O Caixeiro Viajante
A partir dos anos cinquenta do século XIX, a colonização alemã no Rio Grande do Sul, entrou na fase definitiva de consolidação. Os primeiros vinte e cinco anos, 1824-1950, caracterizaram-se pela abertura das primeiras picadas na Colônia de São Leopoldo e arredores. Os imigrantes tomaram pé na terra estranha e habituaram-se a lidar com as peculiaridades e os obstáculos que encontraram. Superadas as principais dificuldades de adaptação às novas e desconhecidas circunstâncias, tanto de natureza geográfico-ambiental, quanto do manejo da mata e dos solos, como dos sócio-culturais e políticas, chegara o momento de colher os primeiros frutos concretos. Também neste período inicial, a capacidade do imigrante de lidar com situações extremas de conflito começaram, gradativamente a forjar o perfil étnico do teuto-brasileiro. A Guerra dos Farrapos, 1835-1845, apesar de todos os seus lances deploráveis, teve também seus resultados positivos. Os imigrantes submetidos a um duro aprendizado demonstraram que tinham estrutura e versatilidade para, não apenas sobreviver, mas prosperar, numa província marcada por constantes distúrbios de natureza social e política.
Ao mesmo tempo em que a região colonial se consolidava e começava a dar sinais evidentes de prosperidade, estabeleceram-se nos centros urbanos como Rio Grande, Pelotas e, especialmente, Porto Alegre, casas de importação e exportação, especializadas nos mais diversos ramos, ao lado de estabelecimentos comerciais de todos os tamanhos. Rio Grande o único porto marítimo do Rio Grande do Sul, liderou o grande comércio ligado à importação e exportação. Em Pelotas localizaram-se os grandes abatedouros, em torno dos quais nasceram indústrias alemãs que manufaturavam as sobras: sebo, vísceras, patas, ossos, etc., transformando-as em volumes apreciáveis de sabão, velas, cola, farinha de osso e adubo.
Dois fatores fizeram com que, a partir de 1850, Porto Alegre assumisse, gradativamente, o papel de pólo comercial e industrial maior do Estado, relegando Pelotas e Rio Grande para um segundo plano.
O primeiro motivo foi avanço da colonização para fora do vale do Rio dos Sinos. A partir da década de 1850, a porção média das bacias do Caí, Taquari, Pardo, Jacuí até Santa Maria da Boca do Monte, foi sendo rapidamente desbravada. Em poucas décadas os excelentes solos daquelas bacias fluviais foram conquistadas à mata e transformadas em ricos celeiros de produtos agrícolas: feijão, milho, tabaco, batata, mandioca. Produziram grandes volumes de banha de porco, resultado do aproveitamento do milho e da mandioca como ração básica na criação de suínos. Quase todo o feijão consumido em São Paulo e no Rio de Janeiro procedia do Rio Grande do Sul, mais especificamente da região colonial alemã.
Em meio ao avanço sobre as novas fronteiras de colonização, definiu-se rapidamente uma eficiente rede de comunicação e circulação, via fluvial, com Porto Alegre. As cinco bacias fluviais principais, colonizadas por alemães e mais tarde pelos italianos e poloneses, integraram uma vasta região geo-econômica, que convergia para Porto Alegre, capital do Estado, sede do governo e da burocracia oficial, centro financeiro, comercial e industrial e principal porto de navegação interna, porta de saída e de entrada, via porto Rio Grande, para a exportação e importação de mercadorias, produtos e manufaturados.
Ao mesmo tempo cresceu o volume de excedentes de produção tanto nas áreas de colonização mais antiga como nas recentemente desbravadas. A boa cotação do feijão, da banha, do tabaco, da farinha de mandioca, no mercado nacional e internacional, aumentou cada vez mais a circulação de riqueza, elevou o nível de vida e tornou a população cada vez mais exigente. O resultado desse quadro fez-se visível numa exuberância crescente da atividade econômica. Cresceu a procura por produtos importados não só nos centros urbanos maiores, como nas picadas coloniais mais distantes.
