[ Reflexões ]

A mesma preocupação com uma formação ampla e consistente, tiveram os responsáveis pela consolidação da universidade norte-americana. No transplante para a América, não deixaram de acontecer as adaptações óbvias exigidas pelas novas circunstâncias. A formação revestiu-se de um direcionamento pedagógico-educacional mais ostensivo. A preocupação pela pesquisa pura, por assim dizer “desinteressada”, cedeu lugar a uma visão mais utilitária, mais pragmática. Com essas adaptações naturais, porém, o cerne do modelo original não sofreu nenhuma modificação substancial na sua valorização. Pelo contrário. Foi enriquecido. Em vez de apropriar-se do conhecimento pelo conhecimento, o saber pelo saber, desde cedo sinaliza-se para direcionamentos práticos. Neste sentido o M.I.T. é um exemplo de instituição de grande sucesso. 

A razão por ter-me prolongado na caracterização da formação média e superior, foi mostrar sua importância como pressuposto para a produção do conhecimento. Já que partimos da premissa de que conhecimento é síntese, a lógica sugere que o resultado final dessa síntese é tanto mais rico e tanto mais consistente, quanto mais conhecimentos parciais participaram da sua construção e quanto mais sólida for a sua integração. Os dois elementos estão presentes tanto na proposta pedagógica quanto no currículo e nível médio e superior das instituições de que nos ocupamos acima. Nos “Gymnasia” de nível médio estavam previstas todas as disciplinas indispensáveis para uma formação básica ampla do tipo generalista. Os diversos blocos afins formam os pilares que servem de base para a construção do conhecimento. Em grandes linhas são eles: as línguas clássicas e modernas mais correntes na comunicação de alto nível, com as respectivas literaturas. O formado nesses “Gymnasia”, estava em condições de valer-se do original dos textos em grego, latim, alemão, francês, inglês, e não raro em outras línguas, com destaque para o italiano, o espanhol, português, russo, sueco, polonês, etc. A História Natural, compreendendo a física, química, biologia, geologia e demais conhecimentos da natureza, formava o segundo pilar. O terceiro tinha na história, geografia, antropologia, etnografia, etnologia, seu foco de interesse. E finalmente a quarta coluna mestra da formação tinha na matemática, na filosofia e não raro na teologia a sua coroação. 

Dessa forma o estudante estava em condições de ter acesso à matéria prima e as ferramentas teóricas e metodológicas indispensáveis para a produção do conhecimento. Assim aparelhado o formado em nível médio ingressava no superior, em condições para, sob a orientação de mestres experientes, encontrar o caminho para dar início à arquitetura de um universo próprio de produção de conhecimento. O processo que levaria anos dava-se num ambiente que se denominava “Seminário”. Na modalidade padrão de Seminário, o professor fazia o papel de moderador e coordenador dos debates, das discussões e não como autoridade que ditava de cima para baixo as regras e impunha suas ideias. Cabia-lhe conduzir de tal forma o fluxo do debate, para que dele resultasse um avanço qualitativo sobre o tema em foco.  Cada patamar alcançado servia de degrau para um novo avanço, para mais adiante e mais acima. Preparava-se assim a plataforma para um novo Seminário no qual se aprofundava e levava para mais adiante o aprofundamento da temática. E assim, professor e aluno, cúmplices e comprometidos na aventura da apropriação e aprofundamento de sempre novos saberes, avançavam sobre sempre novas fronteiras do conhecimento.

Com esse formato, o Seminário bem conduzido vem a ser um laboratório próximo do ideal. Habilita o estudante a levantar voo rumo à produção de conhecimento autônomo, guiado por um mestre que faz mais o papel de parceiro do que de tutor ou autoridade do saber. Não por nada o orientador de teses de doutorado ainda hoje leva o nome sugestivo e quase carinhoso   de “Doktor Vater” (“Pai de Doutorando”). Oferece também uma magnífica ocasião para o próprio professor enriquecer, ampliar, renovar e atualizar o seu próprio universo de conhecimento. 

