Archive for setembro 2022

[ Reflexões ]

O Método analítico-indutivo.

Se para a Filosofia e a Teologia a dedução partindo do todo, constitui-se no método mais apropriado, as Ciências Naturais pedem, pela própria natureza do seu objeto, o método analítico-indutivo como via de aproximação. Teilhard de Chardin chamou-o de “esse maravilhoso instrumento ao qual devemos todo o progresso de que desfrutamos”. Como aconteceu com o método sintético-dedutivo, o analítico-indutivo, fundamenta-se em última análise numa compreensão peculiar do universo, da natureza e do homem. O fato de alguém tentar entender e explicar as partes, a partir da unidade da qual fazem parte, ou de alguém procurar uma lógica e uma convergência partindo das partes, analisando-as, dissecando-as e decompondo-as, faz uma grande diferença. 

Na medida em que as Ciências Naturais foram ocupando o seu espaço e consolidando seus campos do saber específico, fizeram com que o método analítico-indutivo, ocupasse cada vez mais espaço. Esse movimento começou a tomar corpo no final da Idade Média. Acelerou o ritmo e foi-se impondo durante a Renascença. Até então os fenômenos da natureza eram entendidos sob a ótica de princípios filosóficos e teológicos, via dedução. Não é que se desprezasse a observação empírica. Pelo contrário. A natureza foi sempre, como não podia deixar de ser, para o filósofo antigo, um cenário de observações múltiplas. Oferecia dados e experiências concretas, inspirando nelas uma boa fatia de suas especulações filosóficas. Trilharam, porém, o tradicional caminho indicado pelo método dedutivo. O que os preocupava era o essencial que conferia sentido e razão de ser para as realidades naturais. As leis empíricas responsáveis pela mecânica natural, situavam-se fora do horizonte das preocupações dos filósofos. 

Mas já nos séculos finais da Idade Média sábios como Roberto Grosseteste (1175-1253), Alberto Magno (1206-1258), Nicolau de Oresme (nascido em 1306), mestres de Oxford, Paris, Colônia, Freiburg e outros, foram precursores do método analítico-indutivo. Mas é com a Renascença que acontece a sua entrada triunfal. A partir daí definiram-se os dois caminhos, os dois métodos que continuam polarizando os esforços para entrar na compreensão da essência da Natureza, objeto ontológico comum. Referindo-se a essa situação, isto é, o objeto ontológico, ele é susceptível a aproximação tanto pela dedução quanto pela indução, o Pe. Borrero observou.

Quem sabe a mútua compreensão dessa realidade tenha o poder de superar o confronto que se verifica hoje entre filósofos e cientistas, que deixa perplexo o político encarregado de decidir políticas científicas. Essa superação tem condições de tornar-se realidade a curto prazo com adoção do objetivo epistemológico da interdisciplinaridade.  (cf. ASCUN, 1992, 20, p. 22)

Deixemos para mais tarde uma análise mais aprofundada do recurso à interdisciplinaridade como caminho para superar o impasse entre a Filosofia e a Ciência. Aproveitamos o momento par intercalar algumas considerações sobre a História da Ciência. Pelo que vínhamos falando poder-se-ia tirar a conclusão equivocada de que as Ciências Naturais entraram na História a partir do final da Idade Média. Entretanto, creio que se pode afirmar sem medo de errar, que a História da Ciência tem a duração da própria História do homem. A partir do momento, em que em alguma savana da África, ou em qualquer outro ponto do mundo, apareceram as primeiras criaturas dotadas de “inteligência reflexa”, de “racionalidade”, entrou em cena a “Noosfera” na terminologia de Teilahrd, um nível, uma esfera de vida, de todo inédita. Sem romper com o passado existencialmente enraizado na “Litosfera”, na “Biosfera” e na “Atmosfera”, o homem inauguraria um caminho novo de convivência e relacionamento com o mundo que o cercava. Sem romper e sem superar os condicionamentos que como animal o prendiam ao entorno geográfico, vem munido com as ferramentas capazes de fazer dele um ser superior a todos os demais. Pela inteligência reflexa, pela consciência do seu pertencimento ao mundo natural, o levaria à condição de formular perguntas e buscar respostas a fim de compreender-se a si mesmo e o mundo em que vive. Valendo-se da capacidade de observar, formular perguntas, buscar respostas, encontrar soluções alternativas, refletir sobre sentidos e significados, o homem há dezenas, centenas, quem sabe milhões de anos, foi acumulando conhecimentos de todo nível e natureza. De um lado observando, experimentando, selecionando, foi entendendo os fatos e realidades, descobrindo relações e correlações, identificando e compreendendo as leis que regem a natureza. De outro lado procurou entender e explicar os “porquês” e formular respostas para as incógnitas, os mistérios da natureza e da sua própria existência.

Rigorosamente falando, os primeiros coletores de frutos e sementes, os primeiros caçadores e pescadores, valeram-se dos mesmos meios e métodos do homem de hoje, ao lidar com os desafios do quotidiano. Observando, comparando, selecionando, testando, descartando, concluindo, aprenderam a compreender e organizar o mundo. Tanto a nível material, quanto psicológico, imaginário, religioso foi organizando os dados acumulados e com eles, dando forma a um corpo de conhecimentos. Situando a Filosofia e a Ciência nessa perspectiva histórica global estão presentes verdadeiras práticas científicas e filosóficas desde que o homem se fez homem. Mais ainda. As práticas e os métodos não se distinguem essencialmente dos formulados por Francis Bacon (1561-1626) e que hoje fundamentam a produção do conhecimento. Observando a natureza os homens de então valiam-se da “análise” como ferramenta para a identificação e compreensão dos fatos e fenômenos. Num segundo momento recorreram à indução com o propósito de dar significados ao que observavam. Gradativamente os conhecimentos hauridos das mais diversas fontes consolidaram-se num corpo coerente e legítimo de conhecimento. 

Situando a Filosofia e a Ciência nessa perspectiva histórica, verdadeiras práticas filosóficas e científicas estiveram sempre presentes. A cosmovisão ou as cosmovisões que daí resultaram terminaram por consolidar o imaginário no qual o componente mágico-religioso ocupou um lugar privilegiado. Sobre essa base, pois, estava preparado o terreno para prosperarem filosofias e religiões. A partir delas e num passo adiante, o homem consolidou um universo conceitual de sínteses e invertendo a perspectiva, começou a interpretar a realidade que o cercava. Foi tomando forma a segunda via de aproximação teórico-metodológica. Francis Bacon a definiria com via “sintético-dedutiva”. Ambora não chegassem até os nossos dias provas materiais para afirmar essa lógica dos acontecimentos, não deixa de ser legítima. Legítimo então é concluir também que os seres humanos daqueles tempos remotos já praticavam ciência no sentido rigoroso do termo e, consequentemente, produziam conhecimento digno desse nome. Também aqui vale a sentença: “Nihil novi sub luna” – “nada de novo abaixo da lua”. 

Diversificaram-se as observações, aperfeiçoaram-se os métodos e técnicas, sofisticaram-se e apuraram-se os instrumentos de investigação e respectivas tecnologias e assim ampliaram-se e aprofundaram-se os conhecimentos. A razão de ser desse estado de coisas, a explicação última, a condição “sine qua non”, deve ser buscada na inteligência racional que acompanha a humanidade desde a sua mais remota origem. As Ciências foram cultivadas desde há muitos séculos e milênios. As investigações científicas e a construção do conhecimento veem desde a antiguidade mais remota. Bacon ao formular sistematicamente os métodos básicos, o analítico-indutivo e sintético-dedutivo, deu um significativo impulso ao que já vinha sendo feito nesse campo. Galilleo contribuiu decididamente para o “boom” científico nos últimos séculos com seu “Arrazoado Experimental”, em outras palavras, a análise do fenômeno a partir da decomposição em seus elementos quantificáveis e passíveis de expressões algébricas funcionais. O que presenciamos hoje em termos de avanços tanto quantitativos quanto qualitativos nas ciências empíricas, foi possível aos pesquisadores valendo-se dos princípios e bases teórico-metodológicas, formuladas por Bacon e Galileo. O fascínio pelos resultados é tamanho que se tornou convicção corrente de que o único conhecimento válido é o científico. O Positivismo de Conte levou ao exagero a via experimental e “positiva” e o Neo-Positivismo com seu “método-empírico-lógico”, prega que, o que não for redutível a esses parâmetros, simplesmente não faz sentido.

Encontramo-nos, portanto, frente a um cenário no qual, de um lado, as conquistas e avanços são indiscutíveis. Do outro, entretanto, corre-se o risco de ignorar e ou desqualificar na construção do conhecimento o valor e a importância da contribuição da Filosofia e das Ciências do Espírito em geral. A questão assume proporções ainda mais polêmicas, quando se procura a possibilidade de incluir no corpo dos conhecimentos aceitos como legítimos, aqueles acumulados no decorrer da história. As dificuldades são respeitáveis. De saída não se escapa do poder do preconceito de muitos cientistas, de que só é conhecimento digno desse nome, aquele que tem como base provas empíricas, ou “positivas”. Mas deixemos para mais adiante a discussão, relativa à legitimidade “científica” dos conhecimentos elaborados desde a pré-história remota. 

O que interessa nesse momento resume-se em um cenário teórico-metodológico favorável para a troca sem preconceitos de informações entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Trata-se do passo inicial para começar um diálogo honesto do que cada um dos campos tem a oferecer para o enriquecimento do conhecimento em si. Espera-se que desse diálogo nasça o reconhecimento mútuo da validade e importância daquilo que cada qual tem a oferecer. E por fim é lícito esperar que as Ciências tanto Naturais quanto as Humanas e do Espírito, aliem-se e comprometam-se, num esforço sincero em busca de uma síntese elaborada a partir de muitos saberes; para que as “muitas doutrinas”, inclusive à primeira vista conflitantes, se harmonizem em busca de um ponto de encontro comum. Em outras palavras. Que a partir da “multiplicidade das doutrinas”, se encontre a “verdade que é uma só” – “Doctrina multiplex – Veritas una”. 

Uma vez acertado o diálogo é fundamental decidir pelo caminho a percorrer e as ferramentas a serem utilizadas. Em outras palavras. Como e a que nível deverá acontecer esse diálogo para autorizar a perspectiva de um resultado que satisfaça a ambos os lados. 