Neste contexto consolidou-se, a partir da década de 1850, uma complexa rede de comércio, cobrindo toda a região colonial, compreendendo as bacias fluviais que formam o Guaíba, tendo como ponto de convergência Porto Alegre, capital do Estado. Simplificando o esquema, essa rede apresentava as seguintes características. Nas picadas do interior colonial estabeleceram-se casas de comércio locais, as “vendas”. Elas compravam dos colonos os excedentes produzidos por eles: banha, feijão, batata, farinha de mandioca, galinhas, ovos e outros mais. Essas mercadorias eram transportadas e entregues a estabelecimentos intermediários de maior porte, localizados junto aos terminais de navegação fluvial de São Leopoldo no Rio dos Sinos, em Caí e Montenegro no rio Caí, em Estrela, Lajeado e Mariante no Taquari, Santa Cruz do Sul no rio Pardinho, Candelária no Rio Pardo, Cachoeira do Sul no Rio Jacuí. O mesmo fenômeno verificou-se nas estações que foram sendo implantadas ao longo da ferrovia, com seus ramais que cruzavam a região colonial. As mercadorias eram embarcadas no trem ou em barcos que os entregavam nas grandes casas de comércio sediadas em Porto Alegre. Toda essa movimentação dava-se também no sentido contrário. No retorno aos portos fluviais ou às estações do trem no interior, barcos e trens transportavam as mercadorias para cobrir as necessidades do interior colonial. Descarregados e armazenados em depósitos e armazéns, eram transportadas em carroções, puxados por várias parelhas de mulas, até as vendas nas picadas mais remotas.
À primeira vista o esquema parece simples e funcional. Havia, porém, um problema vital a ser resolvido. Sem a sua solução a máquina carecia de lubrificação: o intermediário nos negócios, o personagem capaz de manter vivas ininterruptas nas relações comerciais entre todos os elos da cadeia, partindo do grande comércio atacadista da capital, passando pelos entrepostos maiores e terminando na venda mais rústica no remoto interior colonial. Para exercer este papel é que surgiu a figura do Caixeiro Viajante, o personagem encarregado de percorrer a região colonial e oferecer as novidades que estavam sendo apresentadas pelas casas importadoras de Porto Alegre e depois retornar com as encomendas feitas pelos comerciantes.
Foram circunstâncias todo peculiares sob as quais foi posto em movimento e se manteve o vinculo entre o nosso centro de comércio e o “hinterland” mais afastado do Rio Grande do Sul.
Com a finalidade de superar as dificuldades dos comerciantes do interior e para assegurar o intercâmbio com o grande centro de comércio, utilizando os precários meios de transporte, impôs-se há muito tempo a necessidade de fazer viajar representantes credenciados. Sua Missão resumia-se na procura do “vendeiro” no seu próprio estabelecimento, oferecer-lhe a oportunidade de remeter seu dinheiro sem que fosse obrigado a abandonar o seu negócio por um tempo maior, encomendar as mercadorias tomando como base as amostras apresentadas pelos caixeiros viajantes.
Foi preciso percorrer vastas e inóspitas regiões cobertas de mata, cortadas por caminhos raros e quase intransitáveis. Na época também já se viajava pelas intermináveis planuras verdes da Campanha. As ferrovias ainda eram desconhecidas entre nós. Vapores pequenos e precários percorriam, aqui e acolá, o Rio Jacuí e o Sinos, ou ligando em viagens irregulares os entrepostos comerciais do Taquari, o Porto dos Guimarães (São Sebastião do Caí) e o afamado “Passo” de São Leopoldo. (Riograndenser Musterreiter, p. VII)
No período aqui considerado, 1880-1930, o cenário de trabalho dos caixeiros viajantes cobria, não só toda a área de colonização alemã, de Taquara a Santa Maria e os primeiros núcleos de Passo Fundo, Soledade, Cruz Alta, Ijuí, Santa Rosa, .... Incluía também as colônias italianas mais antigas, principalmente o eixo Garibaldi - Bento Gonçalves – Veranópolis, assim como praticamente toda a Campanha. Nos relatos de caixeiros constam viagens para fazer a praça até em Uruguaiana. Não há necessidade de insistir que essas viagens implicavam num elevado teor de risco, por uma série de circunstâncias próprias da época.
