregado por Darwin e seus adeptos, com destaque para o Materialismo Monista de Ernest Häckel, Julião Huxley e muitos outros. Vale chamar a atenção de que o eco desses embates foi claramente percebido no sul do Brasil. O segmento mais culto dos imigrantes alemães, como profissionais liberais, comerciantes, artesãos dos centros urbanos, liderados por Karl von Kosertiz, valeram-se da “Deutsche Zeitung” e do Koseritz Volkskalender, para popularizar o ideário evolucionista materialista. Nesse plano duelaram principalmente com os padres jesuítas dos colégios e paróquias nos centros maiores como Porto Alegre, São Leopoldo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e outros. Em resumo. A coleção Cristo Rei vem a ser um bom lugar para o estudioso encontrar fontes e informações a respeito da formação filosófica, teológica, moral, canônica e histórica dos candidatos ao sacerdócio, entre os dois concílios Vaticano.

Da Enxada à Cátedra [ 87 ]

A Biblioteca Histórica da Unisinos.

Procedendo a um reconhecimento exploratório pelo terceiro e sexto andar da biblioteca central, flagrei-me no panorama perfeito para concluir os anos que restavam antes de encerrar minha jornada acadêmica formal em julho de 2013. Sem compromissos burocráticos, administrativos e docentes, inclusive dispensado de bater o ponto na entrada e saída do expediente, costumava iniciar o expediente às 730 ou 8h e encerrar pelas 16h. Enfileirados naquelas dezenas de estantes, ou ainda encaixotados em pilhas e pilhas de caixas de papelão, dispunha de todo o tempo para dialogar com os “mortos vivos” em suas obras e estas, por sua vez, embora mudas” falando uma linguagem singular, contando a saga do perene e do transitório da história da humanidade, tanto da perspectiva escura e deplorável, quanto da face iluminada e admirável. Livros sempre contaram entre meus companheiros prediletos desde aquele remoto ano de 1939 quando, aos 9 anos li, à luz de uma lamparina de óleo de amendoim, meu primeiro livro em alemão e impresso em gótico, já lembrado mais acima. “Noni e Mani” foi seu título e descrevia o quotidiano da infância dos dois meninos irmãos com esses nomes, lá na longínqua Islândia gelada com seus vulcões e fontes quentes. Foi uma experiência memorável ao deparar-me com um exemplar desse livro entre as dezenas de milhares de obras que passaram por minhas mãos nos anos seguintes.

Aleatoriamente acomodados em estantes ou simplesmente empilhados em caixas de papelão ou amontoados não chão, foi necessário proceder a uma classificação em grandes áreas de conhecimento: história, geografia, letras e artes, filosofia, teologia, ciências naturais, ciência e tecnologia etc. isto é, uma pré-classificação para facilitar uma posterior propriamente dita. Essa tarefa exigia um domínio razoável do grego e do latim, do inglês, do francês, do espanhol e evidentemente do português e do alemão. Como já lembrei mais acima, minha formação acadêmica me tinha proporcionado esse conhecimento básico. Pus mãos à obra e por um período de mais ou menos dois anos, em tempo integral, identifiquei pelos títulos, uma por uma, essas obras somando no seu todo em torno de 300.000. Foi uma experiência única pois, para mim pelo menos não se resumiu num procedimento friamente técnico identificando conteúdo e autor de cada obra. A sensação tátil, o odor inconfundível, a data das edições, o conteúdo, as circunstâncias históricas em que as obras foram publicadas, além de outros detalhes me levavam de volta ao tempo em que as obras foram escritas. Na medida em que passava de uma obra para outra desfilavam diante da imaginação os autores “vivos”, embora mortos, não poucos há mais de dois mil anos, mas falando na sua “mudez” do perene e do transitório da história da humanidade. Como seria pertinente que em qualquer biblioteca, por mais modesta que seja, o visitante, o curioso, o pesquisador fosse recebido com a admoestação escrita na entrada: “Hic mortui vivunt, hic muti loqunt! – “Aqui os mortos vivem, aqui os mudos falam”! Os Homeros, os Píndaros, os Tales de Mileto, os Epicuros, os Sócrates, os Aristóteles, os Platão da velha Grécia; os Virgílios, os Horácios, os Tácitos, os Cesars, os Cíceros, os Aristófanes da história de Roma; os padres da igreja “vivos” na gigantesca obra da Coleção “Minge”, resumo dos primeiros 400 anos do Cristianismo; os clássicos do Renascimento, do romantismo, da ilustração; os formuladores das grandes correntes filosóficas: Santo Agostinho, São Tomas de Aquino, Suarez, os Iluministas, Marx, Engels, Feuerbach, Hegel, Kant, Nietzsche, a Escola de Frankfurt; os gigantes da literatura renascentista, moderna, contemporânea e pós moderna: Cervantes, Maquiavel, Camões, Dante, Goethe, Schiller, Heine, Vitor Hugo, Sheakespeare, Milton, e os milhares de outros “mortos vivos”, falando uma linguagem peculiar na “mudez” de suas obras.

Depois aproximadamente dois anos a tarefa da organização básica do enorme acervo documental do sexto e em parte terceiro andar, estava concluído

A gênese das bibliotecas e acervos da Unisinos

Em linhas gerais os acervos depositados no sexto e terceiro andares da Unisinos têm a sua origem nas instituições que os jesuítas fundaram e mantiveram desde 1850 até 1950. Na medida em que as paróquias e capelanias foram criadas e os colégios fundados e postos a funcionar, foram equipados com bibliotecas. A partir da década de 1950 muitas dessas obras foram sendo desativadas ou passaram para outras mãos. Até o final dos anos 1969 as bibliotecas ficaram, por assim dizer, hibernando nas instituições às quais tinham servido. Entende-se que correram um risco não pequeno de caírem vítimas de administradores que não sabiam dar-lhes o devido valor ou presas dos cupins, ratos e intempéries. Não é exagerado admitir que, pelas mais diversas razões, uma porcentagem difícil de dimensionar, foi desviada para colecionadores, donos de sebos ou instituições que nada tinham a ver com a sua origem.

Finalmente o Pe. Aloysio Bohnen, reitor da Unisinos, atento ao valor dessas bibliotecas e o risco que corriam de se perderem irremediavelmente, encontrou no Pe. Arthur Rabuske a pessoa talhada para assumir o salvamento. Este percorreu, na medida do possível, todas as instituições conhecidas, encaixotou as bibliotecas e transportou-as para a antiga sede da Unisinos no centro de São Leopoldo. Num primeiro momento os livros aleatoriamente amontoados em salas, foram pincelados e colocados em estantes sem preocupação por uma classificação. O grosso do considerável conjunto de obras migrou em 2004 para o sexto andar da biblioteca da universidade. Procedeu-se então uma classificação tomando como base a CDU. Encontram-se até hoje nessa situação à espera de uma catalogação em regra e a sua disponibilização ao grande público inclusive via Internet.

Entre as paróquias que de alguma forma contribuíram com a formação dos acervos, destacamos: São Miguel dos Dois Irmãos, Bom Jardim (Ivoti), São José do Hortêncio, Bom Princípio, São Salvador (Tupandi), São Sebastião do Caí, Santo Inácio da Feliz, Nova Petrópolis, São Leopoldo, Igreja de São José em Porto Alegre, Estrela, Lajeado, Santa Cruz do Sul, São João do Oeste, Itapiranga, Cerro Largo, Nova Trento. As bibliotecas paroquiais destinavam-se mais para os paroquianos do que para os párocos e seus auxiliares. As obras nelas contidas perseguiam como objetivos imediatos a formação religiosa, a formação e informação profana, o lazer e o estímulo à leitura. Predominam por isso obras de edificação, biografias de santos, livros de reza, sagradas escrituras, enfim, obras de conteúdo e formação religiosa. O lado profano dessas bibliotecas compunha-se de romances, livros de ficção, relatos de viagens, romances históricos como de Karl May, etc. Além disso encontravam-se nelas obras de consulta e obras de leitura mais apuradas, destinadas a suprir as exigências pastorais dos padres.