O ponto de partida parece consistir em que os interlocutores falem a mesma língua ou pelo menos línguas que ambos entendam. Isso significa que os conceitos emitidos de parte a parte, expressem sentidos que sejam corretamente inteligíveis por ambos os lados. Isso implica no fato de que o filósofo ou o teólogo tenham um mínimo de familiaridade e compreensão com os conceitos emitidos por um geneticista, um biólogo, um astrônomo, um físico ou um geólogo. De outra parte algum especialista em qualquer ramo das Ciências Naturais, precisa estar consciente que sentido o filósofo atribui, por ex., ao conceito “princípio de causalidade”, “causalidade primeira, causalidade secundária”, “lógica dos processos”, etc. conceitos e significados que não fazem parte do mundo conceitual do cientista. Com isso não se pretende insinuar que o astrônomo ou geneticista, tenha que ser filósofo ou teólogo no sentido corrente do termo. Significa, isso sim, que ambos, filósofos e cientistas, filosofem e pesquisem com um mínimo de sensibilidade, compreensão e respeito mútuo. Como já tentamos mostrar mais acima, este é um dos maiores, senão o maior dos obstáculos que precisa ser superado para consolidar o diálogo entre os dois arraiais. 

[ Reflexões ]

O método sintético-dedutivo  

A via da caminhada sintético-dedutiva, começada pelos filósofos gregos mais antigos, foi definitivamente consolidada por Aristóteles. Sua obra traduzida para o árabe recebeu mais tarde sua versão latina. Os escritos de Platão não tiveram a mesma sorte. Por isso mesmo não foram tão conhecidos na Idade Média. De outra parte a obra de Aristóteles ofereceu aos pensadores do Medio evo uma verdadeira enciclopédia do saber elaborado até aquela altura da história. Nela o Estagirita discorreu sobre todos os campos do saber, menos a medicina e a matemática. Demorou-se na metafísica, na física, astronomia, ciências naturais, fisiologia, ética, estética e política. Explorou sobretudo o potencial da lógica. A lógica funciona para Aristóteles como eixo polarizador, como “Leitmotiv”, como norteador transdisciplinar de todo o seu pensamento. O Pe. Alfonso Borrero resumiu assim a importância de Aristóteles na Alta Idade Média.

A lógica de Aristóteles funcionava em todo o momento como “disciplina diagonal”, ou nexo de articulação nos currículos da Idade Média. Não é então de se admirar que para a segunda Idade Média, dominada por essa massa de saber coerente e deslumbrada por uma inteligência fora do comum, que Aristóteles se convertesse no representante da verdade e ideal de perfeição humana. Encarnava o príncipe dos que sabem, o poder do saber encarnado, a garantia para os que ensinam. Aristóteles ensinava e era ensinado; era objeto de discussão e comentários. Era explicado e seus conceitos eram trabalhados, como aconteceu na obra de Tomas de Aquino. (ASCUN. Borrero. Nº 20, p. 19)

E de maneira concisa e clara o Pe. Borrero resumiu em poucas linhas, o que Aristóteles significou para a construção do conhecimento, em primeiro lugar na Idade Média e na primeira geração de universidades. 

Foi por essa via, pela lógica como referência, para a construção do conhecimento, que Aristóteles entrou nas escolas e universidades. O seu saber dirige-se para as mentes sedentas do saber. Na percepção dos medievais Aristóteles era, antes de mais nada, ciência. Antes mesmo de ser filosofia, reveste-se de valor próprio como “saber científico”, e não como uma relação ou parentesco com alguma atitude religiosa que a impõe. Pelo contrário, o Aristotelismo parece em princípio incompatível com a postura religiosa, tanto da cristã quanto da maometana. Entre outras doutrinas aquelas que ensinam a eternidade do mundo, são abertamente contrárias às verdades da religião revelada, incluindo com isso um Deus Criador. Por essas razões Aristóteles foi condenado pelas autoridades responsáveis pela ortodoxia religiosa. Os filósofos da Idade Média trataram então de repensar o Estagirita e torná-lo compatível com a doutrina cristã e seus dogmas religiosos. Esse esforço alcançou o triunfo maior com Santo Tomas de Aquino. Ele, por assim dizer, cristianizou Aristóteles e fez dele a base do ensino ocidental. O aristotelismo converteu-se no “itinerarium mentis in Dei” – “o caminho da investigação que leva a mente até Deus, objetivo maior da universidade da Idade Média. É o “Deus-Pensamento” de Aristóteles ao lado do “Deus-Bem” de Platão e o “Deus Uno” de Plotino”. (ASCUN, 20, p.19)

A universidade medieval fundamentava a consistência da produção do conhecimento na sabedoria dos antigos, compendiadas nas famosas “Sumas” ou “Sínteses”.  A maneira de apresentar as questões seguia o mesmo padrão e orientava-se pelo mesmo método e guiava-se pela mesma lógica na condição de “transdisciplina”. 

No contexto da presente reflexão sobre a construção do conhecimento, cabe um aprofundamento maior do “aristotelismo cristianizado” por Tomas de Aquino. O importante está no fato de que a lógica como “transdisciplina” polarizou todo o esforço na produção do conhecimento. O fato de o “aristotelismo cristianizado” polarizar todo o trabalho intelectual valendo-se da lógica como “transdisciplina”, resultou no “Deus-Pensamento”. Chega-se assim à conclusão de que tanto o “Deus-Pensamento” do aristotelismo cristianizado, quanto o “Deus-Bem” de Platão e o “Deus Uno” de Plotino, representa o centro das reflexões dos filósofos, que buscam a raiz do pensamento num fundamento pré-existente. Em outras palavras. Uma síntese prévia fornece os elementos a partir dos quais se deduz a natureza e a razão de ser das muitas maneiras de se tornar visível e palpável. Em outras palavras ainda. Parte-se da unidade para explicar a pluralidade. Ou ainda. Entender o  plural pelo uno.

Pouca ou nenhuma diferença faz o nome dado ao  “uno” ou “unidade”, se é no sentido do “Deus-Pensamento” do aristotelismo cristianizado por Tomás de Aquino, do “Deus-Bem” de Platão, do “Deus Uno” de Plotino, do “Deus infinito em ato e o universo em potência” de Nicolau de Cusa, da “Razão como fonte da Ciência  e a Ética” de Sócrates, a “Moral bem supremo e fonte da Ciência” de Confúcio, a “Razão” de Kant, o “Cogito ergo sum” de Descartes, O Deus “in fieri” – “der werdende Gott”, de Hegel.  Poderíamos levar ao indefinido as referências nessa direção. Parecem o bastante para ilustrar o que vimos afirmando. A grande Filosofia, para não falar em Teologia, construiu, como constrói ainda hoje, o conhecimento a partir de referenciais postos, a partir de uma síntese prévia. Valendo-se da dedução parte-se para a compreensão das partes, as correlações entre elas e o seu significado em função do todo. A pluralidade é explicada pela unidade. Com a supremacia do Aristotelismo, o método predominante na produção do conhecimento, veio a ser o sintético-dedutivo-unificante. O esforço intelectual para chegar à compreensão das causas últimas, relegava para um segundo plano o interesse pelas diretamente observáveis. Não se perdia tempo com a explicação dos fenômenos imediatos, dos acontecimentos rotineiros, dos dados concretos e a interpretação dos seus significados. O que interessava ao filósofo, alinhado principalmente com o aristotelismo, era o conhecimento como tal. Com isso o valor maior cabia à Metafísica. Para a filosofia medieval havia uma verdade objetiva e dada. Apropriar-se dessa verdade acontecia via assimilação. Tratava-se de um método realista para considerar a relação objeto-sujeito, manifestado numa cosmovisão unificante. (cf. ASCUN, 1992, 20, p. 18)

[ Reflexões ]

A questão teórico-metodológica

Para quem pretende enveredar pela produção do conhecimento dispõe, em última análise de duas vias básicas de aproximação do objeto em causa. Francis Bacon os definiu como sendo o método “sintético-dedutivo” e o “analítico-indutivo”. O primeiro, o sintético-dedutivo, parte do todo, do grande conjunto para, dessa perspectiva analisar e interpretar as partes. O método analítico-indutivo faz a aproximação pelo lado oposto, pela identificação das partes para chegar ao todo. Teilhard de Chardin classificou-o como “esse maravilhoso instrumento de investigação, ao qual devemos todos os nossos progressos ...” Chamou, porém, a atenção para as limitações e os riscos quando se exagera na aplicação, e principalmente, nas conclusões que se tiram dos resultados e completou a frase interrompida logo acima: “mas, que de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e fragmentos que se esvaem”. Cabe então a pergunta. Investigando a natureza a partir de cada um dos métodos, qual dos dois merece ser privilegiado, qual dos dois oferece potencial mais rico para o investigador? A resposta é complexa pela sua própria natureza. Depende de uma série de fatores que dizem respeito ao objeto e os objetivos perseguidos pelo investigador. Um filósofo ou um teólogo não hesitam em se decidir pela síntese e pela dedução como método reitor dos seu trabalho. Para Tales, por exemplo, a água representou o princípio universal no qual as demais realidades encontram a devida explicação. Alexandro S. Caldera condensou num diálogo imaginário entre Tales e Anaximandro, o pensamento do filósofo grego. “Não te esqueças desta lição, Anaximandro: o que verdadeiramente importa é a aptidão para captar o abstrato; a possibilidade de um pensamento sem imagem, como o reconheceu Nietzsche em começos do século XX, várias décadas antes de se instalar no mundo o reino da imagem sem pensamento. O importante é a unidade do múltiplo. ( Caldera; 204, pg. 18)

Num outro diálogo, agora entre Parmênides e seu discípulo Zenon, faz o primeiro afirmar. “(...) pois, eu sustento que o ser é uno, imóvel e indivisível, que o múltiplo é uma ilusão e, portanto, não existe”. E um pouco mais adiante continua no mesmo diálogo. “Toda a aparência é falsa, Zenon, o mundo sensível é o não ser. O único real é o pensamento. O pensamento é o ser”. (Caldera, 2004, pg. 31.) A essa afirmação categórica de Parmênides, Zenon recomendou cautela ao mestre. Num salto de visionário de três mil anos para o futuro, lembrou que então “se dirá que o único verdadeiro é a aparência; e a única realidade é a imagem que se projeta na pequena tela de um estranho aparelho que denominarão televisor”. - A essa observação Parmênides contrapôs a sua opinião. “Nada deverá mudar, pois se o ser é uno, não pode ser outro; se é imóvel, não pode transformar-se. Além do mais, é único e unitário e a unidade é eterna”. – Zenon não se deu por satisfeito e fez o mestre preocupar-se com o futuro. – “Não obstante, Parmênides, alguém chegado desse futuro distante e remoto disse-me que não somente o ser não existe, como que ninguém se importa se o ser existe ou não. Não há realidade real nem essencial, o único que existe é a realidade virtual das redes de computadores; e afirma, além disso, que a imagem que criam os televisores é mais certa e verdadeira que os seres de alma, carne e osso”. – Parmênides repreendeu o discípulo pela afirmação afoita. – “Fazes muito mal, Zenon, em prestar atenção a esses disparates, pois segundo o que tu dizes deveríamos concluir de que o que não tem imagem, não existe, e que o mundo permanece num limbo quando esses artefatos se apagam ou desconectam, para voltar a renascer quando são conectados outra vez”. – Zenon nada disse apenas concordou e Parmênides continuou a reflexão. – “Além disso, pelo que ouço, pois não posso dizer pelo que vejo, a televisão e o computador conduzem à abolição do pensamento e, portanto, do ser”. – Zenon encerrou o diálogo com uma referência a Descartes. – “Alguém tão radical como Descartes, que existirá dentro de dois mil anos, e a quem se atribui ser o fundador da modernidade, ficou, com toda a sua modernidade, convertido numa peça de museu. Seu penso, logo existo, melhor penso logo sou, tem sido substituído pelo vejo logo existo, ou também, pelo só existe que se vê”. ( cf. Caldera. 2004, pg. 31-32). 