Uma viagem no lombo de uma mula até Cachoeira do Sul, até Veranópolis ou até Alegrete e Uruguaiana, por si só significava já um desafio gigantesco. Exigia do caixeiro um preparo físico e uma disposição psicológica fora do comum. Para as pessoas de hoje, acostumadas a todo tipo de facilidades, fica difícil imaginar sequer uma cavalgada de semanas e até meses em condições de dificuldades extremas.
Falar do caixeiro viajante significa falar da natureza, da alma da prática comercial na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. O oposto é também verdadeiro. Querer caracterizar o comércio daquele período exige que se fale do papel fundamental que nele coube ao caixeiro viajante. Uma descrição do caixeiro viajante Carl Naschold de 1913, imortalizou o caixeiro no seus traços mais característicos. Reproduzimos o texto traduzido do original alemão, publicado no Riograndenser Musterreiter:
A vida do caixeiro viajante rio-grandense constitui-se num maravilhoso poema. Quem sabe apresenta-se alguém que reúna essa jóia numa única canção. Reúna numa única canção esse apetite indomado, essa atividade cheia de aventuras e persistência em meio a uma natureza toda peculiar, em meio às florescentes colônias alemãs e à Campanha rica em cidades.
O benigno leitor e a sempre graciosa leitora queiram emprestar asas à imaginação e deixar-se transportar comigo até uma das picadas alemãs, isto é, viajar comigo por uma daquelas estradas que cruzam as picadas alemãs. Vamos a cavalo e avançamos num trote lento e suave como é costume aqui, para não cansar demais nem o homem nem o animal. À direita e à esquerda áreas de mato alternam-se com potreiros, roças cultivadas e mordias. Essas últimas costumam ficar a uma boa distancia umas das outras e um pouco recuadas da estrada. Um muro ou uma cerca protegem as moradias e os potreiros, evitando que cavalos, reses, porcos e outros animais se evadam.
Aproximamo-nos de uma casa que fica perto da estrada. Diante da porta encontramos, em alguns casos sim e outros não, algumas árvores de sombra. O que nunca falta são postes e sobre eles traves transversais, ou pelo menos argolas para prender os nossos cavalos. Encontramo-nos diante de uma casa de comércio, de uma assim chamada “venda”. Apeamos pois, a nossa intenção é conhecer caixeiros viajantes que tem como cenário de trabalho as vendas. A atenta dona da venda se apressa em oferecer uma cadeira para a nossa bela leitora, facilitando o desmontar com o vestido comprido. As mulheres da colônia, na maioria dos casos, costumam andar a cavalo com vestido curto, sendo que algumas cavalgam bem à maneira dos homens. Saímos da luz ofuscante do dia e entramos na agradável penumbra da venda protegida da claridade com cortinas. Saudamos os presentes com um aperto de mão como é costume no País, quando são de alguma forma conhecidos. Depois sentamo-nos num banco em frente à mesa da loja chamada balcão. As senhoras que nos acompanharam sentam-se em cadeiras que lhes são oferecidas. Pedimos uma garrafa de cerveja nacional pois, a cavalgada ao sol nos rendera uma grande sede. Para as senhoras há licor, água com extrato de framboesa e doces.
