A fim de se fundamentar as afirmações que se acabam de registrar, o Relatório consigna uma série de citações do mesmo periódico: “Der Deutsche Ansiedler”. Lendo com calma os textos citados, fica-se com a sensação de que eles se transformaram em contraprovas. Ou ao menos pouco provam de mais consistente em favor da ação nazista na Igreja Evangélica. Ficaria muito longo enumerar aqui a série completa de “provas” registradas no Relatório II o extraídos do “Der Deutsche Ansiedler”.
Nessa publicação, depois de afirmar que a campanha contra os teuto-brasileiros fora inspirada e comandada a partir dos Estados Unidos, os articulistas passam a falar de uma matéria publicada no “Jornal do Brasil”, da autoria de Barbosa Lima Sobrinho. Foi desta matéria que pincelamos a citação acima registrada.
Barbosa Lima Sobrinho ao falar da Campanha de Nacionalização, ressalta entre outras coisas, o seguinte:
Primeiro. A Campanha discriminou os cidadãos de origem alemã, os teuto-brasileiros, apontando-os como integrantes de uma “minoria alemã”. Apesar de a legislação brasileira desconhecer qualquer categorização dos cidadãos do País, os teuto-brasileiros eram vistos como estrangeiros, como nazistas, como espiões. Essa campanha empenhou-se também em tentar apagar da história do Brasil a contribuição valiosa de inúmeros alemães e dos seus descendentes já no período colonial e ainda no tempo de Martim Afonso d Souza.
Segundo. O autor exige no seu artigo que as queixas contra a discriminação sejam ouvidas e tomadas em consideração. E mais. Os méritos dos teuto-brasileiros, sua participação na vida nacional e sua contribuição positiva, tanto na paz como na guerra, fazem parte da nossa história e acrescenta:
O que os teuto-brasileiros produziram, devem eles à sua própria capacidade. O Brasil nada fez, para formar este elemento numa substância integral da nação. Eles construíram suas próprias escolas, porque da nossa parte não importamos disto. Nós deixamos sempre correr as cousas, até se formar daí um problema, pelo qual não podemos responsabilizar os teuto-brasileiros. (Relatório II, 1942, p. 162).
Terceiro. Barbosa Lima Sobrinho continua relatando que no Rio de Janeiro foram nacionalizados entre outros o “Germânia”,o mais antigo da cidade e o “Hospital Alemão”, em Santa Catarina foram fechados o “Urwaldsbote”, “Kolonie-Zeitung”, “Volkszeitung”. O jornal “Blumenauer Zeitung” teve sua circulação permitida pelo Ministério da Justiça. O exagero na preocupação pelo “perigo alemão” chegou ao ponto de serem mandados dois batalhões de caçadores para Blumenau.
Quarto. No Paraná e em Santa Catarina, os agentes da nacionalização chegaram se intrometer em questões religiosas, ferindo o princípio legal da liberdade de culto. O fato originou o envio de representação ao presidente da República da parte da Associação das Comunidades Evangélicas de Santa Catarina e do Paraná.
Nós confiamos na continuação da liberdade de culto evangélico como um fator de ordem e de paz e garantimos, que vossa Excelência poderá contar com o nosso apoio inabalável no caminho traçado para a grandeza do Brasil. (Relatório II, 1942, p. 163).
Quinto. No Rio Grande do Sul, a Campanha de Nacionalização demitiu da escola de Novo Hamburgo o pastor Th. Dietschi, riograndense nato e conhecido pelo seu amor à terra e que conseguiu elevar a escola, com um trabalho incansável de anos , a um nível muito elevado.
Ainda no Rio Grande do Sul foi fechado um número considerável de boas escolas. Essa atitude configura-se contraditória quando em todo o Brasil em torno de 80% das crianças em idade escolar ficam sem instrução. No Rio Grande do Sul, em torno de 400 a 600 escolas teuto-brasileiras cumpriram as formalidades legais e encontram-se registradas e devidamente reconhecidas pelo Estado. As autoridades respectivas concederam a essas escolas uma hora de aula por dia em alemão. Esse fato demonstra, conforme o jornal “Allgemeine Lehrezeitung” de São Leopoldo, um espírito positivamente flexível da parte dos responsáveis pela implementação da Campanha de Nacionalização.
Sexto. O citado jornal lamenta o fato de as autoridades nacionalizadoras terem conseguido gerar entre os teuto-brasileiros uma grande desconfiança em relação ao Estado. De outra parte, deplora também a ausência de objetividade na forma como era conduzida a nacionalização, nivelando, num mesmo plano, professores estrangeiros e brasileiros natos, professores cumpridores de seus deveres patrióticos e professores relapsos.