Enquanto essas bibliotecas paroquiais estavam ainda disponíveis e abertas ao público, desempenharam o papel de um poderoso estímulo na manutenção do nível cultural num patamar considerável. Costumava ser uma cena comum que os colonos, antes e depois da missa aos domingos, passassem pela casa paroquial ou algum outro local onde se localizava a biblioteca. Devolviam os livros lidos e levavam outros, pagando uma taxa simbólica pelo empréstimo. Nos domingos de tarde ou nas noites concentravam-se à luz de candeeiros de querosene ou lamparinas alimentadas com óleo de amendoim e, apesar do cansaço de um dia de trabalho pesado, liam às vezes horas a fio “alimentando o espírito” como costumavam dizer. Compreende- se que os leitores mais assíduos somavam minoria, como que uma elite intelectual. Costumavam ser pessoas conhecidas como tais e usavam encontrar-se nos domingos antes da missa para trocar informações, falar sobre as novidades que tinham lido e recomendar ao vizinho os livros de que tinham gostado e cujo conteúdo lhes parecia ser útil. Nessa “elite” de leitores assíduos, para não dizer fanáticos, incluo meu pai e meus dois irmãos casados e simples colonos. A programação dominical de meu pai resumia-se em assistir a “missa do cedo” na igreja matriz que ficava a uma hora a cavalo, voltar, acomodar-se na varanda da casa, ler jornais e almanaques até a hora do almoço e, depois de um sono de uma ou duas horas, retomar à leitura até ao anoitecer. Mas era principalmente meu segundo irmão mais velho, o mais velho lecionava na universidade como padre jesuíta, um simples colono, pai de numerosa família. Devo a ele, quando eu tinha nove ou dez anos, uma das experiências mais gratificantes e das influências talvez decisivas, para o meu interesse e curiosidade posterior por saber e conhecer cada vez mais, sem propriamente uma área de maior concentração. O Raymundo, esse era o nome do meu mano, costumava ler à luz avermelhada de uma candeia a óleo de amendoim, às vezes até madrugada a dentro. Deve ter lido uma dúzia dos romances históricos de Karl May, além de relatos de viagem como de Sven Hedin e livros de conteúdo histórico. Sabia como ninguém dramatizar os personagens bíblicos do Antigo Testamento. No dia seguinte no intervalo para descanso na roça, costumava contar o que tinha lido. Winnetou e Old Shaterhand, clássicos de Karl May sobre os índios americanos, vinham a ser seus personagens prediletos. Aliás a descrição da vida livre dos índios das Pradarias serviu também para despertar o jovem filósofo na época, Ernst Bloch, para a sua obsessão pela liberdade sem restrições como condição para realizar a harmonia final entre todas realidades, desde o homem passando pelos animais, plantas, minerais – para a concretização “do ideal do bem” – arealização da “Heimat”, da querência definitiva. Resumiu o seu pensamento na frase: “Onde há liberdade, há possibilidades, onde há possibilidades há esperança, onde há esperança a realização da harmonia final – o “Ideal do Bem” - é possível.

A oportunidade e o hábito da leitura propiciado pela modesta biblioteca da paróquia foi com certeza uma determinante decisiva para que meu irmão mais velho se tornasse um cientista de fama internacional, um outro irmão professor de física e química, uma terceiro um admirado professor de escola e líder comunitário e uma irmã com PHD na Universidade Católica de Washington e professora universitária de literatura americana e inglesa na Universidade Federal de Santa Maria e na Faculdade Imaculada Conceição, hoje UNIFRAN. Os estímulos e os exemplos com que vivi no quotidiano da minha infância levaram-me a me alfabetizar com minha irmã, entrevada pela paralisia infantil, antes mesmo de ingressar na escola da comunidade. Aos nove anos li o meu primeiro livro, emprestado da biblioteca paroquial, da primeira até a última página, naturalmente à luz mortiça de um candeeiro de óleo de amendoim. O título do livro, como já lembrei mais acima, foi “Noni und Mani” e o autor Jón Svenson. Jón Svenson era o Noni personagem do livro e Mani seu irmão, dois irmãos que viviam na Islândia. Noni migraria mais tarde para a Alemanha onde se tornou sacerdote jesuíta. O livro falava da infância dos dois meninos irmãos. O livro nada mais oferece do que o quotidiano dos dois irmãos nas terras geladas da Islândia com seus vulcões e fontes quentes. A leitura desse livro foi o estopim para o despertar em mim duma curiosidade e dum interesse que não esmoreceu até hoje, por terras, povos e culturas de regiões distantes. Localizo naquele final da década de 1930 as raízes da minha paixão pela geografia, pela história e pela antropologia. A descrição das paisagens polares da Islândia, o clima, a neve, o gelo, os vulcões, as fontes quentes, fez com que carregasse para o resto da vida um fascínio difícil de descrever pelas paisagens árticas. Foi uma emoção indescritível, quando classificando os acervos acumulados no sexto andar da biblioteca da Unisinos, encontrei um exemplar do “Noni e Mani”, idêntico ao que havia lido como primeiro livro aos nove anos, mais de oitenta anos atrás. Pelo carimbo de origem não foi possível determinar se foi o mesmo exemplar do livro que foi de tanta importância para minha formação. Também não é esse o detalhe que decide. O que importa é que o exemplar que tinha em mãos deve ter mexido com a imaginação de outros meninos como eu e de adultos também, em alguma paróquia da colônia.

A bem da verdade é preciso chamar a atenção de que os leitores assíduos não somavam a maioria. Eram, contudo, suficientes para desempenharem o papel de “fermento cultural” nas suas comunidades. O alemão ensinado nas escolas para todas as crianças e a realimentação da língua com posteriores leituras assíduas ou não, fazia com que todos entendessem perfeitamente o alemão erudito. Tanto assim que os sermões, alocuções, conferências, palestras, etc., eram apresentadas em alemão erudito e o colono ou colona menos letrado os entendia e fazia questão que fosse assim. Um sermão ou um discurso do professor em dialeto soaria no mínimo estranho.

Até o começo da segunda guerra mundial os leitores assíduos formavam, por assim dizer, uma elite intelectual no meio colonial, como já lembrei mais acima. Costumavam ser escolhidos como subprefeitos, fabriqueiros, capatazes na manutenção das estradas distritais, etc. Os frequentadores assíduos das bibliotecas paroquiais, costumavam ser também assinantes de jornais, leitores de almanaques, periódicos e publicações avulsas. Formavam um estrato culto, possuidor de conhecimentos gerais, de uma cultura apreciável. Emitiam com segurança e conhecimento de causa, opiniões políticas, ajuizavam sobre questões relativas à situação social, econômica, cultural e religiosa. Assumiam inclusive posições críticas diante de questões locais, regionais, nacionais e até internacionais. Não se omitiam nem em discussões de natureza religiosa. Dois fatores praticamente simultâneos mudaram de vez esse quadro, lamentavelmente para pior, para muito pior. O primeiro foi a malfadada Campanha de Nacionalização implantada no país a partir de 1938 e o segundo a Segunda Guerra Mundial na qual o Brasil terminaria declarando guerra à Alemanha, fato que radicalizou o primeiro. Não é aqui nem o lugar nem a ocasião para entrar em detalhes nessa discussão. Merece destaque apenas o fato de que a língua alemã ter sido proscrita e as fontes que a alimentavam e realimentavam o nível cultural dos colonos, isto é, a escola, a imprensa e as bibliotecas postas no ostracismo. Pior. As escolas foram nacionalizadas ou fechadas e foi alimentada toda uma fúria iconoclasta que resultou na queima e destruição de livros, jornais e periódicos. Ora as vítimas foram acervos de pessoas, ora de famílias, ora de instituições. Bibliotecas parcialmente danificadas e desfalcadas, recolheram-se à clandestinidade a espera de tempos mais propícios. Muita coisa se perdeu durante esse período conturbado. O quanto, é difícil de avaliar. Contudo sobreviveu o suficiente desses acervos para permitir uma avaliação quantitativa do volume dessas bibliotecas distribuídas pelas comunidades coloniais. Foi possível preservar também o bastante para se formar uma ideia mais ou menos compreensiva dos interesses do público leitor da época. O que foi possível resgatar soma um número respeitável de obras. Concentram-se aí, na essência, as fontes que permitem dimensionar a abrangência das expectativas em relação à cultura geral e principalmente, o perfil da religiosidade, da espiritualidade e da disciplina religiosa pregada ao povo.