Apesar dos muitos detalhes típicos a serem ainda observados está na hora de nos ocuparmos com o caixeiro viajante. Encaminhamo-nos até a porta e eis que se aproximam dois cavaleiros, sobre a cabeça chapéus de abas largas e caídas, um poncho esvoaçando ao vento, lenço no pescoço, botas de cano alto munidas com grandes esporas, o relho, com a direita segurando chicote de cabo curto, a pistola na guaiaca, o cinturão com a bolsa do dinheiro, confeccionada de pele de castor ou outro animal qualquer. Ainda não é certo que se trata de caixeiros viajantes pois, este é o traje nacional do Rio Grande do Sul e o mais adequado para as viagens do interior. Um dos homens ainda moço carrega atrás de si, pendendo de ambos os lados da cela, duas grandes bruacas de couro marrom. É o distintivo do caixeiro viajante. Passam por nós, erguem levemente o chapéu, saltam das mulas, passam o cabresto pela argola do poste o prendem-no na trave transversal. Entram na venda e saúdam a vendeira com um aperto de mão. Perguntam pelo dono da casa, pela família toda e de modo especial pelas filhas da casa. Os colonos presentes também os saúdam como velhos conhecidos. O motivo está nas muitas festas na colônia de que os viajantes participam e em cada uma das ocasiões em que se acham presentes, cabe-lhes o papel mais importante. São dançarinos desenvoltos e valentes bebedores. Os filhos da colônia a quem surrupiam as garotas reconciliam-se com eles pela sua maneira espontânea e elegante. Mandam servir dúzias da “inglesa”, isto é, cerveja estrangeira. Conhecem as piadas mais engraçadas, sabem contar os acontecimentos políticos e são o jornal vivo para a colônia. Cabe a eles formar a opinião pública dos colonos e dos comerciantes do interior. Durante a recente revolução rio-grandense eram vistos pelo governo como perigosos propagandistas dos maragatos, em outras palavras perturbadores da ordem, o que obviamente não passou de uma injustiça. Com raras exceções defendiam o único ponto de vista razoável: manter as colônias neutras frente à guerra fratricida de brasileiros contra brasileiros. Os caixeiros viajantes representam em todo o caso um poder. São os pioneiros do comércio alemão e os defensores do germanismo. Conquistam muitos amigos e muito apoio na colônia, são convidados para padrinhos e a maioria encontra suas mulheres nas melhores famílias da colônia.
A vendeira informa aos dois caixeiros que o marido saiu a cavalo para voltar em seguida. Não vai demorar porque à noite haverá “música”, isto é, baile na casa, para o qual estavam obviamente convidados a ficar. Em tais ocasiões os caixeiros são hóspedes sempre bem vindos para os comerciantes pois, gastam bastante e garantem a movimentação para o estabelecimento. O dono das grandes bruacas, um viajante de fazendas, convenceu-se logo que com o reboliço na casa não havia esperança para qualquer tipo de acerto e resignou-se com a sorte. Mas o outro viajante para secos e molhados, isto é, mercadorias para o consumo na colônia pretendia continuar a viagem, porque tinha a concorrência nos calcanhares e, com certeza, não é nenhuma diversão quando um outro tira a nata do leite. A gente mesmo prefere fazê-lo. Enquanto tentava argumentar entrou o vendeiro, saudou os dois com alarde: “viajando de novo por aqui?” Sacode-lhes amigavelmente as mãos enquanto os interpela: “Se não ficarem para o baile não compro nada. Hoje não se faz negocio”. Depois desta o viajante para secos e molhados conformou-se também. O primeiro levou a sacola com as roupas, os livros de leitura e um par de chinelos para dentro e o segundo suas grandes e pesadas bruacas de couro, presas uma na outra com uma longa tira.
Desencilharam as mulas, colocaram uma caixinha com meia quarta de milho na frente de cada uma. Depois de comerem o milho soltaram-nas no potreiro, uma ampla área de pasto cercada com arame. Os cavalos e as mulas que pastam no potreiro costumam ser reunidas em torno de um grande coxo comum no qual recebem milho para comer. Animais estranhos costumam receber o trato à parte porque são impedidos de comer no coxo pelos coices dos de casa.