Sétimo. O jornal “Allgemeine Lehrerzeitung” reafirma mais uma vez que o uso da língua alemã e o seu cultivo não visa nada além da preservação dos valores culturais. Os teuto-brasileiros não vêm nessa atitude nenhuma intenção de negar a sua condição de cidadãos brasileiros, nem de hostilizar a língua vernácula.
Oitavo. O Relatório II continua citando o jornal “Der Deutsche Ansiedler” que, em resumo, defende a mesma posição do “Allgemeine Lehrerzeitung”.
Nono. O jornal “Der Deutsche Ansiedler” é novamente invocado para falar sobre as atividades da Sociedade Evangélica Alemã na Diáspora, com sede em Hamburgo. Em síntese, a posição defendida nessas atividades não apresenta nenhum dado novo relevante face a tudo que se acaba de registrar.
Tentando, a essa altura, tirar uma conclusão sobre o valor real dos argumentos enumerados nessas páginas, para provar o “perigo alemão” no Brasil, chega-se a uma conclusão um tanto paradoxal. Não poucas citações registradas no Relatório parecem provar exatamente o contrario do que se pretende. Nessa linha situa-se, por ex., o depoimento do jornalista Barbosa Lima Sobrinho. Nas linhas e, principalmente nas entrelinhas dos jornais arrolados, contam-se mais provas a favor da sinceridade de intenções dos teuto-brasileiros como cidadãos, do que sinais de hostilidade ao País, ou pior, da iminência de atitudes e de atos de traição. Esses, se ocorreram, reduzem-se a fatos isolados, mantendo-se numa freqüência estatística esperável em tais circunstâncias.
Entre os comentários que o documento citado sugere, podem-se destacar os seguintes:
Primeiro. Foi redigido como saudação de ano novo de 1937. Naquele momento histórico, final de 1936, vigoravam relações diplomáticas normais entre o Brasil e a Alemanha. No País circulavam livremente jornais, revistas, almanaques, livros, etc., em língua alemã e nas demais línguas utilizadas pelos diversos grupos étnicos. O nacional-socialismo, como o fascismo, contavam com muitos simpatizantes aqui no Brasil, também entre os luso-brasileiros. O próprio modelo de Estado em Gestação e, naquele ano implantado com o Estado Novo, apresentava não poucos pontos em comum com nacional-socialismo e o fascismo. Nada havia, portanto, de surpreendente que um jornal de orientação evangélico-luterana publicasse a mensagem de ano novo do coordenador das comunidades no estrangeiro. A rigor, significava a mesma coisa que se os jornais alemães de orientação católica tivessem publicado diretrizes doutrinárias, disciplinares ou pastorais, vindas de Roma.
Segundo. Se o fato de haver sido publicada a mensagem do bispo Heckel não significou nada de anormal há, contudo, um aspecto que explica e justifica a reação das autoridades nacionalizadoras.
Apontamos para a expressa e aberta adesão à doutrina nacional-socialista e o reconhecimento explícito do “Führer”. Configura-se aí uma evidente aproximação da Igreja Evangélica não como um todo, mas de representantes oficiais seus, com a doutrina do nacional-socialismo. Fica difícil negar que, neste caso, religião e política não se confundiram e é preciso dar razão às autoridades policiais quando registram no Relatório: “Daí, forçosamente, resultou ter o nazismo procurado unificar o interesse político e o sentimento religioso”. (Relatório II, 1942, p. ).
Terceiro. O temor de utilizar a pregação religiosa para mascarar um objetivo político, entretanto, foi exagerado. Serviu de pretexto para declarar a Igreja Evangélica, seus pastores e fieis, sem distinção, como os “mais estrangeiros dos estrangeiros”. Onde quer que se realizasse um culto evangélico, onde quer que se ministrassem aulas a alunos evangélicos e onde quer que se reunissem evangélicos, irrompiam os emissários da nacionalização. Vasculhavam documentos, apreendiam livros e periódicos, intimavam pessoas e prendiam lideres. Não se respeitava nem a privacidade, invadindo residências, nem o mais primário direito à dignidade, prendendo pastores em delegacias ao lado de delinqüentes comuns. A justificativa para proceder com tamanho exagero perde a base de sustentação, quando se toma conhecimento da atitude oficial adotada em Santa Cruz pelo Sínodo Riograndense. Na ocasião foi posto em discussão se os ministros evangélicos deveriam jurar sobre o Novo Testamento, ou como vinha sendo feito, sobre o Antigo Testamento também. Após um debate acalorado e habilmente conduzido pelo pastor Dohms, ficou decidido que o juramento continuaria sendo proferido sobre os dois Testamentos.
Com esse resultado venceu implicitamente a corrente que seria a oficial do Sínodo e que não aceitava a intromissão da política na religião.