Paralelamente e sem uma vinculação obrigatória com a Campanha de Nacionalização, a maioria das paróquias, administradas por jesuítas passou para a responsabilidade do clero diocesano. Essa mudança implicou no recolhimento simples e puro dos acervos, sem uma preocupação seletiva, para as dependências da antiga sede da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no centro de São Leopoldo. Lá ficaram guardados longe do acesso ao público, durante quarenta ou mais anos, expostos à deterioração natural, a eventualidades não previsíveis, e à displicência como um patrimônio dessa natureza costuma ser visto e avaliado por não poucos, incluindo os próprios jesuítas, fascinados, para não dizer obcecados pela pirotecnia orquestrada pela parafernália da tecnologia. O Pe. Rabuske (in memoriam) referindo-se a esse aspecto, assim se expressou:

( ...) faz-se oportuno dizer que, neste último quartel do século, ou seja nos últimos 25 anos, mais ou menos, tais causas têm existido em geral se vem repetindo um pouco ou até muito em toda a parte. Não se trata, portanto, de um fenômeno típico ou exclusivo nosso, brasileiro, mas extensivo, infelizmente, a outros países, dos quais, por uma longa tradição cultural-científica, tal fato mesmo poderia esperar-se. Conhecemos a esse respeito alguns exemplos, que bem poderíamos definir de “clamorosos”, para não dizer “escandalosos”. Não nos cabe o papel inglório decliná-los em concreto, mas em vez disso, apontá-los como bastante próprios da nossa época, sempre apressada, pragmática, materialista, imediatista, “funcional” e porque não condená-los – sempre destruidora de valiosos e insubstituíveis bens, documentos e monumentos culturais, por perenes. Gente interessada na conservação insistente de tais valores sabe-o de sobejo, a partir de muita abnegada, obscura e inglória, sobretudo desde não poucos e pequenos sofrimentos pessoais. A que atribuir, perguntamos, tal situação lamentável, sem dúvida, doentia e até epidêmica, e por isso mesmo necessitada de uma urgente intervenção medicinal concreta e eficaz. Aqui as respostas se apresentam em boa quantidade. Com frequência será falta do necessário espaço físico, onde acomodar semelhante material impresso. Outras vezes se torna um total despreparo cultural nos responsáveis ou mesmo herdeiros, que apesar de sua formação superior, não titubeiam em proceder de um modo destruidor e anticultural, com respeito ao legado precioso, cujo alcance não atinam ou compreendem. (Rabuske Arthur. In Anais do 5o Simpósio, p. 110-111)

Ninguém tem mais autoridade do que Pe. Rabuske para deixar registrado essas observações. Não fosse ele, apoiado firmemente pelo Pe. Aloísio Bohnen, as bibliotecas paroquiais assim como outros acervos, estariam irremediavelmente perdidos, ou pelo menos muito mais seriamente desfalcados ou danificados. Graças à sua rara sensibilidade no que diz respeito às coisas da cultura, as coisas do alimento espiritual, pelo que é possível avaliar, foi salvo o bastante, tanto quantitativa quanto qualitativamente, para reconstruir a linha mestra dos interesses culturais e religiosos, ao nível esperado das comunidades da época. É de se admirar que após tantas e tais peripécias não tivessem sofrido danos e perdas ainda maiores.

Em questão de dois anos aproximadamente o trabalho de organização básica dos acervos de sexto andar e parte do terceiro estava concluída. Em dezenas de estantes alinhavam-se disciplinadamente as obras de centenas e milhares de “mortos vivos” deixando a sua mensagem para as atuais gerações na “mudez eloquente”de suas obras. Paralelamente uma bibliotecária prática organizou em duas dezenas ou mais de estantes cerca de 1200 títulos de revistas e periódicos dos mais diversos conteúdos assinados pelos jesuítas nas suas instituições, de modo especial nas casas de formação do clero sob sua responsabilidade. Salvo melhor juízo este gigantesco acervo que concentra e preserva a memória histórico cultural no sentido mais amplo dos pouco mais de 100 anos a contar de 1850 a 1960, pode ser considerado uma fonte de pesquisa, na sua multiplicidade e profundidade sem igual no Brasil, cobrindo o período em foco. Destaco alguns títulos como amostra: “Civilta Catolica” desde a primeira edição em 1849; “Stimmen der Zeit”, desde o primeiro número na década de 1860; “Estudes”, “Broteria” dos jesuítas de Portugal; “Vozes de Petrópolis” e por aí vai.

Da Enxada à Cátedra [ 86 ]

O Acervo de Documentação e Pesquisa (ADOPE)

Em 2005, com 75 anos de idade encerrei definitivamente minhas atividades docentes formais na Unisinos. Meu contrato como professor titular com dedicação exclusiva foi encerrado de acordo com a liturgia obrigatória pelas leis trabalhistas. Em vez de esperar o tempo regulamentar a universidade propôs um novo contrato, desta vez sem dedicação exclusiva, sem obrigações letivas na condição de Pesquisador com um salário reduzido à metade, com o objetivo de coordenar a formação de um Acervo de Documentação e Pesquisa a partir das muitas fontes e publicações relativas à imigração alemã além de outros acervos particulares e institucionais que se tinham acumulado junto ao Núcleo de Estudos Teuto-brasileiros. Aceitei a proposta e com as leais e fiéis colaboradoras Isabel C. Arendt e Janaína Silva fomos ocupar as três salas reservadas no subsolo do pavilhão 5 do extinto Ciclo Básico.

Naquele espaço encontravam-se depositadas a biblioteca do prof. Kurt Walzer, já mencionada mais acima, meia dúzia de pequenas bibliotecas cedidas por famílias, todo acervo documental das Cooperativas do Rio Grande do Sul, o Acervo Documental da Sociedade União Popular. A esses vieram somar-se nos dois anos seguintes, o Acervo do Pe. Balduino Rambo, e acervo documental do Falido Frigorifico Vacariense confiado à Unisinos a título de “guarda judicial”. O primeiro passo consistiu em acomodar em estantes os acervos documentais e os livros avulsos para em seguida, passar a catalogar os livros de acordo com regras técnicas e organizar os acervos documentais do extinto Centro de Documentação e Pesquisas (CEDOPE), da Sociedade União Popular e do Pe. Rambo. À Janaína coube a catalogação dos livros e à Isabel coordenar a organização dos Acervos de acordo com as regras técnicas usuais nesses casos. A catalogação dos livros não implicava em recursos financeiros específicos, o que não vinha a ser o caso dos Acervos Documentais. Sem muita perda de tempo a Isabel e eu montamos três projetos para a captação de recursos. O do Pe. Rambo pedia recursos ao BNDES, o da Sociedade União Polpular, ao Programa de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura (Lei Rouanet) e o do CEDOPE, focado no cooperativismo, ao programa de incentivo da cultura da PETROBRAS. Os três foram aprovados. Acontece que somente dois foram de fato executados: o do Pe. Rambo e o do Cooperativismo. Para o da Sociedade União Popular aprovado pela Lei Rouanet não foi possível captar os recursos em tempo hábil por falta de interesse das não poucas empresas visitadas. O Acervo de Documentação e Pesquisa de que estamos falando foi na verdade o resultado da evolução do Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros, sob a jurisdição do Pós Graduação em História. Por ordem superior, entretanto, passou a ser incorporado na biblioteca central da universidade, mais especificamente no setor de livros raros e antigos e a biblioteca histórica que abrigava as muitas bibliotecas espalhadas pelas paróquias, seminários e casas de formação dos jesuítas no sul do Brasil, reunidas no terceiro e sexto andar da biblioteca. A história e características desse conjunto de incalculável valor, pretendo detalhar mais abaixo. Para encurtar. O acervo do ADOPE migrou para o sexto andar da biblioteca e passou a fazer parte do rico e precioso conjunto de obras reunidas pelos jesuítas alemães desde 1849. O cuidado dos acervos documentais ficou sob a responsabilidade da Isabel enquanto a acomodação dos livros e revistas em dezenas de prateleiras coube a Janaína. Por minha conta e responsabilidade ficou a tarefa de proceder a uma classificação prévia em grandes áreas, como geografia, história, filosofia etc. das cerca de 200.000 obras acumuladas em caixas de papelão que não deixavam de se multiplicar na medida em que chegavam mais e mais pequenas, médias e bibliotecas maiores com a do Colégio Cristo Rei, da sede antiga da Unisinos no centro de São Leopoldo e do Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.

Antes de descrever a minha função específica de organizar os acervos da biblioteca histórica da Unisinos, parece oportuno refletir um pouco sobre a história da preservação da memória histórica a partir do momento que dispomos de “documentos” que a trouxeram até nós sem quebra de continuidade.

Memória histórica – Bibliotecas.

As tradições, a história, o patrimônio cultural de um povo constituem-se na sua própria razão de ser. Desde tempos imemoriais, desde a aurora da história, o homem viveu em hordas, bandos, tribos, parentelas, nômades ou seminômades, caçadores coletores de frutos e raízes, ou agricultores primitivos e criadores de animais. Uma das suas grandes preocupações foi a preservação da sua história e suas tradições, enfim sua memória. Recorreram aos mais variados instrumentos para que o fio da memória histórica não sofresse rupturas importantes e não se apagassem as trilhas que conectam o passado com o presente.

Dependendo das características circunstanciais que determinaram a direção e o ritmo da história, recorreu-se aos mais diversos recursos disponíveis para preservá-la. Desde que o homem se fez presente na terra, com portador de inteligência reflexa, preocupou-se com a memória individual e coletiva. “Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre isso uma nova realidade” (Caldera, 2004, p.14). Sendo assim entende- se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, ao mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade para que não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao transitório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultará fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar.

