O potencial de conhecimento acumulado
A formação de bibliotecas não é um processo aleatório, uma simples preocupação em colecionar obras, reuni-las num recinto apropriado para simular o nível cultural do seu dono. Esse pode até ser o caso de algumas bibliotecas particulares ou de colecionadores de livros. No mais as bibliotecas de profissionais liberais, de intelectuais, de pessoas cultas, no sentido genérico, refletem os interesses e ou as preferências por conhecimentos determinados dos seus proprietários. Esse fato torna-se ainda mais determinante quando estão em jogo bibliotecas de instituições de ensino, de associações, de instituições religiosas, de casas de formação de natureza mais diversa, bibliotecas municipais, estaduais, nacionais, universitárias, de entidades culturais, etc. etc. Em cada uma delas fica clara a preferência dada aos interesses que motivaram a constituição de cada biblioteca em particular. Assim na biblioteca de um profissional liberal, engenheiro, arquiteto, médico, advogado, predominam obviamente as obras necessárias ou úteis para o exercício e atualização da profissão. Um professor de história, de filosofia, de economia, de direito cuidará que sua biblioteca esteja munida das melhores obras da sua especialidade. Esse fato não impede que uma porcentagem considerável da composição dos acervos ofereça obras que atendem às preferências literárias, religiosas, científicas e outras de cada dono ou colecionador. Assim é comum que a biblioteca reunida de um engenheiro, médico ou arquiteto, venha complementada com obras de literatura, arte, filosofia, história da ciência, etc. O exemplo mais emblemático vem a ser a “Coleção Cristo Rei”.
Parece pertinente descrever em poucas linhas o “perfil intelectual” de que estamos falando. Situados no tempo esses intelectuais eram todos jesuítas e completaram a formação antes da década de 1960. Contavam com isso na média com 14 anos de formação em nível superior, sem contar os anos de ensino fundamental e médio: Dois anos de estudos e prática ascética no noviciado; três anos de Letras Clássicas e Retórica; três anos de Filosofia; três a quatro anos de pratica pedagógica somada por muitos a um curso universitário da preferência de cada um; quatro anos de Teologia e mais um ano de estudo e prática de ascese. Somente depois somava-se um biênio ou mais, em nível de doutorado para especializar-se em algum campo da Filosofia ou Teologia. Só então passavam a integrar o corpo docente das faculdades Filosofia e Teologia. Entende-se assim que os mestres que reuniram a coleção Cristo Rei, alimentassem interesses intelectuais complementares, e por vezes, bem diversos do conteúdo das cátedras que regiam. Um professor de Teologia Dogmática cultivava como lazer a leitura de viagens, obras de literatura, compêndios de história, obras científicas e por aí vai. Dessa forma a coleção em foco oferece obras importantes, algumas únicas em praticamente todos os campos dos conhecimentos básicos das Ciências do Espírito e das Ciências Naturais, Humanas e Letras.
Se de um lado o perfil intelectual dos docentes de Filosofia e Teologia explica em parte a composição da Coleção Cristo Rei, um outro elemento foi decisivo. No currículo dos dois cursos, além das disciplinas que formavam a coluna mestra de cada um, costumavam-se oferecer disciplinas complementares que tinham como finalidade despertar a atenção e o interesse dos alunos de filosofia e teologia, sobre o avanço nos diversos outros campos do conhecimento e pesquisa científica e seus reflexos sobre a filosofia e teologia. O tratamento que se dava àquelas disciplinas constava no currículo não como obrigatórias em si, isto é, que fossem exigidos conteúdos pré-determinados de Física ou Biologia, por ex., mas oferecidos na medida da sua importância somada a especialistas disponíveis a ministrá-las. Constavam como “questões seletas” – “questiones selectae”. Com essa prática entrou na biblioteca um considerável número de obras também “seletas”.
A Coleção Cristo Rei serviu de subsídio aos professores e estudantes de Filosofia e Teologia jesuítas. Por isso sua constituição sofreu obviamente o direcionamento tendo em vistas uma formação afinada com a ortodoxia católica, orientada pelo viés da base teórico metodológica adotada nas faculdades sob a responsabilidade de jesuítas. Esse fato chama atenção a uma outra característica dessa coleção. Ela é seletiva oferecendo obras que em princípio não se afastam da ortodoxia oficial. E parece importante apontar para a particularidade de que a coleção foi reunida na sua totalidade entre o final do século XIX e meados do século XX. Cobre, portanto o período entre os dois Concílios do Vaticano. Em outras palavras, corresponde ao período áureo da implantação do projeto da Restauração Católica. O tomismo e o Suarezeanismo traçavam o rumo das preleções e eram os responsáveis pelo seu perfil. Destinavam-se em primeiro lugar para subsidiar a preparação das preleções dos professores de Filosofia e Teologia e como tal altamente especializadas. Em princípio não se destinavam à consulta dos estudantes. Estes serviam-se basicamente de compêndios e textos elaborados pelos mestres e somente aqueles que alimentavam alguma pretensão para no futuro dedicarem-se a estudos avançados em Filosofia ou Teologia.
Considerando as características que acabamos de registrar acima, a Coleção Cristo Rei constitui- se num complexo de obras que condensam o pensamento, a orientação e a doutrina oficial da Igreja Católica, entre os dois Concílios Vaticano. Em linhas gerais reflete o retorno à rigidez da ortodoxia doutrinária, moral e disciplinar definida pelo Concílio de Trento. Retrata também uma tomada de posição ostensiva e combativa em relação a um número de postulados doutrinários defendidos pela modernidade laica. Entres esses destacam-se como pontos altos da polêmica entre a Igreja e o avanço das Ciências Naturais, com acento para o Evolucionismo pregado por Darwin e seus adeptos, com destaque para o Materialismo Monista de Ernest Häckel, Julião Huxley e muitos outros. Vale chamar a atenção de que o eco desses embates foi claramente percebido no sul do Brasil. O segmento mais culto dos imigrantes alemães, como profissionais liberais, comerciantes, artesãos dos centros urbanos, liderados por Karl von Kosertiz, valeram-se da “Deutsche Zeitung” e do Koseritz Volkskalender, para popularizar o ideário evolucionista materialista. Nesse plano duelaram principalmente com os padres jesuítas dos colégios e paróquias nos centros maiores como Porto Alegre, São Leopoldo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e outros. Em resumo. A coleção Cristo Rei vem a ser um bom lugar para o estudioso encontrar fontes e informações a respeito da formação filosófica, teológica, moral, canônica e histórica dos candidatos ao sacerdócio, entre os dois concílios Vaticano.