A primeira coisa que os viajantes fazem logo após a saudação, é pedir uma ou duas garrafas de cerveja, de preferência nacional. Um grande número de cervejeiros abastece as colônias com um produto de qualidade aceitável. A cerveja importada é vendida por dois e meio a três mil réis a garrafa, muito cara para as condições de hoje. É óbvio que o negociante participe. Sua mulher também é convidada para um copo. Depois a conversa deslancha e versa sobre todo o tipo de novidades de natureza política, pessoal e humorística. O tomar cerveja serve de preâmbulo para começar os negócios. Daí para frente as coisas se tornam mais fáceis para o caixeiro, especialmente quando viaja para uma casa bem conceituada, porque os comerciantes raramente compram de um único e do mesmo ramo. Costumam comprar dos viajantes de quase todas as firmas, em parte porque no ramo dos tecidos a diversidade do sortimento o exige e em parte porque de alguma forma cultivam uma tal ou qual amizade com todos os caixeiros e também porque eles “consomem” alguma coisa. Alguns comerciantes instalados em locais estratégicos, consolidaram um negocio lucrativo com a circulação dos viajantes. Mantêm uma espécie de hospedaria na qual eles gostam de pernoitar. Nessas ocasiões costumam bebericar principalmente quando há vários reunidos. O negociante bebe com eles à vontade, vinho à mesa e cerveja depois, diverte-se com a conversa e termina lucrando na comida e na bebida e no pernoite, mesmo cobrando preços módicos. De qualquer forma todo o comerciante concede acolhida ao viajante quando este é surpreendido pela noite, porque nas picadas da colônia não há hotéis. Só se encontram nos núcleos maiores. Via de regra os preços são acessíveis. São exceções os negociantes conhecidos como notórios exploradores de viajantes. Mais frequentes são os hoteleiros que conseguem resultados fabulosos com a manipulação de contas por meio de cálculos fantásticos. Um deles tinha o costume de anotar sempre uma segunda garrafa de cerveja ou vinho indistintamente para todos os viajantes, a titulo de penalidade pelo incômodo causado ao dono da casa. Aplicava a penalidade também nos casos em que o hospedeiro estava mal disposto ou se esquivava para providenciar bebida. Acontece que o hotel er o único na cidadezinha onde se encontrava boa bebida e, o que era mais importante, onde também as mulas eram servidas com um bom pasto. Por isso, apesar de tudo, era procurado por quase todos os viajantes. Não é de se admirar que esse tipo de hoteleiro acumulava em pouco tempo uma fortuna.
Neste meio tempo os dois viajantes liquidaram diversas garrafas de cerveja acompanhados pelo negociante. A filha crescida da casa entrou saudou os viajantes com um jovial aperto de mão, manifestando satisfação pelo fato de os dois ficarem para a “musica” e manifestando uma certa contrariedade porque o dos secos e molhados pretendia seguir viagem. Pede desculpas porque para a noite a espera muito trabalho. Numa “música” como aquela janta-se e toma-se café e como consequência há muito que fazer na cozinha. Alem disso é preciso arrumar, varrer e limpar o armazém onde normalmente acontece o baile, enfeitá-lo com leques de coqueiro e taquaras. Estearina ralada é espalhada pelo assoalho para torná-lo escorregadio. Uma garrafa de vinho do Reno presa a uma grinalda verde é pendurada no meio do salão. Ela é imediatamente reposta logo que algum rapaz toma coragem para baixar esse enfeite relativamente caro.
