Depois de haver relatado o episódio, envolvendo a tentativa de instalação de uma emissora de rádio no navio mercante alemão “Rio Grande”, o Relatório passa a comentar a relação entre as sociedades e associações alemãs e o Consulado. O que essa questão tenta demonstrar é como a simples relação de interesses mútuos evoluiu, aos poucos, para um domínio total do Consulado e do cônsul sobre essas entidades. O Relatório fala em protetorado expresso na forma de verbas e material necessário para a implementação das sociedades. A situação tornou-se possível porque um número grande de sociedades filiara-se à Federação Alemã de Sociedades” – o “VDV” – “Verband Deutscher Vereine”.
Em seguida o Relatório passa a apresentar o que foi e o que pretendia a “Federação das Associações Alemãs – VDV”. Cabia-lhe a tarefa de concentrar todas as informações sobre as milhares de sociedades alemãs no estrangeiro, filiadas à “VDV”, a única que de fato une a pátria com as sociedades alemãs existentes no estrangeiro. A “VDV” se encarrega de promover a união dos alemães no estrangeiro, conservando a seu instinto alemão e repelindo as influências da cultura de outros povos. Interessa-se pelos institutos, colégios e igrejas; põe à disposição dos associados e das bibliotecas, peças de teatro, filmes, revistas e livros alemães, em grande parte gratuitamente; protege os associados em questões comerciais e particulares. Todo o alemão no estrangeiro, de qualquer profissão, deve ter a convicção de que a “VDV” é para ele, na prática, uma organização que o auxilia e que por ele trabalha.
Quando se oferece ocasião, a VDV a aproveitará para auxiliar as sociedades no estrangeiro, remetendo o material necessário, o do nacional-socialismo. O alemão no estrangeiro, deve ter o espírito voltado para a pátria que lhe mostra claramente o caminho a seguir ou ele se inspira na reivindicação, da qual a pátria está imensamente compenetrada, ou ele a despreza, perdendo a ligação íntima com a Alemanha correspondendo-se com povos estrangeiros.
Em vista destes conhecimentos no curto espaço de tempo em que existe a VDV (fundado em 11 de abril de 1934) até 15 de outubro de 1936, já se associaram cerca de 1.150 associações, sociedades beneficentes, escolas e comunidades no estrangeiro. (Relatório II, 1942, p. 124-125).
Foi, sem dúvida, correta, oportuna e necessária a preocupação das autoridades responsáveis pela segurança nacional ao submeterem a VDV a uma severa vigilância. A preocupação impunha-se, de um lado, pelo momento histórico de uma Alemanha em guerra. Mas impunha-se por uma razão adicional ainda mais forte e complementar à primeira: a indisfarçada intenção dos condutores da política expansionista do nacional-socialismo em consolidar nos países de maior presença alemã, cabeças de ponte, encarregadas de assegurar a implantação a idéia do pangermanismo. Sendo assim, toda a cautela era pouca e necessário todo o rigor.
Examinando com maior atenção os registros e os comentários consignados no Relatório II, chega-se à mesma conclusão daquela do episódio envolvendo a estação de rádio transmissão. O alcance da propaganda através da VDV visava, em primeiro lugar, municiar com material de propaganda, livros, revistas, etc., os núcleos da NSDAP, atuando nos centros urbanos maiores em todos os estados do Centro-Sul do Brasil. A VDV fora criada, portanto, para garantir a pureza das idéias e dos ideais raciais e culturais nas células do NSDAP. Ora é um fato conhecido das pessoas mais ou menos conhecedoras da situação, que essas células achavam-se novamente restritas a centros urbanos médios e grandes. Entre a população das comunidades rurais, que somavam a imensa maioria do universo de alemães no Brasil, não lograram êxito, foram ignoradas e, em não poucos casos, hostilizadas. As razões desse fato já foram arrolados mais acima.
