O Rebento do Carvalho

Contos dialetais do Pe. Balduino Rambo


A linguagem humana é, sem dúvida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Elas desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso,, reluzem sobre suas folhas as reminiscências do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana até hoje o perfume do mistério da alma humana. A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus à beira da estrada de todos os povos para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma do homem. (Pe. B. Rambo)


Entre os anos de 1937  e 1961 foram publicados 21 contos no dialeto Hunsrück no almanaque “Die Fahne des Hl. Ignatius. Seu autor foi o Pe. Balduino Rambo, mais conhecido como professor do Colégio Anchieta, como professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e botânico de renome internacional. Quatro desses contos datam respectivamente de 1937, 1939, 1940, 1941. A proibição das publicações em língua estrangeira, pela Campanha de Nacionalização e a Segunda Guerra Mundial, interrompeu a série até 1947. O último conto foi publicado postumamente pois, o Pe. Rambo faleceu em setembro de 1961.

Do primeiro ao último os contos foram orientados pelos mesmos objetivos, os mesmos interesses e as mesmas preocupações. Na década de 1930 o teuto-brasileirismo lançara seu estágio mais característico. Em outras palavras, apresentava-se na sua maior pureza. Os descendentes dos imigrantes alemães tinham assumido de um lado conscientemente a condição de cidadãos brasileiros e do outro não abriam mão da tradição cultural da procedência germânica. E, neste contexto, a língua assumiu um significado prático e simbólico fundamental. E para esses descendentes de imigrantes de primeira, segunda, terceira e quarta geração entrava em questão, em primeiro lugar não o alemão erudito ou clássico, mas o dialeto falado  na comunicação do dia a dia em família e nas comunidades. Pois, foi nesses dialetos que se consolidaram e transmitiram de geração em geração, as singularidades da tradição de cada um dos  grupos dos grupos de imigrantes procedentes das regiões mais diversas da Europa Central onde predominou a “Ordem Alemã”. Chamar a atenção  para esses falares, esses dialetos, mostrar a sua importância e sua riqueza, foi a preocupação  do autor dos contos, que ora oferecemos ao público, em edição bilíngue, no dialeto original e na versão em português.

Entretanto, os contos nos eu conjunto, têm um segundo objetivo não menos importante, isto é, descrever o mundo rural, seus personagens, a vida em família, a comunidade, a religiosidade, etc., no dialeto de que utilizavam os atores do quotidiano desse universo. O autor escolheu esse caminho para chamar a atenção sobre este mundo, sobre sua identidade e torna-lo consciente da sua importância e do seu valor. Ao ler os contos o colono identificava-se com os personagens e sua maneira de ser e ia descobrindo que o mundo rural cultivava uma maneira de ser que induz as condições perto do ideal para prosperar uma vida  individual e coletiva de notável qualidade, tanto no terreno material quanto espiritual. Assim, os contos serviram como um poderoso estímulo para fortalecer  a auto estima do leitor. Ele se descobre como o protagonista de um mundo humano e cultural que, no nível de qualidade,   nada fica devendo ao urbano, que costumava olhá-lo de cima para baixo, estigmatizando-o como inculto, ignorante, bruto, grosseiro. O mundo em que vive o colono oferece-lhe todas as condições para a realização pessoal e felicidade coletiva. Confere-lhe maior autenticidade mediante a simplicidade ingênua e telúrica, nascida do contanto permanente com a natureza, em contraposição o artificialismo e à sofisticação urbana. O mundo rural é autêntico, aproximando o colono do “bom selvagem”. E puro, até certo ponto ingênuo, romântico, enfim,  humano “Menschlich”. Apesar de carecer das facilidades e das comodidades urbanas, é nele que o autêntico humano do homem encontra o chão propício para germinar, desabrochar e manifestar-se  na sua espontaneidade, na sua exuberância primigênia. E, para que a reprodução do mundo rural teuto se aproximasse o mais possível dessa realidade o Pe. Rambo valeu-se do dialeto invocando a justificativa registrado no seu diário em 29 de junho de 1949.

Como sempre prende-me o teor épico da minha língua materna. É apenas nos dialetos que ainda vive toda força criadora da épica. Deles brota a língua artística, que se cobre mais e mais de torpor, quanto mais, ao crescer para o alto, ela se insere no mundo do intelecto e da razão. Quem não ama seu dialeto não aprendeu o espírito da língua.

Apesar da sua condição de padre jesuíta, professor universitário, escritor de renome e cientista internacionalmente reconhecido, o Pe. Rambo não esqueceu a sua origem colonial, muito menos a escondeu ou renegou. Pelo contrário. Costumava procurar em meio aos colonos o ambiente propício contrário e o convívio ideal para relaxar e revigorar as energias espirituais. As pessoas simples dos seus camponeses, em muitos casos, rudes, curtidos no dia-a-dia, no sol-a-sol, no tempo bom e no tempo ruim, nas alegrias e nas. Tristezas, estimulavam-no a retornar às raízes e apegar-se a elas cada vez mais. No convívio informal com os colonos e colonas encontrava os personagens com sua maneira de ser e falar e os episódios que inspiraram os contos. Nenhum desses. Personagens foi uma criação pura e simples do autor. Todos esses episódios aconteceram de alguma forma encontraram no quotidiano colônia os seus protagonistas. Por isso, mesmo os leitores viam-se retratados a si próprios, ou a conhecidos, ou vizinhos nos episódios narrados no saboroso e vigoroso linguajar, que lhes fazia vibrar as cordas mais sensíveis e mais profundas da alma. Para o colono que lia os contos, os personagens tinham nome, assumiam uma identidade, moravam num lugar determinado e ocupavam um espaço definido em alguma comunidade. Todos os acontecimentos narrados aconteceram de alguma forma em algum lugar. E sempre havia aqueles leitores que na vida real tinham participado de um ou de outro deles. Utilizando-se da estratégia de escrever no dialeto falado nas colônias, apresentando com vigor e exatidão da realidade humana e circunstancial dos leitores. O Pe. Rambo encontrou o caminho infalível para a aceitação das suas mensagens.

Para encerrar chamo a atenção para o último dos contos publicado um ano depois do falecimento do P. Rambo. O título no original em dialeto vem a ser: “Zwerrich dorrich de Hunsrück” – “Cruzando o Hunsrück” foi o derradeiro conto que o P. Rambo deixou como legado póstumo para os seus amados leitores espalhados pelas comunidades coloniais do sul do Brasil. Por ter sido o último, por ter sido póstumo e por descrever a visita que fez ao cenário histórico em que foi plasmado o perfil, a identidade étnica dos “Hunsrücker” e onde se consolidou o saboroso e vigoroso dialeto pelos imigrantes procedentes daquela região, o conto assume as características e o sentido simbólico do canto de cisne do P. Rambo no seu diálogo literário de 25 anos com os colonos que nutriam uma sincera veneração por ele.

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