Tanto os povos letrados quanto os ágrafos puseram a serviço da preservação da memória histórica, os meios mais diversos de que dispunham. Entre muitos povos a história e a tradição foram, e em não poucos casos são ainda hoje, transmitidos via oral, de geração em geração, pelas pessoas mais idosas. A elas cabe a tarefa de narrar às gerações mais novas, principalmente às crianças, a história dos antepassados. Agrupadas em volta de fogueiras, recolhidas no interior de tendas, no interior de cavernas ou abrigos rústicos, as crianças ouviam os anciãos e anciãs falarem dos antepassados, dos mitos, dos heróis, dos deuses, dos demônios. Pintados com cores vivas desfilavam diante dos seus olhos infantis curiosos os heróis fundadores. Tanto fazia se eram personagens reais ou imaginários. Lá estavam eles com toda a sua autenticidade e ninguém punha em dúvida a história que estava sendo narrada e que os punha em contato com suas raízes. E como esses anciãos e anciãs esquimós, índios das pradarias do Mississipi, tupis-guaranis, araucanos, maputches, incas, bantus, australianos, chineses, indianos, germanos, etc., etc., devem-se ter esmerado em retratar com as cores mais vivas possíveis, as sagas e os heróis dos seus povos. A esses anciãos e anciãs cabia ao mesmo tempo o papel dos livros, das bibliotecas, das escolas e dos mestres. Por encarnarem a memória viva gozavam de prestígio inconteste conforme os registros dos etnógrafos e etnólogos que se ocuparam com eles.

Além da via oral, da boca dos anciãos ou de outras formas de transmissão oral, outras tornaram- se correntes. A história pode ser contada com o recurso às artes plásticas: desenho, pintura, estatuária, assim como com as tecnologias de fabricação de instrumentos e artefatos de todos os tipos e finalidades, da cestaria, vestimenta, monumentos fúnebres, vestígios de alimentos, e muitos mais.

Em resumo são esses os “livros”, os “documentos”, as “fontes”, que compõem as “bibliotecas” que guardam e preservam a memória dos povos ágrafos ou a fase ágrafa dos povos letrados, permitindo de alguma forma o acesso à sua história não escrita.

Obviamente os “documentos” guardados na memória dos anciãos e anciãs e nas “bibliotecas” dos povos sem escrita, oferecem uma compreensão permeada de idiossincrasias e lacunas. Os perfis da história dos povos tornam-se mais nítidos, são enriquecidos com detalhes, assumem contornos mais claros, a partir do momento em que o homem começou a usar a escrita sistemática, baseada em caracteres com simbolismos convencionados. Enquadram-se nessa linha a escrita cuneiforme, os hieróglifos, os sinais, os logogramas da China e do Japão e outros mais. Entalhados em pedra, nas paredes de cavernas e abrigos naturais, em placas de cerâmica, escritos em peles de animais, em papiros e sobre outros fundos, permitiram o armazenamento sistemático e para o futuro da memória histórica das civilizações em consolidação tanto no ocidente quanto no oriente. A interpretação da escrita cuneiforme franqueou o acesso ao conteúdo do Código de Hamurabi, o mais antigo compêndio de leis do ocidente e ao conteúdo do poema épico escrito em caracteres cuneiformes e em arcádico, permitindo o acesso ao significado da busca da imortalidade de Gilgamesh, rei de Uruk, entre 2700 e 2500 A.C. Da mesma forma a decifração dos hieróglifos, abriu as portas para os detalhes da história do Egito dos últimos milênios A.C. sobretudo o imaginário sobre a morte no Livro dos Mortos que permeia significativamente os textos do Antigo Testamento da tradição judaico cristã.

O passo decisivo para um registro compreensivo e cada vez mais exato, foi dado com a invenção dos diversos alfabetos. Somando menos de três dezenas de símbolos gráficos, agrupados numa infinidade de combinações, permitem na prática, registrar, os sons, os vocábulos e formular os conceitos, expressar o estado de alma, as aspirações, crenças etc., próprios das inúmeras tradições culturais históricas. Os documentos, as fontes, os livros, desde então oferecidos ao público, somados aos anteriores, desde o Código de Hamurabi, do poema de Gilgamesh, do Livro dos Mortos do Egito, foram reunidos em recintos apropriados, conhecidos desde tempos remotos como “bibliotecas”. A mais famosa delas, a Biblioteca de Alexandria abrigava, quanto se sabe, a linha mestra da história e do conhecimento da antiguidade remota do Ocidente. Desafortunadamente caiu vítima do espírito fanático e iconoclasta de conquistadores islâmicos que a incineraram por julgar o conteúdo herético e por isso inútil. Dados históricos registram que as chamas levaram semanas e meses, para reduzir a cinzas a história do norte da África, com destaque para o Egito, do Oriente próximo e médio e da bacia do Mediterrâneo. A história posterior desgraçadamente tem a registrar inúmeros exemplos semelhantes. Por razões políticas, religiosas, étnicas, ou simplesmente pela ignorância mais crassa, obras sem conta e bibliotecas inteiras foram impiedosamente destruídas e mutiladas e, infelizmente, o são ainda hoje. Aqui cabe uma observação. Os livros com encadernação de luxo, livros com encadernação simples, livros em forma de brochuras, periódicos, revistas, escritos avulsos, correspondências, partituras de música, registros de contabilidade, anotações em folhas avulsas, bilhetes impressos de toda natureza e conteúdo, guardam de alguma maneira uma parcela ou uma gota da memória do passado. Trata-los como inúteis, pior como lixo e vende-los para a reciclagem, não passa de ignorância para não falar em estupidez. Por isso é de fundamental importância que pessoas responsáveis para lidar com acervos e bibliotecas tenham um mínimo de consciência dos tesouros que lhes são confiados para a guarda. Posso estar exagerando, mas se dependesse de mim nenhuma linha anotada na orelha de um jornal ou de um bilhete qualquer, deveria ser descartado por serem fragmentos da memória que transmitem de alguma forma uma mensagem ou registram um momento, uma gota no oceano da história. Aliás, enquanto esvaziava as caixas guardei numa estante as folhas ou páginas soltas de jornais e revistas, rascunhos escritos a mão e, por isso, tive que ouvir da curadora dos acervos a observação pouco simpática chamando-me de “coletor de lixo”.

Mesmo assim as bibliotecas foram-se multiplicando em número e aumentando a quantidade e valor das obras. Pelo menos o essencial da cultura clássica, suas linhas de pensamento, sua literatura, sua ciência, encontraram guarida nas bibliotecas dos grandes centros de cultura e do poder do ocidente, do oriente próximo e remoto. Nos séculos tumultuados, marcados pelas grandes migrações dos povos na Europa, as bibliotecas migraram para os mosteiros, onde encontraram uma relativa segurança. Os monges distantes e quase imunes às turbulências do século, lançaram-se à tarefa pela qual a história posterior lhes deveria ser eternamente grata. Puseram-se a copiar os textos com paciência e perseverança. As obras assim multiplicadas puderam ser guardadas em locais distintos, diminuindo em muito o risco da perda, extravio ou destruição pura e simples.

Embora nos séculos finais da Antiguidade e durante a Idade Média, a produção do conhecimento, as obras literárias e o avanço nas ciências, tivessem perdido muito do seu brilho e dinamismo, conta a seu favor o mérito de ter sido a fiel guardiã do legado do mundo antigo clássico. Estigmatizá-la pejorativamente com a “Idade das Trevas” não passa de um primarismo grosseiro de avaliação. Ao abrigo dos mosteiros a memória cultural da Antiguidade Clássica encontrou segurança durante séculos, aguardando o momento para servir de ponte e de combustível para alimentar o motor da Renascença.

Quando a Idade Média chegou ao seu final e o furacão da Renascença começou a varrer a Europa, a providencial invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, ofereceu o pressuposto técnico para que a memória histórica guardada nos mosteiros e a avalanche da produção nova e inédita, pudesse ser fácil e rapidamente posta à disposição do grande público. Em meio a essa frenética agitação surgiram as primeiras universidades em Florença, Paris, Praga, Oxford, Cambridge, Heidelberg, Berlim. Essas e muitas outras que foram surgindo transformaram-se em centros de produção do conhecimento. Na sua origem essas instituições centravam seus interesses na Teologia, na Filosofia, Humanidades, Matemática, Medicina, Jurisprudência. A partir daí começou a migração para as universidades do conhecimento guardado nos mosteiros e o novo que vinha sendo produzido. O resultado natural dessa movimentação foi a instalação de bibliotecas e acervos documentais, como parte obrigatória integrante das universidades.