O perigo, portanto, que a propaganda nazista representava para os estados do Sul de fato existiu. Era preciso levá-lo a sério. Tratou-se, contudo, mais uma vez de algo limitado, restrito, confinado com chances reais de empolgar politicamente núcleos muito ativos, mas bem identificados e conhecidos pelas autoridades responsáveis. Essa afirmação torna-se óbvia quando se procede a um exame dos documentos comprobatórios reproduzidos no Relatório. Os documentos de nº 23 e 24, das páginas 129 e 130, reproduzem a carteira de filiação à NSDAP de Günther Schinke, de Novo Hamburgo. Nos documentos 25 e 26, às páginas 133-135 Consulado Alemão Participa à Sociedade de Ginástica de Montenegro a concessão de duas cotas de 1.000 marcos alemães para os anos de 1936 e 1937. O documento de nº 27, página 137, reproduz, sem comentários, uma fotocópia de capa do livreto que contem os estatutos e a relação das sociedades filiadas ao VDV. O documento de número 28, página, 139, reproduz apenas a fotocópia da primeira página dos estatutos, contendo, também, o início dos objetivos e da finalidade do VDV. Também a respeito deste documento, além de incompleto, não consta nenhuma interpretação, nenhuma apreciação ou comentário. Nos documentos de nº de 29 a 33 correspondentes às páginas 141 a 149, segue a relação fotocopiada das associações filiadas ao VDV em diversos países. De todo o Brasil constam ao todo em torno de 170 sociedades filiadas. Verificando agora quantas delas se localizam nos três estados do Sul, aparece o seguinte: 23 eram do estado do Paraná, 22 de Santa Catarina, 45 do Rio Grande do Sul. Dessas 45, três eram de Neu Würtenberg, hoje Panambi, 19 de Santa Cruz do Sul, de Porto Alegre constavam apenas duas de importância secundária: a Sociedade de Ginástica Navegantes e o Clube de Esgrima Harmonia. As grandes sociedades como o Turnerbund (Sogipa), a Leopoldina e outras, pelo que consta, não se haviam filiado ao VDV. De São Leopoldo consta apenas a Sociedade de Ginástica. Constam ainda as Sociedades de Ginástica de Novo Hamburgo, Hamburgo Velho, Sapiranga, Campo Bom, Canela, São Sebastião do Cai, Montengro, Maratá. As demais sociedades filiadas encontravam-se em localidades menores e se dedicavam a atividades diversas. Dentre essas últimas , a mais importante e a mais abrangente, foi a Associação dos Professores Teuto-brasileiros Evangélicos do Rio Grande do Sul, com sede em São Leopoldo.
A localização geográfica das sociedades filiadas ao VDV no Rio Grande do Sul, como no Paraná e em Santa Catarina, confirma o que foi assinalado acima. Na sua quase totalidade atendiam a clientelas de centros urbanos de certo porte. Raras foram as sociedades filiadas em núcleos tipicamente coloniais e, mais raro ainda, em picadas no interior. Um dado até certo ponto surpreendente oferecem as 19 sociedades filiadas em Santa Cruz, contra apenas duas em Porto Alegre, uma em São Leopoldo, uma em Novo Hamburgo e uma em Hamburgo Velho. Das duas centenas de sociedades, associações, clubes, etc. em plena atividade, uma porcentagem quase irrisória havia-se filiado ao VDV até o começo da Segunda Guerra Mundial. Sendo assim, a periculosidade dessas sociedades era muito relativa. Já que a policia estava de posse dos seus nomes, nada mais fácil do que enquadrá-las nas regras e leis vigentes. O erro nessa história foi listar todas as demais entidades do gênero sob a rubrica de quinta-colunismo ou de traição.
A segunda parte do Relatório II termina com a apresentação de mais dois documentos. Nenhuma dos dois acrescenta qualquer prova substantiva relativa à atividade de propaganda nazista no Estado. No máximo podem ser considerados como indícios mais ou menos sérios. No primeiro deles, o de nº 34, o cônsul alemão pede esclarecimentos ao sr. Wilhelm Daumer sobre a Academia de Artes e Ofícios (Handwerker Akademie), solicitando para tanto a sua presença no consulado. O outro documento, o de nº 35, apresenta sem comentários e sem explicações uma coleção de distintivos, pregadores, insígnias, etc., utilizados pelos nacional-socialistas. Da forma como se encontra no Relatório poderia tratar-se até de um documento fabricado, por ex., a foto de uma coleção de museu.
Como conclusão final desta segunda parte, pode-se dizer que fica a impressão de que o tamanho do perigo nazista no Rio Grande do Sul foi exagerado além do necessário e do sensato. O escritor Barbosa Lima Sobrinho, citado no Relatório, dá a dimensão correta ao problema ao escrever:
Errôneo também é, destacar alguns casos excepcionais, nos quais teuto-brasileiros se esqueceram de seu dever como cidadãos brasileiros e se puseram contra as leis do País, para agora suspeitar de todos os cidadãos de sangue alemão, denunciando-os sem exceção como inimigos do País e espiões. (Relatório II, 1942, p. 162)
A terceira parte do Relatório II ocupa-se com a relação entre a política e a religião. A primeira questão que chama a atenção é o fato de que nas mais de cento e cinqüenta páginas que se ocupam com o tema, procura-se mostrar como a Igreja e os pastores evangélicos serviram de propagadores da ideologia nazista no Rio Grande do Sul. Não se arrolam provas que envolvem os católicos e seus sacerdotes. É de se supor que as autoridades policiais ocuparam-se muito pouco com os católicos por lhes parecer que eles não ofereciam problemas maiores.