A especialização não vem ser a prioridade dos Seminários. Na proposta original nas universidades alemãs modernas da primeira geração, interessava, antes de mais nada, o conhecimento como tal e apropriação das ferramentas indispensáveis para produzi-lo. Pela lógica supunha-se que aquele que estivesse de posse delas, deveria estar em condições para dedicar-se com sucesso a qualquer campo específico do saber. Foi exatamente essa característica do Seminário que encantou os jovens americanos que em massa foram estudar   nas universidades alemãs entre 1850 e 1914. São recorrentes testemunhos como o do aluno Henry W. Langfellow, estudante em Göttingen em 1829, já citado. 

Ao tirocínio ao qual o estudante era submetido no Seminário das universidades alemãs, à formação da personalidade pelo modelo “Oxbridge” e ao acentuado propósito pedagógico das universidades americanas do Norte vem na contramão, a proposta latino-napoleônica de uma universidade voltada para profissionalização e tutelada pelo Estado. Dois elementos complementares são responsáveis pelo seu perfil institucional e acadêmico. Antes de mais nada a formação do cidadão em qualquer nível e de modo especial na universidade, consta no rol dos instrumentos de que o Estado se serve para concretizar seus propósitos. Sendo assim sua destinação primeira consiste em prestar serviço ao Estado. A lógica é retilínea. Para tocar suas políticas, iniciativas e projetos públicos, o Estado precisa de mão de obra especializada, precisa de técnicos. Ora a formação desses recursos humanos acontece em instituições que vão do fundamental ao ensino superior. Entende-se assim que é do interesse do Estado ditar a própria   razão de ser da universidade, e consequentemente, a natureza acadêmica e o perfil institucional, administrativo e burocrático. Estamos assim diante de um modelo viciado na sua própria essência. A autonomia prevista na Lei Fundamental ou na Constituição de algum país que optaram por esse modelo, não passa de ficção. Não é para valer como na prática não vale. Presta-se muito bem para a mistificação em discursos políticos, encobrir propósitos ideológicos, enfim, para enganar os desavisados, nada mais. Nessa condição a universidade, como qualquer outra instituição de ensino e em qualquer nível, constitui-se, em primeiro lugar, senão em único, num instrumento a serviço dos interesses do Estado. Pior. Dar a impressão de que por meios legítimos ou nem tanto, a formação dos cidadãos está sendo direcionada em função de interesses pessoais dos donos da nomenclatura no poder. Nessas condições produzir conhecimento digno desse nome, só fora ou à margem das instituições formais. 

A instrumentalização da formação do cidadão em qualquer um dos níveis de ensino, vem acompanhado de outro inconveniente não menos desastroso. Fica atrelada aos partidos e ideologias políticas que se alternam no poder. Esse fato resulta ainda mais danoso em períodos em que regimes democráticos, são intercalados com governos autoritários ou pior, ditatoriais. Nesse contexto costumam suceder-se em intervalos curtos e sem condições mínimas de avaliação, as “Reformas do Ensino”, tão familiares no Brasil a partir da década de 1960.

No caso específico do Brasil as relativamente poucas universidades em funcionamento até o final da década de 1950, exibiam um perfil muito parecido com as alemãs, inglesas e norte-americanas. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ocupava o centro polarizador e irradiador, a “Alma Mater” da universidade. Em volta dela agrupavam-se as faculdades, as escolas profissionais, os institutos de pesquisa, etc. No âmbito da “Alma Mater” cultivava-se o clima propício para uma formação de base mais ampla. Nela o estudante encontrava as condições necessárias para familiarizar-se com o conhecimento e tudo o que era preciso para dar início a uma carreira de pesquisa, investigação e produção do conhecimento. Essa estrutura institucional facilitava em muito o encontro e intercâmbio de informações e experiências. Professores e alunos de filosofia, história, geografia, biologia, matemática, física, química, línguas e literatura, circulavam pelos mesmos espaços físicos. Compartilhavam salas de professores, restaurantes universitários comuns ou participavam de programações acadêmicas interdisciplinares. Áreas afins como história e geografia formavam um único departamento. Hoje, por ex., as duas encontram-se tão distantes no contexto universitário, ao ponto de se ignorarem e não terem nada para se enriquecerem mutuamente. 

This entry was posted on sábado, 17 de setembro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.