Esse diálogo entre Parmênides e Zenon  que viveram há 3000 anos, fornece elementos valiosos para a reflexão que estamos desenvolvendo sobre a construção do conhecimento. Fica claro em primeiro lugar, que a filosofia ocidental que tem os filósofos gregos como base principal, vale-se do método dedutivo, partindo do geral para o particular, do todo para as partes, da síntese para a análise. Como não é do nosso interesse fazer história da filosofia, mas chamar a atenção à questão do método, conclui-se que a filosofia ocidental seguiu o método dedutivo até os tempos modernos. Dessa fonte alimentaram-se os grandes expoentes do pensamento filosófico até os dias atuais. Em segundo lugar fica evidente que o método sintético-dedutivo enfrenta problemas sérios no momento em que se trata de começar um diálogo construtivo com as Ciências Naturais, que parte do lado metodológico oposto, o analítico-indutivo. Obtiveram os dados com que lidam e os resultados com que argumentam, via análise e indução, da pluralidade para a unidade, a compreensão do todo analisando as partes.

Os dois métodos de que acabamos de falar, o sintético dedutivo e o analítico indutivo, polarizam em última análise, as duas vias básicas que levam à construção do conhecimento. O método sintético-dedutivo preocupa-se, antes de mais nada, com a unidade do saber. O que importa é descobrir o elo, o vínculo, a razão de ser das realidades com as quais o investigador se ocupa. Como sugere o próprio sentido etimológico latino “in vestigium ire”, isto é, perseguir a compreensão de algum objeto, como que percorrendo as trilhas da sua história, em busca da sua natureza ontológica.

[ Reflexões ]

Terminada a segunda Grande Guerra entrou sorrateiramente em cena uma revolução que abalou pela base a modernidade. Anunciava-se quase imperceptivelmente no começo, depois com evidência crescente, para no final do século XX impor-se como um fenômeno avassalador que veio para ficar: a Pós-Modernidade. Subverteu pela base tudo que a modernidade tinha construído, quando, no dizer de Alexandro Serrano Caldera “desvalorizou o futuro, fez cair as utopias, cancelou as certezas e implantou o reino do ceticismo moral. (Caldera., p. 91) Em outra passagem conclui que “A Pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos e paradigmas que deixariam, entre outras coisas, a ideologia arquivada nos museus do tempo irremediavelmente passado, sendo que a construção de novos modelos dar-se-ia a partir de uma realidade globalizante. (Caldera, p. 91-92) Ou ainda “O protótipo do homem   dominante da atualidade é um bárbaro digital”. (Caldera, p. 91). 

O autor das “Meditações Máximas e Mínimas” deixou outras dezenas de caracterizações da Pós-Modernidade. Todas elas convergem para um ponto comum. A eliminação de referências estáveis, a fragmentação e a compartimentação em todos os campos, inclusive na produção do conhecimento. Em meio a esse quadro, o passado perde a importância como fonte de referências e o futuro deixa de fazer sentido como um universo que importa construir. O que conta é o presente. “A modernidade está em crise porque está em crise a ideia do futuro. O homem contemporâneo vive em função do aqui e agora”. (Caldera, p. 91)

Somando os efeitos negativos do ensino e pesquisa tutelados e burocratizados, à tendência centrífuga própria da Pós-Modernidade, temos o caldo ideal para o cultivo dos obstáculos que barram o caminho de quem se aventura pelo caminho da produção do conhecimento. 

A tendência centrífuga à qual nos acabamos de referir pode ser sentida fazendo uma comparação com a dinâmica da Evolução em Teilhard de Chardin. Ele valeu-se do globo terrestre como recurso didático para tornar palpável a evolução global. O mesmo recurso, ressalvadas as peculiaridades, parece útil para explicar o que vínhamos teorizando. Para Teilhard a evolução do universo teve o seu começo num ponto único de partida, o “polo Sul”, o “Alfa”. Pelos mecanismos combinados da “agregação”, da “incorporação” e da “complexificação”, o todo expande-se e diversifica-se. À maneira dos meridianos terrestres o leque segue em direção ao equador abrindo-se e diversificando-se cada vez mais. Num corte transversal à altura do equador, observado da perspectiva do polo norte, dezenas, centenas e milhares de linhas ou meridianos, sugerem uma situação de isolamento ou separação entre elas. Parece que não existe relação de interdependência. A miopia do homem pós-moderno faz com que perceba apenas os terminais dos meridianos, gerando a ilusão de que a dispersão continuará a se acentuar cada vez mais. O polo sul donde partem os meridianos parece nada ter em comum com os meridianos isolados, observados a partir dos trópicos ou do equador. Na comparação os meridianos correspondem aos muitos campos possíveis do conhecimento. As gerações de estudantes e não poucos dos seus professores já não percebem que as áreas em que pretendem especializar-se e atuar futuramente, à maneira dos meridianos, têm um ponto de partida comum, o polo sul, o “Alfa”. A razão última de ser de tudo deve ser procurada lá no começo. Lá estão concentradas as energias que explicam a diversificação, e ao mesmo tempo, garantem que no avanço pelo tempo, apesar de as aparências simularem o contrário, a grande unidade persiste.

Continuando a comparação da produção do conhecimento com a trajetória dos meridianos, a situação gerada pela pós-modernidade, termina levando a sérios equívocos. É muito comum a falsa impressão de que na altura do equador os meridianos separam-se de vez, assim como os conhecimentos parciais por eles significados. Sendo assim a tendência que se observa é de ignorar o ponto de partida comum no qual e pelo qual a enorme multiplicidade encontra a razão de ser. Estamos assim frente a um risco de proporções catastróficas de perder de vista a dimensão histórica dos fatos e acontecimentos. Pior. Não se vai apenas a historicidade como a própria História do universo, da natureza e do homem.  A noção do passado, a noção de História como referência esclarecedora importante dos fatos, já não acrescenta nada ao conhecimento do homem pós-moderno.  O que importa é procurar lidar com a pluralidade e movimentar-se numa floresta na qual só interessam as árvores e não se percebe que fazem parte de um ecossistema. A ausência da noção histórica leva à desvalorização do passado e o ceticismo em relação ao futuro. Porque preocupar-se com um passado que pouco ou nada de útil oferece e com um futuro sem fascínio. “Para ele (o homem pós-moderno) o Paraíso não está num passado remoto nem num mais além dessa vida: só se existe nessa vida e nesse mundo; nele o ser humano, dono da razão e de si mesmo, é capaz de construí-lo”, ou “o homem contemporâneo vive  em função do presente, do aqui e agora”. Ou ainda “Vivemos o tempo da irrupção do presente”. (Caldera, p. 91).

Há sinais, ainda que muito tímidos é verdade, de que a pós-modernidade começa a esgotar   seus potenciais de dispersão e fragmentação. A abolição das referências em todos os setores da vida, a perda da perspectiva do todo e da razão de ser que explica a dinâmica das coisas, começou a produzir seus efeitos. Multiplicam-se as manifestações em favor do retorno a uma visão unificadora e integradora. Não se trata de um movimento saudosista e/ou romântico, interessado numa volta pura e simples ao passado. Não se postula a restauração do paraíso perdido, o retorno ao mundo mitológico dos antigos, ou à crença de que o presente nada mais é do que um momento de passagem, ou que a dinâmica do universo obedece à mecânica semelhante à de um relógio. Já há sinais evidentes de que a complexidade da pluralidade que nos cerca, encontra a explicação, mais ainda a própria razão de ser, num todo, numa totalidade, que explica sua existência e responde pela sua dinâmica. Retornando à metáfora do globo terrestre de Teilhard, na base de tudo há um “polo Sul”, um “Alfa”, do qual se originam e partem as realidades naturais que se diversificam e expandem, para novamente convergir em busca do “polo Norte”, o “Ômega”. 

Os argumentos em favor de uma compreensão integradora e globalizante, partem com frequência crescente de manifestações de cientistas de renome. Representantes emblemáticos são Francis Collins, diretor do projeto Genoma, Edward Wilson, um dos maiores especialistas em insetos e ecossistemas, professor por mais de quatro décadas na universidade de Harvard, e o próprio Einstein ao afirmar em sua carta à filha que o “Amor” é a essência do universo, ou então a sua afirmação: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe”. No último parágrafo das conclusões de sua obra mais conhecida, “Uma breve História do Tempo”, o físico Stephen Hawkings aponta na mesma direção. Obviamente enumeram-se entre esses depoimentos os de cientistas renomados oriundos do contexto religioso como, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Johannes Rick, Ferdinand Theissen, Girolamo Bresadolla, Balduino Rambo, Luiz Sehnem e muitos outros. Apontam para o fato de que está em curso um movimento de retorno a uma compreensão unitária do universo. Significa também que a visão da dispersão e fragmentação, deve estar chegando ao limite. Voltando ao globo terrestre de Teilhard, estamos estacionados na altura do equador. Começou o movimento de reaproximação dos fragmentos, a retomada da reaproximação e reintegração. Os meridianos começaram a inflexão em direção ao polo norte, ao “Ômega”. Num futuro talvez ainda distante acontecerá o reencontro. A pluralidade será subsumida pela unidade. Não é aqui o lugar nem o momento para divagar sobre questões de prazos e o tempo necessário para a conclusão, do fecho dessa dinâmica. Mas com certeza não se trata de uma utopia tentando alcançar a linha do horizonte linha de horizonte que se distancia na medida em que tenta alcançá-la, mas um polo real, um “ômega” real a ser encontrado.

O desafio situa-se em outra esfera. É preciso empenhar-se para reaproximar a Pluralidade dispersa na Unidade que lhe dá sentido, a partir de base teórico-metodológica adequada. Em outras palavras. Qual o caminho que permite recolocar no seu devido lugar e importância da relação da Pluralidade com a Unidade, as partes com o Todo e o Todo com as partes.  

Partindo dessa preocupação a lógica leva a concluir que as partes são inter-relacionadas, interagem entre si, inter-determinam-se e inter-legitimam-se. O desafio que se coloca consiste   em identificar as partes, descobrir as relações mútuas, estabelecer o nível de importância de cada uma em relação ao todo. Falar em conhecimento só depois de alguém se ter apropriado da compreensão do “Plural no Uno e do Uno no Plural”. 