A partir desse momento as universidades tomaram o lugar dos mosteiros na preservação da memória histórica escrita. No mesmo ritmo em que o furacão da Renascença foi-se alastrando, avolumou-se a produção de novos conhecimentos. E foi nas universidades e no seu entorno sob sua influência direta e indireta, que a mente humana deu demonstrações dos seus fabulosos potenciais. Em meio a essa efervescência generalizada as universidades com suas bibliotecas e acervos documentais, ofereceram os estímulos e as inspirações que as transformaram no nascedouro de uma nova era da história. A concepção de novas ideias, a produção de novos conhecimentos, a moldagem de uma nova cosmovisão, não foram o produto de um “deus ex machina”. Resultaram da redescoberta dos conhecimentos cuidadosamente preservados na penumbra das bibliotecas dos mosteiros. E é nessa perspectiva que a Idade Média com seus mosteiros adquire sua verdadeira e inegável importância histórica. O fato de ter impedido que se interrompesse o canal de comunicação do Mundo Antigo Clássico com a história dos povos dos séculos XV e XVI, confere-lhe um significado de difícil avaliação. Medir o papel da Idade Média e seus mosteiros apenas pela ausência do espetacular, do barulho das invenções, pelo estrépito do embate das ideias em conflito, pela presença e influência onipresente da Igreja em todos os níveis da sociedade, certamente não chega a tocar naquilo que a tornou fundamental para a história.

E as universidades, as grandes herdeiras das fontes do saber e do conhecimento, guardadas nos mosteiros, multiplicaram-se e espalharam-se com rapidez pela Europa toda. Transformaram-se no fórum em que uma nova era estava sendo gestada. Em meio ao embate das ideias em que a nova geração pensante da Renascença se envolveu nas “aulas magnas” das academias, o saberguardado por séculos, estimulou e amadureceu frutos espetaculares. A semente, fruto do espírito fecundo e, porque não dizê-lo, da genialidade dos antigos, depois de hibernar por mil anos nos mosteiros, germinou com todo o vigor, no chão fecundo da atmosfera propícia das universidades.

Em meio ao fervo da Renascença a produção do conhecimento vem acompanhado no mesmo ritmo, com florescimento das artes, das letras e das ciências. Novas tecnologias conheceram momentos de glória. Sem pretender diminuir as novas tecnologias em geral, destaco novamente pela sua importância a invenção da Imprensa por Johannes Gutenberg. Sem ela a popularização dos conhecimentos guardados nas bibliotecas e o novo que se produzia em profusão, dificilmente teria ultrapassado os recintos nos quais era produzido. Pela facilidade da reprodução dos textos atingiu e conquistou um número de leitores cada vez maior, e não tardou para atingir as classes sociais menos favorecidas. As consequências foram óbvias. As ideias novas e antigas, as mudanças acontecidas na cosmovisão, nos hábitos, nos costumes, nas crenças, passaram a fazer parte do dia a dia até das pessoas comuns. O desfecho era previsível. A história da humanidade enveredou por um rumo que ainda hoje decide sobre os caminhos a seguir. Outra consequência. Na esteira da dinâmica desse processo agiganta-se o volume de obras que saem das oficinas gráficas em constante multiplicação numérica, no mesmo ritmo em que as tecnologias de impressão vão-se aprimorando. O crescimento quantitativo e qualitativo enriqueceu e multiplicou as bibliotecas. O conceito “biblioteca” deixa de soar como algo “monacal” ou “acadêmico”, fora do alcance do comum dos mortais, para servir também como termômetro do nível cultural, até das comunidades do mundo rural.

Sendo assim entende-se que o homem desde suas remotas origens, se tenha inspirado no passado para construir o presente e, ao construir o presente, consciente ou inconscientemente, colocar as bases para o futuro. A história ou as histórias dos povos, são obras da inteligência, fruto da capacidade criativa, do poder inventivo, sob o comando da capacidade reflexiva. Cada história é única em relação às demais e, o mesmo tempo, embora a linha mestra, que lhe confere unidade e não sofra quebra de continuidade, a sua encarnação no tempo está sujeita ao aleatório de cada época. Em outras palavras. A trajetória da história tem o seu rumo traçado pelo perene e o transitório que constituem sua essência. E, em meio a essa dinâmica, em meio a essas vicissitudes históricas, a identidade cultural de cada povo adquire forma e rosto. É fundamental que nesse processo não aconteça quebra de continuidade o que resultaria fatalmente em sérios prejuízos para a identidade e, em casos extremos, na sua perda. O indivíduo e mais ainda um povo como um todo, despojado de sua identidade fica à deriva, perde a dignidade, o amor próprio, o sadio orgulho e autoestima. Transforma-se em presa fácil dos seus inimigos e vende-se àquele que lhe oferece as maiores vantagens. Para evitar tamanha catástrofe o único meio eficaz é a preservação da memória histórica, custe o que custar. E para resumir o que vínhamos refletindo é legítimo afirmar que “as bibliotecas deveriam se tratadas como santuários onde os mortos continuam vivendo e os mudos falando”.

Da Enxada à Cátedra [ 85 ]

Depois da volta dessa última viagem em meados de setembro de 2001 não guardei na memória nenhum evento que mereça registro especial além das providências rotineiras da coordenação do PPGH. Entramos depois no ano de 2002 que seria para mim o último como coordenador. E, para ser sincero, estava na hora de passar o bastão para um substituto e desta vez, me livrar de vez de compromissos administrativos, que aliás nunca me seduziram, mas assumidos como parte da missão a cumprir na universidade. A troca de comando deu-se numa reunião do Colegiado do Programa em janeiro de 2003, na qual o prof. Werner Altmann foi eleito. Chancelada a decisão do Colegiado pelo Diretor do Centro, Pe. José Ivo Follmann, o prof. Werner foi empossado e eu me instalei num dos gabinetes do quarto andar perto da secretaria. Retomei a todo vapor as pesquisas sobre a imigração alemã, traduzi obras de referência na área e comecei a escrever a trilogia tendo como foco a atividade dos jesuítas alemães no sul do Brasil: “O Projeto Educacional” publicado em 2009 sob o Título “Um Sonho e uma Realidade”; “O Projeto Social” em 2011 com o título “Somando Forças”; “O Projeto Pastoral” em 2013, todos pela Editora da Unisinos. Um semestre sim e outro não, ministrava seminários para os mestrandos e doutorandos além de orientar dissertações e teses. Pelo o final de 2004 fomos atropelados pelo falecimento prematuro com câncer no fígado do prof. Marcos Tramontini, uma das grandes promessas para reforçar a pesquisa histórica da imigração alemã. Aliás sua tese de doutorado defendida na PUCRGS tornou- se referência desfazendo com farta documentação que o mito do isolamento das primeiras gerações de imigrantes alemães formavam grupos isolados, à margem dos luso-brasileiros, entregues a si mesmos, vítimas do abandono por parte das autoridades provinciais e nacionais. A participação na guerra Cisplatina, na Revolução Farroupilha, na Guerra do Paraguai, na Revolução Federalista e outros eventos demonstram que o isolamento vinha no mínimo a ser relativo.

A primeira metade desse período, mais especificamente o ano de 2005, coincidiu com o centenário do nascimento do Pe. Balduino. Na condição de cientista nacional e internacionalmente reconhecido, foram organizados não poucos eventos comemorativos na Unisinos para lembrar a importância desse ilustre jesuíta, tanto como cientista, quanto como professor no Colégio Anchieta, como catedrático fundador na UFRGS, diretor do Museu do Estado, como idealizador do Parque dos aparados da Serra, como escritor e como decidido defensor das comunidades coloniais de origem alemã e seus valores religiosos, éticos, familiares, além da sua exemplar organização comunitária fundamentada no solidarismo. Coube ao prof. Martin Sander a responsabilidade de coordenar a montagem do projeto que polarizaria os eventos setoriais a serem programados durante o ano de 2005 e 2006. Submetido à apreciação à apreciação da Lei de Incentivo à Cultura, esta autorizou a captação de recursos para a publicação de dois livros e a montagem de uma exposição itinerante resumindo a trajetória de vida do Pe. Rambo, desde sua infância, até topo de sua atividade acadêmica, científica e social. Os recursos foram capturados na Copesul. O primeiro volume com o título “Na Trilha do Pe. Rambo”, ficou sob a responsabilidade dos jornalistas Eduardo Tavares, a quem coube a parte fotográfica e ilustrativa, e Renato Dalto, autor do texto bilíngue (português e inglês). O segundo volume intitulado “Pe. Rambo – Pluralidade na Unidade: memória, religião, cultura e ciência”, contou como organizadores os profs. Arthur Rambo, Imgart Grützmann e Isabel Cristina Arendt. A obra consta de 6 contribuições de estudiosos da obra do cientista e um anexo com as publicações científicas e literárias e duas páginas dedicadas ao necrológio.