Quarto. Encontramo-nos de novo frente à mesma situação do qual já se falou em diversas outras ocasiões. O Sínodo Riograndense, como instituição orientadora da doutrina e da ação pastoral da Igreja Evangélica no Estado, não aceitou a imposição de atuar como veículo de penetração do nazismo em nosso meio. Obviamente não adotou a postura ostensivamente favorável à Campanha de Nacionalização, como o fez a Cúria Metropolitana sob o comando de D. João Becker. O Sínodo optou por uma linha própria de defesa da propagação do Evangelho. Sua lógica resumiu-se num raciocínio muito singelo. A fé sobrevive unicamente através da prédica. Ora, a prédica somente alcança o seu objetivo quando entendida pelos fieis. Portanto, não faz sentido pregar o Evangelho numa língua que os fieis não entendem.
Coerente com essa lógica o pastor Hermann Dohms baixou normas para os pastores do Sínodo, no dia 6 de novembro de 1939. Entre elas destacamos:
Considerando que as instruções baixadas pelo Senhor Chefe de Policia sobre o uso da língua estrangeira em prédicas religiosas, excluem a língua da nossa Igreja em prédicas e sermões; considerando que essa solução imperiosamente exige decisão dos dirigentes da Igreja, que terão o fim de garantir, após novos entendimentos com os poderes públicos, uma ordem uniforme da vida eclesiástica;
a Diretoria do Sínodo Riograndense ordena que os pastores do Sínodo Riograndense não façam prédicas ou sermões;
os cultos dominicais, dos quais, na Igreja Evangélica Luterana a prédica é pare integrante, não serão realizados a não ser que os pastores recebam novas instruções. (Relatório II, 1942, p. 196).
Ao mesmo tempo em que a diretoria do Sínodo mandou suspender a realização dos cultos dominicais, enviou um memornadum ao Chefe de Policia, no qual tenta esclarecer a questão da língua e sua importância na celebração dos cultos. Nas ponderações que se fazem no memorandum, não há vestígio de declarações de rebeldia contra as autoridades nacionalizadoras. Muito pelo contrário. Embora se constitua num documento fundamental, quando se quer formar um juízo correto sobre a posição oficial do Sínodo Riograndense na questão em foco, ficaria longo demais reproduzi-lo na íntegra. Quem se interessar pode encontrar o texto completo nas pgs. 106-107 do Relatório II.
O primeiro memorandum foi complementado por um segundo, datado em 13 de novembro de 1939. Nele o pastor Dohms especificou ainda mais a questão da importância vital da pregação como condição de fé. A íntegra do texto encontra-se também nas pgs. 200 a 202 do Relatório II.
No dia 17 de novembro de 1939, a diretoria do Sínodo, ainda sob a presidência do pastor Dohms, enviou a todos os pastores uma circular para a orientação prática. É um documento que demonstra um equilíbrio e uma objetividade surpreendente. Tanto assim que, submetido à chefia da policia, foi por ela aprovado. Fixemo-nos em alguns pontos.
Sobre os cultos diversos e atos solenes devem ser observadas as seguintes instruções, expedidas com conhecimento prévio e consentimento do chefe de policia.
1. Os senhores pastores devem tomar devidamente em consideração o artigo 46 do decreto-lei 1545 e as instruções baixadas pelo Sr. Chefe de Policia no tocante à execução deste decreto, relativamente às prédicas ou sermões religiosos.
2. São prédicas ou sermões todos os discursos dirigidos à comunidade presente na celebração do culto divino regulamentar.
As breves alocuções pronunciadas comumente por ocasião de atos solenes, como por exemplo pronunciação de palavras confortadoras no ato da encomendação dos mortos, nunca proferidos do púlpito, não chamamos de prédicas. Declarou-nos Sr. Chefe de Polícia a respeito dessas alocuções que, em casa podem ser feitas na língua oficial da Igreja, vigorando quanto às alocuções feitas na igreja ou em lugares públicos, as instruções do Sr. Chefe de Policia relativas às prédicas.
3. As autoridades estaduais não submetem o ritual da Igreja a restrição alguma, nem a respeito da língua original do ritual luterano. Os cultos litúrgicos, incluindo responsórios, hinos, cantados pela comunidade ou pelo coro, leitura do evangelho, da epístola e de textos clássicos dos patriarcas da Igreja, orações serão celebradas conforme os textos originais do ritual.
Do mesmo modo serão usados formulários de agenda relativos aos atos solenes do batismo, confirmação, casamento, celebração da Santa Ceia, encomendação de mortos e outras solenidades regulamentares, tais como inaugurações de igrejas, ordenação de introdução de pastores, etc.
4. No tocante à prática dominical, o Sr. Chefe de Policia nos declarou que, excluídas as sedes de municípios, em todos os outros lugares a prédica em português podem ser repetida em alemão a juízo do pastor. (Relatório II, 1942, p. 199-200).