O caminho a percorrer oferece suas dificuldades. Costuma ser longo e trabalhoso. E como já sinalizamos mais acima, pressupõe algumas premissas. Com uma delas já nos ocupamos. O pretendente a produtor de conhecimento tem que estar munido de uma formação multidisciplinar e interdisciplinar ampla e consistente. E o que se entende por esse tipo de formação? Antes de mais nada inclui as ferramentas mínimas que permitem o acesso aos conteúdos, dados e informações, que representam a matéria prima com que se pretende trabalhar. Entre elas merecem destaque: domínio das línguas, pelo menos ao nível da leitura, nas quais está preservado o patrimônio do conhecimento; conhecimentos teórico-metodológicos  para conferir credibilidade e solidez a todos os passos, e de modo especial, à síntese final com que culmina o verdadeiro conhecimento e em se tratando de investigações no campo das ciências naturais, o perfeito domínio do manuseio dos aparelhos e tecnologias usadas nos respectivos laboratórios de pesquisa; estar de posse dos conhecimentos gerais mínimos que permitem a compreensão de que o universal, o todo, não se resume na simples soma aritmética das partes.

O Rebento do Carvalho

Contos dialetais do Pe. Balduino Rambo


A linguagem humana é, sem dúvida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Elas desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso,, reluzem sobre suas folhas as reminiscências do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana até hoje o perfume do mistério da alma humana. A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus à beira da estrada de todos os povos para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma do homem. (Pe. B. Rambo)


Entre os anos de 1937  e 1961 foram publicados 21 contos no dialeto Hunsrück no almanaque “Die Fahne des Hl. Ignatius. Seu autor foi o Pe. Balduino Rambo, mais conhecido como professor do Colégio Anchieta, como professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e botânico de renome internacional. Quatro desses contos datam respectivamente de 1937, 1939, 1940, 1941. A proibição das publicações em língua estrangeira, pela Campanha de Nacionalização e a Segunda Guerra Mundial, interrompeu a série até 1947. O último conto foi publicado postumamente pois, o Pe. Rambo faleceu em setembro de 1961.

Do primeiro ao último os contos foram orientados pelos mesmos objetivos, os mesmos interesses e as mesmas preocupações. Na década de 1930 o teuto-brasileirismo lançara seu estágio mais característico. Em outras palavras, apresentava-se na sua maior pureza. Os descendentes dos imigrantes alemães tinham assumido de um lado conscientemente a condição de cidadãos brasileiros e do outro não abriam mão da tradição cultural da procedência germânica. E, neste contexto, a língua assumiu um significado prático e simbólico fundamental. E para esses descendentes de imigrantes de primeira, segunda, terceira e quarta geração entrava em questão, em primeiro lugar não o alemão erudito ou clássico, mas o dialeto falado  na comunicação do dia a dia em família e nas comunidades. Pois, foi nesses dialetos que se consolidaram e transmitiram de geração em geração, as singularidades da tradição de cada um dos  grupos dos grupos de imigrantes procedentes das regiões mais diversas da Europa Central onde predominou a “Ordem Alemã”. Chamar a atenção  para esses falares, esses dialetos, mostrar a sua importância e sua riqueza, foi a preocupação  do autor dos contos, que ora oferecemos ao público, em edição bilíngue, no dialeto original e na versão em português.

Entretanto, os contos nos eu conjunto, têm um segundo objetivo não menos importante, isto é, descrever o mundo rural, seus personagens, a vida em família, a comunidade, a religiosidade, etc., no dialeto de que utilizavam os atores do quotidiano desse universo. O autor escolheu esse caminho para chamar a atenção sobre este mundo, sobre sua identidade e torna-lo consciente da sua importância e do seu valor. Ao ler os contos o colono identificava-se com os personagens e sua maneira de ser e ia descobrindo que o mundo rural cultivava uma maneira de ser que induz as condições perto do ideal para prosperar uma vida  individual e coletiva de notável qualidade, tanto no terreno material quanto espiritual. Assim, os contos serviram como um poderoso estímulo para fortalecer  a auto estima do leitor. Ele se descobre como o protagonista de um mundo humano e cultural que, no nível de qualidade,   nada fica devendo ao urbano, que costumava olhá-lo de cima para baixo, estigmatizando-o como inculto, ignorante, bruto, grosseiro. O mundo em que vive o colono oferece-lhe todas as condições para a realização pessoal e felicidade coletiva. Confere-lhe maior autenticidade mediante a simplicidade ingênua e telúrica, nascida do contanto permanente com a natureza, em contraposição o artificialismo e à sofisticação urbana. O mundo rural é autêntico, aproximando o colono do “bom selvagem”. E puro, até certo ponto ingênuo, romântico, enfim,  humano “Menschlich”. Apesar de carecer das facilidades e das comodidades urbanas, é nele que o autêntico humano do homem encontra o chão propício para germinar, desabrochar e manifestar-se  na sua espontaneidade, na sua exuberância primigênia. E, para que a reprodução do mundo rural teuto se aproximasse o mais possível dessa realidade o Pe. Rambo valeu-se do dialeto invocando a justificativa registrado no seu diário em 29 de junho de 1949.

Como sempre prende-me o teor épico da minha língua materna. É apenas nos dialetos que ainda vive toda força criadora da épica. Deles brota a língua artística, que se cobre mais e mais de torpor, quanto mais, ao crescer para o alto, ela se insere no mundo do intelecto e da razão. Quem não ama seu dialeto não aprendeu o espírito da língua.

Apesar da sua condição de padre jesuíta, professor universitário, escritor de renome e cientista internacionalmente reconhecido, o Pe. Rambo não esqueceu a sua origem colonial, muito menos a escondeu ou renegou. Pelo contrário. Costumava procurar em meio aos colonos o ambiente propício contrário e o convívio ideal para relaxar e revigorar as energias espirituais. As pessoas simples dos seus camponeses, em muitos casos, rudes, curtidos no dia-a-dia, no sol-a-sol, no tempo bom e no tempo ruim, nas alegrias e nas. Tristezas, estimulavam-no a retornar às raízes e apegar-se a elas cada vez mais. No convívio informal com os colonos e colonas encontrava os personagens com sua maneira de ser e falar e os episódios que inspiraram os contos. Nenhum desses. Personagens foi uma criação pura e simples do autor. Todos esses episódios aconteceram de alguma forma encontraram no quotidiano colônia os seus protagonistas. Por isso, mesmo os leitores viam-se retratados a si próprios, ou a conhecidos, ou vizinhos nos episódios narrados no saboroso e vigoroso linguajar, que lhes fazia vibrar as cordas mais sensíveis e mais profundas da alma. Para o colono que lia os contos, os personagens tinham nome, assumiam uma identidade, moravam num lugar determinado e ocupavam um espaço definido em alguma comunidade. Todos os acontecimentos narrados aconteceram de alguma forma em algum lugar. E sempre havia aqueles leitores que na vida real tinham participado de um ou de outro deles. Utilizando-se da estratégia de escrever no dialeto falado nas colônias, apresentando com vigor e exatidão da realidade humana e circunstancial dos leitores. O Pe. Rambo encontrou o caminho infalível para a aceitação das suas mensagens.

Para encerrar chamo a atenção para o último dos contos publicado um ano depois do falecimento do P. Rambo. O título no original em dialeto vem a ser: “Zwerrich dorrich de Hunsrück” – “Cruzando o Hunsrück” foi o derradeiro conto que o P. Rambo deixou como legado póstumo para os seus amados leitores espalhados pelas comunidades coloniais do sul do Brasil. Por ter sido o último, por ter sido póstumo e por descrever a visita que fez ao cenário histórico em que foi plasmado o perfil, a identidade étnica dos “Hunsrücker” e onde se consolidou o saboroso e vigoroso dialeto pelos imigrantes procedentes daquela região, o conto assume as características e o sentido simbólico do canto de cisne do P. Rambo no seu diálogo literário de 25 anos com os colonos que nutriam uma sincera veneração por ele.

[ Reflexões ]

Felizmente fazem-se ouvir também em nosso meio, as vozes, ainda isoladas, mas de especialistas de peso, preocupados com o nível preocupante em que se encontra a educação no país. Melhor ainda contamos com meios de divulgação de peso e vasta circulação que oferecem espaço para os arautos da boa nova. No artigo com o sugestivo título: “Educação para que?” o especialista em educação Gustavo Ioschpe, publicado na revista Veja de 12 de dezembro de 2012, aponta para o ponto crucial na formação, que prepara a criança e o adolescente para enfrentarem a vida profissional com sucesso. Transcrevo a passagem em que resume o seu ponto de vista.

A função primeira da escola é dar a seus alunos os instrumentos de que necessitam para navegar no mundo: um domínio básico da escrita e das operações matemáticas. Sem elas   é impossível funcionar de maneira autônoma. Depois, a escola precisa transmitir aos alunos uma vasta base factual, expondo-os ao conhecimento acumulado pela humanidade. Não apenas porque esse conhecimento é indispensável para o desenvolvimento do raciocínio (falo mais sobre isso em artigo futuro, sobre neurociência), nem porque, se bem ensinado, é inteiramente estimulante, uma vez que crianças são naturalmente curiosas, mas também porque essa exposição é necessária para que demos às crianças a chance de ter contato com suas reais vocações. Talvez uma criança nasça com o potencial de se tornar um médico extraordinário, mas precisará de algum contato com a biologia para facilitar o encontro coma sua vocação. Claro, não podemos ensinar na escola todos as milhares de especializações do conhecimento humano, mas precisamos abordar as grandes áreas nas quais esses conhecimentos estão inseridos (genericamente: linguagem, matemática, ciências sociais, humanas e exatas, artes e educação física). Finalmente a boa escola precisa fazer com que os alunos possam usar esses diversos conhecimentos como ferramenta para desenvolver sua própria capacidade de pensar. Não é importante estudar história para saber nomes e datas, mas sim ser exposto a nomes e datas para que se perceba como o estudo da história pode explicar o presente. Quanto mais ferramentas analíticas a pessoa tiver à sua disposição, melhores serão suas decisões e mais próximo do seu máximo potencial ela vai chegar. Por isso é que mesmo o aluno que sabe que vai ser advogado deve estudar química: se bem ensinada, é mais uma ferramenta para ajudá-lo a pensar. Uma boa educação gera multiplicidade de interpretações e de opções. (Ioschpe, Gustavo, 2012. p. 106)

As reflexões sobre a inconsistência para não dizer caos que é a proposta da educação em todos os níveis, poderia ser aprofundada. Resolveria muito pouco para não dizer nada. Em todo caso enquanto persistir a tutela do Estado, a instrumentalização política e ideológica da educação, a produção de um conhecimento de alto nível fica entregue a franco atiradores, a “free Lancers”. Nada de relevante se pode esperar neste sentido na atmosfera viciada das instituições formais de ensino. Não é por nada que se contam nos dedos das mãos os portadores do prêmio Nobel na América Latina. Um detalhe. Todos em Literatura e um da Paz. Nenhum em Medicina, Física, Química e Economia. O Brasil não conta com nenhum, apesar do discurso megalômano das autoridades e da empáfia de não poucos pesquisadores e ou “pensadores”. O que de alguma forma se produziu de valor em termos de Conhecimento, aconteceu fora do clima contaminado   das universidades. Nelas há condições apenas para repetir e reciclar, não raro de forma tosca Marx, Engels, Hegel, Lenin, Trotzki, Gramsci, Habermas, Adorno, Hockerheimer, e outros na moda, por “pensadores” que nunca leram seus autores no original. Penetraram no pensamento deles por meio de textos recosidos e devidamente interpretados de acordo com as conveniências políticas e ideológicas. 