Por ocasião do lançamento dos dois livros e a apresentação oficial do memorial itinerante a Unisinos com a sua cúpula administrativa patrocinou um evento solene no térreo da biblioteca central. Outro evento comemorativo foi organizado pela prefeitura e comunidade de Tupandi, incluindo o lançamento dos dois livros junto ao memorial que ficou exposto no solar dos Weber. Essa homenagem em Tupandi teve um significado todo especial. A comunidade local com suas lideranças lembraram um dos filhos elevado à categoria de cientista internacionalmente respeitado literalmente saído da roça, melhor, “da enxada à cátedra” de uma universidade federal e à fama de um cientista de primeira linha. Mais tarde esse memorial seria exposto inclusive no Aeroporto Internacional Salgado Filho. A justiça manda registrar aqui um reconhecimento, senão de gratidão toda especial ao grande prof. e pesquisador Martin Sander pela parte decisiva que lhe coube nesses eventos comemorativos, ao elaborar o projeto de comemoração e obter o apoio da Lei de Incentivo à Cultura, somado à captação dos recursos. Um muito obrigado do irmão mais novo do Pe. Rambo.

Da Enxada à Cátedra [ 84 ]

Uns 30 quilômetros ao sul de Koblenz deu para apreciar de passagem numa curva fechada do Reno o emblemático rochedo da Lorelei com seu castelo medieval no alto, com suas lendas inspiradoras de poetas. Um pouco mais para o sul predominando uma combinação de uma beleza rara, vinhedos com florestas secundárias.

A partir de Constança o trem avança gradativamente Alpes adentro. Na medida que a viagem progride os vales tornam-se mais estreitos entre as montanhas cada vez mais altas. A minha paixão pela geologia levou-me logicamente à pergunta pela gênese geomorfológica daquele gigantesco e magnífico complexo de montanhas. Foi preciso recuar cerca de 44 milhões de anos para entender como se moldou aquele cenário e seus contrapontos nos Andes e no Himalaia. Chamo a atenção que estou falando em dezenas de milhões de anos. Tenho consciência que essa perspectiva cronológica cause dificuldades em não poucos intelectuais titulados nas mais diversas especializações das Ciências Humanas assim como também em outras áreas de viés mais tecnológico. O processo de levantamento começou com o encontro da placa tectônica móvel da África com a placa Euroasiática fixa. Essa colisão fez com que as bordas das placas fossem empurradas lentamente para cima até altitudes que no Mont Blanc, a maior chega a 4.809 metros e no Materhorn o segundo pico mais alto com 4.478 metros. Acontece que na medida em que os dobramentos para o alto foram subindo cada vez mais, as camadas e formações geológicas mais antigas foram sendo empurradas até um ponto em que se dobraram sobre as mais recentes, sepultando-as lentamente. O resultado foi que a parte mais alta das montanhas vem a ser formada por camadas geológicas mais antigas. Como já lembrei mais acima esse processo se prolongou por milhões de anos e resultou no que se pode considerar o esqueleto original daquele complexo de montanhas.

O perfil físico geográfico definitivo dos Alpes foi moldado pelas glaciações dos últimos 600.000 anos. Cada período glacial durou em torno de 100.000 anos intercalado por um interglacial de cerca de 10.000 anos. Atualmente encontramo-nos num desses períodos interglaciais com a temperatura média anual 8 a 10 graus C acima da temperatura média das glaciações. A espessura da neve acumulada durante os períodos glaciais chegava a 2.500 metros. Lentamente esse gigantesco volume de neve e gelo descia a encosta das montanhas terminando em geleiras semelhantes a caudais de centenas de metros de espessura, que se movimentavam lentamente em direção à saída dos vales. Essa movimentação da neve e do gelo foi cinzelando as encostas das montanhas arrancando e carregando volumes incalculáveis de fragmentos de todos os tamanhos, dando origem aos típicos vales e forma de U. No degelo que ocorreu nos últimos 10.000 anos com a elevação da temperatura média da terra, os escolhos chamadas tecnicamente de morainas foram-se acumulando nas frentes do degelo. Resultaram daí arroios de montanha, rios e lagos, alguns deles de dimensões fora do comum como lago de Como, da Garda, Lugano e dezenas de menores. Na medida em que o degelo avançava a vegetação foi tomando conta das encostas e dos vales. Florestas de coníferas e espécies com folhas decíduas dominaram o fundo e a encosta das montanhas, espécies de menor porte, gramíneas, musgos e líquenes até o limite da neve eterna e nos penhascos, muitos deles inacessíveis onde floresce o Edelweiss, flor símbolo da Suíça e a rosa dos Alpes – “Alpenrose”. Não se pode esquecer que esse cenário maravilhoso atraísse muitas espécies de animais de todas as categorias taxonômicas. Pelo simbolismo destaco a cabra montês que se equilibra nos lugares mais impossíveis daqueles penhascos e a águia dos Alpes – o “Lemmergeier”, planando de uma montanha para outra pronta para surpreender algum cabrito distraído.

Pois, foi esse o cenário ou, se preferirmos, o “jardim” moldado pelo Criador para que o homem o cultivasse e o aperfeiçoasse para uma “casa”, na qual se sentisse “Em casa” – “zu Hause. Naqueles espaços, lugares e caminhos moldou-se uma estirpe humana única, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais, despertando os potenciais do humano no homem. Mais acima já lembramos como esse complexo de montanhas foi recebendo os povos que formaram a base da federação Suíça, o norte da Itália, o Tirol do Norte e do Sul, Lichtenstein, a Áustria, o sul da Baviera e leste da França. Aníbal Barca foi o primeiro a cruzar os Alpes com seu exército, cavalos e elefantes em 216 A.C. Como se tratava de uma expedição que visava a invasão do império romano pelo norte, a travessia não resultou na fixação de povoados naqueles vales e montanhas. Um século depois os Cimbros e Teutões, povos emigrados da Jutlândia, hoje Dinamarca, cruzaram os Alpes e foram barrados pelos romanos no norte da Itália e forçados a se refugiarem e fixarem nos vales alpinos do norte da Itália, onde ainda hoje podem ser encontrados vestígios da língua e costumes dos cimbros em aldeias isoladas nos vales. Finalmente o complexo dos Alpes foi definitivamente povoado com a migração dos povos germânicos entre o século IV e IX DC. Mas, em grandes linhas, o panorama daquele período já foi lembrado mais acima.

Sob o aspecto biogeográfico não deixa de cair em vista o perfil e localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural acrescentando um elemento a mais na estética da paisagem em vez de agredi-la. O mesmo se pode afirmar dos lugares, espaços e caminhos nos quais circulam e se comunicam as pessoas. Esse conjunto de acréscimos à estética natural da paisagem servem de exemplo como a simbiose entre a natureza cultivada pelo homem resulta numa sensação de “estar em casa” – um “zu Hause”. Uma paisagem humanizada dessas oferece modalidades sem fim de inspirações para manifestações artísticas para poetas, literatos, cantores, somados aos próprios instrumentos originados das características daquele panorama. Para não me alongar demais chamo a atenção ao emblemático “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes”. Mas, numa compreensão histórico-cultural o conceito “Trompa os Alpes” define, sem dúvida, melhor o significado de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas rebatidas pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com nossos equipamentos eletrônicos, para expressar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem entre aqueles que o escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira, empregando técnicas as mais modernas e avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha.

Não é por nada que uma paisagem dessas inspirou e continua inspirando poetas, cantores, romancistas, contadores de histórias de fadas, escultores em madeira e outros mais. Sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” – “Ave Maria der Berge”, cantada ou executada por conjuntos e instrumentos em sintonia com vozes masculinas e ou femininas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montnara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, Tirol do Sul, norte da Itália. Como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – lá longe ecoa uma cascata – os verdes pinheiros filtram os prateados raios de luz – uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi sempre uma marca do homem e das comunidades alpinas, testemunhada pelos emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão e artista moldado nessas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottsschnitzler”, mal traduzido o “Escultor de Deus”. Poderíamos descrever milhares de outras paisagens humanizadas de beleza indiscutível. Ao avalia-las não cabe fazer comparações pois, cada qual é única na sua moldagem num ambiente geográfico também único que nunca se repete e, por isso mesmo, ecoa na alma de uma forma singular. A natureza como “casa” da humanidade oferece infinitas modalidades concretas de como acontece a simbiose entre a alma e sua “mãe e pátria”. E, para que esse acontecer não passe por desvios e traumas é preciso que “a casa” ofereça as condições indispensáveis para poder ser chamada de “Lar”, “Querência”, “Heim” além de outras modalidades como as muitas culturas conceituam “O Bem Morar”. Holger Zaborowski resumiu em poucas linhas a multiplicidade e complexidade dos fatores que entram em cena ao tentarmos entender toda a dimensão e profundidade o significada do conceito do “bem morar” para o homem.

Independente das diferenças que nos separam, moramos numa complexa rede de espaços e compartimentos que vão do porão ao telhado, do jardim ao terraço da cozinha, da sala de estar à das refeições, dos quartos de dormir ao banheiro. Moramos também em espaços mais amplos: nas ruas e quarteirões da cidade, nas aldeias e cidades, nos países e continentes. De alguma forma moramos em todos esses espaços. Moramos de alguma maneira em todos eles mesmo que na prática ocupem um espaço à margem do dia. Acontece que no morar, tendo como pano de fundo esse panorama, realizamos as inúmeras potencialidades da nossa condição de humanos. Em resumo, foram esses os pensamentos e reflexões que povoaram a minha mente e imaginação nas horas em que o trem passando pelo lago e cidade de Lugano nos levou pela meia tarde até a fronteira da Suíça com a Itália e por fim até Milão.