Em meio ao fluxo do alegre entretenimento o caixeiro não perde de vista os negócios, obviamente sem deixar transparecer nada. Aparentemente sem segundas intenções procura descobrir, com perguntas e observações casualmente entremeadas na conversa, que mercadorias estão faltando ao vendeiro. Procura fazer amizade com o “caixeiro”, que é o faz tudo nas casas de comércio da colônia e ao mesmo tempo é responsável pelo andamento da casa, fazendo o papel de guarda-livro, de correspondente, de balconista, supervisor do estoque, peão e professor da casa. É dele que o caixeiro viajante procura obter as informações a respeito do que falta em mercadorias. Inspeciona também as prateleiras e dá uma volta pelo armazém. Munido com todas as informações ataca finalmente o negociante. Este quase sempre costuma fazer objeções dizendo que não precisa de nada, que vende muito pouco e assim por diante, para finalmente fechar uma vultosa encomenda.
O viajante para secos e molhados tem consciência que a concorrência está no seu encalço. Sabe também que na manhã seguinte depois do baile não haverá negocio porque o negociante quer dormir, ou está de mau humor, ou tem que atender os fregueses. Saca energicamente o livro e, como secos e molhados não requerem amostras e os livros são relativamente poucos, o negociante se aproxima depois de alguma resistência. Pergunta pelos preços dos artigos principais, faz saber que gostaria de um preço um pouco melhor. De tudo quer o melhor para finalmente fazer a encomenda. Em seguida o viajante apresenta a relação dos artigos constantes em seu livro e que ainda não haviam sido discutidos. Um ou outro deles irá completar a encomenda. O segundo viajante procura ajudar o colega da maneira mais discreta possível. De vez em quando joga uma palavra no meio capaz de convencer o negociante a ficar com o artigo ou um número maior do mesmo. Nesta questão o câmbio eternamente flutuante desempenha um papel importante. Estimula ou desestimula a compra na medida em que se prevê a queda ou a elevação dos preços.
As encomendas estão concluídas, quando se aproximam mais três viajantes: um representante de ferragens, um de porcelanas e um de sabão, todos obrigatoriamente montados e suas mulas. Um caixeiro viajante montado em cavalo é uma raridade, quase uma aberração. Nas colônias montanhosas os cavalos não tem resistência suficiente para viagens que duram semanas. Acontece um grande e alegre alvoroço. Obviamente pede-se cerveja à vontade e um conversa animada tem andamento. Todos sem exceção são homens moços que levam uma vida livre quase sem freios, sadios e preparados para enfrentar qualquer tipo de intempérie. Mostram-se indiferentes à chuva torrencial, ao sol escaldante, a estradas escorregadias, enlameadas ou beirando precipícios, a arroios caudalosos, aos perigos nas trilhas solitárias no mato e aos riscos das estradas sem fim da Campanha. Carregam uma faca, mas muitos viajantes, por comodidade, levam as pistolas na bruaca ou na bolsa junto ao poncho. Não conhecem medo. Tomando em conta o grande número de caixeiros viajantes permanentemente na estrada, constitui-se numa raridade extraordinária alguém ser assaltado. Este fato é tanto mais admirável quando qualquer um sabe que eles costumam carregar muito dinheiro e são obrigados a passar por regiões onde só mora gente cor de café com leite. A maioria deles abate um ser humano com o mesmo sangue frio com que sangram uma rês. Mas esse povinho costuma ser covarde e indolente. Entre eles como entre os luso-brasileiros os assassinatos para roubar são menos freqüentes do que por ciúmes, por mulheres, pelo jogo ou pelas carreiras, ocasiões em que as vitimas são muitas.
Neste meio tempo anoiteceu. A dona da casa chama para dentro da venda: venham jantar! E todos sentam-se à mesa. O feijão que raras vezes falta é servido com carne seca ou carne de porco, farinha de mandioca, arroz, ovos fritos com linguiça e, por fim, um liquido suspeito semelhante a café, feito mais de cevada, milho ou feijão do que de café. A tudo isso soma-se pão de centeio e “Schmier”. Como é dia de “musica” oferece-se, em consideração aos viajantes, algumas amostras do cardápio do baile: um pouco de chucrute, batata, carne de porco, galinha, massa e pêssegos cozidos. Por fim serve-se um bolo bem ordinário.