A razão de fundo que não autoriza sonhar a curto e médio prazo com uma reversão do quadro que acabamos de descrever, foi expressa na observação do Pe. Alfonso Borrero. Para ele foi surpreendente a maciça presença de filósofos na formulação do programa da reforma universitária da Alemanha no começo do século XIX: Kant, Schelling, Schleiermacher, Fichte, Hegel, Humboldt e outros. Quando hoje se coloca na mesa dos debates o tema universidade, confrontam-se as ideias de políticos, economistas, jornalistas, contadores, planejadores e administradores da educação. Desinformados sobre a História e a Filosofia da Ciência, sobre a História e Filosofia da Universidade, sobre a História e Filosofia da Educação, não deixam espaço para a opinião do filósofo. 

Até aqui a nossa linha de reflexão teve como foco a necessidade de uma educação e formação, capaz de consolidar uma compreensão integradora do universo, da natureza e do homem, e ao mesmo tempo, oferecer uma sólida base teórica e metodológica. Em países como a Europa Central e do Norte, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Finlândia etc., as universidades   oferecem esse perfil, com a autonomia assegurada de direito e de fato. Esses países investem pesado no ensino fundamental e médio, na formação básica de natureza generalista e interdisciplinar, das línguas, literaturas, humanidades, ciências da natureza, sem se esquecer dos instrumentos técnicos e tecnológicos, sem os quais é inconcebível qualquer instituição de ensino. Sobretudo nas universidades as atividades são conduzidas nos limites “sagrados da liberdade de ensinar e liberdade de aprender” – “Lehrfreiheit und Lernfreiheit” no entender dos   alemães. A autonomia no plano acadêmico permite liberdade de escolha “do que” e “do como ensinar” e “do que” e “do como aprender”. E para que isso possa acontecer exige-se na outra ponta autonomia econômica e financeira e a maior distância possível, se possível total, do Estado, da Igreja, de partidos políticos e ideologias na moda. Nessa situação os governos centrais ou regionais têm o direito e o dever de destinar os recursos necessários. Uma vez depositados na conta de alguma universidade, cabe aos seus órgãos administrativos internos determinar as prioridades para aplicá-los.

Pelo que foi visto até aqui, é na ausência de autonomia de fato que reside o maior problema do ensino tutelado pelo Estado. Esse modelo de ensino alimenta-se do “leite envenenado da legislação napoleônica de 1806-1808, como diria o Pe. Borrero. Sem autonomia de fato, a formação fragmentada, superficial, inconsistente, a serviço de exigências ocasionais, serve talvez para dar conta de situações pontuais. Produzir conhecimento digno desse nome, abrangente e de longo prazo, nem falar. 

[ Reflexões ]

Este cenário de 50 anos passados começou a tomar o rumo oposto com a Reforma Universitária e 1961. Desencadeou-se a partir daquele momento o desmonte do modelo institucional e acadêmico da universidade tradicional. Não pretendemos negar as aberrações, os desvios e   equívocos que se tinham instalado e que exigiam correções e ajustes de menor ou maior profundidade. A Reforma, entretanto, significou em última análise, a opção por um modelo de instituição em bases essencialmente diferentes. O método sintético dedutivo foi substituído pelo analítico indutivo na orientação da pesquisa e produção do conhecimento. Em vez de partir do geral para o particular começa-se pelo particular para chegar ao universal. Analisando e pesquisando os fatos, fenômenos e dados particulares, pretende-se descobrir o que entre eles há de comum. Em outras palavras. Pretende-se entender o todo identificando e analisando as partes e não entender as partes a partir do todo. Pela Pluralidade chega-se à compreensão do Todo em vez de entender a Pluralidade partindo do Todo. Não resta dúvida de que a opção pelo caminho da análise, pelo método analítico-indutivo oferece vantagens inegáveis sobre o sintético-dedutivo. Mas não se pode ignorar que vem acompanhado por alguns riscos nada desprezíveis e por isso mesmo pede algumas cautelas quando da sua aplicação. Teilhard de Chardin destacou ambos os lados.

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizaram todos os aspectos e forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão de despersonalizar ou de impersolanizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise, esse maravilhoso instrumento de pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos, mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida. (Chardin, Teilhard de. O Fenômeno Humano 1986,)

De qualquer forma essa substituição da referência teórico-metodológica, como não podia deixar de acontecer, veio acompanhada de uma série de consequências tanto positivas quanto negativas. 

A primeira obrigou o redimensionamento da estrutura acadêmica em função da ressignificação e consequente redimensionamento dos conteúdos das áreas de conhecimento e respectivas disciplinas. Teve início então uma departamentalização cada vez mais acirrada que favoreceu a compartimentalização igualmente levada a extremos. Institucionalizou-se a independência, o isolamento e a impermeabilidade entre as disciplinas e seus conteúdos. Esse fenômeno veio acompanhado em não poucos casos, por um outro igualmente danoso. As áreas de conhecimento sofreram uma revisão, melhor talvez, uma ressignificação da sua própria natureza e sua função reorientada. A Geografia, por ex., deixou de ser uma ciência humana, para ser considerada técnica. Fato semelhante aconteceu com as Ciências Econômicas e Jurídicas e a Arquitetura. De áreas essencialmente humanas ou pelo menos com destino imediato direcionado para o homem, são na verdade tratadas e ensinadas nas respectivas faculdades, como se fossem apenas técnicas. Áreas eminentemente técnicas como a Engenharia, ignoram simplesmente a sua possível relação com outras especialidades. Escapa ao geógrafo, economista, arquiteto, jurista, etc., que a compartimentação centrífuga, teve suas raízes num momento histórico, no qual todo o saber humano, era visto como uma unidade, formado por áreas complementares e interdependentes. Trabalhava-se então com a “tese”, ou se quisermos, com o pressuposto de que o conhecimento em todos os seus desdobramentos, fundamenta-se, em última análise, numa base comum. Em outras palavras, os conhecimentos parciais não passam de manifestações de um todo, uma unidade, uma totalidade, que lhe confere sentido e razão de ser. No fundo, no fundo não faz diferença  se esse todo radical ou original corresponde a uma cosmovisão teocêntrica, antropocêntrica, budista, hinduísta, shintoista, taoista, shamanista, ou outra qualquer. 

Com as devidas adaptações impostas pelo andar do tempo, a essência estrutural e acadêmica nas universidades alemãs, inglesas e norte-americanas, manteve-se, como se mantém até hoje, fiel à “tese” de que os conhecimentos parciais tem uma origem comum no todo. 

As mudanças acadêmicas e estruturais implantadas desde a década de 1960, foram motivadas por duas razões de fundo. Em primeiro lugar a preocupação pela compreensão da unidade, da totalidade do saber passou para um segundo plano. O que importa é conhecer até o fundo as partes. Inverteu-se com isso a perspectiva a partir do qual o conhecimento é construído. A “análise”, veio a ocupar o lugar da “síntese”, como norte teórico-metodológico. Começou a vigorar nos laboratórios de investigação científica e nos gabinetes de produção de conhecimento a ordem de penetrar sempre mais a fundo nos objetos particulares. Há, com certeza, uma razão de peso para essa inversão de perspectiva. A segunda metade do século XX inaugurou uma forte tendência para o desenvolvimento. O mundo saíra profundamente modificado da guerra. As alianças políticas, os tratados econômicos, os pactos militares, acomodaram o mundo como uma totalidade, em blocos hegemônicos, envolvendo de alguma forma todos os povos e nações. Neste contexto a maneira de conceber a formação e a educação do cidadão, constitui-se peça fundamental. O apelo pela mobilização de cidadãos com conhecimentos diretamente utilizáveis, fez com que, principalmente as universidades, fossem convocadas para suprirem a demanda   de mão de obra especializada. O interesse pelos conhecimentos e investigações de aplicabilidade imediata e prática cresceu na mesma proporção que o conhecimento e a pesquisa em áreas indiretamente importantes, passaram para um segundo plano. As “prioridades” fazem com que por ex., as “Ciências Humanas” ocupem uma posição marginal em muitas Instituições de ensino superior.

O lado profissionalizante da produção do conhecimento e das investigações nos laboratórios científicos, é cada vez mais valorizado e a universidade orienta seus objetivos prioritariamente para o desenvolvimento. Não há necessidade de recorrer a profundos malabarismos lógicos, para perceber que essa correção de rumo fez tremer um dos pilares mestres da universidade: a “Autonomia”. Parece importante, entretanto lembrar que a Autonomia pode ser vista como informal, de fato, ou capitulada na Constituição e amparada na legislação complementar. A primeira versão é encontrada nos países em que o Estado se interessa pelas universidades porque os resultados das investigações nelas realizadas, os conhecimentos de alto nível produzidos e tecnologias de ponta desenvolvidas, interessam aos propósitos do Estado. Municiam as universidades com os meios e instrumentos de renovação e atualização, permitindo o progresso em todos os empreendimentos no plano material e conferem-lhe prestígio pelo conhecimento de alto nível, orgulho das suas academias. A relativa perda da autonomia de fato é imposta pelos “clientes” que encomendam “os produtos” que lhes interessam nas universidades. Esse fenômeno, salvo melhor entendimento, continua valendo nas universidades alemãs, inglesas e norte-americanas. Sua estrutura institucional e sua proposta acadêmica mantem a excelência como meta, a pluralidade na unidade como referência metodológica e a destinação do conhecimento produzido, os resultados das pesquisas efetuadas e a utilidade das tecnologias desenvolvidas, direcionadas para o desenvolvimento. Vista sob essa ótica o “mercado” orienta e seleciona o que a universidade tem a oferecer. Não lhe assiste, entretanto, nenhuma autoridade, muito menos amparo legal para cercear a autonomia.