De Milão embarcamos no trem regional para ao entardecer desembarcar em Bérgamo onde encontramos vaga para três dias no hotel Arli. No dia seguinte viajamos de trem até a estação central de Verona onde embarcamos no ramal regional até Cremona, local donde emigrou o avô materno da Inez para o sul do Brasil. Um taxi nos levou até Benemerse paróquia mais para o interior, localidade de nascimento dos Grandi, lado materno da Inez. Caminhamos por uma hora ou pouco mais para interior agrícola, visitamos o cemitério onde pude identificar alguns sobrenomes correntes nas colônias italianas no Rio Grande do Sul. Por fim tivemos um encontro com o pároco que nos mostrou a bela igreja com sua torre típica daquela região da Itália. A pia batismal e o carimbo da paróquia continuam sendo os mesmos do tempo dos emigrantes para o Brasil nas últimas décadas do século XIX. Pelo fim da tarde embarcamos no trem de volta para o pernoite em Bergamo.

Na manhã seguinte embarcamos novamente no trem e seguimos até Verona e de lá até Trevisio, região donde os avós paternos da Inez emigraram para o Brasil pelo final da década de 1870. Depois de caminhar pelas ruas da simpática cidade, resolvemos entrar numa mercearia de bom tamanho a fim de pedirmos orientação de como chegar a Gagliarine, 12 quilômetros para fora da cidade, local exato da procedência dos ancestrais do lado paterno da Inez. Caíram em vista os muitos tipos e tamanhos de queijos e, pendurados nos barrotes, dezenas de pernis de porco defumados. Depois de nos apresentarmos ao dono estabelecimento e identificar-nos como descendentes de alemães e italianos no sul do Brasil em visita aos locais na Alemanha e Itália donde emigraram nossos antepassados, a Inez perguntou se ele conhecia alguém de sobrenome Presotto. Com um sorriso meio maroto apontou um senhor de meia idade que atendia num café anexo à mercearia com a observação “aquele lá no balcão é um”. Fomos até ele e nos apresentamos. A recepção foi mais ou menos a mesma que eu tive com meus parentes na Alemanha. Ele simplesmente nos ignorou e nem um cafezinho nos ofereceu. Fomos almoçar num restaurante e depois do meio dia alugamos um taxi que nos levou até Gagliarine 12 quilômetros fora da cidade. Com a lição aprendida não procuramos parentes de segunda ou terceira geração da Inez. Visitamos o cemitério com os túmulos e jazigos de não poucos falecidos com o sobrenome comum entre os descendentes de italianos no sul do Brasil. De volta a Trevísio embarcamos no trem de volta a Bergamo. O primeiro compromisso do dia seguinte, 11 de setembro de 2001, foi a ida à agência de turismo para ver a possibilidade e uma viagem de trem até Roma. Enquanto conversávamos com o atendente assistimos pela televisão da agência, em tempo real, o impacto do segundo avião nas torres gêmeas de Nova York. Depois disso o agente nos desaconselhou viajar a Roma via Milão pois, o serviço de inteligência tinha localizado naquela cidade um núcleo terrorista ligado aos atentados nos Estados Unidos. Como a nossa reserva no hotel expirava no dia seguinte acertamos os detalhes para o retorno de trem a Frankfurt e de lá voltarmos para casa em São Leopoldo.

Mais tarde faríamos mais quatro viagens para o norte da Itália. A primeira a Vataro nas montanhas de Trento, outra novamente a Bergamo, a terceira a Bozzano e a última a Verona. Para evitar ser redundante passo a fazer algumas reflexões sobre aquele cenário geomorfológico e histórico das planícies e encostas do sul dos Alpes. Mais acima já lembrei como entre os séculos VI e IX aquela região, a Lombardia e o Vêneto foram o cenário de embates entre os romanos e os bárbaros, principalmente Visigodos no Veneto e Longobardos na Lombardia. Esta região foi palco de uma história movimentada como poucas na Europa, muito parecida com a da fronteira da Alemanha, da França e os Países Baixos, lembrados mais acima. As tropas de Napoleão devastaram a região no começo do século XIX movidas pela orgia do grande Corso em ampliar sempre mais seu império. Até a unificação da Itália toda a região ficou sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Depois da Primeira Guerra Mundial, com a fragmentação do Império Austro-Húngaro, o Tirol do Sul passou para o domínio da Itália. Um outro detalhe que não pode ser esquecido refere-se à participação da Força Expedicionária Brasileira nos combates de Caimore, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, Fornovo e o cemitério de Pistoia dos pracinhas caídos na guerra.

Encerrada a programação no norte da Itália embarcamos no dia 13 de setembro no trem em Milão para Frankfurt pelo mesmo percurso da ida. Pernoitamos no hotel Astron I perto do aeroporto e no dia seguinte tomamos contato com as redondezas e a movimentação no aeroporto, para às 22h embarcar de volta para casa. O que mais caiu em vista no aeroporto foi a presença de dezenas de policiais levando cães amestrados e empunhando metralhadoras de mão. Fazia parte das precauções indispensáveis devido aos atentados em Nova York pois, havia informações que o grupo terrorista responsável, tinha ramificações também na Alemanha.

Da Enxada à Cátedra [ 83 ]

Depois do almoço descemos pela margem direita do Mosela para terminar em Koblenz onde este rio desemboca no Reno no “Deutscher Eck”. Aliás a origem de Koblenz deve-se ao encontro dos dois rios que os romanos chamavam de “Confluentia”. Descer pelo vale do Mosela desperta no forasteiro um turbilhão de sentimentos difícil de identificar e dimensionar. Ora são os vinhedos que sobem as encostas da margem esquerda e datam do tempo dos romanos e os vinhos nobres do Mosela, o “Moselwein”, apreciados pelo mundo inteiro pela sua qualidade; ora são as aldeias e pequenas cidades que convidam para uma parada e uma reflexão; ora são os personagens e tipos humanos moldados naquele contexto rico em história. Só para lembrar. O emigrantes e seus descendentes que se fixaram no sul do Brasil, originários daquele vale emblemático, costumavam ser conhecidos e identificados como “moselanos”. Dos mais conhecidos lembro o nome de Aloys Friedrichs, nascido em Merl, imigrado para Porto Alegre onde se notabilizou ao fundar o “Turnerbund” ou Federação dos Ginastas, hoje SOGIPA. Mas o nome mais eminente do Mosela vem a ser o cardeal Nicolau de Cusa nascido em 1401 em Bernkastel Kues. Foi nomeado cardeal e passou a sua vida exercendo diversos cargos na cúria romana. Veio a ser nomeado bispo de Brixen, hoje Bressanone no Tirol do Sul, norte da Itália. Conquistou fama pelas sua obras filosófico- teológicas com destaque para o livro “Douta Ignorantia”. Consta dele a compreensão da natureza mais do que nunca válida ainda hoje ao afirmar que “ex partibus omnibus ellucet totum”, mal traduzido quer dizer “o todo manifesta-se pelas suas muitas partes”. Nicolau de Cusa é considerado como um dos filósofo mais importantes na transição da Idade Média para a Renascença. Com sua visão do mundo na sua essência, ainda válida hoje, definiu as três formas do saber: os sentidos, a razão e o intelecto. No seu entender o intelecto está acima da razão e dos sentidos. Pelo intelecto iluminado pelo “todo” como objeto chega-se ao “uno” que vem a ser Deus. Nicolau de Cusa fundou em Bernkastel Kues um asilo para idosos até hoje em funcionamento e no qual se encontra preservado seu acervo filosófico-teológico. Uma curiosidade histórica relativa à Fundação merece ser lembrada. Os alvos dos bombardeios durante a segunda guerra mundial, sob o comando do marechal da RAF Arthur Harris programara o bombardeio da ponte sobre o Mosela em Bernkastel Kues. Se executado não tinha como não atingir severamente a fundação acima mencionada. A ponte foi poupada por uma manobra de subalternos de Harris e assim a cidade e o monumento histórico mais significativo do Mosela ficou intacto e recebe milhares de visitantes por ano de países até fora da Europa, principalmente idosos