Depois do jantar os viajantes dirigem-se ao recinto do baile. Ainda não há ninguém. Poucas moças estão sentadas nos compridos bancos encostados nas paredes. De pé junto ao balcão alguns colonos tomam cachaça ou uma garrafa de cerveja. O pequeno estrado destinado aos músicos está ainda vazio. Eles chegaram há algum tempo, desencilharam os cavalos, soltaram-nos no potreiro e de momento estão jantando. Os músicos são honrados colonos. Como amadores ensaiaram nas horas de folga sob a regência de um “maestro” conhecedor de música. Nos períodos em que a plantação o permite dirigem-se, ora para um, ora para outro local, em viagens a cavalo de um dia ou mais. À noite tocam em bailes, casamentos, bênçãos de igrejas, ganhando um bom dinheiro. A plantação na roça não pode ser negligenciada. É óbvio que na ausência do marido as mulheres se encarregam do mais urgente. Aliás em qualquer situação as mulheres da colônia são obrigadas a trabalhar mais do que os homens. Não só auxiliam com toda a dedicação na roça, como tomam conta dos filhos e da casa, enquanto os homens descansam.
Aos poucos o salão enche. Os colonos vem chegando em companhia das mulheres, dos rapazes e das moças, a maioria a cavalo, os das redondezas a pé. Excetuando-se as cidades, anda-se aqui muito pouco a pé, pois os caminhos são ruins, os cavalos baratos e para o transporte dos produtos o colono os precisa de qualquer maneira.
Os colonos usam chapéu de abas largas e às vezes poncho. Além disso, não se observa nada de especial em seus trajes. O chapéu e o poncho são tirados e guardados na entrada no salão. Acontece também que nos bailes coloniais um ou outro rapaz provocador dança de chapéu, poncho, botas e esporas. As moças usam vestidos de chita clara e sapatos baixos e na maioria das vezes também espartilhos. Por falta de quem tome conta, as mulheres levam com freqüência as crianças de peito. Elas são acomodadas em camas colocadas num quarto qualquer.
A banda ocupa o seu lugar e toca a primeira marca. Não se costuma dançar a “polonaise”. Os rapazes dirigem-se até as moças e sem muita cerimônia as convidam. Elas evitam geralmente a recusa. Dança-se bem e com desenvoltura. O salão está apinhado e acontecem fortes cotoveladas nas costelas. Os mais velhos parados junto à mesa como de costume bebem coragem para em seguida precipitarem-se com qualquer uma das mulheres nos braços, misturando-se na confusão do aperto. Durante a dança o dialogo é praticamente impossível. Aliás não há grande necessidade para tanto. É difícil entender-se em meio à musica de instrumentos de metal, o sapatear cadenciado, os gritos roucos de alguns e os assobios imprevistos. Terminada a dança, a dama é conduzida diretamente para o banco ou dá-se primeiro uma circulada pelo salão. Não poucos rapazes, numa atitude mal vista, não largam a sua garota durante a noite toda. Durante a pausa os homens encaminham-se para a mesa e bebem com vontade, quase sempre cerveja. Beber vinho é considerado uma ofensa segundo os costumes daqui. Outros são convidados a acompanhar, sendo preciso mandar abrir não só uma mas várias garrafas de cerveja. Aquele que manda colocar na mesa meia dúzia ou uma dúzia de cerveja inglesa, conquista o maior respeito. É neste particular que os viajantes não escapam para conquistar a simpatia do hospedeiro e dos comerciantes que de alguma forma participam da “música”. Os viajantes evidentemente não se fazem de rogados.