Uma situação bem diferente, para não dizer antagônica, está presente nas universidades públicas e privadas, direta ou indiretamente inspiradas no modelo napoleônico. Na sua própria concepção original o modelo é profissionalizante. Como tal o maior valor cultivado na academia é a aplicabilidade prática. Como tal a universidade transforma-se em mais um instrumento precioso e poderoso para aparelhar o Estado. Neste caso os homens e os partidos de plantão no governo, servem-se da universidade como de todos os níveis do ensino, para perseguir seus propósitos, difundir suas ideologias políticas e implementar interesses pessoais. Dessa maneira está armado o cenário para o Estado por em andamento a escalada da tutela sobre a universidade. Nos cinquenta anos que se passaram desde que começaram as reformas  até hoje, os governos federal, estadual e municipal, valendo-se de “bases e diretrizes”, repetidas vezes remodeladas e “aperfeiçoadas”, implementadas por meio de um aparelhamento burocrático cada vez mais acirrado, controlam até às minúcias o ensino e a educação, começando pelo infantil até a pós-graduação. A autonomia prevista na Constituição é letra morta e não passa de uma ficção.

A tutela do Estado sobre o ensino, de forma especial sobre a universidade, trouxe consigo problemas de fundo, que afetaram as investigações científicas e a produção do conhecimento. O lado talvez mais discutível dessa situação relaciona-se com as áreas de conhecimento privilegiadas na escolha das prioridades acadêmicas além da opção pela base teórico-metodológica preferencial. As demandas do mercado público e privado ditam a formação profissional preferencial. Somado ao engajamento político-ideológico a situação que se criou, relegou para um segundo plano as Ciências Humanas, Letras, Artes ... 

Os fatores que determinam a escolha da área ou objeto específico digno de atenção especial,   obedece em primeiro lugar ao critério das oportunidades profissionais que oferece. Ora essas oportunidades estão intimamente relacionadas com os instrumentos necessários para implementar as políticas públicas de desenvolvimento. Compreende-se que a lógica determine a canalização dos estímulos e recursos em favor das áreas prioritárias. Ninguém de são juízo colocará em dúvida a validade dessa forma de proceder. Trata-se de uma tendência universal   que faz parte do momento histórico. A razão de ser dos problemas e das dúvidas que se fazem sentir, não se situam na natureza do processo, mas na forma como é administrado. 


No caso específico do Brasil, os órgãos públicos, ministérios, secretarias, etc., direta ou indiretamente responsáveis pela formação acadêmica e profissional, impuseram, com o andar dos anos, um aparelhamento burocrático hermético. O Ministério da Educação dita, por meio da CAPES e secretarias setoriais, até as últimas minúcias, tanto a estrutura burocrática das instituições de ensino, quanto a natureza, a importância e a destinação das propostas curriculares. Pouco espaço, melhor, nenhum, sobra para propostas que não cabem nessa camisa de força. Para usufruírem da legitimação oficial as instituições de ensino em geral e as universidades em particular, são coagidas a se burocratizarem até os últimos detalhes. O processo começa pela opção por prioridades, estrutura curricular, seleção de conteúdos, escolha e execução de projetos de pesquisa e por aí vai. Uma pesquisa científica ou a produção de conhecimento, só goza de reconhecimento quando executada rigorosamente de acordo com as regras ditadas pelas coordenações, comitês, colegiados, etc. ou pior, pela ideologia ou simples humor dos gestores. Não sobra espaço para a liberdade ou autonomia de voo de uma investigação científica ou produção do conhecimento sem compromisso. Estamos diante do cenário perfeito que favorece o espírito de rebanho na mesma proporção em que obstrui o caminho em busca da produção de um conhecimento livre. A situação torna-se dramática quando se instala a tirania partidária e ideológica no meio acadêmico. Os poucos professores que ousam discordar são sumariamente silenciados e boicotados pelos colegas. No momento em que se decidem currículos e disciplinas suas opiniões são ignoradas. Cabe ao oportunismo ideológico a última palavra. Em sala de aula os conteúdos são escolhidos, apresentados e tratados sob medida, para agradar alunos e exigir deles o mínimo de esforço. Professor bom é   aquele que fala sobre temas, e principalmente, sob o enfoque que os alunos esperam, melhor, exigem ouvir.

E os resultados? Egressos do ensino fundamental semianalfabetos, formados no ensino médio candidatos ao superior, incapazes de formular um raciocínio coerente, dominando precariamente a língua do país, sem condições de redigir uma frase correta. Nessas condições falar em produzir conhecimento, só com muita boa vontade. Faltam as condições prévias mais elementares. Em primeiro lugar os estudantes ressentem-se da falta das ferramentas básicas para ousarem trilhar o caminho da produção do conhecimento. Entre elas são fundamentais as línguas clássicas e modernas mais correntes, uma formação geral mínima, a posse dos indispensáveis instrumentos teóricos e metodológicos. Com a falta desse pressuposto as perspectivas infelizmente permanecem limitadas. 


[ Reflexões ]

A mesma preocupação com uma formação ampla e consistente, tiveram os responsáveis pela consolidação da universidade norte-americana. No transplante para a América, não deixaram de acontecer as adaptações óbvias exigidas pelas novas circunstâncias. A formação revestiu-se de um direcionamento pedagógico-educacional mais ostensivo. A preocupação pela pesquisa pura, por assim dizer “desinteressada”, cedeu lugar a uma visão mais utilitária, mais pragmática. Com essas adaptações naturais, porém, o cerne do modelo original não sofreu nenhuma modificação substancial na sua valorização. Pelo contrário. Foi enriquecido. Em vez de apropriar-se do conhecimento pelo conhecimento, o saber pelo saber, desde cedo sinaliza-se para direcionamentos práticos. Neste sentido o M.I.T. é um exemplo de instituição de grande sucesso. 

A razão por ter-me prolongado na caracterização da formação média e superior, foi mostrar sua importância como pressuposto para a produção do conhecimento. Já que partimos da premissa de que conhecimento é síntese, a lógica sugere que o resultado final dessa síntese é tanto mais rico e tanto mais consistente, quanto mais conhecimentos parciais participaram da sua construção e quanto mais sólida for a sua integração. Os dois elementos estão presentes tanto na proposta pedagógica quanto no currículo e nível médio e superior das instituições de que nos ocupamos acima. Nos “Gymnasia” de nível médio estavam previstas todas as disciplinas indispensáveis para uma formação básica ampla do tipo generalista. Os diversos blocos afins formam os pilares que servem de base para a construção do conhecimento. Em grandes linhas são eles: as línguas clássicas e modernas mais correntes na comunicação de alto nível, com as respectivas literaturas. O formado nesses “Gymnasia”, estava em condições de valer-se do original dos textos em grego, latim, alemão, francês, inglês, e não raro em outras línguas, com destaque para o italiano, o espanhol, português, russo, sueco, polonês, etc. A História Natural, compreendendo a física, química, biologia, geologia e demais conhecimentos da natureza, formava o segundo pilar. O terceiro tinha na história, geografia, antropologia, etnografia, etnologia, seu foco de interesse. E finalmente a quarta coluna mestra da formação tinha na matemática, na filosofia e não raro na teologia a sua coroação. 

Dessa forma o estudante estava em condições de ter acesso à matéria prima e as ferramentas teóricas e metodológicas indispensáveis para a produção do conhecimento. Assim aparelhado o formado em nível médio ingressava no superior, em condições para, sob a orientação de mestres experientes, encontrar o caminho para dar início à arquitetura de um universo próprio de produção de conhecimento. O processo que levaria anos dava-se num ambiente que se denominava “Seminário”. Na modalidade padrão de Seminário, o professor fazia o papel de moderador e coordenador dos debates, das discussões e não como autoridade que ditava de cima para baixo as regras e impunha suas ideias. Cabia-lhe conduzir de tal forma o fluxo do debate, para que dele resultasse um avanço qualitativo sobre o tema em foco.  Cada patamar alcançado servia de degrau para um novo avanço, para mais adiante e mais acima. Preparava-se assim a plataforma para um novo Seminário no qual se aprofundava e levava para mais adiante o aprofundamento da temática. E assim, professor e aluno, cúmplices e comprometidos na aventura da apropriação e aprofundamento de sempre novos saberes, avançavam sobre sempre novas fronteiras do conhecimento.

Com esse formato, o Seminário bem conduzido vem a ser um laboratório próximo do ideal. Habilita o estudante a levantar voo rumo à produção de conhecimento autônomo, guiado por um mestre que faz mais o papel de parceiro do que de tutor ou autoridade do saber. Não por nada o orientador de teses de doutorado ainda hoje leva o nome sugestivo e quase carinhoso   de “Doktor Vater” (“Pai de Doutorando”). Oferece também uma magnífica ocasião para o próprio professor enriquecer, ampliar, renovar e atualizar o seu próprio universo de conhecimento. 

A especialização não vem ser a prioridade dos Seminários. Na proposta original nas universidades alemãs modernas da primeira geração, interessava, antes de mais nada, o conhecimento como tal e apropriação das ferramentas indispensáveis para produzi-lo. Pela lógica supunha-se que aquele que estivesse de posse delas, deveria estar em condições para dedicar-se com sucesso a qualquer campo específico do saber. Foi exatamente essa característica do Seminário que encantou os jovens americanos que em massa foram estudar   nas universidades alemãs entre 1850 e 1914. São recorrentes testemunhos como o do aluno Henry W. Langfellow, estudante em Göttingen em 1829, já citado. 

Ao tirocínio ao qual o estudante era submetido no Seminário das universidades alemãs, à formação da personalidade pelo modelo “Oxbridge” e ao acentuado propósito pedagógico das universidades americanas do Norte vem na contramão, a proposta latino-napoleônica de uma universidade voltada para profissionalização e tutelada pelo Estado. Dois elementos complementares são responsáveis pelo seu perfil institucional e acadêmico. Antes de mais nada a formação do cidadão em qualquer nível e de modo especial na universidade, consta no rol dos instrumentos de que o Estado se serve para concretizar seus propósitos. Sendo assim sua destinação primeira consiste em prestar serviço ao Estado. A lógica é retilínea. Para tocar suas políticas, iniciativas e projetos públicos, o Estado precisa de mão de obra especializada, precisa de técnicos. Ora a formação desses recursos humanos acontece em instituições que vão do fundamental ao ensino superior. Entende-se assim que é do interesse do Estado ditar a própria   razão de ser da universidade, e consequentemente, a natureza acadêmica e o perfil institucional, administrativo e burocrático. Estamos assim diante de um modelo viciado na sua própria essência. A autonomia prevista na Lei Fundamental ou na Constituição de algum país que optaram por esse modelo, não passa de ficção. Não é para valer como na prática não vale. Presta-se muito bem para a mistificação em discursos políticos, encobrir propósitos ideológicos, enfim, para enganar os desavisados, nada mais. Nessa condição a universidade, como qualquer outra instituição de ensino e em qualquer nível, constitui-se, em primeiro lugar, senão em único, num instrumento a serviço dos interesses do Estado. Pior. Dar a impressão de que por meios legítimos ou nem tanto, a formação dos cidadãos está sendo direcionada em função de interesses pessoais dos donos da nomenclatura no poder. Nessas condições produzir conhecimento digno desse nome, só fora ou à margem das instituições formais. 