Para o dia seguinte programamos uma visita para as aldeias Hahn, Peterswald e Löffelscheid, região do Hunsrück donde emigrou meu tris avô Mathias Rambo em 1829. A aldeia, melhor talvez cidadezinha Hahn tornou-se conhecida depois da segunda guerra mundial. Por sua localização estratégica somada à topografia os americanos instalaram nas suas imediações uma gigantesca base aérea militar, hoje transformada em aeroporto subsidiário ao de Frankfurt. Nas proximidades do aeroporto passamos por enormes galpões ainda abarrotados de munições não utilizadas com o fim da guerra. A primeira parada foi em Peterswald. Na lista de endereços do Pe. Mallmann constavam dois com o sobrenome Rambo. No primeiro não havia ninguém em casa. No segundo fomos recebidos pelos sr. Herrmann Rambo e sua esposa pelas 10h da manhã. Consciente da desconfiança em relação a visitas de parentes longínquos, principalmente do Brasil, fiz saber logo que estávamos apenas querendo conhecer o lugar donde meus antepassados emigraram para o Brasil e não se preocupassem com o almoço pois, que iríamos passar por Löffelscheid e depois descer até o Mosela encontrar uma filha do Michel que trabalhava na Fundação Kues à qual já me referi mais acima. Por nossa surpresa convidou-nos para entrar, tomar um refrigerante e tivemos uma hora de boa conversa com o Herrmann e sua esposa. Eles não guardavam a mínima memória dos parentes longínquos emigrados para o Brasil e a América do Norte. Cabe aqui lembrar que o irmão do meu trisavô a Mathias migrou para a América do Norte e na sua descendência destaca-se o engenheiro químico Arthur John Rambo integrando a elite dos boinas verdes que lutaram no Vietnã e lá veio a morrer durante o conflito durante uma emboscada e inspirou a série “Rambo”, referência dos heróis americanos caídos naquele conflito.

Descemos depois até o Mosela onde almoçamos para depois seguir até Boppart onde admiramos as ruinas preservadas do tempo dos romanos. Pela meia tarde subimos o planalto até nossa pousada em Emmelshausen. Na manhã seguinte, último dia no Hunsrück, chão em que se encontram as raízes remotas de todos os “Rambos” do sul do Brasil, vistamos o museu histórico regional. O Michel, um grande entusiasta do museu fez questão de nos mostrar a cultura material da história da região aí preservada: utensílios e instrumentos agrícolas, artigos domésticos, indumentária, mobília etc. No fim da manhã passamos na papelaria para buscar a caneta Mont Blanc encomendada dias antes, passar numa farmácia, propriedade de uma coreana que falava perfeitamente o alemão. Depois do meio dia o Michel nos levou até a agência de viagem a fim de programar o roteiro a ser cumprido entre Koblenz e Milão, Bergamo, Cremona e Trevísio, terra dos antepassados da Inez. Depois de tudo planejado passamos na agência da Avis que nos alugara o carro para o acerto de contas. E, assim, a visita à terra dos meus antepassados, o Hunsrück, estava concluída. Voltamos ao nosso alojamento para reunir nossos pertences e na manhã seguinte descer de ônibus até Koblenz onde embarcaríamos no trem para Milão. Depois acertadas as contas e um bom papo com o nosso hospedeiro Stoffel, comerciante de vinhos, fomos dormir a última noite em Emmelshausen. Para a noite seguinte esperava-nos o hotel Arli em Bergamo.

Na manhã seguinte ao clarear o dia embarcamos no ônibus que nos levaria até Koblenz. Uma onda de frio precoce vinda do norte fez com que a espera do embarque fosse bem desagradável. A partida do trem em Koblenz a Milão fora marcada para as 10h. Aconteceu então uma eventualidade por assim dizer inominável na Alemanha. Fomos avisados que o trem chegaria com uma hora de atraso. As reclamações tomaram conta da plataforma de embarque. Soubemos então que alguém se tinha jogado nos trilhos do trem entre Bonn e Koblenz. Pontualmente depois de uma hora o trem entrou na estação e embarcamos. No decorrer da viagem foi compensando o atraso e desembarcamos em Milão no horário previsto.

Seguindo pela margem esquerda do Reno para o sul a viagem nos permitiu apreciar o cenário marcado por inúmeras reminiscências de profundo significado de uma história que se perde nas brumas do tempo de mais de 5.000 anos passados. Os dados históricos dão conta que uma poderosa floresta cobria o centro norte da Europa entre o Báltico e os Alpes e entre o mar do norte e as estepes da Rússia. Desde a remota pré-história os povos germânicos viveram e consolidaram suas tradições naquelas florestas. Entre os muitos gigantes de folhas caducas e perenes: tílias, álamos, abetos plátanos, Nogueiras e o carvalho que pela sua imponência, seus troncos milenares, suas raízes sólidas encravadas no chão, tornou-se o símbolo da história e da solidez do caráter étnico dos povos daquelas paragens, tão admirados por Tácito. Na sombra dos carvalhos celebravam-se armistícios, decidiam-se guerras, resolviam-se os problemas internos das comunidades. A derrubada do carvalho sagrado por São Bonifácio convenceu os povos germânicos que o Deus dos cristãos era mais poderoso do que Thor e, em massa, converteram- se ao cristianismo.

Na primeira parte da viagem, Koblenz a Constança, o trem percorreu a linha de fronteira entre o antigo Império Romano e os territórios dominados pelos povos germânicos. Logo no começo do século I depois de Cristo, mais exatamente no ano 9, o poder de conquista dos romanos teve o seu avanço sobre a margem direita do Reno, definitivamente sustado com a derrota na batalha da floresta de Teutoburgo. As legiões romanas sob o comando de Varo foram destroçadas pelos guerreiros germânicos de Armínio. A história de vida do vencedor merece um breve comentário. Nasceu como príncipe na tribo dos Cherusci ou Cheruscos uma tribo germânica que dominava parte das florestas nas planícies do noroeste da Alemanha. Como criança foi sequestrado pelos romanos e educado como romano, sendo como jovem incorporado no exército onde conseguiu subir na hierarquia até o posto de tribuno. Revoltado com o tratamento dos romanos dado aos Cheruscos, arregimentou-os e atraiu Varo com três legiões para o terreno acidentado e coberta de um floresta hostil em Teutoburgo, familiar aos seus guerreiros. Depois de derrotar Varo com suas legiões o limite entre o Império Romano e a Germânia foi acertado como sendo o Reno. Acontece que há dois ou mais séculos fermentava em toda Germânia uma inquietude crescente que terminaria desencadeando as migrações dos povos entre século IV e IX redesenhando não só geograficamente a Europa, como principalmente o perfil cultural e étnico com a “romanização” da “germanidade” e vice versa a “germanização” da “romanidade”, somada à “cristianização” de ambas e implicitamente também a “helenização” da romanidade e cristandade e vice-versa. Em outras palavras neste contexto gestaram-se e consolidaram-se em linhas gerais os fundamentos da Cultura Ocidental.

A primeira onda das migrações dos povos germânicos a que nos referimos acima foi protagonizada ainda no primeiro século antes de Cristo, pelos Cimbros e Teutões. Procedentes da Jutlândia (atual Dinamarca) terminaram ocupando boa parte do norte da Itália. As guerras dos invasores contra a República Romana estenderam-se de 113 a 101 AC. Com a derrota tanto dos Cimbros quanto dos Teutões terminaram por fixar-se nos vales das encostas sul dos Alpes.

A segunda onda de migrações dos povos germânicos teve início em meados do século IV e prolongou-se até o século IX DC. Como aqui não é o lugar para entrar em detalhes dessa história de quase um milênio, limito-me a resumir em linhas muito gerais o significado histórico da viagem de trem de Koblenz a Milão. Acima já lembrei que o Reno fora fixado informalmente como sendo o limite entre o Império Romano e os povos germânicos, donos do restante da Europa Central e do Norte, estendendo-se até as estepes da Rússia. De alguma forma o trem percorreu o epicentro do encontro do mundo germânico com mundo romano. Resumindo. Os povos de maior importância que cruzaram aquela fronteira foram de norte ao sul os Anglos e Saxões que mais ao norte invadiram a Inglaterra, os Francos o norte da França, os Borgúndios o centro sul da França, os Vândalos passaram pela França, Espanha, atravessaram o Mediterrâneo fundando um império no norte da África, os Suevos passaram pela França, Espanha até as fronteiras com Portugal, os Alamanos fixaram-se na região do norte dos Alpes, os Visigodos vindos do leste passaram pelo norte da Itália, chegaram até Roma, continuaram pelo sul da França e terminaram na Espanha. Os Ostrogofos desceram até Constantinopla e Grécia. Um fator de grande importância nessa movimentação toda foi a invasão dos Hunos. Comandados por Átila saíram da Ásia central, cruzaram as planícies da Rússia para, finalmente, serem barrados na batalha dos Campos Catalâunicos, na atual França. Tive uma satisfação enorme em vivenciar essa parte da história tão importante para entender a alma da Cultura Ocidental, que, mais tarde moldaria de alguma forma, a fisionomia humana das três Américas, do sul da África, da Austrália, Nova Zelândia e outras regiões pelo mundo afora.