Enquanto os homens bebem demais o mundo feminino geralmente recebe de menos. Um ou outro dos rapazes providencia uma gasosa, um copo de água com framboesa ou uma garrafa de cerveja. Há também os homens que se lembram das mulheres e estas oferecem para as vizinhas. Mas na maioria das vezes elas se vêem obrigadas a reclamar antes de receberem alguma coisa. De resto elas comem e bebem muito pouco durante a “música”. Pela meia noite elas são conduzidas até uma mesa por seus pares. A comida é a mesma que já mencionamos, seguida de café e cuca.
Um ou outro manda meia dúzia de cervejas para os músicos no estrado. Eles são muito sensíveis em relação a isso e reclamam quando são esquecidos. Em troca é permitido pedir que toquem um dança especial, uma “marca” a pedido. Todos participam da dança. A seqüência das danças fica, na maioria dos casos, entregue à vontade dos músicos. É rara uma programação impressa. Um dos músicos faz uma coleta durante a dança. Costuma dar-se um patacão, isto é, dois mil réis ou mais por uma noite inteira.
Depois da janta a dança continua solta até clarear o dia. Não poucos rapazes enamorados deixam-se ficar sentados no banco com o braço dado com sua garota, alheios ao reboliço em volta ou quem sabe, adormecido com a cabeça reclinada no seio dela. Nestas coisas o homem costuma ser bastante desenvolto e nada melindroso.
Durante a noite toda os dois caixeiros viajantes bebericaram com aplicação e dançaram de preferência com as mulheres e as filhas dos negociantes, sem contudo mostrar-se indiferentes a outras beldades. Deitam-se de madrugada para dormir e levantar cedo. Estão habituados a tudo isso e pois seus corpos foram temperados e são versáteis. O viajante para secos e molhados que já resolveu seus negócios manda buscar a mula no potreiro para tratá-la com milho, toma uma xícara de café enquanto come lingüiça e pão preto. Para cobrir as despesas do hospedeiro com aparência deplorável, convida os colegas e o hospedeiro para um conhaque. Os outros oferecem também uma dose e os copos são enchidos e esvaziados várias vezes. Finalmente liberta-se dos seus colegas que tentam convencê-lo a ficar, deixa uma saudação para a mulher e filha do dono da casa que ainda dormem e cavalga pelo ar puro e fresco da manhã. A mula descansada avança disposta pelo caminho de argila endurecida. As montanhas estão azuladas, as matas exalam perfumes, os rios e arroios fumegam, no firmamento lampejam os primeiros clarões da aurora. É a hora em que a poesia inunda o coração do viajante, é a hora em que aos brados externa toda a sua indômita vontade de viver. Apeia em todas as vendas onde pretende ou onde tem ocasião para realizar negócios. Em cada uma dessas vendas é obrigado a beber alguma coisa. O sol se eleva cada vez mais. O calor aumenta sem parar. Sorte sua quando pode cavalgar na sombra do mato. Quando, porém, a viagem se estende pelo campo aberto sem proteção, por estradas largas sem árvores, os raios do sol o atingem como flechas ou de cima ou reverberados pelo chão. Cavalga num mar de luz e claridade. Obriga-se a enterrar o chapéu fundo na testa, a fim de evitar que os olhes se ofusquem. O calor espreme o suor por todos os poros. Chegando após o almoço nessas condições numa venda, deita-se para dormir uma hora enquanto deixa a mula descansar. Depois segue viagem pela canícula e pelo pó da estrada. Com a aproximação do crepúsculo, acompanhado com suas sombras e seu frescor, com satisfação avisa enfim o objetivo da viagem. A mula avança com maior rapidez e leveza do que de manhã e relincha alegremente ao avistar a cidadezinha que lhe é familiar. Uma dessas mulas experimentadas dos caixeiros viajantes conhece todos os caminhos tantas vezes percorridos e sem ser mandada pára na frente das casas de comércio e das pousadas. Não raro os viajantes obrigam-se a apear por um momento diante de uma casa em que não pretendia entrar, para o animal então resolver seguir caminho sem problemas.