A instrumentalização da formação do cidadão em qualquer um dos níveis de ensino, vem acompanhado de outro inconveniente não menos desastroso. Fica atrelada aos partidos e ideologias políticas que se alternam no poder. Esse fato resulta ainda mais danoso em períodos em que regimes democráticos, são intercalados com governos autoritários ou pior, ditatoriais. Nesse contexto costumam suceder-se em intervalos curtos e sem condições mínimas de avaliação, as “Reformas do Ensino”, tão familiares no Brasil a partir da década de 1960.

No caso específico do Brasil as relativamente poucas universidades em funcionamento até o final da década de 1950, exibiam um perfil muito parecido com as alemãs, inglesas e norte-americanas. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ocupava o centro polarizador e irradiador, a “Alma Mater” da universidade. Em volta dela agrupavam-se as faculdades, as escolas profissionais, os institutos de pesquisa, etc. No âmbito da “Alma Mater” cultivava-se o clima propício para uma formação de base mais ampla. Nela o estudante encontrava as condições necessárias para familiarizar-se com o conhecimento e tudo o que era preciso para dar início a uma carreira de pesquisa, investigação e produção do conhecimento. Essa estrutura institucional facilitava em muito o encontro e intercâmbio de informações e experiências. Professores e alunos de filosofia, história, geografia, biologia, matemática, física, química, línguas e literatura, circulavam pelos mesmos espaços físicos. Compartilhavam salas de professores, restaurantes universitários comuns ou participavam de programações acadêmicas interdisciplinares. Áreas afins como história e geografia formavam um único departamento. Hoje, por ex., as duas encontram-se tão distantes no contexto universitário, ao ponto de se ignorarem e não terem nada para se enriquecerem mutuamente. 

[ Reflexões ]

A riqueza, a consistência e a abrangência do Conhecimento, é, diretamente proporcional à quantidade, à diversidade, e principalmente, à qualidade dos estímulos que influíram na sua construção. O conhecimento construído por um físico que não dispõe de outras ferramentas conceituais, teóricas e metodológicas além das específicas do seu objeto de pesquisa, necessariamente será limitado e unilateral. A mesma afirmação vale para o historiador que ignora os dados das áreas complementares como, por ex., a geografia, o filósofo e o teólogo que desconsideram as conquistas das Ciências Naturais. Um grande número de especialistas, tanto no âmbito das Ciências Humanas quanto das Ciências Naturais, isolaram-se entre as quatro paredes dos seus laboratórios ou enclausuraram-se nos seus gabinetes herméticos e estagnaram a um nível deplorável de indigência na sua visão do mundo. Correm o risco real e iminente, cada qual à sua maneira, de engrossar as fileiras dos fundamentalistas e dogmáticos. São os donos da verdade que atormentam com suas posições inegociáveis os participantes de congressos, simpósios e seminários de estudo. Emitem juízos de valor sobre questões da competência de outros campos do conhecimento. Pior. Fecham as portas para um diálogo sem preconceitos, desarmado e humilde. Num clima desses não há condições mínimas para o “Conhecimento” em maiúsculo e, consequentemente, não há lugar para “Sábios” – “Weise”. O máximo que pode acontecer é o surgimento de “conhecedores” – “Kenner”, talvez de tamanho enciclopédico, que impressionam os menos avisados, mas não convencem as pessoas munidas de uma relativa capacidade crítica. 

Na Inglaterra as instituições de ensino fundamental, médio e superior, tiveram o mesmo cuidado com a formação. Empenhavam-se e municiar os alunos com um lastro de conhecimentos capazes de lhes franquear as portas para uma compreensão global do universo, da natureza e, principalmente, moldar um cidadão culto e cultivador dos valores humanos, sociais e cívicos. Como já foi destacado mais acima, neste tirocínio o elemento “pedagógico”, o elemento “educação”, fazia a diferença entre a escola inglesa e os ginásios alemães. A combinação feliz da preocupação pelo conhecimento como conhecimento das instituições alemãs e o compromisso com a formação do cidadão das escolas inglesas, resultou na marca registrada da formação no ensino fundamental, médio e superior norte americano. 

A consolidação do padrão de educação inglesa aconteceu principalmente com a reforma comandada por Newman nas universidades de Oxford e Cambridge. O modelo veio chamar-se “Oxbridge”. O conceito sugere a combinação da proposta mais humanística de Oxford com a mais voltada para Ciências Naturais de Cambridge. O perfil do cidadão modelado nesse figurino vem a ser um “gentelman”. Em princípio não tem muito a ver com o imaginário corrente, quando se caracteriza o inglês, diferenciando-o do alemão, do francês ou do italiano. O modelo “Oxbridge” forma o cidadão do qual se espera que seja, segundo o ideal romano, “vir bonus, peritus dicendi”, o que vem a significar um cidadão “bom, virtuoso, correto, educado, dotado de  conhecimentos sólidos e princípios éticos inegociáveis                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            “Essas virtudes aliadas ao “peritus dicendi”, isto é, dono de um saber sólido e abrangente aliado ao dom de se comunicar com maestria, resultam no autêntico “gentelman”. 

É um fato histórico que os fundadores e/ou refundadores das universidades americanas, foram inspirar-se em grande número na universidade alemã. Acontece que a universidade americana da primeira metade do século XIX tinha sido o resultado paradoxal do valor maior daquela nação: a liberdade. A criação e a condução das universidades entregue à iniciativa, à formação e à criatividade de quem estivesse disposto a bancar um projeto nessa área, terminou em anarquia. Ninguém se entendia. Falar em sistema universitário americano na época, não passava da enumeração de instituições, cada qual com sua proposta, não aro conflitante com as demais. O que menos interessava era a produção do conhecimento e a prática da pesquisa científica e a reflexão séria sobre os temas mais diversos. O estado puro resultante dessa situação, foi caracterizado em 1829, pelo estudante americano em Göttingen, Henry Wadsworth Longfellow. Conforme sua avaliação a universidade em seu país limitava-se a três grandes edifícios de tijolo, uma capela e um reitor rezando nela. O mesmo estudante contrapôs a esse cenário desanimador, o que acontecia em Göttingen. Os professores unidos no mesmo espírito, atraíam os estudantes capazes de os ensinar no regime de Seminário. Nele o professor estava em condições de aprender o que não sabia. Um outro estudante deslumbrado com a universidade que encontrou na Alemanha, descreveu os professores como “indescritíveis instrumentos aptos para todos os tipos de utilidades, dispostos a ensinar topografia e oratória latina”. O posterior fundador da universidade de Cornell estudou em Berlim e lá encontrou o ideal do seu sonho de universidade, não poupando louvores aos seus mestres. Ele mesmo confessou que foi na Alemanha que tomou a decisão de fazer algo em favor da educação na América.

De estudantes isolados na primeira metade do século XIX que buscavam a formação nas universidades alemãs, o número foi-se multiplicando a partir de 1850. Entre 1860 e 1870 cerca de 1000 estudantes partiram para a Alemanha. Na década seguinte foram 2000 e ao logo da segunda metade do século, nada menos do que 10000 americanos formaram-se naquele país. O crescimento do número foi ainda maior entre 1900 e 1914, quando pelas razões conhecidas, cessou por completo durante a Primeira Grande Guerra. Henry T. Tappan, autor do livro “University Education”, falando dos resultados benéficos dessa peregrinação em busca das universidades alemãs, resumiu assim a sua conclusão. A pesquisa científica começou a tomar fôlego e aos poucos a universidade foi-se assumindo como uma instituição na qual o professor, o investigador e o estudante, selavam uma aliança em busca do mesmo objetivo.  (cf. Um Sonho e uma Realidade, 2009, p. 95-96). 

Os resultados concretos não se fizeram esperar. Em todo o território dos Estados Unidos foram surgindo dezenas de instituições de ensino fundamental, médio e superior alimentadas pelo mesmo ideal de excelência, com um acento forte na educação. O MIT – Instituto de Tecnologia de Massachussets, representa um dos exemplos emblemáticos do transplante do modelo da universidade alemã, ajustado às circunstâncias americanas. Voltaremos a esse instituto mais abaixo. 

O Pe. Alfonso Borrero, um dos maiores conhecedores da história da Universidade, resumiu a influência da universidade alemã sobre a americana: “Ainda não foi escrita a verdadeira história dos contatos havidos entre a universidade norte-americana e a universidade alemã, durante o século XIX, afirma Walter P. Metzger. Olhado o fato mais de perto, este fluxo é de uma via só, da Alemanha em direção aos Estados Unidos. (Ascun, 1992,  p. 46)

E o que os norte-americanos procuravam nas universidades alemãs? A resposta também é do Pe. Borrero: Aprender a arte da investigação atuava como um poderoso ímã. Os estudantes dirigiam-se às faculdades de Filosofia, depositárias do saber puro, atraídos pelas disciplinas científicas, para aprender a ensiná-las de forma diferente como se costumava fazer nas faculdades profissionais de Direito, Medicina e Teologia. Procuravam com avidez e de preferência a psicologia, a economia, a física, a química, biologia e as matemáticas. A universidade mais procurada foi a de Berlim (Cf. Ascun – p. 46-47)

E a história da formação superior norte-americana provou o acerto da peregrinação, durante mais de meio século, dos estudantes daquele país para a Alemanha. Contam-se hoje, sem exagerar, às dúzias nos Estados Unidos as universidades com seus centros de produção de conhecimento e institutos de pesquisa de alto nível e desenvolvimento de tecnologias de ponta. Na sua concepção, implantação e consolidação tiveram papel decisivo professores e pesquisadores formados em universidades alemãs. Evidentemente não se tratou de um transplante puro e simples do modelo alemão para a América do Norte. Com a transferência   aconteceu uma inevitável adaptação às novas circunstâncias. Aqui não é nem o lugar nem a ocasião para uma análise mais aprofundada dessa questão. Como exemplo bem-sucedido e representativo merece destaque o famoso “M.I.T – Massachussets Institute of Tecnology”. Trata-se na verdade de um complexo universitário que produz conhecimento de alto nível em todas as áreas, realiza pesquisas científicas pioneiras e desenvolve tecnologias de ponta. Dos seus gabinetes de investigação, laboratórios de pesquisa saíram dezenas de prêmios Nobel. E o segredo? Encontra-se na concepção institucional e acadêmica, materializado inclusive no projeto arquitetônico e localização espacial dos prédios. Tudo começou há mais cem anos, em 1916, com a construção do complexo de prédios, que não sofreu nenhuma alteração até hoje   que afetasse a sua essência. Tanto assim que o “State Center” inaugurado em 2004, reforçou a ideia da colaboração, da interdependência e da interdisciplinariedade das diversas áreas do conhecimento. Numa ponta abriga um laboratório de Inteligência artificial e na outra um departamento de Linguística e Filosofia. O Instituto, embora seja conhecido como de “Tecnologia”, realiza uma proposta curricular interdisciplinar tal que os alunos de todas as áreas e diversas especialidades, são estimulados e de fato têm condições, de apropriar-se de uma formação básica generalista. Preocupado em oferecer aos estudantes uma sólida formação científica, humana e técnica, o Instituto exige que todos absolvam um mínimo de disciplinas de cada uma das grandes áreas. Aliás o próprio projeto arquitetônico de 1916, foi desenhado e executado de tal forma que permite e estimula a circulação e o contato entre as cinco escolas centrais: Arquitetura e Urbanismo, Engenharia, Humanidades, Artes e Ciências Sociais, Administração e Ciência e o complexo da Saúde e Tecnologia.