Aliás essa quase despreocupação para com os católicos de descendência alemã encontra explicação na tomado de posição oficial da hierarquia católica do Rio Grande do Sul em relação para com a Campanha de Nacionalização. O arcebispo metropolitano de Porto Alegre, D. João Becker e seus sufragâneos não tardaram em assumir uma atitude declaradamente favorável à nacionalização e seus promotores. Basta conferir as declarações a respeito divulgadas na revista “Unitas”, órgão oficial do arcebispado.
Sendo a orientação oficial das autoridades eclesiásticas solidária com o programa de nacionalização, as resistências ostensivas ou simplesmente passivas não causavam maiores preocupações. O apoio da Igreja mereceu, aliás, seguidas referencias elogiosas do Secretario da Educação e Cultura, Dr. Coelho de Souza. Referindo-se aos grupos de alemães que denominou de “tradicionalistas”, isto é, as populações coloniais que convencionamos chamar de teuto-brasileiros e seus curas de alma, assim se expressou:
Dirigem-nos os padres de ordens religiosas, valendo-se da sua relativa autonomia que lhes permite opor uma resistência passiva à ação dos bispos que – justiça lhes seja feita – têm colaborado com o Governo na obra da nacionalização e, dos setores públicos; no setor luterano, orientam-nos os pastores dissidentes da Igreja Alemã. (Relatório II, 1942).)
Entre os católicos, portanto, a preocupação dos nacionalizadores reduzia-se a fatos, grupos ou pessoas isoladas. Da parte da hierarquia, a aceitação era oficial, inclusive com o apoio formal à Campanha.
O autor do Relatório começa afirmando que o nazismo procurou harmonizar a religião e a política, no caso a protestante. Uma razão muito plausível consistia no fato de em países com uma população tradicionalmente religiosa, a ação da censura e da vigilância das autoridades costumava ser menos diuturna e muito menos severa. Ficava assim, até certo ponto, fácil utilizar o púlpito como tribuna política e o Evangelho e a Sagrada Escritura como disfarce.
Depois da análise da vinculação da religião com a propaganda política, temos a transcrição da mensagem de ano novo do bispo protestante Dr. Heckel, dirigida às comunidades sob sua jurisdição no estrangeiro.
A passagem que segue dever ter causado a maior espanto:
Na época em que passa pelo mundo o temporal espiritual e a dissolução, nós, homens e mulheres evangélicos, deixamo-nos ficar mais unidos, fieis à fé de nossos pais, fieis para com a nossa Igreja, que sempre anuncia um novo evangelho, fieis ao nosso povo e prontos para a nossa missão.
Permaneçamos, embora longe de isolados da nossa Pátria Alemã, fieis na oração para com a nossa comunidade, nossa Igreja, nosso povo e o nosso Führer.
Firmemo-nos sobre o fundamento que serviu de base à nossa fé: Jesus Cristo, ontem, hoje e por toda a eternidade.
Quais são as forças que hoje mantém a Alemanha. Deve-se mencionar em primeiro lugar – a família de origem e conhecimento que traz consigo a cultura alemã, que será transmitida de geração em geração. Vemos, porém, que os filhos de famílias alemãs afundam-se na cultura alheia (ao País).
Para evitar isso, temos o colégio alemão, com os fundamentos da educação alemã.
Esta foi a diretriz do colégio colonial alemão através dos tempos: educar os filhos dos alemães como alemães.
Reconhecemos que, antes de 1933, foi esta a orientação da Alemanha. E, como é natural, essa educação, para sentir seus efeitos benéficos, deve ser iniciada na juventude e na maturidade.
A maior ajuda dos círculos alemães para a cultura germânica é o trabalho das diversas Sociedades Alemãs, visando esta sociabilidade e o estreitamento dos vínculos que unem e convocam a comunidade. O indiscutivelmente reconhecido trabalho, com seus objetivos esclarecidos, ganhou uma nova arma com as irradiações, cujo barateamente veio com o NSDAP.
Quando o governo alemão reunir a força de todos os alemães esparsos pelo mundo, levantar-se-á um eco de agradecimentos de alemães no estrangeiro pois, nós sem adjutório algum, representamos no mundo o povo alemão. (Relatório II, 1942, p.1558-161).
O autor do Relatório reagiu assim à posição do bispo Heckel:
A este ponto é licito indagar: que mais se comete aqui, política ou religião?
É a palavra do chefe da Igreja Evangélica para o exterior, contida em um dos órgãos oficiais do protestantismo.
Que fonte originaria, quer o veículo de divulgação, não podem ser mais autorizados.
Diante disso, pode-se afirmar que a Igreja Evangélica Alemã se transformou em ala do NSDAP, ocupando lugar saliente em sua formação.
E foi completa a transformação.
O sacerdote vai perdendo aos poucas todas as características de sua missão apostolar.
A serenidade de espírito que lhe emprestou a fé para distingui-lo entre os mortais foi trocada pelo fanatismo violento. (Relatório II, 1942, p. 161).