A esse memorandum foi acrescentado, como complemento comprobatório, a indissolubilidade entre a fé e a pregação. O documento fundamenta-se numa série extensa e rica de citações extraídas do Novo Testamento, principalmente das cartas de São Paulo. A quem interessar, encontram-se reproduzidos nas pgs. 203-206 do Relatório II.
No presente capítulo, o terceiro do Relatório II, repete-se o mesmo equívoco dos dois anteriores. Ao introduzi-lo as autoridades policiais recorrem à tática de apontar para um cenário absolutamente assustador. A pregação religiosa e, de forma mais radical, a evangélico-luterana, é apresentada como uma via perversa de contrabandear a ideologia nazista para dentro das comunidades coloniais. Os pregadores são apresentados como agentes escolhidos pelo nacional¬socialismo, para infiltrar-se, através da pregação, nas mentes e corações da gente “alemã”. Sempre conforme os autores do Relatório, o púlpito transformara-se tribuna política, como ficou explícito nesta passagem:
Daí forçosamente resultou ter o nazismo procurado unificar o interesse político e o sentimento religioso.
No estrangeiro há mais um fator preponderante: a Igreja pelo respeito que infunde, está mais ou menos colocada a salvo da ação vigilante das autoridades e, portanto, das restrições da censura.
Do púlpito é mais fácil predicar em idioma estranho à língua nacional. E disso muito se tem prevalecido os nazistas, que já o transformaram em tribuna política. (Relatório II, 1942, p. 158).
Os argumentos enumerados para a generalização da ameaça nazista, mascarada pela pregação religiosa, foram as diretrizes emanadas de autoridade evangélico-luterana em Bremen, o bispo Heinz Weidemann, e publicadas no jornal “Kommende Kirche”, em 6 de agosto de 1939. A passagem mais inequívoca, demonstrando o comprometimento da religião com a política, é esta:
A Igreja cristã terá que se recristianizar novamente. Onde nela viva a verdadeira cristandade, será anti-judaica. A verdadeira cristandade está em posição de vanguarda contra qualquer pretensão vaticana que joga política e religião na mesma panela e deriva daí, exigências de poder. Isto é político mas não cristão.
Entre o fogo cerrado da falsa Igreja, que se pós anti-cristã em forma de confissões, deverá traspassar a Futura Igreja, para a cristandade verdadeira, que não poderá ser separada da questão de um Deus alemão. (Relatório II, 1942, p. 180)
Avaliando os dois textos, fora do contexto geral dominante entre as igrejas teuto-brasileiras evangélico-luteranas, sem a menor dúvida assustam e chocam. Não há como não admitir que se trata de formulações inequívocas de uma religiosidade comprometida com uma ideologia política. Compreende-se assim a reação de quase pavor das autoridades a serviço da nacionalização, ao delas tomarem conhecimento. Sem a menor margem de erro, haviam-se defrontado com um problema sério e, ao mesmo tempo, de extrema delicadeza. Em extremo delicado porque envolvia a Igreja e os pregadores. Num país conhecidamente respeitoso para com a religiosidade do seu povo e, cuja constituição consagrara a liberdade de religião e de culto, a aliança espúria de uma ideologia política exótica com uma religião legalmente reconhecida, transformara-se num sério complicador a ser enfrentado.
Na pratica, tomando como base a realidade objetiva que dominava as intenções dos ministros evangélico-luteranos, em parceria com suas comunidades, desenhava-se um quadro muito menos assustador. A ameaça da infiltração nazista via pregação, via catequese, foi exagerada. As razões que podem ser invocadas são, entre outras.
O fato de as afirmações acima mencionadas terem emanado de autoridade eclesiástica da Alemanha, a repercussão prática entre os pastores e fieis das comunidades evangélico-luteranas no Brasil parece ter sido muito diluída. Abraçaram a causa pastores isolados e defenderam-na grupos de leigos localizados e não muito representativos na totalidade dos fieis. Essa dedução fica clara frente à posição oficialmente assumida pelo Sínodo Riograndense. Um exame superficial das orientações assinadas pelo pastor Dohms, na qualidade de presidente do Sínodo, não deixa dúvidas. Os decretos governamentais foram aceitos, procurou-se harmonizar a prática pastoral com as regulamentações dos decretos oficiais e desenvolveu-se um esforço inequívoco em traçar uma linha de convivência e entendimento, com os responsáveis para por em prática a Campanha de Nacionalização. Existindo, como de fato existiu, uma ameaça de infiltração nazista via pregação religiosa, essa parece ter sido exagerada. Armou-se um aparato ostensivo de repressão, traduzido numa retórica agressiva, e propôs-se também uma estratégia de terra arrasada. Os problemas e os impasses que se seguiram, terminaram em resultados nada convincentes e mergulharam o relacionamento dos executores da nacionalização e as lideranças da Igreja Evangélico-Luterana, numa zona de turbulência inútil e contraproducente.