O modelo da formação a nível médio nos “Gymnasia” e o superior nas “Universidades” alemãs no começo do século XIX, privilegiou dois elementos. Primeiro a apropriação de um conhecimento amplo e genérico no qual as Artes, Letras, Humanidades e Ciências Naturais, participavam numa dosagem equilibrada. Todas gozavam de igual importância e de igual necessidade para a vida. Numa perspectiva interdisciplinar oferecia-se ao estudante ocasião para apropriar-se de uma formação que o preparava, em primeiro lugar, para uma compreensão abrangente e integrada do saber. Em segundo lugar, e principalmente pelo sistema de Seminário, familiarizava-se com as ferramentas teóricas e o aparato crítico indispensável, para aventurar-se na construção de um conhecimento próprio e autônomo. Esse modelo alimentava-se implicitamente na ideia de que o tirocínio na universidade não visa a utilidade prática imediata do conhecimento. Nos Seminários predominava a convicção de que o saber, o conhecimento em si, sem um direcionamento prático, preparava melhor os egressos para a atividade   profissional. Essa mesma convicção aparece no modelo das universidades clássicas inglesas, especialmente de Oxford e Cambridge, que acima tivemos ocasião de conhecer com o modelo “Oxbridge”. Tinham como ideal formar o “gentelman”, o “vir bonus peritus dicendi” do ideal romano.

[ Reflexões ]

Os pressupostos

A lógica da reflexão em curso leva-nos um passo adiante e perguntar pelos pressupostos dos quais alguém precisa dispor para se aventurar com alguma chance para construir o Conhecimento sem adjetivos. Sem pretender estabelecer uma prioridade hierárquica rigorosa, entre outros não podem ser ignorados os que seguem. 

Primeiro. A amplitude e solidez do Conhecimento costuma ser diretamente proporcional à amplitude e solidez da formação e a capacidade de síntese daquele que o produz. Uma formação com essas características somente é possível para aquele que se apropria dela num crescendo harmônico que começa no ensino fundamental, passa pelo médio e culmina no superior. Supõe-se, portanto, uma proposta pedagógica na qual, passo a passo, o aluno encontra condições de apropriar-se dos conceitos, conteúdos e conhecimentos teóricos e das ferramentas metodológicas indispensáveis, para produzir um conhecimento digno desse nome. 

No final do século XVIII a Europa formava as suas elites intelectuais em estabelecimentos de ensino em que vigorava o império da teologia como referência. A primeira geração de universidades, fundadas ainda na Idade Média como Bolonha, Paris e as demais até a Renascença, contavam com a constante vigilância e até tutela da Igreja. Muitos religiosos como Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Tomas de Aquino ocuparam cátedras nessas universidades. Foi especialmente na Teologia que ficou clara a orientação dada pela Igreja àquela área do conhecimento. O Tomismo e a Escolástica tornaram-se a base reitora maior do ensino da Teologia. A Revolução do Pensamento do século XVIII não podia deixar de mexer   profundamente no próprio conceito de universidade. Foi preciso repensar seu papel, e com ele, os objetivos e os métodos.  Em meio a esse processo esboçaram-se três modelos, que em parte continuam até hoje: a universidade latina, a universidade inglesa e a universidade alemã, com as marcas inevitáveis de acomodação aos tempos e circunstâncias históricas.

A Universidade Latina predominou na França, na Bélgica, na Suíça não alemã e nos países latinos: Itália, Espanha e Portugal. Esse modelo tem como marca a profissionalização. A universidade espanhola não passa de uma cópia da francesa. Segundo Alfonso Borrero “mãe e filhos bebemos todos da mesma fonte contaminada da legislação imperial napoleônica de 1806-1808”. Institucionalmente esse modelo universitário sofre de uma forte influência, ingerência, e pior, tutela do Estado. Não há necessidade de provas para perceber claramente esse modelo nas universidades brasileiras. Tanto as públicas quanto as privadas estão pagando um preço cada mais alto, com a perda progressiva da autonomia. A autonomia prevista na Constituição na realidade não passa de uma ficção constitucional. A universidade tornou-se refém das leis, regras e diretrizes impostas pelas autoridades educacionais e seus aparelhos burocráticos.

A Universidade Inglesa exibe como marca definidora a Educação, a formação do cidadão, o “gentelman”. Esse diferencial foi compreensivelmente incorporado nas universidades norte-americanas, inspiradas na sua essência na Universidade Alemã. 

A Universidade Alemã concentra todo o peso na pesquisa científica e produção do conhecimento, a ponto de se constituírem na sua própria razão de ser. O prestígio de uma universidade é diretamente proporcional ao valor atribuído à investigação científica e à produção do conhecimento. Interessa em primeiro lugar, a produção do saber e a pesquisa científica em si. Sua repercussão prática e sua aplicabilidade concreta seguem como consequência lógica num segundo momento. Esse modelo de universidade exige como pressuposto, total autonomia administrativa e acadêmica e um corpo docente altamente qualificado. 

Até o final do século XVIII a universidade era formada por três faculdades: Teologia, Medicina e Direito. Eram hierarquicamente superiores à faculdade de Filosofia que ocupava um lugar   secundário. As três faculdades principais ofereciam os conhecimentos de interesse direto do governo com destaque para a fazenda pública e o bem-estar do corpo com a preservação da saúde. A Filosofia, que se ocupava com a ciência pura tratada com rigor e profundidade, servia apenas de reforço às demais. A partir do começo do século XIX foi-se impondo cada vez mais a convicção de que a missão maior da universidade consistia em impulsionar a produção do conhecimento e promover a investigação científica em todos os campos do saber. O grande aliado e patrocinador dessa maneira de conceber a universidade foi Frederico Guilherme III da Prússia. Para ele a investigação científica e a produção do conhecimento eram valores em si. Em princípio não importava sua aplicação prática. Desinteressado pelos utilitarismos imediatos tornou-se o grande incentivador do trabalho científico criativo e de alto nível. Em outras palavras: antes de mais nada, alto nível e excelência; em segundo lugar utilidade prática. O movimento em favor da nova concepção universitária veio aliada ao ideário romântico e idealista do nacionalismo alemão e fez com que a filosofia, a política, o idealismo, o nacionalismo e o romantismo esculpissem o modelo universitário em gestação. Nas cátedras de Filosofia de Jena, Halle e Erlangen pregava-se a totalidade e indivisibilidade dos conhecimentos. 

Entende-se assim que Bayme, encarregado da reforma da universidade alemã, ao começar a fazer parte do Ministério em 1802, se empenhasse de corpo e alma na montagem efetiva da nova universidade. E para começar o trabalho convidou os intelectuais de maior prestígio da época. Embora Kant não tivesse participado pessoalmente da formulação do projeto, deve-se a ele a exigência de que o centro polarizador e irradiador da universidade até então ocupado pela Teologia, fosse transferido para Filosofia. Compreende-se assim que Bayme convidasse filósofos de primeira linha para a montagem da proposta da nova universidade. Os nomes escolhidos foram os de Friedrich Schleiermacher, Johannes T. Fichte, enriquecidos com as contribuições, dos pedagogos Pestalozzi, Commenius e outros. Na sua concepção teórica a nova universidade alemã teve a sua maior inspiração na proposta de Fichte. Em resumo é a seguinte. A educação prevista na nova universidade consiste na formação destinada, em última análise, ao desenvolvimento da capacidade intelectual do educando, não na formação histórica dessa capacidade, pois esta limita-se à análise das características estáticas dos objetos. Preocupa-se com a capacidade superior filosófica que leva o conhecimento das leis que fazem com que as coisas tenham necessariamente as características que de fato têm. É desta maneira que o educando “aprende”. Uma vez formada essa “genuína tendência para aprender”, sem demora estimula o educando, convertendo-a na base de todo o conhecimento.  Desse pressuposto origina-se, como consequência natural, um conhecimento geral de todo necessário, transcendental e, com certeza superior a toda a experiência e reúne em si, de antemão, todas as potencialidades das experiências posteriores.  A nova educação preocupa-se com a compreensão do que descobre e une. O aluno percebe-se estimulado pelo amor à ciência, pelo fato de compreender toda uma coerência vinculada com a ação e a prática. Nessa perspectiva a universidade oferece o ambiente na qual o conceito da verdade é realizado como exigência        institucional. A estrutura da universidade deve refletir unidade orgânica do conhecimento. Deve superar a mera erudição e especialização e confiar à Filosofia o papel de regente de uma orquestra interdisciplinar.

A lógica da reflexão em curso leva-nos a dar mais um passo adiante e perguntar pelos pressupostos, que oferecem as condições para que alguém seja capaz de se apropriar do conhecimento que mereça esse nome. Sem pretender estabelecer prioridades hierárquicas rigorosas, entre outros não podem ser ignorados os seguintes. 

Primeiro. A amplitude e consistência do conhecimento costuma ser diretamente proporcional à amplitude e à solidez da formação e da capacidade de síntese daquele que o produz. Encontramos essa pré-condição no modelo de formação institucionalizado, tanto no ensino fundamental, como no médio e superior, na Europa Central, com destaque para a Alemanha, a Inglaterra e as universidades do Estados Unidos da América do Norte. 

Na Alemanha os famosos “Gymnasia” municiavam os jovens estudantes com uma ampla base de formação filosófica, clássica, literária e científica, capaz de lhes abrir as janelas para o vasto universo do conhecimento. E não eram poucos os exemplos em que os egressos dos Gymnasia  levavam, como primeiro titulo de nível superior o de Filosofia, História, Línguas e Literatura Clássica ou Moderna, para depois se dedicarem a uma especialidade  no complexo campo das Ciências Naturais. A confirmação encontra-se nos currículos de não poucos portadores do prêmio Nobel nas diversas áreas científicas ou nos currículos de muitos outros nomes referência, nas respectivas especialidades. Representantes emblemáticos desse perfil de cientista são Erich Wassmann, o homem das “Formigas e Térmitas”, Teilhard de Chardin, o homem do “Fenômeno Humano”, Ludwig von Bertalanffy, autor da “Teoria Geral dos Sistemas”, Adolf Portmann, com seus estudos sobre “Intercomunicação entre Animais”, o próprio Darwin que exibe em seu currículo estudos de “Teologia”, Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, Edward Wilson com sua obra “A Criação – um apelo par salvar a vida na terra”  Seria longo demais listar os muitos outros com seus nomes consagrados pelos estudos e pesquisas especializadas a que se dedicaram.